PD #49 – Ana Carla Fonseca: Economia criativa, cidades e o futuro do trabalho

A economia, decididamente, não é mais como era antigamente. Em meio a tantas adjetivações que buscam dar uma resposta a nosso desencanto com modelos excludentes e insustentáveis, uma delas chama a atenção: economia criativa. Para quem, nos últimos 20 anos, percorreu 180 cidades de 30 países lidando com o tema, não há dúvida: a economia criativa é o modelo econômico dos nossos tempos.
Foto: Agência Brasil
Foto: Agência Brasil

A economia, decididamente, não é mais como era antigamente. Em meio a tantas adjetivações que buscam dar uma resposta a nosso desencanto com modelos excludentes e insustentáveis, uma delas chama a atenção: economia criativa. Para quem, nos últimos 20 anos, percorreu 180 cidades de 30 países lidando com o tema, não há dúvida: a economia criativa é o modelo econômico dos nossos tempos.

Tempos marcados, como toda fase econômica de envergadura histórica, por uma revolução tecnológica. Foi assim com a revolu- ção agrícola, com a industrial e, agora com a revolução das tecno- logias digitais, que tantos impactos trouxeram às nossas vidas. Impactos sociais (basta ver a avalanche de relacionamentos mediados pelo celular) e até mesmo físicos, como demonstra a neuroplasticidade de cérebros cada vez mais multitarefas e capa- zes de gerar conexões improváveis, mas com dificuldade crescente de seguir raciocínios lineares e aprofundar debates.

Na economia, os impactos também são evidentes. As tecnolo- gias digitais catapultaram a globalização a níveis jamais vistos. Produtos e serviços circulam em escala planetária e a uma velo- cidade inimaginável tempos atrás, fazendo com que o que hoje é lançado aqui ou acolá seja visível, quase de imediato, em outros cantos do mundo. Com isso, os produtos  e  serviços passaram a ter ciclos de vida cada vez mais curtos e a ser muito parecidos, em um processo de “commoditização” da economia.

A economia criativa atua na contramão deste processo. Ela professa que, quando ativos econômicos tradicionais –  como  capital e tecnologia – são tão facilmente transferíveis mundo afora, a criatividade se converte no ativo mais diferencial. Não por menos, economias de todos os perfis vêm reformulando suas estratégias econômicas, trazendo a economia criativa para seu centro.

Em Buenos Aires, onde os setores criativos (aqueles que têm na criatividade seu diferencial – das artes e cultura à ciência e tecnologia) representavam 9% da  população  economicamente  ativa  e  10% do PIB municipal, a meta é chegar a 20% em ambos os indicadores, até 2020. Na China, que, em seu plano quinquenal 2011-15, definiu estar na transição do Made in China para o Designed in China, a economia criativa perpassa todos os eixos estratégicos.

Na Colômbia, o Senado aprovou a Lei da Economia Laranja (o apelido dado à economia criativa no país) e, em Montreal, a prefeitura criou, há anos, o Escritório de Design, cujo objetivo máximo  é estimular todos os cidadãos a desenvolverem o olhar da inovação, recorrendo também ao espaço público e às fachadas de empreendimentos comerciais.

Afinal, não há economia criativa alheia a um espaço criativo. Quão mais propício à criatividade – efervescente de propostas e diversidade, de conectividade e abertura à ousadia  –  for  o  ambiente, mais nossas mentes terão acesso  a  ingredientes  diver-  sos para fazer novas receitas e vencer desafios complexos.

Paris que, em junho, inaugurou o maior campus de startups do mundo, a Station F, tem se valido à vontade da inteligência coletiva para reformular seu espaço físico e a dinâmica da cidade, sem perder de vista seu DNA cultural. Empresas também entram nessa lógica.

A Amazon, terceira marca mais valiosa do mundo, que recebeu, até meados de outubro, as candidaturas de cidades que queiram abrigar sua nova sede (e os 50 mil trabalhadores qualificados que nela atuarão), estabeleceu como um dos critérios de seleção a diversidade cultural, ao lado de questões de mobilidade, da modernidade de sua infraestrutura e de seu manancial de talentos e instituições de ensino.

Porque, afinal, se a economia não é mais como era antiga- mente, o futuro nem se sabe como será. As fontes mais abalizadas no assunto (Fórum Econômico Mundial, Economist Intelligence Unit e outras) estimam que metade das atividades profissionais será substituída pela inteligência artificial em 20 a 40 anos e que metade do que então existirá hoje ainda não se dá a ver.

Mas algo já sabemos: os dois perfis de trabalho mais cobiça- dos do futuro são os de talento criativo e de inteligência social. Excelentes bússolas para pautarmos nossa economia e transformarmos as cidades em espaços vibrantes de estímulos às habilidades do futuro. Porque, se o futuro a Deus pertence, ele ajuda a quem cedo madruga.

As origens

O conceito de economia criativa origina‐se do termo indústrias criativas, por sua vez inspirado no projeto Creative Nation, da Austrália, de 1994. Entre outros elementos, este defendia a impor- tância do trabalho criativo, sua contribuição para a economia do país e o papel das tecnologias como aliadas da política cultural, dando margem à posterior inserção de setores tecnológicos no rol das indústrias criativas.

Em 1997, o governo do então recém‐eleito Tony Blair, diante de uma competição econômica global crescentemente acirrada, moti- vou a formação de uma força tarefa multissetorial encarregada de analisar as contas nacionais do Reino Unido, as tendências de mercado e as vantagens competitivas nacionais.

O que se destaca, nessa iniciativa, é a) sua visão de parceria entre público e privado, de modo a desenhar um programa estratégico para o país, com benefícios e responsabilidades comparti- lhados; b) a articulação transversal, compreendendo de diferentes setores e pastas públicas, como cultura, desenvolvimento, turismo, educação, relações exteriores, entre outras.

Nesse exercício, foram identificados 13 setores de maior potencial, então nomeadas indústrias criativas. A partir disso, o conceito britânico, incluindo as indústrias selecionadas, foi replicado para países tão diversos como Cingapura, Líbano e Colômbia, independentemente das distinções de seu contexto e sem contemplar de chofre o potencial que essas indústrias espe- cíficas teriam (ou não) para equalizar polarizações socioeconô- micas nos distintos países.

Entretanto, o maior mérito do sucesso do programa britânico foi o de ter engendrado reflexões acerca de mudanças profundas e estruturais que se fazem necessárias no tecido socioeconômico global e nos embates culturais e políticos que ora enfrentamos. Não por menos a economia criativa tem suscitado discussões e estudos em áreas não puramente ligadas a uma política indus- trial ou econômica, mas tão vastas como atinentes à revisão do sistema educacional (questionando a adequação do perfil dos profissionais de hoje e anunciando a emergência de novas profissões), a novas propostas de requalificação urbana (gerando projetos de clusters criativos e o reposicionamento das chamadas cidades criativas), à valoração do intangível cultural por parte de instituições financeiras (clamando por modelos de mensuração inspirados nos setores de patentes e marcas), a um reposiciona- mento do papel da cultura na estratégia socioeconômica (lidando paralelamente com conteúdos simbólicos e econômicos) e até mesmo à revisão da estrutura econômica, de cadeias setoriais  para redes de valor, incluindo novos modelos de negócio (graças às novas tecnologias e à emergência de criações colaborativas).

De fato, a economia criativa parece tomar de outros conceitos traços que se fundem, adicionando‐lhes um toque próprio. Da chamada economia da experiência reconhece o valor da origina- lidade, dos processos colaborativos e a prevalência de aspectos intangíveis na geração de valor, fortemente ancorada na cultura  e em sua diversidade. Da economia do conhecimento, toma a ênfase no trinômio tecnologia, mão de obra capacitada e geração de direitos de propriedade intelectual, explicando porque para alguns estudiosos os setores da economia criativa integram a economia do conhecimento, muito embora esta não dê à  cultura a ênfase que a economia criativa lhe confere. Da economia da cultura propõe a valorização da autenticidade e do intangível cultural único e inimitável, abrindo as comportas das aspirações dos países em desenvolvimento de ter um recurso abundante em suas mãos.

De forma geral, é possível ressaltar ao menos quatro abordagens do conceito de economia criativa.

