O voto distrital misto pode representar a grande saída para o impasse brasileiro
Há muito insisto na tese de que o sistema eleitoral vigente é uma usina de impasses. Na sua fornalha, queimam-se montanhas de dinheiro público. Indomável e desagregador, o sistema ganhou impulso centrífugo adicional com a rejeição da cláusula de barreira pela Justiça. A fragmentação na Câmara avançou. Hoje temos 35 partidos registrados e devemos chegar a 50 no ano que vem. Um despropósito.
Ainda que a dispersão fosse menor, a competição entre correligionários em imensos distritos – que são os Estados – corrói a unidade dos partidos e os enfraquece em seu papel essencial: agregar as correntes de opinião, organizando-as, hierarquizando-as e estabelecendo processos de negociação e solução de conflitos, tudo com o objetivo de atender, na forma de programas de governo, as demandas majoritárias da sociedade.
Num sistema mais funcional, as legendas efetivas são em número suficiente para acomodar as minorias relevantes, mas não tão grande que impeça a maioria de tocar programas de governo. Um bom sistema deve se equilibrar entre dois objetivos contraditórios: ampla representatividade e governabilidade.
Nosso sistema eleitoral não faz nada disso. A sua tendência tem sido a de incentivar a dispersão, a pretexto de ampliar a representatividade. Só se submete a alguma lógica coletiva se for cevado continuamente com nacos da renda e do patrimônio estatais. Nem se tivesse sido feito por encomenda, serviria tanto para reforçar nosso histórico vezo patrimonialista e corporativista.
Vivemos uma longa fase de retração e estagnação na economia, decorrente de nossa incapacidade de melhorar a qualidade do gasto público e segurar sua expansão, bem como de superar nossa histórica má distribuição de renda, riqueza e oportunidades. Não sou determinista, mas é preciso reconhecer que o colapso fiscal do Estado e seus revezes éticos, embora não inevitáveis, foram decorrência estrutural de nossas instituições políticas. É preciso reformá-las.
O problema é que o mosaico partidário engendrado pelo próprio sistema se mostra incapaz de operar essa transformação no rumo exigido pela sociedade. Mais um indicador de que tal sistema mal representa e pouco decide.
Uma das tentativas de solução é o chamado distritão. Porém, ao eleger os mais votados sem observar a proporcionalidade, o distritão poderia contribuir para a extinção do último traço de racionalidade do atual modelo, que, com todos os seus defeitos, ainda é capaz de contemplar os partidos com representação correspondente ao seu eleitorado. No distritão, haveria o risco de os Estados se transformarem numa arena hobbesiana, despartidarizada. Seria a luta de todos contra todos. Uma caça ao voto, um tumulto de vontades sem ideias.
É difundida a ideia de que, no distritão, a maioria dos deputados se reelegeria. Mas isso é duvidoso: não se pode tomar as votações obtidas no sistema atual como parâmetro do que ocorrerá no novo sistema. As mudanças de regras serão profundas e as estratégias dos partidos, dos candidatos e dos eleitores também mudarão. Os melhores jogadores numa quadra de vôlei não serão necessariamente vitoriosos no jogo de basquete. Além disso, é preciso considerar que o distritão poderá contribuir para enfraquecer ainda mais os fiapos de unidade programática que restaram nos partidos. Uma Câmara saída do distritão poderia contribuir para o colapso definitivo da governabilidade. Poucos eleitos se cingirão a compromissos partidários.
Felizmente, temos uma opção factível e muito superior ao estado de coisas atual: o voto distrital misto, que pode representar a grande saída para o impasse. Trata-se de um sistema eleitoral bom e muitíssimo mais barato, que racionaliza a disputa, ao pôr em confronto apenas um candidato de cada partido na mesma circunscrição. Cada eleitor escolherá duas vezes: um candidato do seu distrito e uma legenda partidária. O programa do partido passará a ser o grande tema da campanha, que deixará de ser personalizada em milhares de candidatos. Livre da algazarra dessa multidão de pleiteantes, os eleitores, postos a decidir entre poucos, terão mais chance de avaliar as propostas partidárias. Previamente à disputa, as agremiações serão obrigadas a se mobilizar e a escolher seus candidatos em processos que convergirão para prévias ou outros mecanismos que, no longo prazo, vão legitimar e enraizar os diferentes partidos.
No distrital misto, o caciquismo é enfraquecido, na medida em que, nos distritos, candidatos forçados pela cúpula têm chances muito menores de darem certo. O eleitor pode, inclusive, se dar ao luxo de não votar em um candidato imposto pelo partido no distrito, mas continuar dando seu voto ao partido de sua preferência na segunda cédula.
Diferentemente do que se imagina, no distrital misto a regra é o respeito à proporcionalidade. No fundo, as eleições nos distritos, que correspondem à metade das cadeiras, já são uma lista aberta. E a proximidade entre eleitos e eleitores aumentará muito a responsabilidade dos deputados, que estarão no foco de uma população geograficamente concentrada e, por isso, muito mais apta a cobrar desempenhos e resultados.
Uma outra dimensão essencial é a econômica. A população quer “moralizar” as eleições? Um grande passo é reduzir custos de campanha. A proximidade e a redução do número de candidatos permitirão a volta das campanhas feitas na sola do sapato, olho no olho. A despesa máxima por deputado eleito será várias vezes menor do que no sistema atual.
Finalmente, com os recursos da tecnologia da informação hoje disponíveis, a divisão dos distritos deixa de ser um desafio técnico. É perfeitamente possível desenhar, rapidamente, distritos livres da ingerência dos partidos, eliminando o risco do chamado gerrymandering. Essa atribuição será do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O eleitor quer isto: um sistema eficiente, bom e barato. Façamos a sua vontade.
*José Serra é senador (PSDB-SP)