O que é e para onde vai a esquerda no Brasil?
A pergunta se faz pertinente por conta do midiático posicionamento de cantores, compositores, atrizes (Carlos Vereza, o grande ator, é uma das exceções), que, se dizendo de esquerda, fazem loas a Lula e Dilma, perorando contra o golpe desferido pela direita que colocou no poder um golpista e animando plateias a levantar placas “Fora Temer”.
A era petista levou o Brasil à maior recessão econômica de sua história, maior até que a Grande Depressão de 1929. Alguns dos artistas que fazem barulho, porém, continuam a sonhar com a volta de Lula, enxergando nele a “Salvação da Pátria”. Afinal, que esquerda é essa?
Primeiro, vale lembrar que a esquerda frequenta mais a boca de artistas que o aparelho fonador de políticos.
É fato que o PT continua a desfraldar a bandeira do socialismo, mas perdeu vigor nessa toada, a partir do momento em que entrou no pelotão da bandalheira, objeto de operações que se iniciaram no mensalão (Ação Penal 470) e continuam hoje na Lava Jato.
O espaço de esquerda passou a ser ocupado pelo PSOL, cujo discurso se afina ao surrado refrão da luta de classes e combate mortal ao capitalismo.
Os dogmas socialistas tornaram-se verbetes com serventia de graxa para ilustrar perfis corroídos. Ser de esquerda é charme para certos artistas. Mas a esquerda já não incorpora o escopo do socialismo clássico marxista sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução.
A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels, tentou fazer escola entre nós, nos idos de 1960, mas foi repelida pela ditadura militar.
A redemocratização do País abriu espaço para outras áreas no canto esquerdo do arco ideológico.
Nas últimas três décadas, formou-se nova argamassa para ajustar estacas do alquebrado socialismo revolucionário com tijolos do liberalismo político e econômico.
Fixaram-se outras posições, como o porte e a ação do Estado, chegando-se ao meio termo: nem Estado mínimo nem Estado máximo, mas um ente de tamanho adequado.
Agregaram-se expressões como “capitalismo de face humana”, “socialismo de feição liberal”. A intervenção do Estado no mercado chegou até a gerar designação própria para a situação da China – capitalismo de Estado.
Social-democracia
O fato é que a meta do sistema é convergir a eficiência econômica com o bem-estar social, ao que se deu o nome de socialdemocracia. Essa marca chegou ao Brasil em fins dos anos 1980, endossada inicialmente pelo PSDB num texto de seus ideólogos,
Os desafios do Brasil. Por tentativa e erro, nosso arremedo socialdemocrata entrou no terceiro milênio, ganhou o centro do poder e foi acusado de se curvar ao Consenso de Washington.
De onde partiu a crítica?
Do PT e seus satélites. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e chegaram ao Palácio do Planalto em 2003 com a eleição de Lula. Mas dom Luiz I e Único (o título tem a ver com o discurso de que foi o primeiro a fazer isso e aquilo), nunca abandonou as linhas gerais da política neoliberal.
Com o “mensalão”, soçobraram as pilastras leninistas e o teto marxista. As bandeiras vermelhas do petismo ficaram borradas de lama e de vergonha. Depois, apareceu a operação “amaldiçoada” por grandes, médios e pequenos partidos, a Lava Jato. Muitos atores se nivelaram na sujeira da corrupção.
Foram presos ou ainda estão dirigentes do PT e de outros partidos, ex-ministros, mandatários de todos os quilates. Sob o lamaçal, que matiz de esquerda se pode distinguir?
Apenas traços indistintos e pequenos sinais de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O PSOL está bem na fita. Até o PC do B escapa da modelagem esquerdista.
O que existe é um espaço acomodando praticamente grandes e médias entidades, cuja pregação socialdemocrata abriga questões como liberdade política, controle social, intervenção do mercado, organização da sociedade civil e até continuidade ou não das estatais.
Artistas fecham os olhos
O ciclo Dilma jogou o país no profundo buraco da recessão e do desemprego, selando o fim de refrãos socialistas. CUT e MST ainda tentam elevar ao alto suas bandeiras, mas se frustram com plateias escassas. No momento em que o Brasil alcança uma Selic de 7%, o menor juro da história, uma inflação abaixo dos 3% anuais, a volta do emprego, o que se vê na paisagem?
A tentativa de alguns de transformar o verso em reverso. E o engodo grassa. Lula propaga que belos foram os tempos em que ele e Dilma fizeram do Brasil um paraíso. Os artistas entoam esse hino. Berram surrados slogans publicitários e execram as reformas que cortam as amarras do país ao passado.
Por que a classe artística glorifica o ciclo lulopetista? Primeiro, ser esquerdista parece charmoso para muitos. Segundo, Lula é o ícone da dinâmica social no Brasil, condição que serve para encobrir a lama do mensalão e de escândalos que enfrenta na justiça.
Já Dilma “foi apeada do poder por um golpe”, tendo assumido um “vice” que nunca teve um voto, esquecendo que ele obteve o mesmo número de votos da ex-presidente.
Persistem na alma de uns e outros traços da cultura pré Muro de Berlim: contrariedade em relação ao que se identifica com EUA, capitalismo, iniciativa privada e simpatia em relação aos símbolos do velho socialismo, como Cuba e Venezuela. Nem mesmo o chefão russo Putin merece hoje consideração, enquanto o socialismo à moda chinesa parece uma excrescência.
Afinal, o PT ainda é de esquerda?
Vejamos. A partir dos anos 70 a 80, os partidos socialdemocratas passaram a incorporar princípios neoliberais, puxando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina socialdemocrata ganhou contornos na esteira da globalização.
Siglas mudaram, transformando suas bases trabalhadoras em classes médias, mais conservadoras e com maior acesso ao capital financeiro. Angela Merkel, na Alemanha, por exemplo, deu efetiva contribuição para moldar a socialdemocracia com a solda neoliberal.
O Brasil ingressou na rota.
A alternativa que restou ao PT foi a de aderir ao figurino. Importantes figuras do nosso universo artístico, porém, teimam em fechar os olhos à nova realidade, apostando na tese de que bom, mesmo, era o Brasil que até ontem respirava por aparelhos.
* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação