Day: janeiro 3, 2023
Imprensa oficial da China tenta minimizar novo surto após abandono da Covid zero
O Globo*
A imprensa estatal chinesa está multiplicando seus esforços e a censura está trabalhando mais para formular uma história nova e coerente, após a súbita virada na política de Pequim contra a Covid-19.
Durante anos, a máquina de propaganda chinesa saudou a estratégia de Covid zero como prova da superioridade da liderança autoritária do Partido Comunista e do presidente Xi Jinping. Mas agora ela teve que apresentar a decisão de suspender restrições estritas de viagens, quarentenas e bloqueios como uma vitória, em meio a uma onda enorme de infecções que chega a milhões por dia, segundo relatos que transparecem de fontes oficiais locais.
— A mídia estatal não formulou uma grande narrativa para legitimar totalmente a mudança repentina — disse Kecheng Fang, professor de Jornalismo da Universidade Chinesa de Hong Kong. — Isso os pegou de surpresa.
As "mensagens inconsistentes" indicam que o aparelho de propaganda pode carecer de diretrizes adequadas do partido sobre como apresentar a situação, disse ele à AFP.
Alguns meios de comunicação insinuaram que nem tudo está bem. A agência estatal Xinhua e a rede CCTV publicaram esta semana relatórios pedindo à população que use medicamentos "racionalmente" para tratar a infecção e destacaram os esforços do governo para garantir sua disponibilidade.
Mas a mídia do governo evitou relatar o lado negativo da mudança de política, procurando, em vez disso, amenizar os temores sobre a doença, apresentando a reviravolta como uma retirada lógica, controlada e triunfante das medidas.
"Olhando para os últimos três anos, travamos uma intensa batalha contra a pandemia e enfrentamos um teste árduo e histórico", publicou o Diário do Povo em um editorial.
A estratégia de Covid zero "demonstrou a superioridade do sistema socialista chinês", disse, acrescentando que "otimizar" a política agora ajudará a adaptar-se a novas variantes, "pondo a vida e a saúde do povo e das massas em primeiro lugar".
Na sexta-feira, um jornal do partido citou o secretário municipal de Saúde de Qingdao estimando que a cidade está registrando meio milhão de novas infecções por dia em "um período de rápida transmissão e se aproxima do pico". Neste sábado, a história foi editada para remover o número, de acordo com uma revisão da AFP do artigo.
O presidente Xi não comentou publicamente o colapso do que até recentemente era uma política emblemática. Um sentimento semelhante de incerteza circulou nas mídias sociais chinesas, onde os serviços de censura geralmente removem conteúdo politicamente sensível.
Vários posts na plataforma Weibo (a versão chinesa do Twitter) sobre mortes por Covid-19 parecem ter sido censurados na sexta-feira, de acordo com uma revisão de jornalistas da AFP. Várias fotos aparentemente tiradas em crematórios foram suprimidas, bem como uma postagem de uma conta que pertenceria à mãe de uma menina de 2 anos que morreu após contrair o vírus.
Postagens sobre escassez de medicamentos e manipulação de preços também foram removidas, de acordo com o monitor de censura GreatFire.org.
Usuários de mídia social postaram comentários indignados ou sarcásticos sobre o tabu em torno das mortes relacionadas à covid. Muitos aludiram à mídia estatal, que informou que Wu Guanying, criador dos mascotes dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, morreu de um "resfriado severo" aos 67 anos.
Uma pessoa comparou a frase a algo típico da Coreia do Norte, enquanto outra perguntou se “agora vai ser proibido dizer Covid?”. Outras mensagens críticas ainda foram postadas na sexta-feira, algumas das quais questionando o governo por sua aparente falta de estratégia.
“Eles realmente pensaram que poderiam erradicar o vírus com bloqueios?”, questionou um dos internautas.
Apenas uma morte oficialmente
O professor Fang observou que as autoridades chinesas "encontrarão uma maneira de apresentar tudo como uma vitória, talvez depois que as infecções se estabilizarem".
— A forma particular de contabilizar as mortes por Covid está servindo de base para isso — acrescentou, referindo-se a uma nova definição oficial de óbitos pelo vírus, que exclui muitas mortes antes contabilizadas.
Dados oficiais da Comissão Nacional de Saúde, divulgados este sábado, indicam que na véspera não houve uma única morte por Covid-19 na China e apenas 4.103 novos contágios. Há um contraste, porém, entre a versão oficial pública do governo central em Pequim e algumas autoridades locais, que deixam transparecer uma situação mais próxima da realidade, como em Qingdao.
A cidade industrial de Dongguan, no Sul, anunciou na sexta-feira que, segundo os dados recebidos, até 300 mil novas infecções estão sendo registradas a cada dia. Além disso, o ritmo "é cada vez mais rápido".
"Muitos recursos e profissionais da saúde estão enfrentando desafios muito duros e uma pressão gigantesca, algo que não tem precedentes", destacou a secretaria de Saúde da cidade de 10,5 milhões de habitantes, em comunicado.
Segundo a ata de uma reunião interna da Comissão Nacional de Saúde realizada na quarta-feira, relatada pela Bloomberg, o órgão estima que 248 milhões de pessoas, ou quase 18% da população chinesa, provavelmente contraíram o vírus nos primeiros 20 dias de dezembro.
*Texto publicado originalmente no portal O Globo.
Multidão se despede do craque Pelé no Santos
Reuters*
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, estava entre os 230.000 presentes para ver o caixão aberto de Pelé em Santos, onde alguns torcedores derramaram lágrimas silenciosas e outros deram vivas ao astro do futebol brasileiro enquanto eles desfilavam pela costa estádio da cidade.
Um serviço memorial de 24 horas no estádio Vila Belmiro para Pelé, que morreu na semana passada aos 82 anos depois de lutar contra um câncer de cólon por um ano, terminou na manhã de terça-feira e seu caixão foi levado em uma procissão pela cidade para um enterro privado.
Ele parou do lado de fora da casa de sua mãe de 100 anos, onde uma multidão nas ruas aplaudiu. A irmã de Pelé assistiu em lágrimas de uma varanda.
"Pelé é incomparável, como jogador de futebol e como ser humano", disse o recém-empossado presidente Lula, que chegou de helicóptero ao estádio na manhã desta terça-feira. Ele ficou cerca de 30 minutos ao lado do caixão de Pelé, enfeitado com a bandeira do Brasil, no centro do campo de futebol.
As pessoas formaram longas filas do lado de fora do estádio de Santos, cidade onde Pelé viveu a maior parte de sua vida, e esperaram até três horas para prestar suas homenagens até durante a noite, segundo o Santos Futebol Clube.
"Viva o rei", dizia uma faixa gigante dentro do estádio. Apelidado de 'rei do futebol', Pelé jogou pelo Santos de 1956 a 1974, marcando mais de 1.000 gols.
Lula consolou os familiares de Pelé e ouviu uma cerimônia católica ao lado da primeira-dama Rosangela da Silva.
"O mais fantástico é que Pelé nunca levantou o nariz, tratava todo mundo igual", disse Lula à Santos TV.
Celebridades e autoridades também prestaram suas homenagens. O presidente da Fifa, Gianni Infantino , foi um dos primeiros a comparecer ao memorial na segunda-feira e disse que pedirá às associações de futebol de todo o mundo que nomeiem um estádio com o nome de Pelé, o único homem a vencer a Copa do Mundo três vezes como jogador.
Algumas estrelas do futebol compareceram ao velório, incluindo o ex-meio-campista Zé Roberto, que ajudou a colocar o caixão de Pelé no centro do campo na segunda-feira.
Mas apenas dois dos 67 campeões mundiais brasileiros vivos compareceram ao serviço - o vencedor da Copa do Mundo de 1994 Mauro Silva, que trabalha para a Federação Paulista de Futebol, e o campeão de 1970 Clodoaldo, que trabalha para o Santos, gerando críticas de alguns comentaristas.
Texto publicado originalmente no portal Reuters.
Nas entrelinhas: O Brasil de Pelé e o novo governo
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense*
A posse dos ministros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi ofuscada pelo velório de Edson Arantes do Nascimento. Repetiu-se o mesmo fenômeno do dia da morte do maior atleta do século passado, que será enterrado hoje. Grande massa de torcedores santistas e de outros comparece ao estádio da Vila Belmiro, em Santos, para reverenciá-lo. Personalidades do mundo esportivo nacional e internacional também. Corintiano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em meio à montagem de seu governo e às primeiras medidas administrativas, viajará de Brasília para Santos para participar das últimas homenagens fúnebres.
Talvez o maior atleta profissional de todos os tempos, em 14 de junho de 1970, Pelé, camisa 10 do Brasil às costas, agachou-se no círculo central do gramado do estádio Jalisco, em Guadalajara, no México, sob olhar de Tostão, e amarrou pacientemente sua chuteira. Ao fazê-lo, inventou o marketing esportivo, mais ou menos como João Gilberto inventara a bossa nova em 21 de janeiro de 1962, ao cantar Chega de Saudade no Carnegie Hall, em Nova York, até então um lindo samba canção. Uma chuteira Puma continuaria igual a uma Adidas, mas o futebol mundial nunca mais seria o mesmo, com as transmissões dos jogos pela tevê.
Além de bola, camisas, meias, chuteiras, shorts e outros materiais esportivos, uma infinidade de outros produtos, como refrigerante, cervejas e complementos alimentares passaram a associar sua marca ao futebol. Os mais velhos devem se lembrar do terno de tergal da Ducal, com um paletó e duas calças, vendidos pelo crediário.
Hoje, os craques do futebol são manequins das grandes grifes mundiais. O advento da tevê a cabo e das redes de internet completou o ciclo, com o esporte ocupando o espaço nobre para suprir os novos meios de comunicação de conteúdos que aliavam audácia, beleza, criatividade, emoção, energia e resiliência, entre outros atributos positivos, de produções de grande audiência e relativamente baratas.
Pelé também simbolizou a ascensão social e econômica por uma via que até então era objeto de grande atração popular, graças à rivalidade das torcidas, mas reproduzia a exclusão social e a enorme distância entre a grande massa popular e as elites brasileiras. De 1924, quando Vasco da Gama rompeu com isso, recusando-se a dispensar 12 jogadores negros, mulatos e pardos para participar do Campeonato Carioca, aos dias atuais, foi um longo processo.
Gradativamente, o futebol se tornou uma via de ascensão social e econômica pelo talento, chegando aos dias de hoje como um dos maiores e mais bem remunerados espetáculos de massa. Os grandes atletas ganham fortunas inimagináveis (*), inclusive os brasileiros que jogam no exterior, exibindo roupas de grife e carros de luxo, além de ostentar padrões de consumo extravagantes, como comer carne folheada a ouro em restaurantes de alto luxo.
Desigualdades
Entretanto, o Brasil que Pelé projetou internacionalmente, muito mais do que qualquer outra personalidade, precisa virar a página das desigualdades e injustiças sociais, entre as quais o racismo estrutural. Pelé fecha o ciclo de profissionalização e globalização do futebol, foi protagonista dessa mudança. Entretanto, sua trajetória, em comparação com a de outros atletas de sua geração, como Mané Garrincha, desnuda essa realidade. É aí que entra em cena o novo governo Lula, ao propor um pacto na sociedade para superar a abissal distância entre os ricos e a maioria da população, com renda até 2 salários-mínimos.
Desde a eleição de Getúlio Vargas, em 1950, não tínhamos uma disputa eleitoral em que as diferenças de classe social estivessem tão demarcadas. Esse fenômeno foi agravado por uma polarização ideológica que colocou em risco a democracia e fraturou a coesão social em torno de alguns valores que estavam acima das divergências políticas, como a identidade com as cores da bandeira e o pertencimento à nação.
A posse dos ministros de Lula, em diversas áreas, especial de Camilo Santana na Educação e Nísia Trindade na Saúde, sinalizou na direção da superação dessas diferenças, com o resgate de políticas públicas universalistas, porém nossas prioridades regrediram décadas, como a alfabetização e a vacinação das crianças, por exemplo. São enormes os desafios no plano econômico e administrativo para que as condições de mobilidade e progresso social sejam oferecidas a todas as camadas sociais.
Vivemos um momento muito desafiador. Com uma coalizão de centro-esquerda, Lula pretende conduzir a frente política que o levou à Presidência pela terceira vez na direção do combate às desigualdades. Não é uma tarefa fácil. A agenda social do governo precisa ser calibrada de modo a ter amplo apoio das forças democráticas, que têm interesses econômicos diferenciados.
O principal desafio é obter o apoio do Congresso Nacional, no qual predominam forças conservadoras e velhas oligarquias políticas. Sem uma base parlamentar, não haverá combate às desigualdades; sem combate às desigualdades, não haverá mobilização popular em apoio ao novo governo.
(*) Pelé deixou uma herança de R$ 80 milhões, o que equivale ao rendimento mensal do novo contrato de Cristiano Ronaldo com o Al Nassr, da Arábia Saudita, até 2025.