Day: janeiro 2, 2025

Imagem: Vanderlei Almeida/AFP/AFP

Quem tem medo do mercado?

Sérgio C. Buarque, publicado originalmente na Revista Será?

A forte desvalorização do Real em relação à moeda norte-americana, nos últimos meses, tem causas externas, mas reflete diretamente a desconfiança dos agentes econômicos na disposição do governo em conter a expansão das despesas públicas. Desconfiança que cresceu com as tímidas medidas de corte de gastos, combinadas com a trapalhada do anúncio da esperada redução de receita por conta da isenção de Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil reais. E que se intensificou com o desgaste político do ministro Fernando Haddad, que transmitia segurança aos agentes econômicos na gestão das finanças, quando ficou patente que ele não conseguia convencer o presidente da República a adotar medidas mais robustas para deter a inércia de expansão dos gastos públicos.

Entretanto, demonstrando que não entenderam nada, os líderes do governo e do partido do presidente insistem em transferir as responsabilidades pelas próprias dificuldades, e se apresentarem como vítimas da conspiração dos inimigos do povo. Segundo vários pronunciamentos de aliados do presidente, o mercado está conspirando para desmoralizar o governo Lula e enfraquecer a sua candidatura à reeleição. O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos mais conceituados economistas do Brasil, chegou à insanidade de dizer que o mercado é “uma força política” que vai fazer o possível para inviabilizar o governo do presidente Lula.

Não sabem, ou não querem saber, o que é mercado, confundindo com uma entidade, quase um partido político. Belluzzo sabe que o mercado não é uma entidade, um ator social ou político, mas prefere confundir a opinião pública usando o seu prestígio (e arranhando sua reputação) para difundir uma informação falsa, que espera encobrir o fracasso do governo. Para explicar o fracasso da política econômica que leva a desequilíbrios nos ativos financeiros, o governo e seus ideólogos se apressam em vender a ideia do mercado como inimigo do “pai dos pobres”.

Não é de agora que o presidente Lula da Silva fala do mercado como se fosse uma pessoa poderosa, rica e voluntarista, com interesses próprios e, além do mais, atuando para desestabilizar o Brasil. “O mercado é um dinossauro voraz – disse Lula. Ele quer tudo para ele e nada para o povo. Será que o mercado não tem pena das pessoas que passam fome?”. Não, presidente, o mercado não é uma entidade e não tem vontade ou propósitos políticos, não é um partido político e nem sequer uma associação corporativa. O mercado é o ambiente no qual múltiplos agentes econômicos negociam ativos financeiros, compram e vendem ações de empresas, títulos da dívida pública, Certificados de Depósitos, contratos futuros de commodities e moedas estrangeiras, de acordo com a expectativa de retorno futuro da aplicação das poupanças.

No mercado, estes ativos são intercambiáveis entre poupadores e tomadores, pequenos ou grandes, diretamente ou através de fundos e corretoras, movem seus recursos entre eles de acordo com as expectativas de retorno que, em última instância, depende dos indicadores macroeconômicos. Estes ativos têm valor porque correspondem a poupanças acumuladas por milhões de pessoas, que podem ser transferidas para os milhares de investidores que demandam financiamento para os seus projetos, incluindo o Estado, que financia seus déficits com a venda de títulos públicos. O valor das transações depende das negociações entre eles no mercado – o espaço no qual são negociados – o que se reflete no movimento diário da bolsa de valores, do mercado de câmbio, de títulos da dívida e de contratos de commodities. Milhões de pessoas dos dois lados do “balcão” negociando, com seus diferentes ativos e interesses dispersos, vão gerando o resultado das cotações. Bancos, fundos de investimentos e corretoras são apenas intermediários do mercado financeiro, juntando poupanças e prometendo retornos decorrentes da análise de risco e potencial dos ativos. E como os negócios estão sempre voltados para as expectativas de um retorno futuro, e não para a fruição imediata de um produto, as cotações são muito sensíveis ao que os agentes econômicos esperam do comportamento da economia, e do resultado futuro esperado pela alocação da sua poupança na forma de dividendos, juros, variação cambial, etc. Desta forma, o mercado é muito sensível às decisões da política econômica e aos seus prováveis desdobramentos sobre os retornos financeiros e à flutuação de valores dos diferentes ativos.

A movimentação no mercado pode até acentuar desequilíbrios financeiros, especialmente quando leva a estouro de bolhas financeiras. Mas é importante ressaltar que a instabilidade do mercado pode beneficiar alguns agentes econômicos, mas prejudicar outros. O atual ciclo de desvalorização cambial pressiona a inflação que prejudica a todos, principalmente os mais pobres, é muito positivo para os exportadores, mas provoca prejuízos nas empresas que devem em dólar e que têm ativos em reais.

Cada um dos agentes econômicos deve ter visão política, nem sempre convergente, e muitos podem não gostar do PT e do presidente Lula, mas não pensam em política quando negociam no mercado. A FIESP é uma entidade que representa as empresas industriais, a FEBRABAN é uma entidade que representa os bancos e instituições financeiras, organizações que defendem os interesses econômicos e políticos e podem até conspirar contra governos. Mas não se pode confundir estas instituições com o mercado.

Não sendo uma entidade ou organização política e, portanto, não tendo vontade nem interesses, o mercado não pode ter a sensibilidade social cobrada por Lula; nenhum mercado, nem a feira do bairro, nem o comércio, nem a Bolsa de Valores negociam com a intenção de combater a pobreza. Quem tem que promover o bem-estar da sociedade e a redução das desigualdades sociais é o Estado, os governos, com os investimentos públicos e os projetos de desenvolvimento social. Mas, para isso, o Estado precisa que o mercado financeiro organize as poupanças da sociedade de modo a financiar os investimentos privados, que geram emprego e renda, e financiar o próprio governo com seus títulos da dívida. Difundir a ideia de um mercado conspirador é uma falsificação da realidade econômica e uma manobra para esconder as dificuldades do governo. E só aumenta a desconfiança dos agentes econômicos.