Cláudio de Oliveira: Julius Martov e a Revolução Russa

Julius Martov (na foto, sentado, à direita) foi uma das mais proeminentes personagens da Revolução Russa de 1917. Líder dos internacionalistas, facção de esquerda dos mencheviques, ele se opôs à participação dos socialistas nos governos provisórios após a Revolução de Março e a abdicação do czar Nicolau II [1]. Foi também contrário à permanência da Rússia na I Guerra Mundial. A continuidade no conflito agravou a crise econômica do país e a insatisfação popular abriu caminho para a Revolução de Novembro, quando então os bolcheviques tomaram o poder, liderados por Vladimir Lenin [2].
Foto: Reprodução/Google
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Julius Martov (na foto, sentado, à direita) foi uma das mais proeminentes personagens da Revolução Russa de 1917. Líder dos internacionalistas, facção de esquerda dos mencheviques, ele se opôs à participação dos socialistas nos governos provisórios após a Revolução de Março e a abdicação do czar Nicolau II [1]. Foi também contrário à permanência da Rússia na I Guerra Mundial. A continuidade no conflito agravou a crise econômica do país e a insatisfação popular abriu caminho para a Revolução de Novembro, quando então os bolcheviques tomaram o poder, liderados por Vladimir Lenin [2].

No dia 8 de novembro, dia seguinte à insurreição, durante o 2º Congresso dos Sovietes — os conselhos de representantes de operários, camponeses, soldados e marinheiros — Martov propôs a formação de um governo de união de todas as correntes do socialismo russo para evitar que o país mergulhasse no caos. Para desespero de Martov, a maioria dos mencheviques e socialistas revolucionários se retirou do encontro em protesto contra o levante. O gesto dificultou a negociação apoiada por líderes bolcheviques como Grigori Zinoviev e Lev Kamenev. No entanto, a resposta da maioria bolchevique à proposta veio de Leon Trotski:

As massas populares seguiram nosso estandarte e nossa insurreição é vitoriosa. E agora nos dizem: Renunciem à vitória, façam concessões, cedam. A quem? Eu pergunto: a estes grupos deploráveis que nos abandonaram ou a quem apresenta tal proposta? […] Ninguém na Rússia continua ao lado deles. Um acordo só pode ser firmado entre partes iguais […]. Mas aqui não há acordo possível. Àqueles que nos deixaram e àqueles que nos aconselham a transigir, respondemos: Vocês são corruptos miseráveis, sua função acabou; vão para onde devem ir — para a lata de lixo da história.
Martov então se concentrou nas eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas no final daquele mês. Porém, os mencheviques obtiveram uma votação de apenas 3%. Contrariando a arrogância e o sectarismo de Trotski, os vencedores foram os socialistas revolucionários, com 40% dos votos, ao suplantarem os 24% dados aos bolcheviques [3]. Os liberais do Partido Constitucional Democrata obtiveram 5% dos votos. Em minoria e com ajuda de soldados que participaram da insurreição, os bolcheviques fecharam a Constituinte.

Iniciada a guerra civil, Martov apoiou o Exército Vermelho contra a intervenção estrangeira e o Exército Branco, comandado por generais monarquistas. Apesar do apoio ao governo soviético no combate à contrarrevolução, o líder menchevique foi um crítico contundente da repressão generalizada, opondo-se ao fechamento de jornais liberais e às perseguições aos partidos que faziam oposição pacífica. As posições de Martov indicavam a possibilidade de uma alternativa democrática e socialista tanto ao último governo provisório — liderado pelo trudovique Alexander Kerensky —, quanto à ditadura comunista que se seguiu [4]. A bibliografia sobre Martov em português é quase inexistente. Após o fim da União Soviética, em 1991, foram publicados vários livros revalorizando o papel de Martov na Revolução Russa. Porém, a obra fundamental sobre ele foi publicada ainda em 1967 pela Editora da Universidade de Cambridge, do Reino Unido, em coedição com a Universidade de Melbourne, da Austrália. Intitulada Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat, é de autoria de Israel Getzler (1920-2012), professor da Universidade de Jerusalém, e continua inédita no Brasil.

A questão democrática

A obra de Getzler traz as polêmicas entre Martov e Lenin, como a de 1903, durante o 2º Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), sobre a organização do partido: se dirigido por um comitê centralizado, mas aberto à filiação de todos os que aderissem ao seu programa, como defendido por Martov, ou se por um círculo composto exclusivamente de revolucionários profissionais, como queria Lenin. A proposta vencedora foi a de Martov. O livro relata a ação posterior de Lenin para alcançar a maioria, pois, mesmo vencendo no Congresso, Martov e seus partidários ficaram em minoria no Comitê Central, o que causou a divisão do POSDR em duas alas: mencheviques (partidários da minoria, em russo) e bolcheviques (partidários da maioria).

A discussão sobre a forma de organização partidária revelava duas questões de fundo que marcarão todas as divergências entre Martov e Lenin: a avaliação que faziam do nível de desenvolvimento econômico da Rússia e a concepção de cada um sobre o Estado e a democracia. Lenin acreditava que o capitalismo estava suficientemente desenvolvido para uma revolução socialista e defendia um governo forte e centralizado — a ditadura do proletariado. Martov avaliava que o país não estava suficientemente industrializado, possuía um operariado pequeno e uma grande massa de camponeses analfabetos. Propunha uma estratégia democrática e reformista, como já praticada por socialistas franceses e alemães.

Tais diferenças ficarão profundamente marcadas com a chegada dos bolcheviques ao poder, quando os conceitos de democracia e ditadura do proletariado serão alvos de controvérsias entre Lenin, Martov e Karl Kautsky, influente teórico do Partido Social-Democrata Alemão. Para estes dois últimos, a democracia era um valor intrínseco ao ideário socialista. Para Lenin, apenas uma formalidade. A visão leninista justificou a dissolução da Constituinte e a repressão a todos os adversários, dos liberais aos socialistas, como Martov.

Outra polêmica se estabeleceu a partir de 1914, com o início da I Guerra Mundial e o colapso da II Internacional, a organização que congregava os partidos socialistas europeus, dissolvida em 1916. Vários daqueles partidos tomaram posições nacionalistas em apoio ao esforço de guerra de seus respectivos países, enquanto outros se opuseram ao conflito. O mais influente de todos eles, o Partido Social-Democrata Alemão, votou pelos créditos de guerra, alegando que o Império Alemão se defendia das agressões do Império Russo. Mencheviques como Georgi Plekhanov, um dos introdutores do marxismo na Rússia, também tomaram posição nacionalista, acreditando que a derrota da Alemanha seria a vitória da Inglaterra e da França e, assim, dos valores democráticos.

No entanto, Martov formou uma ala do POSDR contra a guerra, passando a sua facção a ser denominada de internacionalista. Dessa vez, Martov e Lenin ficaram ao mesmo lado, ao considerarem o conflito uma disputa entre as potências europeias, estranha aos interesses dos trabalhadores. Mas havia uma diferença: enquanto Lenin propunha transformar a guerra imperialista em guerra civil do operariado contra as classes dominantes, Martov defendia uma proposta pacifista de armistício imediato, sem anexações e reparações.

A aproximação entre mencheviques e bolcheviques levou a uma tentativa de reunificação do POSDR, desejada por Martov. Afinal, ele havia iniciado sua militância ao lado de Lenin, ambos com pouco mais de 20 anos de idade, quando juntos fundaram, em 1895, a Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operária de São Petersburgo, iniciando uma amizade e admiração mútua. A Liga criou as bases para que ambos participassem da organização do POSDR, em 1898. Estiveram juntos na redação do Iskra (centelha), o jornal do partido, e compartilharam o exílio na Sibéria e em vários países da Europa ocidental. Mas a união entre as duas alas não prosperou, para desapontamento de Martov, retratado na biografia como sentimental, indeciso, incapaz de deslealdades: o oposto de Lenin. De moral e ética rígidas para os padrões bolcheviques, Martov pediu a expulsão de militantes envolvidos em roubos a bancos para financiar a atividade partidária. Em 1918, denunciou publicamente Josef Stalin pela participação em um assalto, em 1907, na capital da Geórgia, Tbilisi, em ação desastrosa que teria deixado vários mortos.

Depois da Revolução de Novembro, Martov conquistou a maioria no Comitê Central do POSDR, em oposição à ala direita do partido, representada por Fyodor Dan, Pavel Akselrod e Irakli Tsereteli. Em 1919, os mencheviques haviam resolvido aceitar o governo soviético, adiar a batalha pela convocação da Constituinte, protestar contra o esvaziamento dos poderes dos sovietes e lutar para transformá-los em órgão de poder democrático e parlamentar. Apesar de então se opor à contrarrevolução, o partido menchevique sofreu a repressão dos bolcheviques, alternando momentos de legalidade, proscrição e semiclandestinidade, até ser definitivamente banido em 1921, ao defender as reivindicações da revolta dos marinheiros bolcheviques do Kronstadt. O jornal menchevique Avante foi fechado várias vezes. O próprio Martov ficou em prisão domiciliar por cinco dias, e só teria escapado da repressão da Tcheka, a polícia secreta que antecedeu a KGB, por proteção de Lenin. Na ocasião da proscrição do POSDR, Martov estava na Alemanha para tratamento de saúde.

Inspiração para a NEP

Com a desilusão de muitos operários após o fracasso econômico do comunismo de guerra, período no qual todos os setores da economia foram estatizados e o Estado monopolizou a compra da produção agrícola e impôs baixos preços aos produtores, causando desabastecimento e fome, os mencheviques conseguiram alguns êxitos nas eleições dos sovietes locais. No início de 1920, apresentaram o nome de Martov para a eleição ao soviete de Moscou, e, para confrontar o líder menchevique, os bolcheviques apresentaram a candidatura de Lenin. Durante uma votação entre operários em uma fábrica de produtos químicos, Martov obteve 76 votos contra oito dados a Lenin.

A ação de Martov e de seus partidários não foi apenas crítica, como também propositiva. Em julho de 1919, em meio à guerra civil e à grave crise econômica, os mencheviques apresentaram um programa econômico alternativo ao comunismo de guerra. Defenderam um regime de economia mista, no qual o setor estatal deveria conviver com o setor privado. Segundo o programa, somente setores fundamentais da grande indústria deveriam ser nacionalizados. Defenderam que os camponeses deveriam decidir livremente sobre produção e preços e o Estado deveria negociar acordos com cooperativas para o abastecimento das cidades, entre outras medidas. Geztler sugere que tal programa serviu de base para que Lenin formulasse, em fevereiro de 1921, a Nova Política Econômica, a NEP, em substituição ao comunismo de guerra, então motivo de greves e protestos.

Com a NEP, várias proposições dos mencheviques foram adotadas e medidas de mercado foram introduzidas na combalida economia soviética, inclusive a permissão ao investimento estrangeiro. Apesar da oposição da esquerda bolchevique, encabeçada por Trotski, Lenin conseguiu aprovar a NEP e a defendeu como um capitalismo de Estado, necessário para recuperar a economia e fazer uma transição ao socialismo. O plano começou a tirar o país da crise e teve o apoio de Nikolai Bukharin, um economista bolchevique que gradualmente passou de posições políticas radicais para moderadas. Após o afastamento de Lenin por motivo de saúde, na segunda metade de 1921, Bukharin se tornou o principal defensor da NEP e fez oposição ao plano de industrialização acelerada e coletivização forçada lançado por Stalin em 1928. Bukharin foi fuzilado nos expurgos na década de 1930.

