“As instituições estão funcionando” é a platitude do momento. Num aspecto, é obrigatório reconhecer que elas funcionam bastante bem: nosso sistema de freios e contrapesos anda tão azeitado que o mecanismo travou. Em cada ação possível, há travas suficientes para impedir que qualquer coisa aconteça. O sistema político-institucional parece uma moto, ou um carro, sobre cavaletes e de motor ligado: queima combustível e não sai do lugar.
Mas nem tudo está perdido. As eleições vêm aí e teremos novos governantes em janeiro. É a boa notícia. E a má? Bem, o sistema brasileiro de freios e contrapesos produziu uma anomalia: quem é eleito não manda, e quem manda não é eleito. As intenções dos constituintes foram as melhores, mas o produto do trabalho deles acabou não sendo bom: na ânsia de enfraquecer o poder, erraram na dose e criaram uma engrenagem vocacionada à ingovernabilidade.
Só o papel não seria, porém, capaz sozinho de produzir o desastre. O definhamento da democracia brasileira é obra de múltiplas mãos desde o colapso das “Diretas já”, que obrigou a uma transição negociada, para a qual muitos torceram o nariz. Abriu-se então o longo período de apedrejamento que hoje colhe seus frutos mais carnudos. Três décadas de ataques à política, pela esquerda e pela direita, escancararam as portas do inferno para os salvadores da pátria.
Os políticos ajudaram bastante. Principalmente quando consolidaram um sistema rentável e imune à renovação e à alternância. E a coisa foi piorando a cada “aperfeiçoamento” exigido pela “opinião pública”. O resultado é uma política monopolizada por cartórios fossilizados. É impossível disputar com chances o comando desses cartórios. E eventuais desafiantes do establishment político precisam antes de tudo ter um cartório para chamar de seu.
Entre os fatores na raiz dos nossos impasses, um merece destaque especial. O descolamento entre os graus de liberdade e de democracia. Uma não se confunde com a outra. A saúde de uma democracia mede-se também por quanto a vontade da maioria influi na execução governamental e na produção congressual. E é bem possível conviverem por um tempo altas taxas de liberdade e graus apenas relativos de democracia.
O Brasil está meio assim. Convertido numa federação de déspotas supostamente esclarecidos e bem protegidos do voto. Por serem portadores da verdade e do bem, acumulam o poder de impor sua vontade de modo absoluto. Estão espalhados por todos os lugares, e não apenas na burocracia estatal. Legislam, julgam e executam de acordo apenas com o que decidiram ser o melhor para nós. São os mini-sovietes de si mesmos, mas para todos. O que isso tem a ver com democracia?
Toda obra política precisa de uma narrativa legitimadora. Gramsci explicou que sem algum consenso não há coação que dê conta. E a narrativa-candidata é, surpresa!, a “crítica ao populismo”. O “governo ideal” é o capaz de agir independente da, ou mesmo contra a, vontade popular. “Aproveite a impopularidade e faça o que tem de ser feito, presidente”. E se a esmagadora maioria for contra? “A situação é grave. Não é hora de ceder ao populismo.“
Há duas críticas do “populismo”. A primeira, mais elegante, usa a expressão para caracterizar um sistema totalizante. “Democracia não é só voto, é alternância. Se se bloqueiam todos os canais de alternância, accountability, pressão etc., a democracia degringola. E o populismo tende a fazer justamente isso.” Essa é a teoria. Na vida real, o termo é usado para carimbar políticos que governam de olho não no que é “certo e racional”, mas na popularidade.
E tudo estaria bem organizado a partir da “crítica ao populismo”, não fosse o probleminha incômodo: as eleições. Elas introduzem o desconforto de ter de convencer o eleitor. E se o eleitor não se convencer? Bem, então será o caso de fazer, mesmo que ele não esteja convencido. Para que servem então as eleições? Pergunta complicada. Talvez seja hora de chamar os especialistas em teorias igualmente complicadas sobre a “crise da democracia representativa”.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação