Day: janeiro 19, 2023

Foto: Carl de Souza

WikiFavelas: um caminho para reconstruir o Brasil

Outras Palavras*

Encerramos a coluna do Dicionário de Favelas Marielle Franco no Outras Palavras em 2022 com esperança. O nosso texto falava sobre as dificuldades de aquilombar a política no Brasil, num cenário de sub-representação de pessoas negras, pobres e faveladas nos espaços da política institucional. Mas, apesar de enormes dificuldades, o primeiro domingo do ano nos abriu oportunidades: o povo brasileiro subiu a rampa do Palácio do Planalto em toda a sua diversidade. Teremos indígenas, mulheres negras, faveladas, pessoas com deficiência, trabalhadores e trabalhadoras, sem-teto, sem-terra e tantos outros setores estratégicos na refundação do Brasil.

Os ares que sopram nos abrem caminhos para uma discussão profunda, aliada aos importantes movimentos sociais insurgentes, sobre democracia e direitos humanos no Brasil. Silvio Almeida, nomeado ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, ao tomar posse reforça o reconhecimento e a dignidade que deverá ser a principal ação do atual governo para a garantia de direitos de tantos corpos marcados pela discriminação e pela exclusão na sociedade brasileira. Por mais que muitos e muitas tentem vilipendiar o sentido dos direitos humanos e limitar o acesso à dignidade, a cada dia fica comprovado que sem um sistema de garantia de direitos fundamentais para todas as pessoas, não conseguiremos avançar como sociedade. Num período histórico de intensa polarização, que, como vimos, não se esgotou com o fim das eleições presidenciais de 2022, tem-se disputado também o sentido dos direitos humanos. E precisamos utilizar desse espaço para posicionar os setores progressistas e de esquerda na consolidação dos direitos. Sem anistia! – é o clamor da sociedade!

O segundo domingo do ano nos deu muitos recados. Diante de ameaças (falidas) de golpe de Estado, uma malta fascista tomou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, para destruí-la. Flávio Dino, Ministro de Justiça e Segurança Pública, buscou nas forças de segurança formas de conter os terroristas, porém as polícias, sob o comando do governador do Distrito Federal, cooperaram na invasão e se mantiveram dispostas a servir de base para o que há de pior no Brasil: o racismo e as violações de direitos humanos. Em seu histórico de violências em todo território nacional, percebemos que o Estado é forte quando impõe seu braço armado contra populações pobres e negras, por exemplo, na promoção constante e institucionalizada de chacinas policiais em favelas e periferias do Rio de Janeiro. A identificação de “bandido”, portanto, não reconhece homens brancos de meia idade vestidos com o uniforme da CBF quebrando vidraças e destruindo obras de arte. Caso o comando seja identificar criminosos que atentem contra a democracia, os policiais não sabem para quem olhar, já que terão que olhar também para si mesmos.

Como discute Luiz Eduardo Soares em artigo recente neste mesmo site, a infiltração contagiosa do fascismo nas polícias não é novidade, tem história e sua erradicação passará por mudanças institucionais e culturais, eliminando focos e estruturas que permitem a reprodução das práticas que perpetuam a repressão seletiva como forma de dominação. Por outro lado, é urgente que se aprimore em toda a sociedade a crítica como uma oportunidade de inflexão política. Pesquisadores(as), lideranças e moradores(as) de favelas e periferias já vêm denunciando as estratégias do militarismo e os riscos para a democracia brasileira. A discussão sobre a desmilitarização das polícias, no entanto, encontra o crescimento exponencial das milícias, como no caso do Rio de Janeiro, e aprofunda problemas estruturais. Desde a redemocratização, o papel constitucional das polícias não problematiza as forças de segurança como forças que reproduzem contra suas próprias populações uma “guerra” de inimigos internos. A “guerra” como metáfora se ancora, justamente, na excepcionalidade de uma situação de risco que exige medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e democrática para atender aos anseios da ordem e da sociabilidade, daqueles que são tidos como cidadãos de direito. Tentativas de repressão e controle a título de “pacificação” já demonstraram que a democracia no asfalto não pode coexistir com o estado de exceção nas periferias e favelas. Um dia o aparato repressivo fora do controle da sociedade, em promiscuidade com as milícias e a militarização das políticas públicas se tornaram o modo dominante de exercício do poder.

Após a prisão de centenas de pessoas em Brasília em função dos atos terroristas na sede dos três poderes, o general Hamilton Mourão, ex-vice-presidente da República, foi às redes pedir que os direitos humanos das pessoas custodiadas fossem respeitados. O peso simbólico deste ato, onde um dos expoentes da ultradireita no país – que esteve à frente de um dos governos que mais atacou as políticas de direitos humanos (especialmente de pessoas pobres, negras, LGBTIA+, mulheres, povos originários…) – pede clemência para que seus eleitores, acusados de uma série de crimes envolvendo depredação de patrimônio público, terrorismo, golpe de Estado e afins, usufruam do conjunto de direitos contra os quais ele mesmo se encarregou de lutar, é também parte do que precisamos colocar sobre a mesa.