  1. Indústrias criativas, entendidas como um conjunto de seto- res econômicos específicos, cuja seleção é variável segundo a região ou país, conforme seu impacto econômico potencial na geração de riqueza, trabalho, arrecadação tributária e divisas de exportações.
  2. Economia criativa, que abrange, além das indústrias criativas, o impacto de seus bens e serviços em outros setores e processos da economia e as conexões que se estabelecem entre eles, provocando e incorporando‐se a profundas mudanças sociais, organizacionais, políticas, educacionais e econômicas. As indústrias criativas são, portanto, não apenas economica- mente valiosas por si mesmas, mas funcionam como catalisadoras e fornecedoras de valores intangíveis a outras formas de organização de processos, relações e dinâmicas econômicas de setores diversos, do desenho de cosméticos que utilizam saberes locais a equipamentos e artigos esportivos que comunicam a marca de um país. Na economia criativa, indústria e serviços fundem‐se cada vez mais.
  3. Cidades e espaços criativos, por sua vez vistos sob distintas óticas: de combate às desigualdades e violência e de atração de talentos e investimentos para revitalizar áreas degradadas de promoção de clusters criativos, a exemplo do distrito cultural do vinho na França, o cluster multimídia de Montreal, os parques criativos de xangai e o polo de novas mídias de Pequim, de trans- formação das cidades em polos criativos mundiais, não raro de maneira articulada com a política do turismo e atração de trabalhadores criativos que, quando não conduzido, pode incrementar polarizações sociais e, na ausência do envolvimento comunitário, promover um esfacelamento das relações locais e a exclusão de pequenos empreendimentos criativos e da diversidade. E também volta‐se à reestruturação do tecido socioeconômico urbano, baseado nas especificidades locais, como é o caso de Guarami- ranga, no Ceará, com seu Festival de Jazz e Blues, e de Paraty, no Rio de Janeiro, tendo por bandeira a Flip. Nesse sentido, é curioso que nenhuma cidade do Brasil tenha se candidatado a compor a Rede de Cidades Criativas da Unesco, que reúne hoje mais de 15 cidades de todo o mundo.
  4. Economia criativa como estratégia de desenvolvimento, desmembrando‐se em    duas     abordagens.  A primeira tem por base o reconhecimento da criatividade, portanto do capital humano, para o fomento de  uma integração de objetivos sociais, culturais e econômicos, diante de um modelo de desenvolvimento global pós‐industrial excludente, portanto insustentável. Nesse antigo paradigma, a diversidade  cultural e  as culturas em geral podem ser vistas como obstáculos ao desenvolvimento, em vez de nutrientes de criatividade e de resolução dos entraves sociais e econômicos.

Vemos assim que a economia criativa ou, de forma mais focada em cultura, a economia da cultura, não é política cultural, não se propõe a definir os rumos da política cultural e tampouco defende que a cultura deve se curvar à economia ou – como às vezes se acredita, de maneira muito equivocada – ao mercado.  Ao  contrário, a economia da cultura ou economia criativa oferece todo o aprendizado  e  o  instrumental  da  lógica  e  das  relações econômicas – da visão de fluxos e trocas; das relações entre criação, produção, distribuição e demanda; das diferenças entre valor e preço;  do reconhecimento do capital humano; dos mecanismos mais variados de incentivos, subsídios, fomento, intervenção e regulação; e de muito mais – em favor da política pública não só  de  cultura, como de desenvolvimento.

O que se depreende disso, portanto?

Primeiro, que pouco adianta defender o reconhecimento do potencial econômico da cultura, se um passo ainda mais funda- mental não tiver sido dado antes: o desenho de uma política pública clara, com base no contexto local. Em outras palavras, conforme o ditado que se costuma atribuir ao pensador grego Sêneca, “Se você não sabe para que porto está velejando, nenhum vento é bom”. Esta é uma questão de singular importância em um país como o Brasil, no qual dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1 atestam que, em 2006, não menos de 42,1% dos municí- pios não tinham política municipal de cultura.

Segundo, que economia é muito mais do que mercado. O que nos remete, afinal, a entender o que é economia. Etimologicamente, vem da junção de duas palavras gregas: oikos (casa) e nomos (costumes, hábitos, leis). “Administração da casa“, “administração do lar”, “administração do local onde vivemos”, como já aparecia em algumas das preocupações de Aristóteles, sob uma ótica muito ligada à questão da filosofia política. A economia tem em seu epicentro, portanto, a sociedade e as pessoas. Ela deita raízes na filosofia moral, daí o porquê de muitos escritos econômicos dedicarem‐se ao debate sobre a ética. E aqui surge um dilema interessante: o que é mais importante, a justiça distributiva ou a eficiência alocativa? Em outras palavras, é melhor utilizar os recursos da forma mais eficiente possível ou fazê‐lo da forma mais justa possível? E é aí, mais uma vez, que se vê a importância de  ter uma política cultural com objetivos claramente definidos.

 

1 “Perfil das Informações Básicas Municipais”, base 5.561 municípios.

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