PD #49 – Anivaldo Miranda: O ovo da serpente

Não é a primeira vez que as polarizações estúpidas colocam nuvens sombrias sobre o horizonte do Brasil. Aprender  com o que ocorreu em passado não distante, quando da implantação da ditadura militar, e com outros momentos da história brasileira, é importante ferramenta para impedir que a obtusidade política que sempre aparece em momentos de crise institucional imponha novos retrocessos no difícil caminho de construção, consolidação e aperfeiçoamento da democracia brasileira.
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Não é a primeira vez que as polarizações estúpidas colocam nuvens sombrias sobre o horizonte do Brasil. Aprender  com o que ocorreu em passado não distante, quando da implantação da ditadura militar, e com outros momentos da história brasileira, é importante ferramenta para impedir que a obtusidade política que sempre aparece em momentos de crise institucional imponha novos retrocessos no difícil caminho de construção, consolidação e aperfeiçoamento da democracia brasileira.

O golpe militar de 1964 nos ensinou o quanto é decisivo para   o futuro da democracia respeitar as regras do jogo. Por regras do jogo entende-se a Constituição, ainda que imperfeita, mas inteira- mente passível de evoluções em seu conteúdo desde que fruto de consensos sempre possíveis de serem alcançados com o funciona- mento regular dos poderes da República e das liberdades civis.

Foi exatamente por ignorar essa primazia da ordem constitucional que esquerda e direita pavimentaram, sob o influxo da “Guerra Fria” e das ameaças à Constituição, o caminho da ditadura cujos reflexos negativos para a convivência e cultura demo- cráticas ainda hoje atormentam o Brasil.

Tirar lições daquele processo é, portanto, fundamental para combater no nascedouro a onda de polarização atual que coloca  no centro do debate e do embate políticos forças corporativas e reacionárias, de esquerda e de direita, que manipulam com destreza, sobretudo nas redes sociais, as frustrações momentâ- neas da população e sua ausência de memória histórica, para requentar velhas fórmulas e crenças que fazem da simplificação grosseira da realidade, da intolerância, dos mitos, do preconceito e, sobretudo, da aversão ao diálogo o combustível para movimen- tos e candidaturas presidenciais que sufocam o debate que o país precisa fazer com responsabilidade  e  ameaçam verdadeiramente a qualidade da disputa e do desfecho das próximas eleições numa direção perigosa para a democracia,

Estas lições às quais nos referimos são válidas, a partir do centro, para todo o espectro da política excetuados, é claro, os extremos, porque, para estes, elas de nada servem. Todavia, para a direita liberal brasileira, ou para a esquerda democrática, lembrar-se do processo que antecedeu e sucedeu ao golpe militar  é de extrema atualidade.

Partidos e forças sociais e políticas que apoiaram o golpe militar e depois passaram a lhe fazer oposição, devem lembrar-se da evidência de que todas as ditaduras começam com promessas grandiosas e juras à democracia mas, via de regra, acabam com remessas volumosas de presos políticos com destino às masmorras e ao exílio, inclusive de apoiadores iniciais da implantação da ordem ditatorial. Líderes e aliados do movimento de 1964, como o marechal Castelo Branco, a Igreja Católica, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek foram, depois, isolados, perseguidos ou banidos do centro decisório da política pelas próprias forças que ajudaram a ascender ao poder.

No que tange à esquerda democrática, a experiência de não ter compreendido em toda a sua extensão o valor universal da democracia como elemento essencial para o avanço de suas plataformas de mudanças rumo a uma sociedade mais igualitária, custou-lhe algumas décadas de engessamento que agora,  diante da crise de deslegitimação da esquerda como fruto das aventuras fisiológicas do PT e PSDB impõe certa impotência para que essa esquerda seja capaz de buscar as saídas e promover as articulações que impeçam o potencial destrutivo da polarização Lula/ Bolsonaro nas próximas eleições.

Os que militam no arco da esquerda e do centro democráticos tiveram excelente oportunidade de reorientar a dinâmica perversa da política brasileira em termos políticos e ideológicos quando da ascensão do presidente Itamar Franco, cujo mérito foi oferecer à centro-esquerda brasileira uma oportunidade única para dar racionalidade histórica ao nosso xadrez político.

Aqui, por efeito de alguma síndrome Macunaíma, essa racionalidade histórica perdeu a oportunidade de existir quando o PT de Lula recusou-se, por uma obsessão hegemonista da política, a integrar o governo Itamar e, assim, selar uma aliança com o PSDB e outros partidos de esquerda que, ainda que passageira, arrumaria o xadrez político com aquela lógica que estabelece um mínimo de alinhamento entre política e ideologia no contexto de uma sociedade em movimento.

O resultado da óbvia cegueira do hegemonismo petista fez acontecer uma coisa esdrúxula que até hoje nos cobra um preço altíssimo em termos do avanço civilizatório da nossa política,  uma vez que, diferentemente do que é comum, enquanto o PSDB atraiu para suas futuras alianças o pedaço  liberal  conservador  da direita brasileira, o PT, por força lógica desse processo distor- cido, passou crescentemente a selar uma aliança duradoura com os setores mais fisiológicos da mesma direita brasileira quando finalmente sentiu a necessidade de entregar os anéis para final- mente realizar o seu sonho de poder hegemônico.

