Day: novembro 20, 2022
Movimento negro cobra maior representatividade sob Lula
Edison Veiga | DW Brasil
Para falar sobre as expectativas do movimento negro frente ao governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o filósofo e teólogo David Santos remete à primeira passagem do petista pelo Planalto.
"A inclusão dos afro-brasileiros foi a primeira lei assinada pelo presidente Lula em 2003. É uma ação afirmativa potente e necessária", comenta o frade franciscano, fundador e diretor-executivo da organização Educafro Brasil, que já ajudou mais de 100 mil negros jovens a terem acesso ao ensino superior.
Santos se refere à lei 10.639, de 9 de janeiro daquele ano, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio e determinou que o dia 20 de novembro fosse reconhecido pelo calendário escolar como Dia da Consciência Negra.
Ele também reconhece que naquele ano começou um debate mais intenso a respeito da importância da instituição das cotas raciais para acesso às universidades — medida que já vinha sendo tomada de forma avulsa e gradual por algumas instituições de ensino, mas que só se tornou regra a nível nacional em 2012, já no governo Dilma Rousseff.
No atual período de transição para o terceiro governo Lula, ativistas do movimento negro vivem grande expectativa de mudanças.
"Historicamente, a sociedade brasileira tem mais tempo negando a gravidade das desigualdades raciais do que as combatendo. Nesse sentido, o que se pode esperar do novo governo Lula é uma disposição para aprender com os erros cometidos anteriormente, o que precisará se reverter na desnaturalização da ausência ou da subrepresentação negra em espaços de decisão", defende a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, colaboradora da Geledés - Instituto da Mulher Negra, integrante da Rede de Historiadoras/es Negras/os e professora da Universidade de Brasília (UnB).
Participação no governo
A historiadora acredita que "não se pode mais insistir no equívoco de circunscrever o enfrentamento do racismo basicamente a uma secretaria com status de ministério e uma fundação", em referência à Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e à Fundação Cultural Palmares. E cobra que a luta antirracista esteja presente em todo "o desenho da gestão pública".
Diretor do Instituto Luiz Gama, o advogado Julio César Santos, pede uma maior participação de negros em postos do governo.
"É necessário que o governo Lula tenha a compreensão de que a maioria dos que o elegeram foram os negros, que compõem 56% da população brasileira", argumenta. "Nesse sentido, este público gostaria de simbolicamente se ver representado nos ministérios, não somente em um possível ministério da Igualdade Racial, mas também em outras pastas estratégicas, como o Ministério da Economia, Educação, Justiça, Direitos Humanos, Defesa, Cultura, Esportes, entre outros."
Para o advogado, o Brasil tem "negros e negras extremamente preparados intelectualmente para assumir cargos e desenvolver suas funções", mas esbarra em um "drama, tanto em governos da esquerda quanto na direita: a manutenção dos privilégios nos atos de mando nas lideranças brancas, excluindo as possibilidades de representatividade negra governamental".
Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o professor e historiador Philippe Arthur dos Reis vê como naturais as demandas por mais espaço do movimento negro, diante do contexto atual.
"Todas as minorias políticas sub-representadas têm uma grande expectativa frente a esse novo governo Lula. Foi uma eleição difícil, e o estado em que o Brasil está hoje, de destruição completa das contas públicas e das instituições de representação, cria uma expectativa muito grande com relação o que o governo vai promover e à forma como isso vai ser promovido", analisa.
Nesse sentido, Reis acredita que será muito importante acompanhar as posturas do novo governo frente a questões como a reserva de cotas raciais e outras políticas afirmativas instituídas.
Retrocessos sob Bolsonaro
Os ativistas e pesquisadores ouvidos pela DW foram unânimes em citar medidas e posturas do atual governo do presidente Jair Bolsonaro como retrocessos para a luta antirracista no Brasil. Lembraram, por exemplo, que o jornalista Sérgio Camargo, que presidiu a Fundação Cultural Palmares de 2019 a março deste ano, negou em diversas situações a existência de racismo estrutural no Brasil.
Também comentaram declarações antigas do próprio Bolsonaro, como a de que ele não corre o risco de ter uma nora negra porque seus filhos "foram muito bem educados". Esse tipo de discurso, avaliam os militantes, legitima manifestações e atos racistas por parte de setores da população.
Em termos práticos, César Santos acredita que o principal retrocesso do governo Bolsonaro no sentido de incluir e dar possibilidades de inserção social aos negros tenha sido a letargia, em um processo que ele define como "a política é não desenvolver a política".
"Como o governo Bolsonaro não reconhece que o Brasil tem um problema racial, ações governamentais nesse sentido foram paralisadas", analisa o advogado. "Não tivemos nenhum encontro de entidades negras promovido pelo Estado, a discussão da manutenção da Lei de Cotas no Ensino Superior não foi pautada pelo governo, as famílias negras, principais beneficiadas pelo programa Minha Casa Minha Vida, infelizmente observaram o desmonte do programa para famílias de baixa renda… Podemos observar, com a ausência de políticas habitacionais, o aumento de famílias negras em situação de rua."
Lembrando que os negros são maioria entre os estimados mais de 33 milhões de brasileiros que passam fome e as mais de 688 mil vítimas da pandemia de covid-19 no país, o advogado afirma que, nos últimos quatro anos, "a necropolítica se fez presente".
"Estabeleceu-se como política de Estado quais seriam as vidas desprezíveis e desnecessárias e, entre elas, as dos negros foram as principais", argumenta.
Pobreza afeta sobretudo os negros
Coordenadora estadual paulista da Pastoral Afro-Brasileira, a professora Vera Lúcia Lopes enfatiza que, por conta da própria história do país e do racismo estrutural, as pessoas negras são maioria dentre aquelas em situação de vulnerabilidade social. E isso tem de ser visto como prioritário pelo novo governo Lula.
"Há um tanto de pessoas desempregadas e no subemprego, famílias em situação de extrema pobreza… É urgente olhar para isso", enumera. "Tem de priorizar a segurança alimentar porque são muitos passando fome. E a população de rua? Na maioria, são negros. E a cada dia vemos mais famílias em situação de rua."
David Santos concorda e lembra que a volta do Brasil ao mapa da fome acaba vitimando mais o povo negro. "Sabemos a cor da maior parte da população que está nessas condições. São os afro-brasileiros", diz ele.
Lopes pede um resgate de ações humanitárias. Ela argumenta que aqueles que "já tinham a índole para a maldade deixaram aflorar isso graças ao incentivo de um governo que primava pela violência". "A sociedade precisa ser reumanizada com um governo que fale com o coração. Acreditamos que isso é possível", afirma a militante.
"Enquanto houver racismo, não haverá democracia"
Em manifesto publicado em 2021, a Coalizão Negra por Direitos disse que "enquanto houver racismo, não haverá democracia". É endossando esse mote que ativistas esperam uma postura de inclusão e total intolerância a manifestações discriminatórias.
"Nesse sentido, é preciso partir da garantia do direito à vida. Não podemos mais negligenciar a gravidade do fato de que as pessoas negras têm muitas vezes mais chances de morrer que pessoas brancas. Uma política de segurança pública fundamentada na garantia do direito à vida é imprescindível", cobra a historiadora Magalhães Pinto.
"Isso, aliás, está absolutamente articulado com o combate à fome e ao desemprego. Esse enfrentamento articulado das desigualdades demanda um modelo de gestão menos compartimentado", conclui.
Matéria publicada originalmente no DW Brasil
Revista online | A leniência por trás das manifestações de bolsonaristas radicais
Cleomar Almeida*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Em frente ao Quartel-Geral do Exército em Brasília, as manifestações bolsonaristas mudaram de caráter. Não são mais como antes, com famílias, mulheres, crianças e idosos com a bandeira do Brasil. Em sua maior parte, são formadas por homens violentos e armados, a maioria encapuzados, instigando métodos terroristas por não aceitarem a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas. Acampamentos antidemocráticos são patrocinados por multiplicidade de agentes.
A reportagem da Política Democrática online esteve no local, sem se identificar. Por todos os lados do acampamento, os apoiadores de Bolsonaro estimulam uns aos outros a fazerem ataques, aumentando o clima de tensão. “Se Bolsonaro sair da presidência, vai ter tiros, rojões e explosão aqui em Brasília”, disse um homem, encostado em sua motocicleta de luxo. Tudo se repete sob o silêncio absoluto do presidente.
No acampamento, os bolsonaristas radicais fazem orações, repetem gestos semelhantes aos de seita, planejam arruaça e dizem que não vão embora. Mergulham em alucinação. “Estamos recebendo comunicado de Ustra dizendo que não podemos sair daqui”, afirmou outro homem em um grupo. Exaltado por Bolsonaro e seus seguidores, o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o primeiro torturador condenado, em 2008, pela Justiça brasileira.
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Na aglomeração dos bolsonaristas, eles também lembram atos antidemocráticos registrados no Brasil, compartilhados ao mesmo tempo pelas redes sociais, com apenas um clique no celular. No último dia 7 de novembro, manifestantes espalhados pelo país reagiram a ações de desbloqueio da polícia, jogaram pedras e cadeiras e lançaram rojões nas viaturas. Tiros também foram disparados.
Entre os crimes investigados, estão tentativas de homicídio contra agentes da polícia e a resistência ao cumprimento da decisão judicial que ordenava o desbloqueio da BR-163, em Novo Progresso (PA). Atentados também foram registrados à base da concessionária Rota do Oeste, perto da cidade de Lucas do Rio Verde (MT). “A polícia está atacando os patriotas”, disse um simpatizante.
Em Brasília, tudo é lembrado com exaltação em frente ao QG do Exército. E não somente isso. Com cartazes pedindo intervenção militar, que é inconstitucional, os bolsonaristas ameaçam “acabar com tudo, a qualquer custo”, alegando que houve fraude nas eleições. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), porém, já provou que as eleições foram realizadas sem qualquer irregularidade, e o resultado das urnas foi reconhecido por líderes internacionais.
“Temos algo mais importante que a própria vida, que é a nossa liberdade”, afirmou outro apoiador de Bolsonaro, repetindo uma frase frequentemente dita pelo líder da extrema direita. “Fomos roubados, não vamos aceitar isso jamais. É lutar ou morrer, não há outra saída”, gritou um homem, no meio do grupo bolsonarista.
A iminência de explosão de ataques ganha força diante do silêncio do presidente. Ele ainda não agiu para pacificar os ânimos e ir para uma transição democrática de poder. Por isso, juristas dizem que a escalada da delinquência bolsonarista aumenta o desafio de se enquadrar a violência da extrema direita, que atenta contra a democracia e representa risco para a institucionalidade brasileira, em caso de impunidade.
Doutor em Direito e Ciência Política e professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner Mendes, disse que os acampamentos são financiados. “Há militares, policiais, o próprio presidente da República e seu entorno e grupos que se mobilizam. [Os acampamentos] são financiados. Portanto, há também empresários”, disse.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou ao Banco Central o bloqueio das contas bancárias de 43 empresários e empresas suspeitos de financiarem atos antidemocráticos realizados na última semana. A decisão foi proferida no último dia 12.
O ministro chamou de inautêntico e coordenado o deslocamento de mais de 100 caminhões para Brasília, em frente ao QG do Exército. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) informou que empresários oferecem refeições, banheiros e barracas aos manifestantes. Além disso, segundo a PRF, o potencial danoso das manifestações ilícitas aumenta, considerando o financiamento que o bolsonarismo recebe por parte de empresários investigados.
