Multidões se reuniram no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras capitais para homenagear a vereadora
Costuma-se dizer que os brasileiros não sabem qual é a função de um vereador e muito menos em quem votou nas últimas eleições. Nesta quinta-feira, entretanto, as multidões que se reuniram no centro do Rio de Janeiro e de outras capitais sabiam que Marielle Franco — negra, nascida e criada no Complexo da Maré, mãe desde os 18 anos e ativista pelos direitos humanos — era representante do povo carioca. Foi eleita com mais de 46.000 votos em 2016 e foi a quinta parlamentar mais votada naquele ano, sua estreia nas urnas. O assassinato no dia anterior da vereadora do PSOL e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes, provocou uma onda de luto e indignação coletivas nas ruas. No centro do Rio, eram milhares marchando pela avenida Rio Branco e se apertando na Cinelândia com o objetivo de não apenas homenagear Marielle como também dizer que queriam dar continuidade às suas bandeiras. Entre elas, exigir o fim da intervenção federal no Estado do Rio, o fim de uma guerra contra as drogas travada nas favelas e periferias e que vitimiza milhares de jovens e negros todos os anos, o fim do racismo e do machismo institucional.
A força das ruas tornou-se um inesperado desafio para o Governo de Michel Temer (MDB) e sua aposta em uma inédita intervenção federal como bandeira eleitoral e resposta para o caos na segurança pública do Rio. O presidente colocou suas fichas em nomear como interventor federal o general Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste e, desde o último dia 16 de fevereiro, também chefe máximo da segurança pública fluminense, ainda que nem sequer haja um plano oficial para a ação. Agora, essa cadeia de comando — da Polícia Civil ao presidente — tem que responder por um dos mais emblemáticos crimes políticos da história recente brasileira. Não que o tipo de delito não aconteça no Estado do Rio ou em outras partes — a campanha municipal na Baixada Fluminense deixou um rastro de sangue —, mas a ousadia de executar uma promissora líder em pleno centro do Rio sinaliza que seus autores decidiram cruzar uma linha vermelha para enviar uma mensagem.
Marielle era, desde 28 de fevereiro, a relatora de uma comissão da Câmara dos Vereadores criada para fiscalizar a intervenção, com o poder de aprovar relatórios e providências contra militares e policiais. A vereadora também denunciou quatro dias antes a truculência da Polícia Militar no bairro de Acari, na periférica Zona Norte do Rio. Foi com esse contexto em mente que muitos apoiadores de Marielle acreditam que policiais são os principais suspeitos do assassinato. As circunstâncias indicam que foi uma execução planejada, uma hipótese com a qual a Polícia Civil já trabalha. Foram nove tiros no carro, sendo que quatro atingiram a cabeça da vereadora. Nada foi levado após o crime. O vidro do carro era escuro, mas os atiradores sabiam que ela estava sentada no banco de trás do lado direito, o que levantou a suspeita da polícia de que ela fora seguida. O interventor Braga Netto, responsável pela segurança pública do Rio, não veio a público falar sobre o caso. Limitou-se a emitir uma nota repudiando “ações criminosas como a que culminou na morte da vereadora Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes” e dizendo que “se solidariza com as famílias e amigos”. O Governo federal tentou reagir. Temer gravou um vídeo e o ministro da Segurança, Raul Jungmann, no Rio, prometeu em coletiva de imprensa uma rápida investigação sobre o que aconteceu e assegurou que os culpados irão pagar.
Sem Polícia Militar nos protestos
A comoção que inundou as redes sociais na noite de quarta-feira se transformou numa multidão que começou a se formar ainda na parte da manhã diante da Câmara de Vereadores, na Cinelândia, centro do Rio. Pessoas se abraçavam e choravam. Recordações, dor, luto e silêncio — uma atmosfera que se repetiria mais tarde na multidão que ocuparia a avenida Paulista, em São Paulo, outras das cidades que se mobilizaram. “Eu não estou muito bem para dar entrevista, desculpe”, disse uma jovem. Pouco antes das 15h, os caixões com os corpos de Marielle e Anderson chegaram na Assembleia para um velório reservado apenas para familiares e amigos. Do lado de fora, a vigília continuava. Uma hora depois, os caixões foram levados para fora do recinto sob fortes aplausos e seguiram para o cemitério do Caju (ela) e Inhaúma (ele). “Justiça! Justiça! Justiça!”, gritavam.
A multidão começou então a se mover e a crescer. Um cortejo liderado por mulheres negras deixou a Cinelândia e caminhou pela Avenida Rio Branco cantando: “Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!”. O ato entrou pela rua da Assembleia e finalmente alcançou a rua Primeiro de Março, onde fica a ALERJ. Era lá que estava marcado, âs 17h, a concentração para um ato contra o genocídio negro. “Marielle, presente! Marielle, presente! Anderson, presente! Anderson, presente! Hoje e sempre!”, repetiam os manifestantes. A Polícia Militar, que sempre se faz presente nas manifestações, fez-se notar pela sua completa ausência no ato do Rio. Ao longo de todo o dia, nenhum policial foi visto no centro da cidade. “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”, cantavam constantemente os manifestantes.
