Day: outubro 17, 2022
Política & coisa & tal
Paulo Fábio Dantas Neto,* Esquerda Democrática
Voto nulo é um voto legítimo, em qualquer situação. Mesmo em momentos de alto perigo, como esse que atravessamos, ninguém pode ser censurado moralmente por não se sentir à vontade com o cardápio que lhe foi oferecido nesta eleição, primeiro pelos partidos, depois pela maioria de eleitores que decidiu quem disputará o segundo turno. O direito à dieta eleitoral faz parte da democracia.
Posto isso, quero conversar com quem quer fazer dieta nessa eleição por rejeitar igualmente Lula e Bolsonaro. E com quem está admitindo votar em Bolsonaro tapando o nariz. É conversa política, democrática, de igual pra igual, não conversa moralista ou professoral. Sou brasileiro tanto quanto quem quer votar nulo ou de nariz tapado e não sou mais sábio ou mais ético do que quem fazer dieta.
A democracia precisa do seu voto válido em Lula. Ela – não Lula – é o endereço de um voto político nessa hora difícil. Sei que através de votos válidos em Lula é ele e não outra a pessoa que governará. E que o seu partido, o PT, terá papel importante no governo. Papel maior ou menor, a depender do tamanho da frente que apoiar o candidato. Como ela ficou ampla, temos razões para pensar que o PT não poderá, mesmo que queira, governar sozinho. E seja como for, numa democracia nada obriga quem votou num candidato a apoiar seu governo depois. A oposição é livre e necessária na democracia. O voto que defendo não é ideológico, nem de facção. No dia 30 vamos votar também pelo direito a haver oposição.
Já o adversário de Lula, se reeleito, ameaçará esse nosso tesouro democrático comum. Quem já nasceu na democracia talvez não tenha ideia bastante do que significa perdê-la. O preço alto seria pago também por nós, que somos hoje idosos ou adultos, mas principalmente por quem está começando a vida agora.
Digo que a reeleição de Bolsonaro pode fazer desse perigo, que hoje já existe, uma realidade, talvez por décadas. Sim, pois o script que a extrema-direita encena no mundo todo é este: no primeiro mandato o populista é candidato a ditador; no segundo mandato ganha um salvo-conduto para ser, de fato, ditador. Quando, no horário eleitoral, Bolsonaro diz que o Congresso que acaba de ser eleito trabalhará em harmonia com ele, essa harmonia quer dizer o seguinte: o presidente dará aos parlamentares recursos do Estado para que, em troca, eles aprovem o controle do Judiciário e da imprensa, leis que persigam minorias, que retirem recursos da ciência, que permitam o desmonte de agências públicas como IBGE, Ibama e outras; que asfixiem o SUS e por aí vai. No fim dessa linha o plano é dar fim à atual Constituição (o controle do Judiciário facilita isso) e no seu lugar colocar outra, ao gosto da maioria bolsonarista. Vamos pensar juntos: essa maioria, se houver mesmo (para isso Bolsonaro anda precisa virar os números), será provisória, como toda maioria eleitoral. Em condições normais será testada de novo, daqui a quatro anos. Tem sentido uma maioria ocasional alterar a seu favor as regras de um jogo que é permanente? Só tem sentido para a extrema-direita, porque esse é o caminho para o ditador se perpetuar, fabricando sucessivos mandatos, como acontece com Orban, Edorgan e Putin, na Hungria, na Turquia e na Rússia e como aconteceu e acontece na Venezuela, antes com Chávez, hoje com Maduro.
Nada disso é profecia. É bem provável que a sociedade resista a esse plano. Mas convenhamos que se Bolsonaro se reeleger mais de meio caminho terá sido andado para que ele tenha sucesso. Reverter isso vai custar muito tempo, energias, dores e provavelmente vidas. Tudo isso pode ser evitado nesse dia 30.
Quem é ou se tornou bolsonarista certamente não concorda comigo. É do jogo. Se não usarem violência – de músculos, de armas ou de fakenews – está tudo certo. Disputaremos nas urnas e quem ganhar leva. Como disse no começo, quero conversar agora é com quem quer votar nulo e com quem admite até votar em Bolsonaro, mas sem tanta convicção, porque considera a opção de Lula tão nefasta ou até pior.
Tenho plena noção de que um novo governo Lula não será um mar de rosas. Estou distante daquelas pessoas que acreditam numa volta a um suposto paraíso, como tem sido prometido em sua campanha. Propaganda não faz minha cabeça. O êxito na economia e os inegáveis avanços sociais obtidos nos primeiros anos de governos petistas não apagam a crise econômica, social e ética a que levaram o país na sequência, da qual a recessão econômica e o desemprego em massa foram a maior herança. Do mesmo modo tenho noção de que nos governos anteriores de Lula houve muita corrupção. Não creio que tenha sido esse o maior problema, mas admito que é a razão maior da rejeição atual ao candidato. Se e até que ponto ele esteve envolvido pessoalmente naqueles fatos não me sinto em condições de afirmar, pois seus processos foram juridicamente anulados e não nos compete tomar o lugar dos juízes. Mas de todo modo não há como um presidente deixar de ter responsabilidade política pelo que ocorre em seu governo. Queira ou não, Lula está lidando com essa responsabilidade política na sua campanha. É principalmente por causa dela que Bolsonaro existe politicamente após tantos crimes. E ainda posa de satanás pregando quaresma num mar de rachadinhas e golpes bilionários contra os cofres públicos.
Com tudo isso, pergunto aos amigos (mesmo àqueles que, diferentemente de mim, acham que existe um DNA petista diferenciado que faz dele um partido pior que os outros) se há evidências concretas de que, num futuro governo, Lula repetirá os erros anteriores. De saída, ele vai enfrentar uma dura e aguerrida oposição que vigiará cada passo seu e de seu governo. Por causa disso será pressionado, em razão da ampla frente que acabou reunindo, a fazer um governo de coalizão e não só um governo de cooptação, como fez antes. Além disso não é razoável supor que ele queira encerrar sua carreira atraindo para si novos processos depois de ter se livrado de vários.
Lula é um democrata que cometeu muitos e graves erros, mas que tem seu futuro político amarrado à continuidade da democracia. Ao contrário do seu oponente, que é um autocrata que usa a democracia para destruí-la e assim continuar no poder indefinidamente. Lula não tentou fazer isso quando estava no auge de sua popularidade. Foi exatamente isso que Simone Tebet reconheceu ao lhe dar apoio no segundo turno sem retirar nenhuma das críticas que lhe fez antes. É esse o voto político em Lula que estou sugerindo. Um voto que não se deve ao seu passado (no qual se pode ver muitas coisas boas e muitas ruins), nem mesmo principalmente ao que de positivo ele esteja dizendo e fazendo hoje. É um voto político para que possamos ter um amanhã dentro da democracia.
Alguém poderá dizer que votando nulo não votará contra um amanhã. E é verdade, do ponto de vista da intenção desse eleitor. Mas sua boa intenção pode se misturar com todas as nossas num só inferno que pode acontecer se o número de votos válidos cair muito. A abstenção (não ir votar) é impossível de prever e ela já é, a princípio, aliada de Bolsonaro, porque ele tem bem menos votos entre os eleitores mais pobres, que são aqueles que têm mais dificuldade objetiva para se deslocar até as urnas, especialmente quando precisam viajar para isso. Se além da abstenção houver votos não válidos da parte de quem reconhece o perigo da reeleição de Bolsonaro, a situação pode ficar mais difícil para todos o que querem um amanhã. Votemos para valer e não só para ficarmos em paz com nossos botões!
Armadilhas mentais do outubro largo
Há pouco mais de uma semana parecia à grande maioria dos analistas (incluído este que vos escreve) que estava em curso uma onda pelo “voto útil” que poderia levar à vitória de Lula no primeiro turno. Muitos admitiam que a hipótese se tornara provável, alguns mais afoitos a consideravam quase certa. Secundei aqueles que apenas a consideravam mais possível do que antes e resumi o que via, no artigo do dia 01.10, numa disjuntiva: outubro breve ou outubro largo. Argumentei sobre vantagens e desvantagens das duas opções – inclinando-me a preferir a do outubro largo – e sobre a lucidez de uma atitude positiva diante de qualquer desfecho que o eleitor soberano determinasse para o turno do dia 2.
Pois bem, deu outubro largo e cá estamos, a meu ver, ainda em busca da atitude mais positiva possível diante dessa realidade que a democracia engendrou. Mais necessário ainda do que há uma semana retornar à questão de Luiz Sérgio Henriques, que mencionei no artigo passado: “Não se trata só de ganhar eleições, mas de reconstruir a esfera pública. Será possível ter uma normal dialética democrática com uma extrema-direita capaz de mobilizar, pelo que parece, 30 ou 40% dos eleitores em estado de insubmissão latente?”. Abertas as urnas do primeiro turno e embora ainda esteja em aberto a disputa principal, leio com cada vez mais frequência análises que dizem não à pergunta de Luiz Sérgio, partindo da premissa de que sim, a extrema-direita mostrou-se capaz de mobilizar tantos eleitores, que se formou uma gigantesca bancada bolsonarista na Câmara e teria mobilizado até a maioria do eleitorado, a ponto de eleger uma maioria bolsonarista no Senado. São descrições mais ou menos próximas de um apocalipse, absoluto ou relativo, conforme a ponderação do analista. Mas como apocalipse e relatividade não combinam, acaba que, nessas análises, em diferentes graus, qualquer nuance morre no veredicto de que o eleitor brasileiro autorizou uma mais que provável destruição da nossa democracia.
Os resultados das eleições para o Congresso e para a maioria dos governos estaduais – inclusive para os três estados mais importantes da federação – trazem-nos, sim, como fato insofismável, uma vitória da direita e da centro-direita. Usemos esses dois termos para que a discussão prossiga. Porém, sem nos dispensar de concretizá-los através de ideias mais precisas. Para tanto é preciso responder que dose de Bolsonaro há nessa vitória e até que ponto devemos chamar bolsonarismo àquilo que se formou aquém ou além do mito. Basta adicionar um adjetivo ao lado do substantivo abstrato ou será mais prudente evitar recorrer a esse termo fácil que, exatamente por ser fácil, pode ser errôneo?
A Câmara recebeu, é verdade, uma dose extra de bolsonarismo. Isso ajuda a explicar uma renovação de 44% naquele colegiado, o que, aliás, desmente previsões peremptórias de que o fundo partidário e as regras eleitorais novas garantiriam uma altíssima taxa de reeleições. A política "fluida” que o bolsonarismo representa não virou suco nas mãos do centrão.
Prefiro usar aqui um adjetivo menos radical do que o “líquido”, de Zigmut Bauman, que foi aventado, de modo instigante, por uma amiga jornalista, Ana Cecília Andrade, em conversa recente, da qual tiro proveito desde o artigo da semana passada. Vi hoje que Marcelo Tognozzi usou o mesmo insight num artigo no Poder 360, aplicando-o a um tema (as pesquisas de intenção de voto e seus supostos “erros”) que não é meu objeto aqui. Converso com o insight de Ana Cecília para tratar de efeitos atuais do modo pelo qual a extrema-direita mundial serviu-se de um populista do antigo “baixo clero” da política brasileira para atiçar valores reacionários que dormiam em nossa sociedade, sem acesso à esfera política, graças a uma consistente moderação centrista do nosso sistema político democrático. O descentramento desse sistema, após uma série de eventos tendencialmente disruptivos ocorridos no rescaldo da não resposta da elite política às manifestações de 2013, propiciou o encontro de um mito de vocação doméstica com valores de um movimento internacional. Irrompeu então o bolsonarismo, usando a alcunha genérica de “nova política”, usada também por movimentos de outras naturezas. A princípio bicho solto, primário, a política fluida do bolsonarismo vem sendo até aqui contida por uma reação sistêmica que se fez valer desde as eleições municipais de 2020. Mas está viva e prorroga a vigência de suas ameaças à democracia, feitas por dentro mesmo do sistema de representação política. Como movimento antissistêmico que é, terá pé também no parlamento, onde não ficará invisível.
O Congresso eleito não difere, essencialmente, do atual. Para tentar prever sua dinâmica, penso que boa chave é essa da relação da política “sólida” das instituições (poderes do estado, dos orçamentos, das políticas públicas, dos partidos, da representação política, da imprensa, interesses sociais e atitudes permanentes e conflitantes, dos valores e da tradição política) e a política fluida do puro movimento, das narrativas imediatas, emoções fortuitas, que nega o conhecimento social acumulado e experiências coletivas; política de valores desprovidos de passado ou que ao passado acenam como fetiche; política de factoides e fake news, de voluntarismo, individualismo narcisista e identitarismo sem peias.
Esse tema da política fluida é dos mais interessantes no contexto aqui comentado. Vejo que de fato há reação do sistema político e das instituições a essa lógica. Mas a fluidez não cessa, pois reside na sociedade. O voto numa segunda safra de bolsonaristas pops e "temáticos" foi, no último domingo, contrapartida ao voto produzido pelo orçamento secreto. São dois movimentos que se interpenetram. Os bolsonaristas de segunda safra juntam-se àqueles da primeira que se turbinaram eleitoralmente e estruturalmente no governo. E as tropas de Valdemar Costa Neto, Ciro Nogueira e Artur Lira incorporam algo da política fluida ao seu repertório retórico. Algo do movimento primário se institucionaliza e algo que era tradição institucional se desestabiliza.
Interessante é que os dois fenômenos ocorrem no interior do que se pode chamar de "grande direita". São parceiros conflitivos e o desfecho do segundo turno definirá se prevalecerá, entre eles, parceria ou conflito. Com Lula, a banda sólida do centrão terá opções de animação na política doméstica; com Bolsonaro, pode virar suco e diluir-se no movimento ideológico poderoso da extrema-direita mundial.
Daí não ser possível concluir, automaticamente, que a extrema-direita terá hegemonia sobre o conjunto da direita (ainda menos sobre a centro-direita moderada). Isso foi o que se deu, na prática, de 2019 a 2022, mesmo que aparências, em alguns momentos do quatriênio, indicassem coisa diferente. O resultado do segundo turno pode aprofundar o processo de fluidificação política, como lhe dar nova direção, pela qual, no limite, surja, afinal, uma direita mais consistente, dentro dos marcos da democracia. Sem que para isso a extrema-direita desapareça ou se torne socialmente ou eleitoralmente irrelevante. A inclinação do eleitorado à direita foi tal que cabem, dentro dela, diferentes florações.
O desfecho do segundo turno presidencial é uma das variáveis decisivas para haver ou não fluidificação (ou liquefação) democrática da direita no Brasil. A ele está associado o movimento, de desfecho incerto, que pode associar ou opor o PL (hegemonizado pelo bolsonarismo, mas não totalmente identificado com ele) e o PP de Artur Lira e Ciro Nogueira. Se ocorrer, a fusão PP/União Brasil, proposta por Lira, ainda na véspera do primeiro turno das eleições e com o olho na sua reeleição para a presidência da Câmara, será ruim para o já combalido centro democrático, que assim perderá a chance de se articular com o União Brasil. Mas, por outro lado, quer dizer que esse possível novo partido pode disputar a hegemonia da direita com o PL. Essa tende a ser uma disputa interna a um segundo governo Bolsonaro, se houver a reeleição. Caso vença Lula (e nunca é demais lembrar ser esse o cenário mais provável) a fusão pode deixar de ser um caminho, porque União e PP poderão ter diferentes rotas de negociação com um governo que expressa a tradição democrática da política sólida, a qual nada tem a ver com política isenta de surpresas e impurezas. A vitória de Lula será sinal de que o sistema político reagiu. Trocando em miúdos, com Lula, a política fluida perderá espaço em relação ao que hoje já tem. Com Bolsonaro, manterá ou ampliará seu espaço, a depender do que prevaleça na luta interna da direita.
Os problemas para que se forme uma frente resistente da política sólida não se resumem à direita do espectro político. Contam também a estagnação intelectual e moral da esquerda, que parece sobreviver num mundo antigo. E a incipiência do centro democrático, que só agora deu, com a candidatura de Simone Tebet, sinais para o futuro, que são de uma possível reanimação, após a devastação de 2018.
É verdade que a direita derrotou o centro e que daí pode nascer um partido de direita explícita, embora distinta do bolsonarismo. Aqui também, mais uma vez, o desfecho da eleição presidencial será decisivo. É crucial saber se será Bolsonaro ou Lula quem negociará com Lira na Câmara e com alguém de peso no Senado, que certamente será Rodrigo Pacheco, se Lula vencer, mas que não se pode ainda dizer quem será, se houver reeleição de Bolsonaro. O futuro do centro democrático está também amarrado a isso, daí a acuidade e amplitude de visão demonstradas pelo movimento de Simone Tebet em direção a um apoio decidido a Lula no segundo turno. De fato, não se trata de adesão, mas de passo consciente de grande política, dado por uma liderança emergente de um campo cuja reanimação ela representou na campanha do primeiro turno com o efeito admirável de uma flor de lotus. O reconhecimento público de Lula desse fato e do papel positivo da campanha de Simone tem a força da assimilação realista e democrática do voto popular, pela qual o segundo turno deve ser acolhido.
Frisei, desde o artigo da semana passada, a relevância política do segundo turno da eleição presidencial como leito de celebração de um amplo pacto pela democracia, assim como assinalei, parágrafos atrás, o papel decisivo do desfecho dessa eleição para o equacionamento prático da relação entre os poderes da República, hoje mais complexa e delicada do que foi em qualquer momento, desde a vigência da Carta de 88. Quando a campanha de Bolsonaro alega o avanço da direita nas eleições legislativas como sinal de que sua reeleição traria a paz entre governo e congresso oculta o que essa paz pode representar de guerra que dois poderes respaldados numa mesma maioria eleitoral poderão mover contra o Judiciário e, consequentemente, contra a Constituição da qual ele é guardião. É fácil vislumbrar um script húngaro ameaçando converter perigo em realidade apesar da abissal distância que, felizmente, nos separa da Hungria, ou da Turquia, como experiência institucional e cultural de democracia. Mais uma razão para não ver o comportamento do Congresso eleito como variável independente da eleição ainda em aberto.
Mas por outro lado, para que meu próprio argumento não viaje na maionese, convém não cair no extremo oposto, que seria superestimar o resultado da eleição presidencial como se ele pudesse definir se teremos, ou não, democracia após o dia 30 de outubro. Para tanto convém considerar um raciocínio do jornalista William Waack, que é bem expressivo das possibilidades de vida política conservadora nos marcos da democracia política: “Não importa quem se saia vencedor, já dissemos isso aqui mais de uma vez, se for Lula ou Bolsonaro, serão presidentes que terão menos poder frente ao Congresso em relação ao que (tiveram quando) assumiram o cargo pela primeira vez”. Para o bem e para o mal (a meu ver mais para o bem do que para o mal), o protagonismo político do Congresso é algo que veio para ficar, assim como a reestruturação do sistema partidário num sentido contrário ao da política fluida.
Assim, interpreto a afirmação do jornalista em termos de que Bolsonaro não teria a vida fácil no Congresso, que sua campanha passou a enganosamente propagar e como, de certa forma – e de modo certamente involuntário – análises fatalistas confirmam “pela esquerda”. Vida fácil também não terá Lula, cuja eleição, se confirmada, colocará sobre seus ombros a missão de governar democraticamente um país que, como diz o cientista político Jairo Nicolau, consolidou, nessa eleição, sua guinada à direita. Se ler corretamente o que saiu das urnas, Lula presidente precisará de um talento de primeiro-ministro. Se vida fácil não haverá, também não existe fracasso antecipado, graças ao repertório da política.
Mas a vitória da direita na disputa pelo Legislativo e por governos estaduais – onde ela já foi definida até aqui – está nublando a percepção política de que o jogo eleitoral ainda não terminou. Determinismos sociológicos são acionados para decretar, pela enésima vez, a impotência e o fracasso da política representativa. Acontece, repito, que ao decidir se a direita fortalecida nas urnas operará com ou sem Bolsonaro no governo, o eleitor do segundo turno presidencial decidirá se a extrema-direita continuará representando toda a direita. Qualquer avaliação agora sobre a direita ou sobre o bolsonarismo (conjuntos distintos, o segundo embutido no primeiro) é provisória e pode se mostrar perecível com o resultado da eleição. Para decidir isso o eleitor indicou, como pista, um outubro largo. Essa sempre foi uma hipótese, a surpresa foi a votação concreta de Bolsonaro na reta final ir além das intenções de voto.
A prudência analítica provém de que, se a polaridade esquerda-direita não desapareceu, é transpassada por outras. Pela sociologia política, poderemos tentar entender a que ocorre entre movimentos e instituições. Pela análise da política propriamente dita, podemos tentar entender outra polaridade, cada vez mais evidente, entre conservadorismo e voluntarismo, ambos vigentes na esquerda e na direita. O desfecho da eleição presidencial afetará as premissas sociológicas, ou mesmo as da ciência política, mas por si só não desmontará, de modo tão fluido, a solidez sempre relativa de nossa democracia.
Outro problema, além da precipitação analítica, é o do fatalismo político que pode deixar perplexa uma campanha, mesmo a que lidere as pesquisas. É que se pode cair na tentação de crer na narrativa do adversário, que deslegitima, interessadamente, essas pesquisas. O problema não é, por exemplo, o que o general Mourão diz sobre seus planos. Isso é tão somente o ator atuando dentro do seu script. A questão é conhecer o resultado da inevitável interação entre ele e afins, com scripts de outros atores.
Certas análises perdem o foco no sentido político da eleição e fornecem menos elementos de persuasão eleitoral pela democracia e mais estímulos a conclusões sociológicas sobre o fenômeno do avanço da direita, bolsonarização do congresso, ou, seja lá que nome se dê ao resultado da distribuição de poder produzida pelo voto e ao comportamento político dos eleitos. O risco é morrermos de véspera.
Por fim temos o problema do abuso de poder, prática evidente da parte de Bolsonaro. Essa conduta voltou a ser comentada, agora com mais ênfase e como fonte de desequilíbrio da disputa eleitoral. Sem dúvida é, mas esse não é um problema que surge com o segundo turno. Atuou fortemente na eleição para o Congresso e no aumento da votação do presidente, fato que ampliou também as de alguns governadores já eleitos. Tudo isso no primeiro turno. No segundo, é preciso cuidado para que, ao mencionar esse aspecto do contexto, não se resvale para o terreno perigoso de sugeri-lo como indicador de um jogo viciado, com desfecho antecipado. Essa sempre foi a arenga antidemocrática de Bolsonaro. Quando a vitória de Lula parecia ainda mais provável do que é hoje, já havia, da parte não só da oposição, como da imprensa e da sociedade civil, críticas aos métodos abusivos de Bolsonaro de usar indevidamente sua atual posição institucional, inclusive para transgredir a legislação eleitoral. Mas sem tratar a eleição como jogo de cartas marcadas por causa disso. Arriscar esse argumento agora, quando a disputa de tornou mais incerta que antes, pode levar lenha à fogueira da deslegitimação das eleições.
O momento do questionamento prático desses abusos passou. Podia-se ter tentado uma articulação política para resistir ao arrastão que ocorreu no Congresso ou uma ação mais efetiva junto ao Judiciário. Não se fez nem uma coisa nem outra, apostando-se em resolver o nó da coisa no dia 2 de outubro. Ninguém pode ser criticado por isso. Era um raciocínio lógico e a quem o fez não cabe mea culpa.
Mas sua excelência, o eleitor, indicou outro caminho. É preciso aceitar o fato eleitoral e agir de acordo com ele. Incluir como argumento eleitoral um desequilíbrio desde sempre conhecido, pode parecer, ademais, um choro antecipado, que é ainda mais irrazoável pelo fato de Lula continuar sendo o líder nas pesquisas. O candidato demostrou, em falas recentes, que assimilou bem o resultado do primeiro turno. Essa é a atitude política positiva, em vez de se realizar, nessa hora, inventário de explicações e culpas.
Nenhuma democracia do mundo é vacina contra abusos de poder. Já o que vacina a sociedade contra tentações antidemocráticas é a confiança pública no processo, apesar de assimetrias. Nenhuma democracia resiste quando posições sobre a justeza de seus processos variam conforme o andamento de pesquisas eleitorais. Não basta sermos diferentes de Bolsonaro. É opor-se a ele também nas atitudes aparentes, como se exigia da mulher de César. Por isso é bom arquivar esse argumento do desequilíbrio e cuidar do que importa: convencer a maioria sobre a necessidade da mudança e assim vencer a eleição.
Outubro breve ou largo e um direção
A maior dúvida restante e que mais tem mobilizado antenas analíticas e vontades políticas sobre o turno eleitoral de amanhã é se ele será único ou se o desfecho da eleição presidencial ocorrerá no último domingo desse outubro candidato a inesquecível. Pesquisas mostram que a grande maioria dos eleitores (75% segundo o Ipespe, 90% conforme o Genial Quaest) quer que tudo acabe logo no dia 2, por variados motivos, que bem justificariam outro artigo, mas não vêm ao caso agora.
Apesar disso, não se sabe se esse desejo se realizará. Em caso de não, a razão não será que o desejo oposto prevalecerá arbitrariamente e sim que, em termos de preferências e intenções de voto, as duas principais partes em que essa ampla maioria se divide querem que a eleição acabe logo, mas só se for com a vitória do seu candidato. Nenhum eleitor de Bolsonaro e nem todos os das demais candidaturas votarão em Lula, o líder das pesquisas, para que o desejo da antecipação do desfecho se realize. Ele pode se diluir no nível de polarização real entre as preferências dos eleitores. Aí está ela, a democracia.
O momento importa. Aliás, ele é que decide, não interpretações e lições do passado, nem aspirações e projeções sobre o futuro. Luiz Sergio Henriques, em inspirado artigo (“Match point eleitoral”, publicado na página Esquerda Democrática no Facebook em 30.09) usa a fabulação de um filme de Woody Allen (“uma bola de tênis a oscilar na parte superior da rede, podendo cair de um lado ou de outro, decidindo o destino das pessoas”) para ilustrar como é incerto o presente de que falamos. Seu sentido só se deixará desvendar pelo correr do tempo. Até as próximas 24 horas, falar do futuro que sairá das urnas será diletante se não se levar em conta a incerteza soberana do presente. E como o presente do qual estamos falando está carregadíssimo de passado – inclusive porque passados foram evocados a todo instante pelas campanhas – também seria diletante colocar o passado entre parênteses. Nessas circunstâncias, imaginar o futuro é um desafio ao pessimismo da razão e ignorar o peso do passado é esgotar as energias da boa vontade. Melhor seria, talvez, apenas aguardar as 24 horas, mas isso também não é possível, pois amanhã é um dia de decisão. Como ficarmos neutros diante da urna?
