O Supremo Tribunal Federal é um dos pilares da nossa estrutura democrática, sendo fundmental em temas como a defesa das minorias e no combate à pandemia, por exemplo, mas tem problemas e, em algumas situações, sua atuação rendeu críticas, avalia João Trindade
É conhecido que Ulisses, na Odisseia, pediu a seus marinheiros que o amarrassem ao mastro do barco a fim de que não cedesse ao canto das sereias. Trata-se de uma alegoria sobre renúncia, confiança, sobre a vitória da racionalidade contra o desejo. Também muito conhecida é a aplicação desta metáfora para o papel da jurisdição constitucional: Ulisses seria o povo; as sereias seriam os riscos do autoritarismo, e a tripulação representaria a jurisdição constitucional, os responsáveis pela guarda da Constituição.
A pergunta que se faz é se, no barco brasileiro, Ulisses ainda confia em sua tripulação.
O STF é, óbvio, um dos pilares da nossa estrutura democrática. Mas também tem problemas: decide causas demais, os ministros dão muitas decisões monocráticas, a Corte poderia e deveria ter uma jurisprudência mais estável, previsível, além de precisar, de tempos em tempos, praticar as “virtudes passivas”.
No combate à pandemia, ao reforçar a descentralização política e assegurar o poder de governadores e prefeitos definirem as medidas sanitárias, o Tribunal evitou que o negacionismo do Governo Federal deixasse ainda mais mortos do que os 177 mil atuais.
Noutras ocasiões, postou-se em defesa de minorias. Foi o caso da ADO nº 26, quando decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia. Porém, tal decisão é ambígua. Reforçou a defesa de grupos minoritários, mas, ao estabelecer um crime sem lei anterior que o defina, vulnerou um princípio milenar do direito penal (a legalidade). Teria sido melhor para Corte e para a democracia que se tivesse utilizado da técnica do “apelo ao legislador”.
Em outras situações, o papel concreto do STF não foi tão positivo para a democracia. A Corte acaba de decidir sobre a impossibilidade de reeleição dos presidentes das casas legislativas dentro da mesma legislatura. Não deveria haver qualquer dúvida de que o art. 57, § 4º, da CF, diz o que efetivamente busca dizer. Permitir a reeleição dos dirigentes das casas legislativas por conta do reconhecido papel que desempenharam parece uma espécie de “casuísmo do bem”. Porém, mesmo os que votaram pelo respeito à literalidade do texto constitucional não o fizeram todos por respeito à Constituição, mas sim – alguns – por pressão da opinião pública. A tripulação cumpriu a ordem de Ulisses não por lealdade, mas porque, pega em flagrante pelo olhar do chefe, foi obrigada a retornar às posições.
Em algumas situações, o STF, ao invés de garantir a democracia, colocou-a em risco. Destaco a ADPF nº 402, ou “o dia em que um ministro do STF monocraticamente afastou um presidente de poder”, ocasião em que o Plenário da corte teve que, por assim dizer, “apagar o incêndio”, evitando uma crise institucional ainda maior. No caso do impeachmentde Dilma Rousseff, a polêmica decisão de “fatiar a pena” foi proferida numa sessão sob a presidência de um ministro da Corte. Em contraponto, não se pode esquecer que a Corte, durante todas as outras fases do longo processo de impeachment, cumpriu seu papel de guardião do procedimento, inclusive estabelecendo o “passo a passo” dos atos processuais.
Passamos incólumes por algumas sereias, mas a desconfiança de Ulisses em relação à tripulação não parece ter diminuído.
Foi preciso que o próprio STF afastasse, por exemplo, interpretações tresloucadas que defendiam a possibilidade de uma “intervenção militar constitucional” (?). Uma leitura quimicamente aditivada do art. 142 da CF precisar de uma negativa expressa do mundo jurídico e da própria Corte já mostra que o canto das sereias é realmente tão atrativo quanto perigoso.
Recentemente, uma sereia chegou a tentar Ulisses oferecendo-lhe amordaçar a própria tripulação com a ajuda de um soldado e um cabo. Felizmente, nesse caso, Ulisses mais achou graça do que ficou tentado. Mas talvez seja o momento de a tripulação se concentrar em cumprir de forma cada vez mais denodada as ordens que Ulisses lhe transmitiu – nada mais, nada menos. Afinal de contas, toda a relação entre Ulisses e a tripulação é baseada na confiança recíproca. A nós, que queremos Democracia acima de tudo e a Constituição acima de todos, resta advertir Ulisses e cobrar da tripulação.
*Consultor Legislativo do Senado Federal. Mestre (Instituto Brasiliense de Direito Público) e Doutorando