Em termos figurados, o Brasil efetivamente inaugurou, talvez, o modelo mais sofisticado de “geleia política” e ”sopa ideológica” dos últimos tempos, sepultando qualquer disposição logicamente aceitável de política de alianças, identificação de interesses sociais convergentes e coerência ideológica de plataformas partidárias e governamentais, uma vez que os maiores partidos da esquerda puxaram para sí uma banda da direita para chamar de sua, entregando a alma ao diabo e assimilando os métodos tradicio- nais da compra do voto e do fisiologismo governamental para manutenção dos seus projetos partidários.

A crise deflagrada pelos rumorosos processos do Mensalão e da Lava-Jato desnudaram o quanto o desdobramento da anômala disposição ideológica (ou não ideológica) do xadrez político brasileiro conduziu à deterioração da política e de suas formações tradicionais. Algo que foi acentuado pelo advento da nova era da informação e do conhecimento que rapidamente tornam obsoletas as formas tradicionais da organização das sociedades, sua representatividade e mecanismos de legitimação. Os partidos políticos, por exemplo, enfrentam no mundo inteiro os reflexos dessa conjuntura.

Portanto, no Brasil, em termos políticos e ideológicos, a situa- ção não poderia ser mais confusa do que o é na atualidade. E o paradoxo disso é que essa confusão, embora potencializada por fenômenos que anunciam rupturas positivas com hábitos e práti- cas arraigados e viciosos, herdados do passado colonial e do auto- ritarismo republicano, pode redundar, por falta de interpretação clara dos fenômenos em curso e da inércia das forças democráti- cas, em retrocessos que seriam desastrosos para o Brasil em começo de século tão desafiante e definidor.

Em tal contexto, quando a política se desgasta e perde sua natural primazia e dinâmica, a ideologia é chamada a ocupar espaço importante no cenário de curto prazo, muito embora seus efeitos normalmente sejam maturados no longo prazo. Daí que as eleições de 2018, do ponto de vista de quem defende a democracia brasileira, deva ser encarada, com rapidez, como uma batalha urgente de ideias e não apenas como uma disputa eleitoral.

Enfrentar a interpretação grosseira e simplificada que as forças das extremidades do espectro político, tanto à direita, quando à esquerda, fazem da realidade brasileira contaminando tudo isso com o discurso do ódio, do messianismo político e da retórica autoritária, que aposta na falta de memória sobre os fatos históricos de uma nação que já viu esse filme antes, é tarefa imediata para tantos quantos têm compromisso verdadeiro  com as liberdades e a ordem democrática.

E o campo privilegiado onde essa batalha já está se dando é sobretudo o ambiente das redes sociais onde as novas e infinitas possibilidades, tanto de informação, como de desinformação, são infinitas. A exemplo das guerras da Antiguidade e do Medievo, onde as batalhas se resolviam no corpo a corpo, a batalha das eleições de 2018, para as forças democráticas brasileiras, será muito dura, porque muito além da disputa pragmática pelo voto, estará em jogo a disputa por mentes e corações em espaço de grande vozerio e confusão de ideias.

Não é algo fácil, do ponto de vista da comunicação e do debate enfrentar ideias preconceituosas, construídas em cima de simpli- ficações da realidade, estereótipos e estigmas políticos grosseiros que prosperam em momento de muita passionalidade e se valem de um alto grau de despolitização do público alvo. No entanto, não é algo impossível desde que, contra a manipulação rasteira, se oponha uma atitude político-pedagógica firme, desassombrada e sistemática em defesa dos grandes valores da convivência demo- crática, da tolerância e da cultura dos consensos e do pluralismo. Além, é claro, da rememoração dos fatos históricos referentes à dura batalha para fazer do Brasil um país livre e democrático.

Aliado a essa preocupação central, as forças do espectro demo- crático, muito embora tenham contradições visíveis do ponto  de  vista dos modelos de desenvolvimento econômico-social pretendi- dos, precisam dialogar e alinhar pontos de vista e estratégias comuns, se não para convergir em candidatura  de  consenso  –  o  que é muito difícil, e talvez nem desejável em momentos como  o atual – pelo menos para construir uma saída consensual  em  provável segundo turno das eleições. E a base para essa última saída é a elaboração, desde já, de um discurso comum em defesa do avanço da democracia e da convivência democrática.

Alguns pontos para uma base genérica comum podem ser definidos, muito embora eles precisem ser encontrados pelo esforço conjunto da inteligência democrática. Porém, arriscaría- mos adiantar que o compromisso com a ordem constitucional, a pauta do combate às desigualdades e à corrupção, a reforma pactuada do Estado brasileiro, a necessidade de mudanças nas matrizes estruturantes da economia na direção de um Projeto Nacional de Desenvolvimento Sustentável, a preservação dos nossos biomas e fortes investimentos em educação, ciência e tecnologia são apenas alguns exemplos de elementos que preci- sam configurar a plataforma das forças democráticas mesmo que ela venha a ser compartilhada por mais de uma candidatura

Por último, urge pensar no tempo exíguo para missão tão complexa. Mas é a história viva que nos impõe desafios. Em certo sentido é preciso reconhecer que todas as caminhadas estão sujeitas a interrupções, reavaliação de encruzilhadas, busca retroativa de melhores veredas e novidades inesperadas. Não esperávamos que, superada a ditadura militar, fôssemos conviver com fantasmas dos tempos das polarizações estúpidas. Infelizmente eles voltaram à cena, inicialmente tímidos, mas agora arrogantes e ativos. Isso nos obriga a todos que preferem cultuar a inteligência no  lugar  da  morte,  a  tomar  atitudes,  desde  já.  A vida nos chama novamente!

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