Day: janeiro 11, 2023
Boaventura: as conexões externas do golpismo
Outras Palavras*
Ocorreu em Brasília no dia 8 deste mês, uma semana depois da tomada de posse do presidente Lula, um acontecimento que só tomou de surpresa quem não quis ou não pôde informar-se sobre os seus preparativos amplamente difundidos nas redes sociais. A ocupação violenta dos edifícios do poder legislativo, executivo e judiciário e dos espaços circundantes, bem como a depredação de bens públicos existentes nestes edifícios por parte de manifestantes de extrema-direita, configuram atos de terrorismo planejados e minuciosamente organizados pelos seus cabecilhas. Trata-se, pois, de um acontecimento que põe seriamente em causa a sobrevivência da democracia brasileira e que, pelo modo como ocorreu, pode amanhã ameaçar outras democracias no continente e no mundo. Convém, pois, analisá-lo à luz da importância que tem. As características e as lições principais são as seguintes:
1. O movimento de extrema-direita é global e as suas ações a nível nacional beneficiam das experiências antidemocráticas estrangeiras e muitas vezes agem em aliança com elas. É notória a articulação da extrema-direita brasileira com a extrema-direita norte-americana. O conhecido porta-voz desta, Steve Bannon, é amigo pessoal da família Bolsonaro e tem sido uma figura tutelar da extrema-direita brasileira desde 2013. Além das alianças, as experiências de um país servem de referência a outro país e constituem uma aprendizagem. A invasão da Praça dos Três Poderes em Brasília é um copia “melhorada” da invasão do Capitólio em Washington em 6 de janeiro de 2020, aprendeu com esta e tentou fazer melhor. Foi organizada com mais detalhes, procurou trazer muito mais gente a Brasília, e utilizou várias estratégias para que a segurança pública democrática se sentisse tranquilizada de que nada anormal aconteceria. Os cabecilhas tinham por objetivo ocupar Brasília com pelo menos 1 milhão de pessoas, criar o caos e permanecer o tempo necessário para permitir a intervenção militar que pusesse fim às instituições democráticas.
2. Pretende-se fazer acreditar que se trata de movimentos espontâneos. Pelo contrário, são organizados e com capilaridade profunda na sociedade. No caso brasileiro, a invasão de Brasília foi organizada a partir de diferentes cidades e regiões do país e em cada uma delas havia líderes identificados com número de telefone para poderem ser contatados pelos aderentes. A participação podia ter várias formas. Quem não pudesse viajar para Brasília, tinha missões a cumprir nos seus locais, bloqueando a circulação de combustíveis e do abastecimento dos supermercados. O objetivo era criar o caos pela carência de produtos essenciais. Alguns se lembrarão das greves de caminhoneiros dos combustíveis que precipitaram a queda de Salvador Allende e o fim da democracia chilena em setembro de 1973. Por sua vez o caos em Brasília tinha objetivos precisos. Foi invadida a sala de estratégia do Gabinete de Segurança Institucional, situada no porão do Palácio do Planalto, de onde foram furtados documentos sigilosos e armamento ultra-tecnológico, o que demonstra que havia treinamento e espionagem. Também foram encontradas cinco granadas no Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional.
3. Em países democráticos, a estratégia da extrema-direita assenta em dois pilares: (1) Investir fortemente nas redes sociais para ganhar as eleições com o objetivo de, se as ganhar, não usar o poder democraticamente nem sair do poder democraticamente. Foi assim com Donald Trump e com Jair Bolsonaro enquanto presidentes. (2) No caso de não ganhar, começar desde cedo a questionar a validade das eleições e declarar que não aceita outro resultado senão a sua vitória. O programa mínimo é perder por pequena margem para tornar mais crível a ideia da fraude eleitoral. Foi assim nas últimas eleições nos EUA e no Brasil.
4. Para ter êxito, este ataque frontal à democracia necessita de ter o apoio de aliados estratégicos, quer nacionais, quer estrangeiros. No caso dos apoios nacionais, os aliados são forças antidemocráticas, tanto civis como militares, instaladas no aparato do governo e da administração pública que, por ação ou por omissão, facilitam as ações dos revoltosos. No caso brasileiro, é particularmente clamorosa a conivência, passividade e se não mesmo cumplicidade das forças de segurança do Distrito Federal de Brasília e dos seus dirigentes. Com a agravante de que esta região administrativa, por ser a sede do poder político, recebe receitas federais avultadíssimas com o específico propósito de defender as instituições. No caso brasileiro, é também escandaloso que as Forças Armadas se tenham mantido em silêncio, sobretudo quando era conhecido o propósito dos organizadores de criar o caos para provocar a sua intervenção. Por outro lado, as Forças Armadas toleraram que se instalassem acampamentos de manifestantes em frente aos quartéis, uma área de segurança militar, e aí permanecessem durante dois meses. Foi assim que a ideia do golpe prosperou nas redes sociais. Neste caso, o contraste com os EUA é gritante. Quando foi da invasão do Capitólio, os chefes militares norte-americanos fizeram questão de vincar a sua defesa da democracia. Neste sentido, a nomeação do novo Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que parece apostado num bom e reverencial relacionamento com os militares, não augura nada de bom. É um ministro problemático depois de tudo o que se passou. O Brasil está pagando um preço alto por não ter punido os crimes e os criminosos da ditadura militar (1964-1985), sendo certo que alguns crimes nem sequer prescreveram. Foi isso que permitiu ao ex-presidente Bolsonaro elogiar a ditadura, prestar honras aos torturadores militares e nomear militares, alguns fortemente comprometidos com a ditadura, para cargos importantes de um governo civil e democrático. Só assim se explica que se fale hoje de perigo de golpe militar no Brasil, mas não no Chile ou na Argentina. Como se sabe, nestes dois países os responsáveis pelos crimes da ditadura militar foram julgados e punidos.
5. Para além dos aliados nacionais, são cruciais os aliados estrangeiros. Tragicamente, no continente latino-americano, os EUA têm sido tradicionalmente o grande aliado de ditadores, quando não mesmo o instigador dos golpes contra a democracia. Acontece que, desta vez, os EUA estiveram do lado da democracia e isso fez toda a diferença no caso do Brasil. Estou convencido de que se os EUA tivessem dado os habituais sinais de encorajamento aos candidatos a ditadores, estaríamos hoje perante um golpe consumado. Infelizmente, e à luz de uma história de mais de cem anos, esta posição dos EUA não se deve a um repentino zelo da defesa internacionalista da democracia. A posição dos EUA foi estritamente determinada por razões internas. Apoiar o bolsonarismo de extrema-direita no Brasil era dar força à extrema-direita trumpista norte-americana que continua a acreditar que a eleição de Joe Biden foi o resultado de fraude eleitoral e que Donald Trump será o próximo presidente dos EUA. Aliás prevejo que manter uma forte extrema-direita no Brasil seja importante para os desígnios da extrema-direita norte-americana nas eleições de 2024. É de prever que se pretenda criar uma situação de ingovernabilidade que dificulte ao máximo a atuação do presidente Lula nos próximos anos. Para que isso não aconteça é necessário que os golpistas e depredadores sejam duramente punidos. E não só eles, mas também os seus mandantes e financiadores.
6. Para garantir a sustentabilidade da extrema-direita é necessário ter uma base social, dispor de financiadores-organizadores e de uma ideologia suficientemente forte para criar uma realidade paralela. No caso do Brasil, a base social é ampla, dado o caráter excludente da democracia brasileira que faz com que largos setores da sociedade se sintam abandonados pelos políticos democráticos. O Brasil é uma sociedade com grande desigualdade socioeconômica agravada pela discriminação racial e sexual. O sistema democrático potencia tudo isso ao ponto de o Congresso brasileiro ser mais uma caricatura cruel do que uma representação fiel do povo brasileiro. Se não for objeto de profunda reforma política, irá se tornar totalmente disfuncional. Nestas condições, há um amplo campo de recrutamento para mobilizações de extrema-direita. Obviamente que a grande maioria que delas participa não é fascista. Apenas quer viver com dignidade e desacreditou que isso seja possível em democracia.
Os financiadores-organizadores parecem ser, no caso do brasileiro, setores do baixo capital industrial, agrário, armamentista e de serviços que foram beneficiados pela (des)governação bolsonarista ou com cuja ideologia mais se identificam. No que respeita à ideologia, ela parece assentar em três pilares principais. Em primeiro lugar, a reciclagem da velha ideologia fascista, ou seja, a leitura reacionária dos valores de Deus, Pátria e Família, a que juntam agora a Liberdade. Trata-se sobretudo de defender incondicionalmente a propriedade privada para com isso (1) poder invadir e ocupar a propriedade pública ou comunitária (territórios indígenas), (2) defender eficazmente a propriedade, o que implica armar as classes proprietárias, (3) ter legitimidade para rejeitar qualquer política ambiental e (4) rejeitar os direitos reprodutivos e das sexualidades, em particular o direito ao aborto e os direitos da população LGBTIQ+.
Em segundo lugar, a ideologia implica a necessidade de criar inimigos a destruir. Os inimigos têm várias escalas, mas a mais global (e abstrata) é o comunismo. Quarenta anos depois de, pelo menos no hemisfério ocidental, terem desaparecido os regimes e os partidos que defendam a implantação de sociedades comunistas, este continua a ser o fantasma contraditoriamente mais abstrato e mais real. Para entender isso é preciso entrar em linha de conta com o terceiro pilar da ideologia de extrema-direita: a criação incessante e capilarizada no tecido social de uma realidade paralela, imune à confrontação com a realidade real, levada a cabo pelas redes sociais e pelas religiões reacionárias (igrejas evangélicas neopentecostais e católicas anti-Papa Francisco) que com facilidade ligam comunismo e aborto e assim instigam o medo abissal nas populações indefesas, tudo facilitado por estas há muito terem perdido a esperança de ter uma vida digna.
A tentativa de golpe no Brasil é um aviso à navegação. Os democratas brasileiros, latino-americanos, norte-americanos e, afinal, de todo o mundo devem levar muito a sério este aviso. Se o não fizerem, amanhã os fascistas não se limitarão a bater à porta. Certamente a arrombarão sem cerimônia para entrar.
Texto publicado originalmente no portal Outras Palavras.
Ataque a Brasília: o silêncio da banca
Outras Palavras*
O intervalo foi de apenas uma semana. Entre a maravilhosa e emocionante jornada da posse de Lula na Esplanada dos Ministérios, no 1º de janeiro, e a crueldade criminosa dos atos terroristas perpetrados pela horda fascista do bolsonarismo, neste domingo, fica o retrato contraditório de um país que saiu dividido do processo eleitoral. Não restam muitas dúvidas a respeito da responsabilidade direta do governador reeleito do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, bem como de seu secretário de Segurança Pública, Anderson Torres. Ambos sabiam exatamente o que estava sendo preparado para aquele fim de semana, a partir das articulações dos golpistas acampados em frente ao Quartel General do Exército em Brasília.
Além disso, o sistema de informações do governo federal também tinha informações a respeito das caravanas que estavam sendo organizadas nos estados, em especial das regiões Sul e Centro Oeste. Ibaneis sempre foi um aliado de todas as horas do presidente fujão, tendo oferecido a área de segurança do DF para a famiglia Bolsonaro. Anderson Torres é um servidor da Polícia Federal, oferecendo uma fidelidade canina ao esquema de poder derrotado nas urnas. Tanto que foi nomeado Ministro da Justiça e Segurança Pública logo depois da saída de Moro em 2021. Em mais um gesto de reconhecimento do governador do DF, agora foi agraciado com a pasta distrital da segurança. Fez todo o corpo mole possível, sonegou informações, deixou o comando da Polícia Militar (PM) local colaborar como quis com os terroristas e fugiu para os Estados Unidos, com a intenção explícita de se juntar ao clã na Florida.
O Ministro da Defesa nomeado por Lula foi outro fator que ajudou indiretamente na empreitada golpista. José Múcio chegou passando pano nas manifestações em frente às instalações militares pelo Brasil afora, classificando-as como democráticas, tanto que teria amigos e familiares participando das mesmas. Uma loucura! Ora, em uma situação como esta, o recado foi entendido pelos terroristas como um claro sinal verde para seus atos criminosos. Daí para frente, tratou-se de uma sucessão de erros e equívocos na administração da segurança e na estratégia mesmo militar de proteção dos edifícios e da própria Praça dos Três Poderes. O Ministro Flávio Dino se diz enganado pelo governo distrital com a ausência de comando da segurança militar do Palácio do Planalto, o número reduzido de efetivos de segurança para impedir o aceso às áreas estratégicas da Esplanada e até mesmo a cumplicidade da PM/DF com os golpistas, oferecendo apoio às movimentações na região.
Financismo de rabo preso com o golpismo
Depois de todo o estrago consumado, no final da tarde Lula promove a intervenção na área de segurança do DF até o final de janeiro e o ministro do STF e presidente do TSE, Alexandre de Moraes, afasta o governador do DF de suas funções até 31 de março. No início da semana, a realização da reunião com todos os 27 governadores foi um marco importante no processo de construção política de uma união nacional contra o terrorismo bolsonarista. Neste momento, é mais do que fundamental aprofundar o isolamento político do fugitivo e de seus seguidores, marcados pelo fanatismo, que antes pregavam e agora praticam o terror. A manifestação de solidariedade dos governos do resto do mundo com Lula e a condenação do terrorismo também contribuem para afastar qualquer ameaça de golpe militar. Pouco a pouco, o presidente da República retoma o controle político da situação, mas ainda precisa resolver a complexa e sensível “questão militar”. A presença de Múcio na pasta da Defesa deveria ser uma questão de tempo, o necessário para que Lula encontre uma solução que seja de sua absoluta confiança e também conte com algum respaldo nas Três Armas.
O fato interessante é que não saiu nenhuma nota, entrevista ou declaração do povo do financismo a respeito da grave crise que o país viveu e da qual ainda sente os efeitos. Aliás, é sempre assim. Os escribas e especialistas a mando do sistema financeiro adoram deitar falação e cobrar publicamente os governos quando entendem que a sua pauta de austeridade fiscal, privatização e liberalização está correndo algum tipo de perigo. E dá-lhe matérias alertando para catástrofe de aumentos de despesas governamentais na área social, os riscos de um “retrocesso” no processo de venda das empresas estatais ou de alguma flexibilização no arcabouço da política fiscal.
E os efeitos econômicos do terror?
O financismo não parece considerar o famoso “risco”, tal como costumam quantificar, representado pelas ações terroristas financiadas e patrocinadas por setores importantes de nossas classes dominantes. Apesar de toda a habilidade demonstrada por Lula em “fazer desse limão uma limonada”, o fato concreto é que a imagem internacional do Brasil sofreu arranhões com as cenas, ocupando espaços dos grandes meios de comunicação nos cinco continentes. Nada que não seja recuperável, mesmo no curto prazo. Mas esse tipo de ação não merece atenção, nem nota, nem repúdio da parte desse povo da banca.
Eles adoram calcular o impacto de tal e qual medida voltada a atender necessidades da população mais carente, como o reajuste do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo e outras. Mas não mandaram seus estagiários prepararem a planilha para estimar os custos diretos e indiretos provocados pela depredação do patrimônio físico, cultural e histórico daquele dia triste em que o terrorismo tomou conta do centro do poder em Brasília. Ou ainda não se preocupam em botar suas equipes para realizarem as contas de quais são os custos dos acampamentos, dos transportes e toda a logística que foram bancados pelos empresários que há muito tempo vêm financiando as manifestações golpistas e, agora, o próprio dia do terror.
Silêncio demonstra cumplicidade
Por outro lado, começam a surgir as informações relativas aos movimentos próximos às refinarias e aos ataques contra as linhas e transmissão de energia elétrica em vários cantos do país. Trata-se de claras ações de sabotagem e terrorismo. São custos sociais e econômicos que deveriam ser cobrados na Justiça, juntamente com a condenação pelos crimes tipificados pela legislação antiterrorista. Esse pessoal adora condenar as ações legais e legítimas movidas pelos sindicatos e pressionam a Justiça do trabalho a cobrar das entidades pelo suposto prejuízo causado pelas paralisações. E, agora, como é que fica? Apenas um silêncio que denuncia a cumplicidade e o rabo preso com os golpistas.
Na verdade, outra consequência bastante negativa desse movimento antidemocrático é o retardamento do início do processo de reconstrução nacional. O novo governo já deveria estar se debruçando sobre as pautas de restabelecimento das políticas públicas que foram sistematicamente desmontadas ao longo dos últimos seis anos. Lula poderia estar coordenando as tarefas de recuperação do protagonismo do Estado, uma vez que seu objetivo declarado é fazer 40 anos em 4. Se tal sabotagem era um dos intuitos dos mandantes e financiadores da tentativa de putsch, o fato é que o tiro talvez saia pela culatra. O terceiro mandato pode ter seu início ainda com a ampliação de sua base de apoio político, social e também parlamentar.
O silêncio do financismo sobre os fatos dos últimos dias é carregado de significado. Apesar da oposição de seus principais representantes a algumas das medidas anunciadas por Lula e necessárias para a retomada das atividades econômicas com foco na redução de desigualdades e no desenho de um projeto de desenvolvimento, a cumplicidade com o golpismo pode arranhar sua credibilidade e pode lhes custar mais caro do que imaginam. O governo deve sair fortalecido quando essa poeira toda baixar. E Lula poderá usar esse reforço de autoridade para impulsionar a agenda — que ele sabe ser necessária para que seu terceiro governo — faça mais do que ele conseguiu realizar nos outros dois mandatos. É possível que, no quadro atual, a oposição da banca não encontre tanta ressonância no restante da sociedade. Aguardemos, pois.
Texto publicado originalmente no portal Outras Palavras.
Nas entrelinhas: “Que bobos, não sabem que a arte existe porque a política não basta”
Luiz Carlos Azedo*/Correio Braziliense
Num determinado dia no início dos anos 1960, o jornalista Antônio Maria, que, por si só, mereceria uma coluna apenas para contar essa história, foi atacado por capangas de alguém que não gostava dele por causa de suas colunas. Estavam orientados a pisar seguidamente nas suas mãos, para que não mais pudesse escrever. Na manhã seguinte, Maria denunciava a agressão com o humor ferino que encantava seus leitores e enfurecia os desafetos: “Que bobos! Eles pensam que o jornalista escreve com as mãos”. A frase foi imortalizada no jornalismo brasileiro e, obviamente, serve de inspiração para a coluna de hoje. Antônio Maria morreu em 1964.
O vitral Araguaia, de Marianne Peretti, obra de 1977, não foi destruído no domingo pelos vândalos que invadiram o Congresso. A artista plástica Marie Anne Antoinette Hélène Peretti, filha de mãe francesa e pai brasileiro, nasceu em 1927, em Paris, e veio para o Brasil em 1953. Marianne foi a única artista mulher a integrar a equipe de Oscar Niemeyer na construção de Brasília. Morreu em abril do ano passado, no Recife. Entre suas obras mais famosas, estão os vitrais da Catedral de Brasília, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Palácio do Jaburu e do Memorial JK. Suas obras são reconhecidas internacionalmente, em outros projetos de Oscar Niemeyer, como o Edifício Burgo (Turim, Itália) e a Maison de la Culture du Havre (Le Havre, França).
Araguaia foi feito a partir do projeto de decoração do Salão Verde, que incluiu obras de arte e mobiliário que ajudassem a delimitar os espaços e valorizar o ambiente. É o espaço mais democrático da Câmara, porque nele circulam parlamentares e cidadãos comuns, líderes sindicais e comunitários, lobistas e jornalistas. É uma obra que humaniza o Poder Legislativo, como as demais que foram destruídas pelos vândalos, num misto de ignorância, brutalidade e ódio à cultura e à democracia. Não tem nada a ver com a guerrilha do Araguaia.
O vandalismo foi uma burrice política também, porque invasão e depredação do Congresso transformou o mais importante aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro na Praça dos Três Poderes, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), num adversário da extrema-direita bolsonarista. Ontem, a Câmara e o Senado referendaram a intervenção federal na segurança pública do DF.
Fortalecido
Jerzy (Jorge) Zalszupin nasceu em Varsóvia, na Polônia, em 1º de junho de 1922, em uma família judia. Em 1939, quando começou a 2ª Guerra Mundial, diante do avanço nazista, sua família atravessou a fronteira da Polônia com a Romênia e sobreviveu ao Holocausto em Bucareste, como não judeus. Jorge estudou arquitetura, quando conheceu a obra de Oscar Niemeyer, e imigrou para o Brasil em 1949, para trabalhar com o arquiteto Luciano Korngold, até abrir o próprio escritório de design de móveis.
Nos anos 1960, concebeu e produziu móveis para gabinetes e palácios na construção de Brasília. Entre suas obras mais conhecidas, estão as poltronas utilizadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, destruídas pelos vândalos bolsonaristas. “Projetei o espaldar bem alto para transmitir sobriedade aos juízes que ali sentassem”, disse, ao explicar o conceito da cadeira Ambassador (Versão 2). A maior parte dos móveis do STF é de sua autoria.
O ministro do STF Alexandre de Moraes não precisou da cadeira para afastar do cargo o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que se omitiu durante o vandalismo, nem para mandar prender o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública de Brasília Anderson Torres, suspeito de conivência com os atos golpistas. Zalszupin faleceu em 17 de agosto de 2020, aos 98 anos de idade, e, como Peretti, não está vivo para acompanhar a restauração de suas obras. Ironicamente, a cadeira foi desenhada para que os ministros do Supremo pudessem suportar de forma mais anatômica e serena possíveis as longas sessões da Corte.
O poeta e crítico de arte Ferreira Gullar dizia que a arte existe porque a vida não basta. A política é parte da vida. A presença de obras de arte nos palácios da Praça dos Três Poderes e da Esplanada, como os da Justiça e do Itamaraty, tem por objetivo humanizar o poder político, associar a dureza do concreto armado aos sonhos e à poesia ensejados pela construção de Brasília. O que aconteceu no domingo foi uma agressão não apenas aos Poderes da República, mas, também, à construção da identidade nacional.
Como se sabe, uma nação não existe apenas por causa do seu território e sua população, mas em razão de um estado psíquico comum, cuja expressão maior é a sua cultura. Os palácios e os interiores na nossa capital estão entre o que existe de mais original e valioso na nossa arquitetura, nas artes plásticas e no design. Existe muito simbolismo na política, que é mais importante para a preservação do poder do que sua estrutura física. Ao contrário do que pretendiam os arruaceiros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu mais fortalecido da crise, o Congresso e o Supremo, também. Nesse episódio, a harmonia entre os Poderes, um dos princípios da Constituição, ao lado da independência, mostrou porque é tão importante para preservar a democracia.