O mesmo Luiz Sergio prossegue com uma reflexão crucial para os democratas que defendem acabar logo: “manda o realismo político pensar na possibilidade de que a bola de tênis caia do outro lado”, da qual decorre uma pergunta: “se, no domingo, os eleitores indicarem o caminho do segundo turno, como enfrentá-lo de modo positivo, sereno e aberto, sem desabar perante o novo contexto?”.
Por mais que enxerguemos riscos na continuidade do processo por mais quatro semanas, a decisão do eleitor por um segundo turno já poderá adiar, por outro lado, o momento de enfrentamento objetivo da mais que provável tentativa da extrema-direita de, ao fim e ao cabo, haja ou não segundo turno, tentar deslegitimar os resultados e bloquear o cumprimento da decisão popular. Quem tem mais a ganhar com o tempo alargado? Bolsonaro terá mais espaço entre amanhã e segunda-feira, ou daqui a quatro semanas? Contará com apoio, companhia e indulgência para promover arruaças durante a campanha do segundo turno em grau maior do que pode ter tido durante a etapa da campanha que se encerra hoje?
Ninguém tem acesso aos segredos do futuro, mas uma possibilidade de projeção pode se ancorar no que temos assistido acontecer na última semana da campanha para o primeiro turno. A de Bolsonaro perde substância, retrocede aos métodos da sua bolha e assim expõe-se a crescente isolamento político e social. Campanhas da terceira via sustentam-se, dentro da margem de erro – a de Simone Tebet com esperança de alguma alta, a de Ciro Gomes com a de pouca baixa – enquanto a de Lula amplia-se significativamente já em clima de segundo turno, mas alimenta a expectativa de vencer no primeiro.
Cresce, nessa semana, uma onda de frente democrática, envolvendo a principal candidatura, dando-lhe uma amplitude potencial – política, social e institucional – que durante um ano e meio não havia conseguido ter, como mostra a estabilidade de seus índices de intenção de voto desde então até aqui, apesar do positivo e ousado passo político que foi a composição precoce de uma chapa plural. Se houvesse como Lula, seu partido e aliados próximos vencerem sozinhos a eleição em primeiro turno, anexando apenas uma personalidade política respeitável do centro democrático, tal condição já se teria mostrado nas intenções de voto ao longo de tantos meses. Ocasiões não faltaram em que Bolsonaro emparedou a sociedade e o país com um ânimo de chantagem digno de um sequestrador. A noção de perigo nunca deixou de estar presente e ser difusa, mas, ainda assim, o eleitorado brasileiro não se inclinava, majoritariamente, a chamar Lula já, para salvar a República. Essa hipótese sempre foi a mais provável para um futuro que, no entanto, até poucos dias não havia chegado e ainda na véspera da eleição não se sabe se chegou, tanto que a hipótese de irmos ao segundo turno também está de pé.
Mesmo que a hora já tenha chegado, com as adesões recentes nos mundos da política, dos juristas, da cultura, da imprensa, a impressão confortante é de que a onda só começa e ainda tem muito a crescer. Volta-me à mente o texto de Luiz Sergio Henriques: “Não se trata só de ganhar eleições, mas de reconstruir a esfera pública. Será possível ter uma normal dialética democrática com uma extrema-direita capaz de mobilizar, pelo que parece, 30 ou 40% dos eleitores em estado de insubmissão latente?” A sugestão inequívoca do autor, à qual me associo inteiramente, é a de que esse consenso resiliente – que ainda abarca mais de um terço do eleitorado a flertar com um perigo trágico, chancelando um fascistoide – precisa ser corroído, para que não se estabeleça, como verdade histórica e como realidade política, que tamanha parcela dos brasileiros não tolera conviver com outra parte do País real, que é a nossa pátria comum. A se firmar tal narrativa, estaria o Brasil inviabilizado como nação.
É imperativo recusar essa tragédia como suposto legado desses anos nefastos em troca de uma vitória eleitoral. Se ela vier neste próximo domingo, o alívio que representará já não será nada desprezível, mas não dispensará os vitoriosos de formalizarem um entendimento interpartidário amplo entre democratas, para além de sua coalizão eleitoral, conforme sinalizam os apoios plurais que acabam de lhe chegar. Nesse caso, o terreno do entendimento terá que ser mesmo a composição e orientação programática do governo, para tornar mais largo e preciso o parco e vago diálogo da campanha até aqui.
O mesmo imperativo poderá ser melhor cumprido se ganharmos (uso aqui esse verbo não por acaso) essas quatro semanas que a instituição da eleição em dois turnos propicia. Se assim ocorrer, essa frente democrática tende a crescer e se tornar realmente histórica e divisora de águas, como foi a das Diretas Já. Antes e mais que uma mesa de negociação do perfil de um governo – assunto entregue ao tempo político posterior ao da fala do eleitor – estará um entendimento para realizar uma campanha de frente realmente ampla. No horizonte de uma repaginação da campanha de Lula e da sua própria persona pública, de modo a ambas irem bem além do PT e da esquerda, está a desativação das minas antipetistas que impedem hoje o acesso de candidaturas democráticas ao mundo das intenções de voto em Bolsonaro. O número de eleitores atuais dessa direita extrema é quase o dobro daquilo que pesquisas especializadas da ciência política brasileira estimam ser o eleitorado ideológico do mito.
É a esse quinto do eleitorado que Bolsonaro pode estar reduzido daqui a um mês, caso haja segundo turno. Ponto principal: uma acachapante derrota eleitoral tirará Bolsonaro não apenas do governo, mas da cena política e mesmo do sistema político que ele tentou destruir. Com isso, a extrema-direita não desaparecerá, uma vez que é movimento mundial e parece ter chegado aqui para ficar. Mas, privada do mito que a catapultou ao palco central da política brasileira, terá que buscar outro mito encarnado ou outro caminho para pregar seus valores, com menos chance de resultados concretos até 2026. Isso dará às diversas correntes substanciais da política democrática, além de alívio, mais tempo para, nesse caso, não apenas montarem um governo democrático como articularem uma oposição democrática.
O País precisa de uma oposição democrática, um lugar que não pode ser cedido à extrema-direita. A ideia de governo de união nacional é de difícil compatibilização com essa demanda. Formar governo compete a quem o povo elegeu e se Lula ganhar a eleição no primeiro turno, sem depender de apoio político das instituições partidárias e candidaturas do centro democrático (embora sem dispensar apoios avulsos e votos de seus potenciais eleitores), a missão daquele “centrinho”, ao contrário da do centrão, é construir a oposição necessária. Havendo segundo turno, essa é pauta em aberto, mas ainda assim a saúde democrática do país pedirá, em algum momento, uma oposição comprometida com ela.
Haverá casos e casos. Veja-se, por exemplo, o da candidata Simone Tebet e do seu partido, o MDB. Por toda a postura moderada e ao mesmo tempo assertiva que Simone adotou na campanha, sua atitude imediata só poderá ser de expectativa generosa e disposição a diálogo. Mas para que essa atitude não se confunda com oportunismo ou “entrismo”, precisará valorizar os votos que tiver no primeiro turno. Independência política em relação ao futuro governo é esperado de uma candidata que não condenou – em vez disso, renovou – o programa mais recente do seu partido, a chamada “ponte para o futuro”. Supõe-se que um diálogo republicano de Lula com ela e com o MDB tenha de começar por aí.
Já a frente eleitoral ampla para livrar o Brasil de Bolsonaro já tem seu script consagrado na sociedade. É exatamente o que já se busca articular, segundo matéria assinada pelos jornalistas Pedro Venceslau e Beatriz Bulla (“Grupos já buscam articular ato por frente ampla contra Bolsonaro em eventual segundo turno”), publicada pelo Estadão em 27.09.22. Nada de devaneio, uma iniciativa de grupos, entidades e personalidades com nomes, sobrenomes e inserções sociais respeitáveis, suprapartidárias e eficazes. É o roteiro de um movimento político e cívico que pode fazer do Brasil um caso exemplar de como um país liberta-se, pela política (e com sustentação política maior do que a rejeição dos EUA a Trump), de um sequestro extremista que tem a mesma natureza dos que hoje ameaçam algumas das mais consistentes democracias do planeta. Certamente já não faltam indícios da dimensão internacional do que está em jogo em nosso país, nessas eleições.
Outubro breve e outubro largo são duas pistas alternativas pelas quais o sistema político da república democrática, a sociedade civil e o eleitorado do Brasil poderão despachar o mito que até aqui vinha fazendo os três de reféns. A decisão sobre por qual das duas pistas a elite política trafegará é do eleitor, que é o ator do presente imediato, um presente dado pela fotografa de suas necessidades prementes e de seus valores, arraigados ou fluidos. Já a escolha da direção objetiva das coisas é missão da liderança política, que precisa operar num presente contínuo, onde precisarão estar seus cérebros e seus pés. Nesse presente saturado por experiências do passado e portador de ambições de futuro, umas e outras mobilizam legítimas emoções que serão solidamente políticas se forem sempre contidas por um respeito racional, primordial, do político à importância do momento e de suas circunstâncias.
Votemos em paz e que a política nos acompanhe!
* Cientista político e professor da UFBa
Texto publicado originalmente no Facebook do Esquerda Democrática.