Uma vez na Assembleia Legislativa, líderes partidários, políticos e sindicalistas foram se revezando no microfone. “Mataram mais uma de nós, mataram mais uma de nós, mataram mais uma de nós. Assim como matam nossos filhos”, disse, muito emocionada, a vereadora de Niterói Talíria Petrone, também do PSOL. “Somos muitas Marielles vivas”, concluiu. Já Jandira Feghali, deputada federal do PCdoB, resumiu: “Marielle morreu porque sintetizava as três opressões que tem no país: a opressão de gênero, a opressão de classe e a opressão racial. (…) Este crime foi político. E crime político não se responde individualmente, se responde coletivamente”.
Um abatido Marcelo Freixo, deputado estadual pelo PSOL, voltou do cemitério e recebeu um forte e demorado abraço Chico Buarque. Freixo dava aula de história em um cursinho pré-vestibular quando conheceu Marielle. Ao ser eleito deputado estadual pela primeira vez, em 2006, levou a ativista para trabalhar com ele. Foram 10 anos lado a lado naquele mesmo edifício da ALERJ, trabalhando na Comissão de Direitos Humanos da Casa. “Está muito difícil pra mim. Mas vou seguir. E vamos descobrir quem fez isso, nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida”, disse Freixo. Chico também fez um breve discurso: “Eu só quero prestar minha homenagem à minha vereadora Marielle. Vamos iniciar a caminhada até a Cinelândia”.
E assim a multidão voltou a se movimentar pela rua Primeira de Março para fazer o caminho de volta à Câmara dos Vereadores. Foi quando a manifestação, que já era enorme, de repente atingiu uma proporção extraordinária. “Companheira me ajuda, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”, cantavam enquanto entravam mais uma vez na avenida Rio Branco. “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem mexeu com a Marielle atiçou o formigueiro”.
“Marielle foi o meu primeiro voto”
De volta à Cinelândia, a estudante de Direito Mariane Oliveira, de 20 anos, fala da emoção em ter votado em Marielle. “Foi o meu primeiro voto. Eu sempre tive muita ansiedade em votar pela primeira vez. E quando eu a conheci, reconheci nela a pessoa que eu queria que me representasse. Eu fiquei muito feliz e sabia que tava fazendo a coisa certa”, conta a jovem, que levava um cartaz que dizia “Luto é luta”. E qual recado ela queria passar na manifestação? “Eu não tenho a voz para falar isso que não sou negra, mas eu acho que as pessoas começarem a respeitar e dar voz a mulher negra. Elas incomodou tanto não só porque ela tocou na ferida, mas por ser negra e vir da periferia”.
A educadora social Tereza Onã trabalha no Complexo de Favelas da Maré e conhecia pessoalmente Marielle, “uma pessoa brincalhona que andava descalça junto com as crianças”. Para o ato decidiu vestir uma camiseta com seu orixá estampado, Oyá. “Quando eu saio na rua com ela, as pessoas têm medo. Mas hoje decidi usá-la porque o momento pedia”, conta a mulher, de 51 anos. “Sabíamos que o Estado matava, mas não imaginávamos que chegaria numa vereadora. Este ato é muito simbólico nós todas somos irmãs”. A historiadora Raquel Oliveira, de 23 anos, recorda o dia em que conheceu a vereadora, durante um projeto social que fizeram juntas. “Voltamos para casa de ônibus, porque morávamos perto uma da outra, e ela foi me contando sobre sua vida. Ela foi uma mulher foda. Teve uma vivência, ela viveu aquilo e soube passar isso para o poder em que estava. Ela tinha o lugar de fala. E lutou muito para estar aqui, então a luta dela não pode acabar hoje”, explica.
Em outra ponta da praça Floriano Peixoto, na Cinelândia, o estudante de Geografia Vitor Machado, de 24 anos, fala sobre como está incomodado com a inércia do povo. “O Brasil vem sofrendo ataque direto ao dia dia. A gente vem sendo vetado de educação, saúde, transporte… Está na hora da gente começar a se mexer. Se depender dos movimentos estudantis e negro, vamos estar ocupando as ruas todos os dias. Mas precisamos ser mais incisivos, ainda falta muita coisa”, diz ele. Também lembra que a vereadora não foi a primeira e nem será a última a ser brutalmente assassinada. “Precisamos dar a resposta para quem acha que pode ficar impune. Todo mundo que se levanta e que tenta fazer alguma coisa para atingir essa máfia bizarra que é coligada em todas as esferas no Rio acaba morto”. Sua colega Taíse Almeida, de 23 anos, emenda: “É uma representante negra e mulher que foi brutalmente, assassinada, calada. Isso atinge a outras mulheres como eu e também aos negros”, diz a estudante de geografia. Ela até acha que os atiradores possam ser pegos, mas acredita que “tem coisa muito maior por trás” e os mandantes do crime ficarão impunes. “Tentaram calar não só a Marielle, mas as ideias que ela representava. Tentaram calar as favelas, calar as minorias, calar o povo preto”.
São quase 21h e o ato se aproxima de seu final. A veterinária Luciana Gentilli, que conheceu a vereadora do PSOL no bandejão da faculdade na época das eleições, fala sobre o passado. Em 28 de março de 1968, há 50 anos atrás, um estudante secundarista foi assassinado por policiais no centro do Rio durante um protesto. Seu nome era Edson Luís de Lima Souto e seus 18 anos coincidiram com o Ato Institucional de número 5, que endureceu a ditadura militar. “Sua morte gerou uma comoção parecida com a que estamos vendo. As pessoas também vieram protestar na Cinelândia. E aqui estamos nós, de novo, protestando pela morte de outra pessoa. Então estou aqui para que, no futuro, a gente não tenha que voltar de novo por esse mesmo motivo”.