A terceira via

Em 1920, Martov foi autorizado a deixar a Rússia para tratamento de saúde na Alemanha e participar da convenção do Partido Independente Social-Democrata Alemão (cuja sigla em alemão era USPD), na cidade de Halle. Naquele ano, o USPD havia sido o segundo partido mais votado, com 17,9% dos votos, abaixo apenas do governante Partido Social-Democrata, o SPD, que conquistara 21,7%. Martov fora convidado pelos moderados do USPD para convencer os socialistas alemães a não aderirem à Internacional Comunista (IC), a III Internacional, criada em 1919 por Lenin, e que estimulou os radicais dos partidos socialistas a fundarem os partidos comunistas. Para fazer o contraditório com Martov, a ala esquerda do USPD convidou o presidente da IC, Grigori Zinoviev. Com a saúde abalada e a voz fraca, Martov não conseguiu terminar o seu discurso, lido então por um dos presentes. A proposta de adesão à IC ganhou o apoio de 236 contra 150 dos convencionais e a ala esquerda aderiu ao PC alemão. Porém, três quartos da bancada de 81 deputados permaneceram no USPD.

Como resultado da intervenção de Martov, o USPD se articulou com o Partido Social-Democrata Operário da Áustria e outros para fundarem, em janeiro de 1921, a União de Partidos Socialistas para a Ação Internacional, conhecida também como a Internacional de Viena ou a Internacional Dois e Meio, que buscou uma via intermediária entre o comunismo da III Internacional e a social-democracia da II Internacional. Martov fez parte da direção da Internacional de Viena ao lado de líderes social-democratas da Áustria, como Otto Bauer. Chamados de austromarxistas, o programa de reformas sociais e econômicas dos social-democratas austríacos influenciará posteriormente na constituição do Estado do Bem-Estar Social nos países escandinavos. E também inspirará, na década de 1970, Enrico Berlinguer, secretário-geral do PC italiano, a formular o eurocomunismo, com o qual reconhece a democracia como valor universal e oficializa o rompimento dos comunistas italianos com o modelo soviético. A Internacional de Viena existiu até 1923, quando se fundiu à II Internacional, reorganizada em 1920, para criar a Internacional Operária e Socialista.

Martov morreu na Alemanha em abril de 1923, meses antes de completar 50 anos de idade, vítima de tuberculose. Em 1922, Lenin havia sofrido um primeiro acidente vascular cerebral. Afastado do poder, agora sob o mando de Stalin, paralisado do lado esquerdo e com dificuldades de falar, Lenin teria tentado se reconciliar com Martov. Em cadeira de rodas, costumava apontar para livros de Martov em sua estante e pedia que um motorista o levasse até ele. Geztler cita Reminiscências de Lenin, livro de memórias de Nadezhda Krupskaya, mulher do fundador da União Soviética, para descrever o abatimento dele ao receber a notícia da gravidade da doença do antigo amigo e camarada: “Vladimir Ilyich estava seriamente doente quando me falou certa vez com muita tristeza: ‘Dizem que Martov está morrendo também’”. Lenin morreu em janeiro de 1924 aos 53 anos, menos de um ano depois de Martov.

No Brasil, a inexistência de obras de e sobre Martov contrasta com a profusão de biografias e de livros de autoria de Lenin, sustentando a persistência da influência do leninismo em parcelas expressivas da esquerda brasileira. Num momento em que setores esquerdistas na América Latina flertam com soluções autoritárias, o resgate de Martov e de suas ideias democráticas talvez fosse útil ao debate público.

 

* Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista.

 

Notas

[1] Mencheviques — ala moderada do Partido Operário Social-Democrata Russo, banido em 1921.

[2] Bolcheviques — ala radical do Partido Operário Social-Democrata Russo, que a partir de 1918 denominou-se Partido Comunista.

[3] Partido Socialista Revolucionário — banido durante a guerra civil. A ala direita foi acusada de apoiar o Exército Branco. A ala esquerda, inicialmente participou do governo soviético, porém foi excluída ao se opor ao Tratado de Brest-Litovsky, de paz com a Alemanha.

[4] Trudovique — membro do Partido Trabalhista, dissidência do Partido Socialista Revolucionário, surgido em 1905 e desintegrado após a Revolução de Novembro.

Bibliografia consultada

FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Getzler, Israel. Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat. Cambridge Univesity Press/ Melbourne University Press, 2003.

 

 

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