O mesmo pedido de clemência se estende aos pobres e desassistidos que sofrem com a ausência de políticas públicas na saúde, na educação, no trabalho e na moradia? Ou apenas aos empresários que estão destruindo a Amazônia com desmatamento ilegal? Ou isenta o governador do Rio de Janeiro, atual recordista em operações policiais letais em favelas e periferias? Ou inclui os milhares de jovens negros encarcerados por uma (também falida) guerra às drogas?

Silvio Almeida convoca a ação em seu discurso de posse quando pede que “nós não nos rendemos. Pois nós somos o povo que, mais de um século antes do pastor Martin Luther King, dizíamos, com Luiz Gama, ter um sonho: ver ‘o Brasil americano e as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos!’”.

Logo após os atos terroristas reprimidos por meio de uma intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, em um palácio destroçado, esperançamos mais uma vez ao acompanhar a posse de Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, potências que inscrevem em seus corpos e, agora, oficialmente, no governo federal: a luta das mulheres indígenas, negras, quilombolas e tantas outras Marias, Mahins, Marielles e malês. É tempo, portanto, de reparação, verdade e justiça! E de tomar a pauta dos direitos humanos por seus próprios defensores e defensoras.

Deve ser o primeiro ponto de pauta a discussão sobre direitos humanos em favelas e periferias, pois é um movimento essencial se quisermos retomar os rumos democráticos do Brasil. Não há como discutir democracia sem pensar nas milhares de execuções de negros e negras que acontecem diariamente em favelas, periferias e na manutenção de presos sem julgamento, humilhados e mortos nas prisões, assim como não há como pensar em democracia sem acesso a saneamento, habitação, saúde, educação e alimentação. Democracia não é uma abstração ou algo utópico, tampouco uma ação isolada. Democracia é um processo, é uma caminhada, é um conjunto de posicionamentos e práticas fundamentais para a vida digna da população. No verbete “Segurança Pública e Direitos Humanos: algumas considerações para seguirmos em luta”, os psicólogos e pesquisadores Caíque Azael, Rosa Pedro e Pedro Paulo Bicalho discutem sobre a necessidade de seguir em luta “para a construção de futuros possíveis, onde práticas que perpetuam violências, desigualdades e aniquilamentos não sejam mais uma realidade, muito menos operadas pelo Estado brasileiro”. Confira o texto na íntegra no Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Texto publicado originalmente no portal Outras Palavras.


Faixa pode ter sido usada por golpistas como escudo de proteção - Marcelo Camargo/Agência Brasil

PF investiga se vândalos bolsonaristas receberam treinamento antes do ataque a Brasília

Brasil de Fato*

A Polícia Federal (PF) investiga se parte dos golpistas apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) que invadiram a Praça dos Três Poderes em Brasília no último dia 8 de janeiro recebeu algum tipo de treinamento para encarar as forças policiais. A informação foi publicada nesta quinta-feira (19) em reportagem do jornal Valor.

Segundo a apuração do jornal, uma série de evidências demonstraria que ao menos uma parte do grupo tinha sido preparada para o confronto. O uso de máscaras e luvas por muitos dos invasores seria um desses indícios. As armas brancas também não parecem ter sido escolhidas por acaso: vários usavam soco inglês e estilingue.

Objetos como cabos de bandeiras, pedaços de pau e pedras também foram usados. Além disso, até mesmo uma faixa verde e amarela de grande pode ter sido levada pelo grupo para servir como proteção contra balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo.

A reação de parte dos bolsonaristas ao gás lacrimogêneo é um dos pontos que fizeram as suspeitas avançarem, segundo o Valor. Muitos resistiram aos efeitos do gás, que, além das lágrimas, causa tosse. Mesmo após o lançamento das bombas, integrantes do grupo seguiam determinados, o que teria chamado atenção dos policiais presentes.

Outro indício, apontou a reportagem, foi a maneira como a invasão ocorreu. Enquanto um grupo partiu para o Congresso, outras duas frentes seguiram rumo ao Palácio do Planalto e à sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em movimento aparentemente coordenado.

Após ter acesso aos dados sobre a investigação, o Valor procurou a PF para confirmar as informações, mas a corporação afirmou que não comenta investigações em andamento.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Nas entrelinhas: Uma reforma militar será inevitável

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Recém-eleito, com 288 mil votos, o jovem deputado Amom Mandel (Cidadania), de 21 anos, o mais votado no Amazonas para Câmara dos Deputados, antes mesmo de tomar posse, iniciou uma campanha para acabar com o serviço militar obrigatório, um verdadeiro tabu para as Forças Armadas. “Estou preparando um projeto para propor o fim do alistamento militar obrigatório. Qual a sua opinião?” — anunciou no Twitter, a sua principal ferramenta de intervenção política. A proposta provocou 3.567 comentários e teve 1.538 compartilhamentos, o que já é suficiente para se tornar uma causa com ressonância na sociedade e posicionar seu mandato junto à opinião pública.