De acordo com Mendes, há total leniência do governo e do Exército em relação aos acampados em frente aos quartéis. “O Estado de Direito está diante de um desafio histórico de dar algumas respostas, ainda que não perfeitas e completas, a um programa político e governamental estruturado em torno da violação à lei. Violação como método de governo. Apostaram que um volume imenso de ilegalidades não seria possível controlar”, afirmou.
Para a responsabilização dos culpados, as investigações devem separar quem tem prerrogativa de foro, que é o direito de determinados ocupantes de cargos e funções públicas de serem julgados por juízos ou tribunais específicos por causa do que exercem.
Bolsonaro, por exemplo, poderá ser investigado por associação criminosa, incitação ao crime e crime de favorecimento pessoal, que é o ato de ocultar pessoas para não serem processadas. Isto porque a pessoa que favorece outra para impedir que seja investigada é partícipe também. Diversos manifestantes foram recebidos no Palácio da Alvorada para não serem vistos pela polícia.
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Com as manifestações espalhadas pelo país, o presidente e outras autoridades aliadas tentam equilibrar dois pratos, segundo o professor da USP. “De um lado, precisam alimentar uma turma ensandecida a praticar crimes efetivamente, a violar a lei. De outro, precisam se proteger individualmente porque sabem que podem se dar mal e sofrer um conjunto de investigações. De um lado, dizem falas apaziguadoras, acenam para pacificação, pedem para liberar estradas. De outro, apelam para palavras abstratas e distorcidas”, acentua.
De acordo com o jornalista Bernardo Mello Franco, colunista do Globo e da CBN, “o golpismo que hoje está em porta de quartel, defendendo golpe militar, intervenção, não vai desaparecer da noite para o dia”. “Vai continuar presente na sociedade. Esse cenário é completamente diferente de 20 anos atrás. Lula não deve enfrentar apenas adversários, vai passar a enfrentar inimigos. E esses inimigos já mostraram que sabem jogar inclusive fora das regras do jogo para tentar atrapalhar a vida de quem está do outro lado”, disse em podcast.
A leniência com atos antidemocráticos aprofunda o risco de essas práticas serem normalizadas no Brasil. Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump ainda não pagou qualquer preço pela invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, mas o departamento de Justiça americano prendeu cerca de 900 pessoas em quase todos os estados. Mais de 300 pessoas foram julgadas, e quase 200 pessoas, condenadas à prisão. Alguma coisa já está acontecendo por lá.
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Revista online | Editorial: O caminho da democracia
Como esperado, o segundo turno da eleição presidencial resultou na vitória do candidato do campo democrático sobre o candidato da situação, por uma margem consideravelmente inferior, contudo, à previsão inicial. Na verdade, o leque de recursos financeiros e políticos mobilizados pelo governo, de legalidade ao menos duvidosa, mostrou alguma eficácia, da liberação indiscriminada de verbas e créditos novos às operações de restrição da mobilidade dos eleitores no dia do pleito.
Em condições de normalidade democrática, a disputa estaria encerrada, e todos ficariam em situação de vencedores e vencidos, engajados, de forma aberta e cooperativa, no processo de transição. Ocorre que no último quadriênio, como sabemos, não houve normalidade democrática no país. Em consequência, o governo reconheceu sua derrota de forma ambígua e tardia, ao tempo em que encorajou a mobilização de partidários seus na frente dos quarteis, em protesto contra o resultado eleitoral, em favor de intervenção militar, com a finalidade declarada de inverter a vontade manifesta dos cidadãos e declarar a minoria como se maioria fosse.
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A permanência de militantes governistas nas ruas, com a complacência dos responsáveis pela manutenção da ordem e o apoio financeiro cotidiano de redes de empresários golpistas, constitui um desafio aberto à democracia brasileira, desafio que deverá ser enfrentado de forma permanente, por todos nós, a partir do primeiro dia do novo governo.
Hoje, contudo, a tarefa imediata dos democratas é sua articulação firme e mobilização ampla contra as manifestações golpistas, que configuram um crime contra o estado democrático de direito, assim como contra a propaganda favorável a elas, que caracteriza uma atitude de apologia a esse crime. Urge assegurar, depois da vitória eleitoral, a diplomação e a posse dos eleitos, os degraus posteriores da sequência prevista na regra eleitoral.
Apenas a partir da posse poderá ter início o processo efetivo de metamorfose da frente ampla eleitoral que se formou entre o primeiro e o segundo turno das eleições em frente ampla política e programática. Esse não será, claro está, um processo simples. Seu sucesso dependerá em boa medida da capacidade de os participantes construírem as convergências necessárias e manter, simultaneamente, a manifestação aberta e transparente de suas diferenças para informação e julgamento da opinião pública.
As tarefas não são fáceis, mas o caminho a ser trilhado está claro: contra toda tentativa de subverter o resultado das urnas; todo apoio ao processo de transição; pela diplomação e posse dos eleitos; pela constituição de um governo de ampla frente democrática, com a participação de todas as forças contrárias ao projeto autoritário e retrógrado do governo que se encerra!
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No true crime à brasileira, a vítima é sempre negra
Folha de São Paulo Piauí*
Em 300 anos de escravidão regulamentada por lei, mais 41 anos de República Velha, uma década e meia de Era Vargas, 19 anos da hoje chamada Quarta República (1946-1964), 21 anos de ditadura e pouco mais de 30 desde a promulgação da Constituição de 1988, a sociedade brasileira ostenta uma característica de impressionante imutabilidade, que é também um de seus pilares: a violência racial. Só nos 34 anos que se seguiram à redemocratização, quando houve certo consenso em oficializar a distribuição irrestrita da cidadania, já tivemos: policial acusado de homicídio qualificado alegando que a vítima foi responsável por sua própria morte ao ter dado cabeçadas na porta de uma viatura; secretário de Segurança Pública promovendo PM que entrou numa favela e executou moradores sumariamente; Ministério Público arquivando casos cheios de provas de tiros à queima-roupa; Tribunal de Justiça anulando condenação do júri… Este texto poderia ser todo ele uma lista.
Entre 2021 e 2022, o Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP se dedicou a analisar oito casos dessa lista: o massacre no presídio do Carandiru (1992); a execução sumária de Mário Josino na Favela Naval (1997), em Diadema (SP), quando policiais militares foram filmados agredindo moradores; a chacina do Borel, no Rio de Janeiro, com quatro execuções sumárias (2003); o desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo Dias de Souza, na favela da Rocinha, no Rio (2013); a chacina do Cabula (2015), quando a Polícia Militar executou doze jovens negros na Vila Moisés, Salvador (BA); a tortura e morte de Luana Barbosa dos Reis (2016), em Ribeirão Preto (SP); o massacre de Paraisópolis (2019), quando o cerco da Rota ao baile da DZ7 resultou na morte de nove jovens; e o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por forças da segurança privada no Carrefour do Passo d’Areia (2020). São oito casos, 140 mortes e, até muito recentemente, apenas nove condenações confirmadas. Isso porque foi somente ontem – 17 de novembro de 2022, mais de 30 anos após os fatos – que o Supremo Tribunal Federal declarou o trânsito em julgado da condenação de 74 policiais militares acusados de participar do Massacre do Carandiru.
O estudo Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020) investiga o que acontece depois que crimes cometidos por agentes de segurança vão parar nas mãos das instituições do sistema de justiça criminal. O projeto também deu origem a um memorial online que documenta cada uma das histórias e um podcast com oito episódios chamado Justiça em Preto e Branco.
Todo o projeto parte de dois consensos no campo acadêmico antirracista voltado para a relação entre raça, justiça e violência: 1) no Brasil, a letalidade policial afeta desproporcionalmente a população negra; 2) a ausência de responsabilização do Estado nesses homicídios. Partindo dessas duas premissas, analisamos as respostas institucionais às mortes, considerando também demandas históricas do associativismo negro e das articulações políticas lideradas por familiares de vítimas.
