A crise que assola a democracia representativa, relembrando as lições de Rogér-Gerard Schwatzenberg, tem como fundamentos, entre outros, o declínio da força dos Parlamentos, a desideologização, o amortecimento dos partidos, o desânimo das massas eleitorais ante o desempenho dos representantes e a escassa capacidade da política para promover avanços nas estruturas do Estado.
Os efeitos da crise se fazem mais fortes em democracias ainda incipientes, onde as instituições não alcançam altos níveis de solidez e, por conseguinte, padecem de frequentes tensões. Nesses espaços, a corrupção acaba ganhando volume.
É o caso do Brasil, que, desde a instalação da República, em 1889, alternou ciclos democráticos com ciclos autoritários. Nossa primeira Constituição, em 1891, abrigou preceitos preservadores de direitos individuais e garantias democráticas, perdurando até 1930, quando o país passou a conviver com desajustes que levaram à centralização autoritária da Constituição de 1937.
O mando autoritário segue até 1945, após a ditadura getulista, reinstalando-se, com a Constituição de 46, os horizontes democráticos que vão até 1964.
O golpe militar fecha novamente os portões democráticos, que começam a ser reabertos a partir de 1982 com a eleição de governadores pela via direta.
Em 1986, o país abre as comportas da redemocratização, com eixos fixados na CF de 88.
Sistema híbrido
Em todo esse tempo, o Brasil conviveu com os elementos tradicionais que ancoraram o regime republicano: o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo, o voto uninominal e dois tipos de sistema eleitoral (proporcional e majoritário), que acabam conferindo caráter híbrido à nossa democracia.
A presença do Estado sempre tem sido muito forte na vida dos cidadãos, a ponto de convivermos com uma “cidadania regulada”, forma que o historiador José Murilo de Carvalho designa de “estadania”, cujas origens apontam para a inversão da pirâmide dos direitos.
Ao contrário, por exemplo, da Inglaterra que, de acordo com Tomas Marshall, implantou, no século XVIII, primeiramente os direitos civis, e somente um século depois, os direitos políticos, fechando a pirâmide, bem mais tarde, com os direitos sociais. Por aqui, invertemos a tríade: implantamos os direitos sociais antes da expansão dos direitos civis.
Dessa forma, os direitos sociais apareceram não como conquista dos trabalhadores, mas como “doação”, um favor, um presente do ditador Getúlio Vargas, fato que acabou tornando as massas “refém” do Estado e da figura do presidente.
Na Inglaterra, tais direitos foram conquistados.
Não por acaso, o presidencialismo exerce entre nós forte atração, sendo o regime de governo mais simpático aos habitantes.
O país caminhou na direção contrária às Nações desenvolvidas, que reduziram o tamanho de seus Estados, conformando-os ao grau de cidadania de seu povo. Portanto, as mazelas geradas pelo patrimonialismo aqui são alimentadas pelas “tetas do Estado”, fato que impede rápidos avanços e dificulta a instalação de reformas fundamentais ao desenvolvimento.
Esse pano de fundo de nossa cultura política explica o agravamento da crise que consome as energias do país e dá vazão à tese: se a democracia representativa atravessa momentos turbulentos em outras regiões do mundo, por aqui vive seu ápice.
Não há mais como sustentar os pilares tradicionais de nossa República. Por isso, avoca-se a necessidade de discutir outras ferramentas que compõem as vias democráticas, a começar pelo sistema de governo.
Nosso presidencialismo já deu o que tinha de dar. Chegou a hora de abrimos um portão no condomínio do presidencialismo.
A via parlamentarista é uma boa saída para a crise. Já está amadurecida a ideia de conferir maior poder aos representantes do povo, atribuindo ao Parlamento o exercício de tarefas hoje atribuídas ao Executivo. Essa alternativa pode equacionar os impasses hoje vividos.
Reforma política
Há, porém, uma barreira para a mudança de regime: a baixa qualidade de nossa representação.
Não dispomos de um corpo parlamentar ajustado ao modelo parlamentarista. Ademais, não há condições de se estabelecer um regime parlamentarista sob o gigantesco balcão que acolhe 35 partidos.
Para a convivência entre os conjuntos da situação e da oposição, o Parlamento carece de um leque de não mais que 7 a 8 partidos. As correntes de pensamento e opinião estariam bem representadas.
O modelo brasileiro continuaria a preservar valores de nossa cultura política. A figura do presidente, por exemplo, ao contrário do simbolismo que detém no modelo alemão, poderia abarcar alguns poderes administrativos.
É o caso de adotarmos modelagem similar ao parlamentarismo francês, também chamado de semi-presidencialismo, um sistema híbrido com essas características: eleição pelo voto direto do presidente da República para um mandato de 7 anos, com direito à reeleição; um gabinete presidido por um Primeiro-Ministro nomeado pelo presidente dentre os deputados do partido ou coalizão majoritária.
O presidente ocupa-se da política externa e da defesa nacional e preside o Conselho de Ministros; nomeia e demite os ministros atendendo solicitação do Primeiro-Ministro.
Será difícil? Sim, mas não impossível.
O nosso conjunto parlamentar precisa enxergar o amanhã, não apenas as conveniências pessoais. Já tivemos experiências parlamentaristas no passado: no 1º e 2º Reinados, com o imperador exercendo o Poder Moderador e, entre 1961 a 1963, no governo João Goulart.
Ocorre que nossa tradição presidencialista sempre deu as cartas. O poder da caneta presidencial (também de governadores e prefeitos) exerce enorme atração.
O roteiro é este: reforma política limitando o número de partidos, implantação do sistema majoritário (ou misto) para a eleição de representantes, adensamento doutrinário das siglas, entre outros aspectos.
O fato é que o país chegou ao final da linha em matéria de vícios, distorções, contrafações e mazelas. Não haverá instituição forte se a política não mudar seus costumes. A taxa de corrupção seria menor com instituições sólidas.
As crises políticas não chegariam a abalar o país. A democracia brasileira daria um salto de qualidade.
* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação