Cristovam Buarque: A tristeza de Felipe, a paralisia do Artur e a minha vergonha

Plenário do Senado durante sessão não deliberativa.Em pronunciamento, senador Cristovam Buarque (PPS-DF)Foto: Edilson Rodrigues
Plenário do Senado durante sessão não deliberativa.Em pronunciamento, senador Cristovam Buarque (PPS-DF)Foto: Edilson Rodrigues

Uma amiga falou que até recentemente seu neto Felipe, de seis anos, gostava de assistir às notícias nos telejornais e perguntar sobre elas. Há pouco tempo, disse que perdeu o interesse porque ficava triste com o que via. A simplicidade dessa criança é um exemplo eloquente do mal que estamos fazendo na formação do Brasil.

Que sociedade está surgindo em uma realidade que assusta crianças de seis anos de idade, como se elas estivessem no meio de uma guerra?

O que sentem nossas crianças ao assistirem a tiroteios, ao saberem das mortes de pessoas, inclusive de menores de idade, que estavam na trajetória de balas perdidas que invadem escolas, cruzam ruas, chegam nas salas e até mesmo na barriga de uma mãe grávida ferindo o bebê de nome Artur, antes dele nascer, condenando-o talvez à morte ou a sobreviver paraplégico desde o nascimento?

O que sentem ao ver, dia após dia, canos de esgoto descarregando dinheiro de propinas roubadas, que se não tivessem sido desviadas teriam evitado a tragédia a que assistimos?

Aos seis anos, Felipe ainda não percebe essa lógica maldita, mas os adolescentes já conseguem entender o significado das palavras e as correlações entre elas. Certamente não ficam apenas tristes, devem cair no desencanto ou pior ainda, no desprezo aos políticos que deveriam ser seus líderes.

Pior é saber que os tristes, ao verem o espetáculo na televisão, fazem parte de uma casta privilegiada. Milhões não apenas assistem, estão dentro do inferno da ausência de paz, no risco das balas, do desemprego, da falta de escolas, cultura e perspectiva.

Dividido, sem coesão nem rumo, o Brasil naufraga e leva com ele nossas crianças que, sem barcas, não conseguem atravessar o “mediterrâneo invisível” que as levaria ao futuro: a escola em paz e com carinho. Cada dia o país demonstra odiá-las, porque despreza o futuro delas e de toda nação brasileira.

Síria, Iraque, Afeganistão e outros países têm gerações perdidas pela guerra que deixa suas crianças e adolescentes sem escolas, assistindo aos adultos na incansável tarefa de destruírem suas pátrias. O Brasil é maior, tem mais recursos, é mais tolerante com suas maldades, mas estamos trabalhando fortemente para seguirmos nesta direção: saindo da crise para a decadência e desta para a desagregação.

O desencanto dos adolescentes e jovens, a tristeza do Felipe e a paralisia de Artur são gritos para aqueles que, apesar da eloquência, não chegam aos ouvidos aos quais são dirigidos, pedindo apenas duas coisas: um tempo de coesão, sem corrupção na política, com compaixão social, e um rumo histórico com sentimento nacional.

Nosso maior problema é a surdez de sentimentos, esta forma maior de corrupção na política.

E, surdamente, sem ouvir os gritos, pomos a culpa na realidade, como se a política não fosse para modificá-la. Por isso minha vergonha por sentir a impotência diante da tragédia construída pela vontade egoísta ou a omissão incompetente, vergonha diante de Felipe e Artur, aos quais peço desculpas.

 

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