Ocorridas em diferentes momentos do pós-redemocratização, as oito histórias tiveram em comum repercussão midiática e mobilização social. Pensamos que a atenção pública poderia ter motivado respostas mais eficientes à violência letal contra a população negra. Mas, mesmo nesses casos marcantes, não houve o mínimo zelo procedimental por parte de autoridades, em especial, das do sistema de justiça criminal, que, em vez disso, têm aprimorado um repertório, ao mesmo tempo padronizado e adaptável, de práticas e discursos para não responsabilizar indivíduos e órgãos do Estado.
Investigamos então os mecanismos, normas, recursos administrativos e interpretações jurídicas mobilizados nesses processos de não responsabilização. Como essas narrativas jurídico-institucionais criadas em torno dos assassinatos cometidos por policiais reproduzem valores de uma cultura e uma prática jurídicas racializadas? Qual o impacto das mobilizações e da pressão da mídia? Repercussão e mobilização redundaram em mudanças políticas? Foram algumas de nossas perguntas.
O foco foi a Justiça, já que a engrenagem que faz a administração burocrática das mortes conta com autoridades judiciais, as quais aceitam acriticamente versões de policiais sob investigação. Outra peça chave aqui é o Ministério Público, que se destaca em todos os casos por não desempenhar sua função constitucional de controle externo das polícias, tanto na avaliação de operadores do direito, quanto de familiares de vítimas e ativistas que ouvimos.
Dos 28 anos entre o primeiro caso – Massacre do Carandiru (1992) – e o mais recente – Beto Freitas (2020) –, identificamos algumas linhas de continuidade. Entre elas, decisões discricionárias proferidas em 2ª instância anulando as (raras) condenações de policiais em primeira instância pelo Tribunal do Júri. Isso ocorreu em três dos oito casos analisados – o que, na verdade, representa a totalidade de casos que havia ido a júri até o momento de realização da pesquisa. Na Chacina do Borel, uma das condenações, que já havia inclusive recebido um segundo veredito do Tribunal do Júri, foi anulada pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, em 2005. A justificativa se apoiou na inusitada afirmação de que os jurados haviam se mostrado vacilantes e incoerentes ao responderem às perguntas direcionadas ao Conselho de Sentença.
Nos casos do Massacre do Carandiru e da Favela Naval, condenações do Tribunal do Júri também foram modificadas em 2ª instância. O Coronel Ubiratan, que conduziu a invasão da Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, e foi originalmente condenado a 632 anos, teve sua sentença revertida, em 2006. De forma semelhante, no ano 2000, desembargadores do TJSP anularam o júri de Otávio Lourenço Gambra, o “Rambo”, PM responsável pela morte do mecânico Mário José Josino, vítima fatal do caso Favela Naval, sob a justificativa de que a decisão dos jurados havia contrariado a prova dos autos. Avaliou-se que não existiam evidências para condenar o policial por outras três tentativas de assassinato: somente foi admitida a condenação quanto à morte de Josino, que, além de ter sido filmada, “Rambo” confessou.
A anulação de veredictos do Júri é apresentada como medida excepcional na Constituição Federal. Nas histórias que estudamos ela é a regra. A investigação dos homicídios cometidos por policiais está entregue às próprias corporações, que tendem a corroborar narrativas de legítima defesa, ainda que diante de provas irrefutáveis de execução. E o Poder Judiciário, em vez de se contrapor, dá continuidade a essa cadeia de chancelamento das versões policiais. A Chacina do Cabula exemplifica outra estratégia nesse sentido: a absolvição sumária dos acusados, sem que sequer houvesse instrução processual ou Júri. Nesse caso, a decisão foi posteriormente anulada, mas atrasou significativamente o andamento processual.
Nesse sentido, duas mudanças são urgentes: a legitimação das versões das testemunhas de acusação, bem como de eventuais vítimas sobreviventes; e o reconhecimento do racismo como motivador da violência policial e impulsionador do modo de agir do Poder Judiciário.
Todos os levantamentos apontam que negros morrem mais do que brancos, por homicídios em geral e pela ação da polícia. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2021, das 6.145 vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais, 84,1% eram negras. As cifras de guerra racial tornam mais escandalosa a ausência de respostas também em termos de políticas públicas que, junto com o sistema de justiça, tem contribuído deliberadamente para o apagamento das evidências do racismo de Estado.
A linha temporal dos casos analisados explicita, de outro lado, a importância das estratégias de familiares, movimentos e organizações internacionais no estímulo ao debate e no questionamento dos silêncios institucionais sobre o peso de raça, gênero, sexualidade e classe/território, nas mortes provocadas por policiais. Assim, os casos de Luana Barbosa, Amarildo, João Alberto e Paraisópolis chegaram ao Judiciário a partir da denúncia do racismo como causa das mortes.
O que observamos na Justiça são barreiras a esses argumentos. O caso de Luana Barbosa é paradigmático por demonstrar a retirada sistemática do conteúdo referente à raça ao longo das instâncias do fluxo processual. Na cidade de Ribeirão Preto, SP, em abril de 2016, Luana, mulher negra e lésbica, saía de casa com o filho quando foi abordada por uma viatura com três policiais homens. Luana, que na ocasião vestia roupas consideradas masculinas, reivindicou seu direito de ser revistada por uma policial mulher – protesto ao qual um dos PMs reagiu com a frase “se quer andar que nem homem, vai ser tratada como homem”, seguida de socos e chutes, com os agentes chegando a esfregar seu rosto no chão. Tudo na frente do filho, então com 14 anos, e de outras testemunhas. Levada à delegacia na condição de agressora dos policiais, Luana foi liberada no mesmo dia. Em mais cinco, ela morreria em decorrência de lesões cerebrais, que ocorreram no caminho até a delegacia.
Na última movimentação processual acompanhada pela pesquisa na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SP, mesmo com o arcabouço probatório e a sustentação oral da assistente de acusação abordando a problemática do racismo interseccionado a gênero e classe, a decisão dos desembargadores foi por manter a sentença de pronúncia dos réus no artigo 121, caput, do Código Penal, mas afastar as qualificadoras indicativas do motivo de agir dos policiais: racismo e sexismo. Os PMs declararam que foi Luana que jogou repetidas vezes sua cabeça na porta da viatura, sendo a responsável por sua própria morte. A decisão dos magistrados foi ratificada pelo procurador da República.
A Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário (2021), do Conselho Nacional de Justiça, aponta que escolas de magistratura que atuam com a formação continuada não têm, em sua maioria, promovido cursos que abarquem temáticas relacionadas à raça. Apenas 32,6% das escolas tiveram cursos nos últimos doze meses envolvendo o assunto, e 16,9% das escolas mapearam o interesse de magistrados e servidores sobre isso. O desinteresse se reflete ainda na insuficiência de dados sobre o perfil de quem acessa a justiça na condição de usuário ou réu.
Compreender e reconhecer a composição de raça e gênero dentro das instituições da Justiça é uma tarefa primordial para o enfrentamento ao racismo institucional. Essa política somada às ações afirmativas e à educação continuada na temática racial são medidas que põem em questão a manutenção de uma maioria de juristas brancos desconectada dos efeitos do racismo no acesso à justiça.
Já a possibilidade de fortalecimento do controle social das polícias passa necessariamente por uma escuta simétrica das demandas e análises políticas dos movimentos negros e movimentos de familiares de vítimas da violência do Estado. Levando a sério o questionamento sobre a diferença entre o que o Estado chama de justiça e o entendimento das pessoas diretamente impactadas pela violência racial é que poderemos começar a caminhar para superar o silêncio e a negação, dupla de fiéis escudeiros do racismo no Brasil: um racismo que mata.
Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo Piauí.