O ruralismo ampliou o raio de suas táticas anti-indígenas, em nosso país. Continua determinado a impedir as demarcações e a invadir e explorar as terras indígenas. A tentativa de legalizar o arrendamento destas terras é um forte indicativo de que estão também empenhados em tomar dos povos a posse das mesmas.
A bancada ruralista é o principal sujeito político do agronegócio e conduz, visivelmente, a estratégia do setor. É composta por parlamentares de diferentes partidos e regiões do país. No entanto, deputados que fazem parte do núcleo duro da bancada são provenientes da região sul do Brasil. Nesta região, a última fase de desterritorialização indígena, ocorrida por volta de meados do século XX, se deu fundamentalmente por meio da tática do arrendamento das terras dos povos, especialmente dos Kaingang.
Naquela época o arrendamento foi implementado nas terras indígenas por agentes públicos ligados ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), substituído pela Funai em 1967, após denúncias de suas práticas anti-indígenas apresentadas pelo Relatório Figueiredo. O arrendamento se alastrou para dentro de terras como Nonoai, por exemplo, por meio de contratos porque lideranças Kaingang “aceitaram” os argumentos dos agentes públicos de que se tratava de uma forma de gerar ‘renda’ para as famílias indígenas. O argumento, embora falacioso, rompeu a resistência dos Kaingang que, aos poucos, foram sendo empurrados para uma área diminuta, onde a fome se alastrou e fez das crianças suas vítimas prediletas.
No caso da Terra Indígena Nonoai, na década de 1970, os Kaingang só tinham a posse de aproximadamente 3 mil dos 34.950 hectares demarcados no entorno de 1910. Aos arrendatários, o estado do Rio Grande do Sul concedeu títulos de propriedade e os fixou no local. Nos anos 70, além das famílias indígenas originárias de Nonoai, a pequena reserva abrigava centenas de famílias Kaingang que tinham sido expulsas violentamente de outras terras, tais como Serrinha e Ventara – locais que foram totalmente tomados pelos não-índios que acabaram sendo ‘titulados’.
Por meio da insurgência dos Kaingang contra o arrendamento e os arrendatários, detentores de títulos de propriedade, que parte destes foram expulsos de Nonoai no final da década de 1970. Mais tarde, na década de 1990, os Kaingang conseguiram reunir forças suficientes para iniciar processo de retomada de outras terras naquela mesma região, tais como Serrinha e Ventara. Mesmo assim, tais processos continuam inconclusos até os dias presentes. Na Terra Indígena Serrinha ainda restam não-indígenas na posse de uma parte da terra. Os casos de Ventara e Nonoai continuam em conflito judicial com ações tramitando no STF. Os processos discutem a validade ou não dos títulos de propriedade concedidos pelo governo estadual aos então arrendatários.
Nesses e noutros casos, entre a perda da posse da terra para os arrendatários e a retomada da posse, passaram-se algumas décadas e perderam-se centenas de vidas dentre os Kaingang. Em muitas outras situações, os indígenas continuam alijados da posse de suas terras. Estas continuam invadidas por não-índios, que entraram arrendatários e se mantêm na posse das mesmas como ‘proprietários’ delas.
A base do discurso ruralista, hoje, é formada pelo mesmo argumento falacioso da geração de renda para os indígenas usado pelos integracionistas do SPI para justificar o arrendamento das terras indígenas na região sul do país, em meados do século XX. Os deputados ruralistas da região sul sabem que se trata de um discurso divisionista, já testado com sucesso contra os povos indígenas em passado recente, e buscam com ele o mesmo resultado: romper a resistência dos povos para fazer avançar os seus interesses de posse das terras indígenas em todas as regiões do país.
Neste contexto, algumas lideranças indígenas, inclusive das terras indígenas Serrinha e Nonoai, gravaram depoimento, essa semana, em apoio ao encontro promovido pela bancada ruralista neste dia 18 de outubro, que busca algum tipo de legitimidade à proposta do setor para a ‘legalização’ do ‘arrendamento’ de terras indígenas no país.
Estamos convencidos de que é a radicalização dos usos, costumes, crenças e tradições dos povos em suas terras devidamente demarcadas e protegidas que garantirá o futuro às suas novas gerações. A nós, como aliados dos povos, não cabe qualquer tipo de julgamento, muito menos ‘condenação’ à adesão de alguns indígenas ao discurso dos ruralistas. Cabe aos próprios povos, por evidente, a reflexão sobre sua história e as decisões acerca de seus projetos de futuro. Nesse caso, cabe-nos demonstrar e alertar que o arrendamento é mais uma tática de desterritorialização indígena e que a mesma faz parte do projeto ruralista de morte aos povos originários.
Na foto, acampamento Guarani Mbya às margens de rodovia: sem terras na própria terra. Crédito: Cimi Regional Sul
* Cleber César Buzatto é secretário Executivo do Cimi