Demétrio Magnoli / O Globo
Bolsonaro prometeu colocar “o Brasil acima de tudo”. Sob a emergência de saúde gerada pela pandemia, fragmentou a nação em 5.570 entidades municipais separadas. A implosão começou com as restrições sanitárias e concluiu-se com a campanha de vacinação. Hoje, no país estilhaçado, os direitos dos cidadãos são essencialmente regulados pela vontade soberana dos prefeitos.
A bomba foi detonada pelo presidente, no início da pandemia, quando ele classificou a Covid-19 como “uma gripezinha” e recusou-se a coordenar o combate à difusão de contágios. Reagindo em defesa da saúde pública, o STF decidiu por unanimidade reconhecer as prerrogativas estaduais e municipais na aplicação de medidas de restrição sanitária.
O gesto inevitável dos juízes cristalizou o movimento centrífugo. Na ausência de um centro nacional, governadores e prefeitos passaram a adotar as mais disparatadas regras sanitárias. Legislaram à larga, determinando fechamentos e reaberturas das mais diversas atividades ao sabor de critérios arbitrários. Aqui e ali, prefeitos interromperam o tráfego em rodovias ou, atropelando direitos fundamentais, decretaram datas específicas para o deslocamento de residentes nas vias públicas.
Sob o manto da vaga decisão do tribunal superior, praticamente cessou o controle judicial das competências legais dos governantes. O Brasil de Bolsonaro — e do seu triste cortejo de militares militantes — converteu-se em terra sem lei.
O melhor retrato da nação em estilhaços encontra-se nas ruínas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Institucionalizado em 1975, no rastro do sucesso das campanhas de vacinação contra a varíola dos anos 1960, o PNI inaugurou a primeira Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite em 1980 com a meta de imunizar todas as crianças menores de 5 anos num único dia. Menos de uma década depois, em março de 1989, identificou-se o caso derradeiro de pólio, na Paraíba. O programa, fonte de orgulho nacional, não resistiu à anarquia bolsonarista.
Eduardo Pazuello, o indisciplinado general da ativa que faz dublagem de agitador de comícios, plantou as cargas explosivas no PNI. À frente do Ministério da Saúde, retardou ao máximo a aquisição de vacinas e rabiscou simulacros ilusórios de planos de imunização, abandonando o SUS na frente de batalha. O caos resultante estende-se até hoje.
A renúncia do Ministério da Saúde a comandar um plano nacional de imunização reflete-se, antes de tudo, na inexistência de campanhas de publicidade nos meios de comunicação de massa. Nesse ponto, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello, revela-se tão fiel a Bolsonaro quanto seu fracassado antecessor. Para não desagradar ao presidente antivacina, seu ministério foge à responsabilidade de levar à população as informações básicas sobre os imunizantes, as regras de prioridade e os cronogramas de vacinação.
A desordem ramifica-se nos níveis estadual e municipal. Governadores e prefeitos acenaram a grupos de pressão e clientelas eleitorais, fabricando grupos prioritários e, nesse passo, reduzindo o ritmo da vacinação. Ao mesmo tempo, alteraram sem cessar os cronogramas, fornecendo informações confusas e incompletas em sites mais ou menos ocultos. Nos 5.570 programas de imunização em curso na nação estilhaçada, registram-se diferenças de até dez anos nos grupos etários autorizados a se vacinar e regras distintas de intervalos entre doses.
De passagem, os gestores municipais cometem crimes em série, confiando na cumplicidade passiva do Ministério Público. Infringindo as regras institucionais do SUS, milhares de cidades fazem de comprovantes de residência condição para vacinar. Por essa via, criam precedentes para, no futuro, negar atendimento de saúde a residentes de outros municípios. Há, ainda, os que, atraídos pelos holofotes das redes sociais, cassam o direito à imunização dos “sommeliers da vacina” — ou seja, indivíduos que, sem cometer ilegalidade alguma, perambulam de posto em posto à procura do imunizante de sua preferência.
5.570 Brasis — eis o fruto maduro do bolsonarismo.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/5570-brasis.html