Revista online | Cotas de gênero na política: como avançar para garantir a participação das mulheres
Raquel Nascimento Dias*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
Embora eu tenha uma linha político-ideológica que se aproxima da ativista feminista Bertha Luz, darei início a este artigo saudando Carlota Pereira de Queirós, a primeira mulher eleita deputada federal do Brasil pelo Estado de São Paulo. Seu discurso demonstrou a importância deste primeiro passo: “Além de representante feminina única nesta Assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas”. (...). (TRE. 1934)
De lá para cá, são 88 anos de luta contínua para que nós mulheres possamos garantir a participação e equidade no exercício da cidadania. Inserida nisso está a Política de Ações Afirmativas - Cotas para Mulheres na Política - prevista na Emenda Constitucional nº 97/2017, também conhecida como Lei dos Partidos e que hoje conta com artigos que garantem vagas nas chapas montadas pelas agremiações, espaço proporcional nos tempo de tv, campanhas de incentivo à participação feminina na política e o fundo especial de campanha, formando uma rede de medidas que busca trazer diversidade e representatividade para o cenário do país.
Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online
A cota para mulheres na política é usada pela maioria dos países para reforçar a participação feminina nos espaços de poder. De 124 países, apenas 39 não têm essa ação afirmativa, o que demonstra que a busca por mais mulheres na política tem sido uma preocupação do mundo todo, reforçando a ideia de que o direito à participação política se constitui em um direito fundamental.
No Brasil, somos 52,65% da parcela votante e, apesar de sermos maioria, ainda temos um caminho duro para percorrer e, por isso mesmo, temos no país algumas políticas afirmativas que promovem o avanço da participação feminina.
Para vencer a sub-representatividade, a Justiça Eleitoral tem sido cada vez mais dura com os que descumprem ou tentam burlar as regras. Exemplo disso foi o caso em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou por fraude na cota de gênero uma chapa inteira de vereadores do Partido Republicanos de Itambé (PE). Casos assim já ocorreram por todo o país e tem sido importante para que as legendas compreendam a importância pela busca por lideranças femininas para a disputa eleitoral
O caminho para avançar na participação feminina efetiva é mudança de comportamento social, e isso leva tempo. Segundo a Agência Senado, dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) nas eleições de 2022 informam: “As candidaturas femininas bateram recorde este ano, com 33,3% dos registros nas esferas federal, estadual e distrital. As mulheres representam 53% do eleitorado do país, o que corresponde a 82 milhões de votantes. Apesar disso, elas ocupam apenas 17,28% das cadeiras no Senado. Especialistas defendem o aperfeiçoamento da legislação para garantir a participação feminina na política”.
Abaixo, confira galeria de fotos:
Apesar do avanço, estudos apontam que a tendência é que o crescimento diminua, e um dos principais fatores seria a dificuldade de financiamento. Candidaturas masculinas têm maior facilidade de financiamento fora do fundo especial, demonstrando que não há uma priorização de candidaturas femininas dentro dos partidos. Porém, temos um mecanismo fundamental e pouco visualizado na luta pela participação das mulheres na política, que são as Secretarias de Mulheres mantidas pelas agremiações partidárias para promover, incentivar e, principalmente, preparar essa parcela da população para sua efetiva participação.
Contudo, essa mudança de paradigmas requer também uma mudança na cultura política que ainda vê as mulheres apenas como complemento e não como construtoras dos projetos políticos. Ainda se reserva a nós o papel de vices, ainda atuamos pouco na hora da construção das chapas eleitorais. Muitas de nós ainda figuram no papel de mãe ou esposa de políticos inelegíveis que usam nossa imagem para manter seus eleitores. Ainda levamos a alcunha de sermos laranjas, apesar de os homens laranja existirem no sistema político de forma naturalizada.
Estamos avançando em todo o mundo, mas ainda temos muito a fazer como sociedade para que a equidade seja alcançada quando o assunto é nossa participação efetiva na política.
Sobre a autora
*Raquel Nascimento Dias é ativista social e Gestora Pública. Atualmente Secretária de Desenvolvimento Econômico e Turismo do Município de Cascavel/Ceará e Diretora Pedagógica e de Articulação Social da Plataforma Àwúre Educa e Membra do Comitê Técnico do GT Povos Tradicionais do MPT.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Rifado, Moro mira 2026 e escolhe Bolsonaro, aquele que chamou de 'ladrão' da rachadinha
Andréia Sadi,* g1
A escalação de Sergio Moro (União Brasil) repete a tática de Jair Bolsonaro (PL) de colocar entre ele e Lula (PT) um personagem para provocar o adversário em temas considerados sensíveis: no debate da Globo, foi Padre Kelmon (PTB) e religião. No da Band neste domingo, escalou Moro por conta de corrupção.
A ideia usada pela campanha do atual presidente partiu do ministro das Comunicações, Fábio Faria, que procurou Moro. O ex-juiz da Lava-Jato topou e, ao ser perguntado pelo blog do porquê foi até o debate, disse que achou que seria "útil' no embate contra o petista.
Aliados dizem que Moro tem repetido a Bolsonaro que ele não é mais juiz e, sim, um político.
Mais uma vez, Bolsonaro usa Moro – e Moro se deixa usar. Mas por quê? Já que, passados quatro anos, Moro e Bolsonaro não tiveram um simples desentendimento como querem fazer parecer, agora. Moro acusou o Bolsonaro de interferir em investigações da PF para proteger seus filhos e amigos – além de chamar o presidente de ladrão, afirmar que, se deixarem investigar, vão achar "muita coisa" no governo Bolsonaro, e dizer que as pessoas da família do presidente – como Carlos – são "irrelevantes, totalmente irrelvantes."
Moro também não consegue explicar como fica o inquérito no STF que está aberto por acusação sua de que Bolsonaro cometeu um crime ao interferir na Polícia Federal. Ao deixar o governo Bolsonaro, Moro destacou em sua coletiva que a Lava Jato só conseguiu investigar a corrupção na Petrobras porque o governo Dilma deu autonomia para a PF.
Mas o ex-juiz desconversa sobre a investigação no STF. Diz que "agora é uma questão de eleição" e vê como 'golpe moral" se Lula ganhar a eleição. Já bolsonaristas, Centrão e petistas veem de outras formas a sua presença ao lado de Bolsonaro.
No Centrão, a adesão de Moro à campanha de Bolsonaro como coach é vista como um novo reposicionamento de carreira de Moro. Na verdade, tenta retomar um antigo objetivo: criar condições para que, se Bolsonaro for reeleito, ele figure entre candidatos para ocupar uma vaga no STF (não se sabe se em um STF com 11 ou 16 ministros, como cogita o governo).
Bolsonaro já chegou a dizer que esse era o grande objetivo e acordo com Moro – o que ele nega.
Perguntado sobre o Supremo Tribunal Federal, Moro nega – assim como negava que seria candidato à Presidência ou ao Senado (como conseguiu se candidatar nesta eleição).
No Centrão, a piada é que o bloco enquadrou Bolsonaro ao conseguir o controle do Orçamento Secreto e, com Moro na cadeira do Parlamento, o ex-juiz só iria para o STF se fosse enquadrado também: fizer "carta compromisso" e "beija-mão" com políticos de partidos que colocou na cadeia – e com quem, agora, fez carreira. O PP, de Ciro Nogueira, por exemplo, foi um dos partidos mais investigados na operação que lançou Moro à fama.
No domingo, Moro estava lado a lado não só com Ciro – mas, também, na caravana do Team Bolsonaro com Frederick Wassef, que abrigou o pivô do escândalo da rachadinha em sua casa: Fabricio Queiroz. A rachadinha que, para Moro, no passado recente (janeiro deste ano), foi motivo de ataque do ex-juiz a Bolsonaro.
"Vamos dar uma sugestão para o Bolsonaro: vamos pedir para ele abrir as contas lá do gabinete parlamentar dele, do filho dele, lá do Queiroz... Você tem uma mansão lá no Paranoá?", desafiou Moro, em live transmitida para dar explicações sobre seus ganhos com uma consultoria privada que tinha entre seus clientes alvos da Lava Jato.
No PT, a reconciliação de Moro ao bolsonarismo é mais uma demonstração de que Moro sempre foi político e que pensa a longo prazo. Nesse caso, na visão de assessores de Lula, ao se colocar no campo bolsonarista, o ex-juiz pode disputar como futuro candidato à sucessão presidencial de Bolsonaro em 2026.
No próprio Planalto, Moro se coloca como sucessor presidencial em 2026 porque não tem nada a perder. Em eventual derrota na disputa presidencial, Moro voltaria ao Senado. "Mas, para conseguir isso, precisa que Bolsonaro ganhe", diz um ministro do governo Bolsonaro.
A única questão, aqui, é que falta combinar com quem realmente manda: a família Bolsonaro, o Centrão – além dos políticos que estão sentados nessa janelinha bolsonarista há muito mais tempo – e sem rachadinha na aliança Tarcisio e Zema, para citar alguns (quem sabe Damares?).
E Bolsonaro? O que quer Bolsonaro? Bom, como define bem um assessor: Bolsonaro quer descer para o play e brincar com o adversário, provocando com Padre Kelman, Moro e quem mais se habilitar a ser assistente de palco do bolsonarismo.
No caso de Moro, o efeito é mais profundo porque fala com o eleitor de 2018 que votou em Bolsonaro "contra tudo que está aí", que era o centrão e o PT – todos alvos da Lava Jato que, como contou Moro, esse governo enterrou.
Mas, vida que segue para Moro e, agora, é garantir que seu desafeto pessoal, o ex-presidente Lula, não reassuma o Palácio do Planalto.
Para isso, está à disposição de Bolsonaro para recriar o ambiente de 2018 de lavajatismo, o gatilho dessa memória afetiva que tirou Lula da disputa e, ao mesmo tempo, é uma das últimas apostas de Bolsonaro para dar o empurrãozinho para rifar Lula em 2022.
Resta saber como a população verá a tabelinha Bolsonaro-Moro nesse remake.
Texto publicado originalmente no portal g1.
Como começou o patriarcado – e como a evolução pode mudá-lo
Ruth Mace*, BBC News Brasil
No Afeganistão, o Talebã volta a vigiar as ruas, mais preocupado em manter as mulheres em casa, seguindo os rígidos códigos de vestimenta, que com o iminente colapso do país frente à fome. Enquanto isso, em outro continente, parte dos Estados Unidos vem legislando para garantir que as mulheres não tenham mais acesso ao aborto legal.
Nos dois casos, crenças patriarcais ocultas ressurgiram com o fracasso da liderança política. Temos a estranha sensação de estarmos voltando no tempo. Mas quando o patriarcado começou a dominar nossas sociedades?
A condição das mulheres é uma questão de interesse da antropologia há muito tempo.
Ao contrário da crença popular, pesquisas indicam que o patriarcado não é uma espécie de "ordem natural das coisas". Ele nem sempre foi preponderante e pode, de fato, desaparecer algum dia.
As comunidades de coletores e caçadores podem ter sido relativamente igualitárias, pelo menos em comparação com alguns dos regimes que se seguiram. E sempre existiram mulheres líderes e sociedades matriarcais.
A riqueza dos homens
A reprodução é a moeda da evolução. Mas não só os nossos corpos e cérebros evoluem. Nossos comportamentos e culturas também são produtos da seleção natural.
Para maximizar o seu próprio sucesso reprodutivo, por exemplo, os homens muitas vezes tentaram controlar as mulheres e sua sexualidade.
Nas sociedades nômades onde há pouca ou nenhuma riqueza material, como costuma ser o caso entre os coletores e caçadores, a mulher não pode ser facilmente forçada a permanecer em um relacionamento. Ela e seu parceiro podem viver juntos com os parentes dela, com os parentes dele ou com outras pessoas. E, se estiver infeliz, ela pode simplesmente ir embora.
Isso pode ser difícil se ela tiver filhos, pois os cuidados dos pais ajudam no desenvolvimento e até na sobrevivência das crianças, mas ela pode ir viver com parentes em outro lugar ou encontrar um novo parceiro - sem necessariamente ficar em uma situação pior.
Mas o advento da agricultura, que ocorreu até 12 mil anos atrás em algumas regiões, virou o jogo.
Mesmo as hortas relativamente simples exigiam que a produção fosse defendida e, portanto, que as pessoas permanecessem no mesmo local. E os assentamentos aumentaram os conflitos entre os grupos e até dentro de um mesmo grupo.
Os cultivadores de hortas yanomami da Venezuela, por exemplo, viviam em residências coletivas altamente fortificadas, com ataques violentos contra grupos vizinhos e a frequente "captura de noivas".
Nos locais onde evoluiu a criação de gado, a população local precisava defender seus animais contra roubos, gerando combates e militarização. Como as mulheres não tinham tanto sucesso nos combates quanto os homens, por serem fisicamente mais fracas, seu papel caiu em relação a eles. Esse declínio ajudou os homens a ganhar poder, deixando-os encarregados dos recursos que estavam defendendo.
À medida que a população crescia e se assentava, surgiam problemas de coordenação. Desigualdade social florescia às vezes quando líderes (normalmente, homens) se estabeleciam após proverem benefícios à população, talvez na forma de bom desempenho em batalhas ou atendendo ao bem público de outra forma.
A população em geral, homens e mulheres, muitas vezes tolerava elites em troca de auxílio para proteger as suas posses.
À medida que a agricultura e a pecuária ficaram mais intensivas, a riqueza material, agora controlada principalmente pelos homens, tornou-se ainda mais importante. As regras de parentesco e descendência foram mais formalizadas para evitar conflitos sobre riqueza dentro das famílias e os casamentos ficaram mais contratuais. A transmissão da terra ou dos animais ao longo das gerações permitiu que algumas famílias acumulassem riquezas substanciais.
Monogamia x poligamia
A riqueza gerada pela agropecuária permitiu a prática da poliginia (um homem com diversas esposas). Já a poliandria (uma mulher com vários maridos) era rara.
Na maioria dos sistemas, as mulheres jovens eram o recurso mais procurado, pois sua janela para ter filhos era mais curta e elas normalmente cuidavam mais da prole.
Os homens usavam sua riqueza para atrair mulheres jovens para os recursos que eles tinham a oferecer. Os homens concorriam pagando o "preço da noiva" para a família dela. Com isso, os homens ricos podiam ter várias esposas, enquanto alguns pobres acabavam solteiros.
Os homens então precisavam da riqueza para competir pelas noivas, enquanto as mulheres adquiriam os recursos necessários para a reprodução por meio do seu marido. Desta forma, se os pais quisessem maximizar o número de netos, fazia sentido para eles dar sua riqueza para seus filhos e não para as filhas.
Isso fez com que a riqueza e as propriedades fossem transmitidas formalmente para a linhagem masculina. E também fez com que as mulheres, muitas vezes, acabassem vivendo longe de casa, com a família do marido, após o casamento.
As mulheres começaram a perder o controle das suas ações. Se as terras, os animais e os filhos fossem propriedade dos homens, o divórcio era quase impossível para as mulheres.
Uma filha que retornasse para a casa dos pais não seria bem-vinda e o preço da noiva precisaria ser devolvido. O patriarcado estava se estabelecendo com firmeza.
Quando as mulheres saem da casa dos pais para viver com a família do seu novo marido, elas não têm, na sua nova residência, o mesmo poder de barganha que teriam se ficassem na sua casa de origem. Modelos matemáticos indicam que a dispersão das mulheres, aliada ao histórico de guerras, fez com que os homens fossem mais bem tratados que as mulheres.
Os homens tinham a oportunidade de competir por recursos com outros homens por meio das guerras, enquanto as mulheres só competiam com outras mulheres dentro de casa. Por esses dois motivos, tanto homens como mulheres colhiam maiores benefícios evolutivos sendo mais altruístas com relação a homens do que com mulheres, gerando o surgimento dos "clubes de meninos".
Essencialmente, as mulheres entraram no jogo do viés de gênero contra elas próprias.
Em alguns sistemas agrícolas, as mulheres podem ter tido mais autonomia. Em locais onde a disponibilidade de terra para o plantio era limitada, pode ter havido limites para a poliginia, pois os homens não conseguiam sustentar diversas famílias.
Quando a agricultura era difícil e a produtividade era determinada mais pela dedicação ao trabalho que pela quantidade de terra, a mão de obra feminina era uma necessidade básica e os casais trabalhavam juntos em uniões monogâmicas.
Com a monogamia, se uma mulher se casasse com um homem rico, toda a riqueza iria para os seus filhos. Por isso, as mulheres competiam entre si pelos melhores maridos.
Mas, com a poliginia, é diferente. A riqueza da família é dividida entre os filhos de diversas outras esposas, de forma que as vantagens para as mulheres de se casar com um homem rico são menores.
Por isso, o pagamento pelo casamento monogâmico caminha na direção oposta da poliginia, assumindo a forma de "dote". Os pais da noiva dão dinheiro aos pais do noivo ou ao próprio casal.
O dote, que ainda é importante hoje em dia em grande parte da Ásia, é a forma que os pais têm de ajudar suas filhas a competir com outras mulheres no mercado de casamentos. O dote, às vezes, pode oferecer às mulheres maior controle ao menos sobre parte da riqueza da sua família.
Mas existe um fator complicador. A necessidade do dote pode fazer com que as meninas representem um custo mais alto para os pais, às vezes com terríveis consequências - como no caso de famílias que já têm filhas e que matam ou rejeitam novas bebês (ou, atualmente, o aborto seletivo das meninas).
A monogamia também trouxe outras consequências. Como a riqueza ainda era transmitida pela linhagem masculina para os filhos de uma única esposa, os homens faziam todo o possível para garantir que aqueles filhos fossem deles.
Eles não queriam investir inadvertidamente sua riqueza nos filhos de outro homem. Por isso, a sexualidade das mulheres passou a ser fortemente vigiada.
Manter as mulheres afastadas dos homens ("purdah", entre os muçulmanos), colocá-las em "claustros" como monastérios (clausura) na Índia, ou a prática de enfaixar os pés das mulheres para que eles ficassem pequenos, adotada por 2 mil anos na China, podem ser algumas consequências.
E, no contexto atual, a proibição do aborto torna as relações sexuais potencialmente caras, retendo as pessoas em casamentos e prejudicando as perspectivas de carreira das mulheres.
Sociedades matriarcais
É relativamente raro que a riqueza seja passada para a linhagem feminina, mas existem sociedades que adotam essa prática. Os sistemas matriarcais tendem a ser adotados em ambientes marginais, onde existe pouca riqueza a ser disputada.
Existem regiões na África, por exemplo, conhecidas como o "cinturão da linhagem matriarcal", onde a mosca tsé-tsé tornou a criação de gado impossível.
Em alguns desses sistemas de linhagem matriarcal africanos, os homens continuam sendo uma força poderosa nas residências, mas são os irmãos mais velhos e tios que tentam controlar as mulheres, em vez dos pais e dos maridos. Mesmo assim, em geral, o poder das mulheres realmente é maior.
Já sociedades onde os homens se ausentam por grande parte do tempo, devido a longas distâncias de viagem ou alto risco de mortalidade - causado pelos perigos da pesca oceânica na Polinésia ou pelas guerras em certas comunidades nativas americanas, por exemplo -, também adotaram a linhagem matriarcal.
As mulheres no sistema matriarcal muitas vezes dependem do apoio de suas mães e irmãs, não dos seus maridos, para ajudar a criar os filhos. Essa "criação comunitária" pelas mulheres, observada, por exemplo, em alguns grupos de linhagem matriarcal na China, faz com que os homens se interessassem menos (no sentido evolutivo) em investir na residência, que abrigam não apenas os filhos da sua esposa, mas também de muitas outras mulheres com quem eles não têm relação familiar.
Isso enfraquece os laços conjugais e facilita a transmissão da riqueza entre as mulheres da mesma família. As mulheres também são menos controladas sexualmente nessas sociedades, pois a paternidade certamente é uma preocupação menor quando as mulheres controlam a riqueza e a transmitem para suas filhas.
E, nas sociedades com linhagem matriarcal, homens e mulheres podem praticar a poligamia. O povo himba do sul da África é uma sociedade com linhagem matriarcal e tem algumas das mais altas taxas de bebês gerados desta forma.
Mesmo nos ambientes urbanos atuais, a alta taxa de desemprego dos homens gera estilos de vida mais centralizados nas mulheres, com as mães ajudando as filhas a criar seus filhos e netos, muitas vezes em relativa pobreza.
Mas a introdução de riqueza material, que pode ser controlada pelos homens, forçou em muitos casos a mudança dos sistemas de linhagem matriarcal, para que se tornassem patriarcais.
O papel da religião
A visão de patriarcado descrita acima pode fazer parecer que o papel da religião é minimizado.
As religiões frequentemente estabelecem instruções sobre o sexo e a família. A poliginia, por exemplo, é aceita no islã, mas não no cristianismo. Mas as origens dos diversos sistemas culturais pelo mundo não podem ser simplesmente explicadas pela religião.
O islamismo surgiu no ano 610 em uma parte do mundo (a península arábica) então habitada por grupos de pastores nômades, onde a poligamia era comum. Já o cristianismo surgiu no império romano, onde o casamento monogâmico já era a norma.
Por isso, as instituições religiosas certamente ajudam a impor as regras, mas é difícil defender que elas tenham sido a causa original.
Por fim, a herança cultural das normas religiosas, ou de quaisquer outras regras, pode preservar preconceitos sociais hostis muito depois que a causa original já desapareceu.
O patriarcado está acabando?
O que está claro é que as normas, as atitudes e a cultura trazem enormes consequências para o comportamento das pessoas. Essas normas podem mudar e, de fato, mudam ao longo do tempo, principalmente em caso de alterações da ecologia ou da economia vigentes. Mas algumas normas ficam arraigadas ao longo do tempo e, por isso, sua mudança é lenta.
CRÉDITO,GETTY IMAGESLegenda da foto,
O controle da natalidade e os direitos reprodutivos das mulheres oferecem mais liberdade, tanto para as mulheres quanto para os homens
Ainda nos anos 1970, filhos de mães solteiras no Reino Unido foram retirados das suas mães e embarcados para a Austrália, onde foram colocados em instituições religiosas e oferecidos para adoção. E pesquisas recentes também demonstram como o desrespeito pela autoridade das mulheres ainda é generalizado nas sociedades europeias e americanas, que se orgulham da sua igualdade de gênero.
Isto posto, fica claro que as normas de gênero estão ficando muito mais flexíveis e o patriarcado é impopular junto a muitos homens e mulheres em grande parte do mundo. Muitos estão questionando a própria instituição do casamento.
O controle da natalidade e os direitos reprodutivos das mulheres oferecem mais liberdade, tanto para as mulheres quanto para os homens. Embora o casamento poligâmico agora seja raro, o acasalamento poligâmico é bastante comum e é visto como uma ameaça, tanto por incels - celibatários que odeiam mulheres - quanto por conservadores.
Além disso, os homens querem participar cada vez mais da vida dos seus filhos e apreciam não precisar ser os principais responsáveis pelo sustento das famílias. Por isso, muitos homens estão dividindo ou até assumindo todo o peso do trabalho de casa e da criação dos filhos.
Ao mesmo tempo, estamos vendo as mulheres mais confiantes, ganhando cargos de poder no mundo do trabalho.
Enquanto homens e mulheres geram cada vez mais sua própria riqueza, o velho patriarcado está achando mais difícil controlar as mulheres. A lógica do investimento dos pais orientado aos filhos homens fica muito prejudicada se as meninas tiverem o mesmo benefício da educação formal e as oportunidades de emprego forem abertas para todos.
É difícil prever o futuro. A história e a antropologia não progridem de forma linear e previsível. Guerras, fomes, epidemias ou inovações estão sempre surgindo, com consequências previsíveis e imprevisíveis para as nossas vidas.
O patriarcado não é inevitável. Precisamos de instituições que nos ajudem a resolver os problemas do mundo. Mas, se as pessoas erradas chegarem ao poder, o patriarcado pode se fortalecer.
* Ruth Mace é professora de antropologia do University College de Londres.
Texto publicado originalmente no portal da BBC News Brasil.
Sob Bolsonaro, Brasil se afasta de meta de erradicar pobreza
Edison Veiga | DW Brasil
Especialistas criticam foco eleitoreiro do Auxílio Brasil e falta de propostas na campanha
O mundo não conseguirá cumprir a meta estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) de erradicar a pobreza até 2030 — e o Brasil apresenta retrocessos sociais que também vão nesse sentido. Esse é o panorama 30 anos após a ONU instituir o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, em 17 de outubro de 1992.
O prognóstico negativo foi confirmado em relatório divulgado no início deste mês pelo Banco Mundial. E encontra eco nos números, segundo os quais a pandemia de covid-19 causou o pior momento desde que os dados vêm sendo monitorados, nos anos 1990, empurrando mais de 70 milhões de pessoas para a linha extrema em 2020. E os prognósticos, com a guerra na Ucrânia e a inflação decorrente do conflito, indicam que esse contingente ficará ainda maior.
De acordo com a instituição, 719 milhões de pessoas atualmente subsistem com menos de 2,15 dólares por dia — o que significa pobreza extrema. E a projeção é que até o fim deste ano 115 milhões a mais estejam nesse limiar da fome.
A linha da pobreza teve o valor mínimo reajustado pelo banco, tendo em vista o aumento dos custos em escala global. Antes, era de 5,50 dólares por dia. Agora é de 6,85. Considerando essa faixa, uma em cada cinco pessoas do mundo está abaixo da linha da pobreza.
O balde de água fria no sonho de acabar com a fome até 2030 tem sua explicação justamente no clima de otimismo dos anos 1990.
"Existia naquele contexto de final de século a expectativa de que o fortalecimento das democracias no pós-Guerra Fria fortaleceria os mercados e promoveria a redução da miséria, através da globalização e do neoliberalismo. Essas pretensões acabaram não acontecendo. Ao contrário, acabaram criando mais desigualdade pelo mundo", avalia o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Brasil: 30% do país na pobreza
No Brasil, o cenário é preocupante. "A queda [dos índices de pobreza] no Brasil foi até 2015", aponta o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social.
Ele se baseia em dados que apontam que, no fim do ano passado, havia um recorde do contingente de pobres no país desde o início da série histórica — 62,9 milhões de brasileiros, ou quase 30% da população, vivendo com renda domiciliar per capita igual ou inferior a R$ 497 por mês (5,50 dólares por dia). O número significa 10,1 milhões pessoas a mais do que no ano anterior, 2020.
O levantamento realizado pelo FGV Social com base nos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresenta um quadro nítido e preciso do que ocorreu nos últimos dez anos, início da série histórica. Em 2012, eram 54 milhões pobres no Brasil, número que caiu para 47,6 milhões em 2014, quando voltou a subir. Em 2018, eram 55,1 milhões. E 2021 terminou com o recorde histórico de 62,9 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza.
Para Ramirez, nesta conta é preciso acrescentar, além do cenário global, os cortes de programas sociais durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, ou mesmo a não atualização compatível dos valores destinados a eles. Mas ele também observa que como essas estatísticas se baseiam no ganho diário em dólar, a desvalorização da moeda brasileira significa "o aumento da quantidade de pessoas que entram" nessa desfavorável lista.
Avanços e retrocessos
Segundo Neri, nos últimos 30 anos, é possível destacar uma série de esforços históricos para a redução desse cenário. Nos anos 1990, havia a famosa campanha empreendida pelo sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, com sua organização Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Em 2001, no fim do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, foram implementados os programas Bolsa-escola e Bolsa Alimentação, precursores dos modelos de transferência de renda.
O auge da luta contra a pobreza extrema viria, contudo, na gestão posterior, sob o comando do petista Luiz Inácio Lula da Silva, com o programa Fome Zero e a instituição do Bolsa Família.
"O compromisso [de erradicar a pobreza] veio com o governo FHC, com algumas bolsas, e conseguiu uma expansão eficaz nos governos Lula e Dilma, quando a fome foi de fato extirpada do país e houve um compromisso com a empregabilidade, permitindo que o brasileiro pudesse ter três refeições por dia", comenta Ramirez. "Mas isso ainda não significou o fim da pobreza."
O Bolsa Família unificou e ampliou os programas de transferência de renda então existentes. Em 2014 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou que o Brasil havia saído do mapa da fome, o programa foi apontado como um dos responsáveis pelo feito.
O programa beneficiava 14,7 milhões de famílias em 2021, quando foi extinto pela gestão Jair Bolsonaro. Em seu lugar, foi implementado o Auxílio Brasil, uma das principais bandeiras eleitoreiras do candidato à reeleição.
Neri avalia que "a política social de cunho assistencial está crescendo em dinheiro, mas perdendo em eficácia operacional", com o domínio de uma "visão oportunista eleitoral e pouco foco na superação da pobreza estrutural". "Anda para trás em relação ao que o Bolsa Família já fazia."
"Hoje [o programa Auxílio Brasil] tem foco eleitoreiro mas provavelmente não [funcionará] depois das eleições", considera o economista.
Ele aponta que há gargalos bastante problemáticos, a começar porque o benefício foi aprovado graças a um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), apelidado de "Kamikaze", que colocou o Brasil em estado de emergência até o fim deste ano. Ao contrário do Bolsa Família, portanto, o Auxílio Brasil não é um programa com previsão de continuidade.
Outra questão que vem sendo trazida de forma recorrente por estudiosos é que o Bolsa Família fazia parte de um conjunto de políticas sociais implementadas pelo governo federal. Era condicionado à frequência escolar e vacinação em dia das crianças e caminhava em paralelo com outras medidas, como o projeto Minha Casa Minha Vida, de habitação popular, e melhorias no acesso ao ensino superior, com cotas e programas de financiamento. Também foi um período em que havia ganho real do salário mínimo, com reajustes anuais acima da inflação.
Discussão politizada
Neri crê que no momento qualquer solução fica difícil de ser avaliada, pois "a discussão está muito politizada e volúvel no Brasil". No cenário de campanha eleitoral, o vale-tudo das promessas não permite enxergar o que vem por aí.
"Bolsonaro implementou um pacote de benefícios no fim do mandato, mas não há nenhuma garantia de que serão mantidos ou que teremos orçamento para mantê-los", alerta Ramirez. "Lula carrega o histórico de ter liquidado a fome no Brasil, mas em sua campanha não fica nítido de onde viriam os recursos [para implementar programas do tipo]."
"Infelizmente, esta campanha eleitoral é uma das mais pobres em termos de propostas políticas. Pouco demonstram o que vai ser feito [para erradicar a pobreza] ou como vai ser feito", lamenta o sociólogo. "As pautas morais ganharam fôlego porque debater pobreza tem tido pouca repercussão entre eleitores em um mundo em que o sensacionalismo e os factoides ganham destaque."
Matéria publicada originalmente no portal DW Brasil
Bancada feminina no Senado fica menor após resultados do primeiro turno
Vinícius Dória | Correio Braziliense
O Senado Federal continuará sendo uma Casa formada majoritariamente por homens. Apenas quatro mulheres se elegeram senadoras, em 3 de outubro, resultado que fará com que a bancada feminina seja menor na nova legislatura em comparação com a que começou quatro anos atrás. Em fevereiro de 2022, quando tomarem posse, Damares Alves (Republicanos-DF), Professora Dorinha (União-TO), Teresa Leitão (PT-PE) e Tereza Cristina (PP-MS) se somarão às seis que permanecem no cargo por mais quatro anos — Daniella Ribeiro (PSB-PB), Eliziane Gama (Cidadania-MA), Leila Barros (PDT-DF), Mara Gabrilli (PSDB-SP), Soraya Thronicke (União-MS) e Zenaide Maia (Pros-RN). Com isso, a bancada feminina no Senado terá dez cadeiras, duas a menos do que quatro anos atrás, após as eleições de 2018.
Dependendo do resultado da eleição presidencial, em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disputa o segundo turno com o atual, Jair Bolsonaro (PL), esses números podem aumentar ou diminuir, dependendo do eleito. Se for o candidato do PT, três senadores vitoriosos no domingo são cotados para compor o novo governo federal. Wellington Dias (CE) e Camilo Santana (PI), ambos do PT, e Flávio Dino (MA), do Maranhão, atuam na coordenação da campanha de Lula e são nomes fortes para ocupar cargos no Executivo. E ainda há a possibilidade de Lula acomodar Omar Aziz, reeleito pelo PSD do Amazonas, que presidiu a CPI da Covid-19 e é um dos principais aliados do ex-presidente na Região Norte.
Se Bolsonaro conquistar nas urnas eletrônicas mais quatro anos à frente do Palácio do Planalto, três senadores eleitos passariam o cargo para as suplentes, no caso de serem convidados a compor a próxima equipe de governo: o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, eleito pelo Republicanos do Rio Grande do Sul; Margo Malta (PL), que retorna ao Senado eleito pelo Espírito Santo; e Wilder Morais (PL), que conquistou a vaga destinada a Goiás.
Banco de reservas
A cearense Augusta Brito já foi prefeita de Graça (CE), deputada estadual e deputada federal. Neste ano, trocou o PCdoB pelo PT para lançar-se como primeira suplente do ex-governador Camilo Santana, que deixou o cargo em abril para se candidatar ao Senado. Santana integrou a coordenação da campanha de Lula na Região Nordeste, assim como Wellington Dias, ex-governador do Piauí e nome forte do PT, também eleito para o Senado. A suplente dele é Jussara Lima, esposa do presidente estadual do PSD, deputado federal Júlio César, e mãe do deputado estadual Georgiano Neto (PSD), ambos reeleitos com as maiores votações no estado para os respectivos cargos.
Flávio Dino, do PSB maranhense, também é cotado para integrar o governo Lula, caso o ex-presidente vença o segundo turno. Se deixar o Senado, sua cadeira irá para a enfermeira e empresária Ana Paula Lobato, ex-vice-prefeita de Pinheiro, município da Baixada Maranhense.
Se o vencedor for Bolsonaro, a situação se inverte. Duas das quatro senadoras eleitas foram ministras no atual governo: Damares Alves (Republicanos-DF) e Tereza Cristina (PP-MT). Caso sejam convidadas a retornar ao Executivo federal em um hipotético segundo mandato de Bolsonaro, suas cadeiras no Senado serão ocupadas por suplentes homens: o advogado Manoel Arruda, presidente do União Brasil no DF, e Tenente Portela, amigo pessoal de Bolsonaro, respectivamente. Dos senadores eleitos com apoio do presidente em 3 de outubro, apenas o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Magno Malta (PL-ES) e Wilder Morais (PL-GO) têm mulheres na suplência.
No primeiro mandato de Bolsonaro, Magno Malta esperava ganhar algum cargo no governo federal, depois de tentar — e perder — a reeleição para o Senado, em 2018. Agora, volta fortalecido pela vitória no Espírito Santo, em que derrotou a senadora Rose de Freitas (PSDB), que tentava a reeleição. Se for chamado pelo presidente para algum cargo no Executivo, sua vaga no Senado será ocupada pela professora e evangélica Marcinha Macedo (PL), que foi sua assessora em Brasília quando exerceu o cargo de senador.
O general Hamilton Mourão, responsável por uma das mais importantes vitórias do bolsonarismo em 3 de outubro, tem como suplente a deputada federal Liziane Bayer. A irmã dela, Franciane Bayer (REP-RS), foi eleita deputada federal. No caso do goiano Wilder Morais, a suplente é Izaura Cardoso, mulher do senador Vanderlan Cardoso, do PSD, que trabalhou intensamente para que o governador reeleito do estado, Ronaldo Caiado, abandonasse a posição de neutralidade na corrida presidencial. Logo após o resultado do primeiro turno, Caiado declarou apoio a Jair Bolsonaro.
Matéria publicada originalmente no Correio Braziliense