Vinicius Müller: Da liberdade acadêmica ao atraso educacional dos cursos sobre o “Golpe de 2016”

Há tempos que o debate acerca da construção de uma nova proposta educacional no Brasil avança. Vários são os momentos, os discursos, as proposições, os grupos e pessoas que de modos variados se relacionam com tal debate. Muitos, ao longo dos últimos vinte anos, ganharam minha atenção.  Entre eles, um sempre esteve em destaque: aquele que guarda relação com as mudanças nos currículos da educação básica. Recentemente, e finalmente, entramos na discussão acerca das definições dos currículos básicos de cada área do saber, assim como das grades curriculares que viabilizem, na prática, tais definições.
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Há tempos que o debate acerca da construção de uma nova proposta educacional no Brasil avança. Vários são os momentos, os discursos, as proposições, os grupos e pessoas que de modos variados se relacionam com tal debate. Muitos, ao longo dos últimos vinte anos, ganharam minha atenção.  Entre eles, um sempre esteve em destaque: aquele que guarda relação com as mudanças nos currículos da educação básica. Recentemente, e finalmente, entramos na discussão acerca das definições dos currículos básicos de cada área do saber, assim como das grades curriculares que viabilizem, na prática, tais definições.

Sobre isso e, em suma, quatro grandes questões envolvem as definições curriculares e  atestam a relevância deste debate. A primeira refere-se à mudança de enfoque de uma educação historicamente amparada no conteúdo das disciplinas para uma educação voltada ao desenvolvimento de competências e habilidades. Entre as competências estariam a capacidade de lidar com linguagens variadas, em reconstruir trajetórias, em apontar problemas, em formular hipóteses e em propor intervenções. Esse conjunto de competências seria a matriz usada em favor da superação de um ensino enciclopédico e proporcionaria maior interação entre áreas diferentes.

Não só porque serviria para variadas disciplinas, das Ciências da Natureza, da Matemática, das Linguagens e das Humanidades, mas, principalmente, porque apontaria que tamanha interdisciplinaridade (para alguns transdisciplinaridade) só seria frutífera se fosse feita por meio da aproximação de métodos, não essencialmente de conteúdos. Como, por exemplo, uma abordagem usada pela Biologia pode ajudar um estudante a organizar hipóteses sobre a História?

Essa era e ainda é uma questão em pauta e serve muitas vezes como estímulo a outras. Por exemplo, a indagação acerca da capacidade de uma ciência, com seus métodos, teorias e linguagens próprias, ser capaz de dar, sozinha, respostas fechadas aos problemas que enfrenta. Essa segunda questão pressupõe que não só é improvável que uma área do saber por si só consiga responder às suas indagações, mas também é indesejável que assim seja. Nesse caso, os problemas seriam complexos demais para serem exclusivos de uma só área do saber. E, portanto, haveria um reconhecimento de que, por mais que aparentemente um problema tenha uma resposta, ele é aberto o suficiente para que outras abordagens, outros métodos e outros saberes tenham que ser engajados para que tenhamos dimensão de quão complexo ele é.

A terceira questão se relaciona, ao mesmo tempo em que justifica, com a segunda, já que há um amplo reconhecimento de que o avanço das tecnologias, a disponibilidade de informações e a velocidade em que elas são divulgadas e acessadas tornam a informação um ativo muito pequeno perto da capacidade de entendimento, interpretação, reconhecimento dos problemas, propostas de diversas soluções e criatividade que os estudantes devem desenvolver. Ou seja, há um reconhecimento de que os problemas são mais abertos e complexos do que uma área isolada do saber é capaz de entender e resolver, e que essa característica foi potencializada pelo avanço das tecnologias de informação nas últimas três décadas.

E a quarta questão, finalmente, seria um efeito positivo das outras três, na medida em que ao valorizar o pensamento, a formulação e levantamento de problemas e as possibilidades variadas de solução, democratizaria o conhecimento, já que não mais hierarquizaria os estudantes pela capacidade que têm em decorar informações. Além disso, traria um novo significado, maior, àquilo que o professor ensina e àquilo que o estudante aprende. A aposta é que esse maior significado resulta em um avanço na aderência dos alunos não ao conteúdo por si só, mas ao desenvolvimento do pensamento crítico.

Por isso, lamento que, nos últimos dias, um dos debates no país tenha sido àquele relativo à liberdade ou não de professores e universidades oferecerem um curso sobre o “Golpe de 2016”. É certo que têm tal liberdade e, por óbvio, essa questão não deveria ser motivo de debate. Contudo, há uma outra questão que, negligenciada, pode ter efeito tão grande ou maior do que as que foram debatidas. A questão que falta nesse debate me remete a uma conversa que tive, meses atrás, com um conhecido, professor como eu. Ele me disse mais ou menos o seguinte: “daqui a quinze anos, quando meu filho chegar da escola me perguntando sobre qual lado fiquei no golpe de 2016, terei orgulho em respondê-lo que estava do lado de Chico Buarque”. Ao que repliquei: “se daqui a quinze anos o seu filho chegar em casa com essa pergunta, troque-o de escola, já que a pergunta que ele deveria fazer é se você acha que foi golpe ou não em 2016”.

Ou seja, ao se manifestarem a partir da definição, logo no título, os professores e universidades que oferecem cursos sobre “o golpe de 2016” estão usando de maneira irreparável a liberdade que têm. Mas, ao mesmo tempo estão contribuindo para uma educação antiquada e conservadora. E isso nos trará muito mais prejuízos do que imaginam.

* Vinicius Müller é historiador, professor no Insper e colaborador do Blog “Estado da Arte” do jornal O Estado de São Paulo

 

 

 

Privacy Preference Center