Se aprovada, a proposta será o ponto de partida para uma reforma militar, que pode ganhar apoio da sociedade, principalmente da juventude, em razão dos últimos acontecimentos envolvendo as Forças Armadas, principalmente a omissão quanto à invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Não é uma ideia nova, mas o ambiente político agora é mais favorável a sua aprovação. A proposta de Amom está na contramão do Projeto de Lei 557/19, já aprovado pelo Senado, para que jovens morando em instituições de acolhimento familiar ou institucional tenham prioridade no processo seletivo para o serviço militar obrigatório.

Atualmente, a seleção para as Forças Armadas tem três etapas: alistamento (no ano em que o jovem completa 18 anos), seleção e incorporação. Pela proposta, de autoria do senador bolsonarista Eduardo Girão (Podemos-CE), a preferência pelos jovens egressos de abrigos será complementar a critérios definidos previamente pelo Exército, pela Marinha ou pela Aeronáutica. O Ministério da Defesa seleciona os jovens a partir da combinação de vigor físico e capacidade analítica, medida de forma independente do nível de informações ou da formação cultural dos candidatos.

O projeto tramita em caráter conclusivo na Câmara, mas tem um longo caminho a percorrer: as comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público; de Seguridade Social e Família; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. A proposta de Amom coloca em xeque o conceito adotado na criação do serviço militar obrigatório, cujo objetivo é fazer com que as Forças Armadas sejam a representação do “povo em armas”, com base no mito fundador do nosso Exército, a vitória na batalha de Guararapes (PE), decisiva para expulsão dos holandeses.

Ocorrida entre 1648 e 1649, houve muitos combates entre as tropas holandesas e as brasileiras, com apoio dos portugueses, na região dos Montes Guararapes, localizada próximo à cidade de Recife. Derrotados pelos militares luso-brasileiros, os holandeses fugiram para a cidade de Recife, local em que resistiram até janeiro de 1654. Muitos índios e negros lutaram ao lado das forças luso-brasileiras para expulsar os holandeses, sob comando do general português Francisco Barreto de Meneses; do paraibano André Vidal de Negreiros; do negro Henrique Dias, filho de escravos libertos; e do líder indígena potiguar Felipe Camarão, todos militares.

Profissionalismo e tecnologia

O surgimento de exércitos de massa no Ocidente está associado à formação do Estado-nação e ao uso de mosquete, que facilitou a instrução militar. A falta de precisão das armas de fogo da época obrigava a formações maciças de atiradores. Com a Revolução Francesa, o Exército de Napoleão Bonaparte, que conquistou a Europa e obrigou Dom João VI e a família real a fugirem de Portugal para o Brasil, consolidou o conceito de exército popular, com forte identidade patriótica, para se contrapor aos exércitos profissionais, muitas vezes formados por mercenários. A conscrição permitiu à França revolucionária formar o exército que Napoleão Bonaparte considerava “a nação em armas”.

Entretanto, esse conceito vem sendo contestado no Ocidente desde os protestos maciços nos Estados Unidos contra a conscrição para a Guerra do Vietnã. Com o final da Guerra Fria, a maioria dos países do Ocidente passou a dar prioridade aos soldados profissionais, ao treinamento de alta performance, à criação de forças especiais e ao uso de tecnologia de última geração. A guerra da Ucrânia, por exemplo, está servindo de terreno para um confronto entre modernos armamentos da Otan e as tropas russas equipadas com armamentos convencionais.

O projeto do jovem Amom Mandel abre um debate na sociedade sobre as Forças Armadas que queremos, num momento em que a questão militar voltou ao centro das preocupações políticas. Ontem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que pretende discutir com os comandantes militares a modernização das Forças Armadas. Recém-empossado, Lula está convencido de que no dia 8 de janeiro havia um golpe em marcha, que somente não ocorreu devido à intervenção civil na segurança pública do Distrito Federal.

Há uma desconfiança recíproca entre Lula e os militares, uma vez que o bolsonarismo contaminou grande parte dos efetivos militares. Ao contrário do que aconteceu na Argentina e na Espanha, como no Chile, a volta aos quartéis dos militares brasileiros foi uma retirada em ordem, embora tenham sido politicamente derrotados. A vitória de Bolsonaro em 2018 representou uma volta ao poder pelas urnas, levando à militarização da administração federal, numa proporção maior até que a do regime militar.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-uma-reforma-militar-sera-inevitavel/