Espero que Bolsonaro e Pazuello, mesmo fora do cargo, respondam por improbidade
Enquanto escrevo nesta quinta a coluna que você lê agora, o precioso tempo dos ministros do Supremo Tribunal Federal é consumido numa questão já pacificada na Constituição, na legislação ordinária e numa portaria do ministério da Saúde: a compulsoriedade da vacina. Por compulsória, os recalcitrantes sem causa, que não uma injustificada obstinação, têm de arcar com as consequências de sua resistência.
Não se aplica a vacina à força, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski, relator de duas ações diretas de inconstitucionalidade, num voto impecável. Mas é legítimo que o Estado casse benefícios ou crie restrições de circulação a quem decidir se apartar da imunização desde que isso esteja previsto em lei.
Ao ler o voto do ministro na quarta à noite, uma música de protesto começou a soar aos meus ouvidos, vinda lá de 1969, ano seguinte à decretação do AI-5: “E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr”.
É trecho de “Rosa dos Ventos”, de Chico Buarque, que deu nome a um show de Maria Bethânia, com direito a LP, em 1971. Tudo muito antigo. Santo Deus! Não é possível que, 50 anos depois, estejamos aqui a caçar metáforas nas trevas, entre as pregas, nas pedras, vendo o tempo correr…
A rigor —e não se trata de uma crítica a Lewandowski, deixo claro—, o ministro nem deveria, como se diz no jargão técnico, ter “conhecido das ações”. Sim, leitor, em direito, o “conhecer” é verbo transitivo indireto, no sentido de “tomar conhecimento de”. E, no entanto, ao se ver obrigado a fazer o desnecessário, assim como o tribunal, acabou fazendo a coisa certa.
Eis aí um emblema do grande salto civilizatório para trás que é o governo Bolsonaro. O país e as instituições deixam de se ocupar dos desafios do presente com vistas ao futuro —e não se trata de mera retórica— para ter de refazer o que esses depredadores da ordem vão destruindo com sua ignorância truculenta.
Exceção feita à pororoca —à bossa nova, a um Machado, a um Drummond, a um Rosa ou a uma Clarice, que, de vez em quando, brotam em nosso jardim—, já há tão pouco do que nos orgulhar… Como destacou o The New York Times, o mundo da ciência reconhecia um sistema eficiente de imunização em Banânia, mesmo em meio às nossas obscenidades sangrentas.
Um capitão da reserva e um general da ativa, como dois arruaceiros, chegaram arrebentando as portas da excelência, cobrindo com o véu opaco de sua estupidez o que havia de clareza no setor, de modo a obrigar a Corte Suprema do país a decidir o que decidido já está desde a lei 6.259, de 1975 —no tempo em que ainda caminhávamos nas trevas.
Estamos, como sociedade, nos acostumando ao atraso, normalizando o absurdo, normatizando a burrice. A delinquência vai se esgueirando às margens da lei ou contra ela, de sorte que mesmo aquilo que já está sacramentado pela legislação ou pacificado pelo entendimento majoritário de tribunais superiores vai sendo permanentemente desafiado, um pouco por dia, de forma determinada, obsessiva, contínua, constituindo um método, ainda que seja o da desordem.
Expresso na minha última coluna deste 2020 os bons auspícios no modo que segue.
Espero que Bolsonaro e Pazuello, quando fora do cargo, venham a responder por uma tempestade de ações de improbidade administrativa, nos termos em que a medida provisória 966 foi admitida como constitucional pelo Supremo.
Estou entre os que entendem que ex-presidentes e ex-ministros podem responder por improbidade. Há condicionantes muito claras definidas pelo tribunal.
O STF assentou, então, que a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais na área da saúde, constitui “erro grosseiro” e “elevado grau” de negligência. Que os Recrutas Zero da cloroquina paguem por seus feitos. É o que posso desejar de melhor, leitores!
Este escriba tira quatro colunas de férias e retoma a lida no dia 22 de janeiro. Mantenha o distanciamento social e cultive o jardim. Um Voltaire de máscara.