Day: setembro 21, 2022
Revista online | Um Natal com Darcy Ribeiro
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
Enquanto o presidente protofascista usa uma data cívica, o Bicentenário da Independência, para mobilizar a extrema direita violenta e reacionária, outras efemérides comemoradas este ano merecem ser devidamente lembradas, pela importância que tiveram na história do Brasil em tempos menos sombrios.
No momento em que a descrença domina o ambiente, vale homenagear o centenário de nascimento de Darcy Ribeiro (1922-1997), um brasileiro que, ao longo da vida, construiu uma trajetória marcada pela generosidade, sensibilidade social, originalidade de pensamento e vontade para pôr em prática suas ideias.
Mineiro de Montes Claros, nascido em 26 de outubro, Darcy talvez seja o melhor exemplo de homem público que soube unir ação e pensamento. Como político e realizador, seu legado é imenso. Formado em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1946, criou o Museu do Índio e ajudou a formular o projeto do Parque Indígena do Xingu. Foi o idealizador e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB). O golpe militar de 1964 o cassou quando era o chefe da Casa Civil do governo de João Goulart (1919-1976).
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De volta do exílio imposto pela ditadura, no Rio de Janeiro, onde foi vice-governador, ele deixou como herança o projeto dos Cieps, o sambódromo, a Biblioteca Pública, a Casa França-Brasil, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). A intensa produção de livros foi reconhecida pela Academia Brasileira de Letras (ABL), que o tornou imortal em 1993. Concebeu o Memorial da América Latina e foi o autor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), elaborada quando exercia o mandato de senador, para o qual foi eleito em 1991.
Como pensador, escritor e romancista, sua obra é enorme. Darcy pensou o Brasil e a América Latina como poucos. Seus livros buscaram explicar as causas do atraso do continente latino-americano de maneira extremamente generosa: segundo sua tese, a região, fruto de um encontro único de povos em todo o mundo, tem lugar no futuro. O que não presta é nossa elite dirigente. “O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”, formulou.
O livro O Povo Brasileiro, de 1995, uma reflexão sobre a formação e o sentido do Brasil, é considerado sua obra-prima na área das ciências sociais. O sociólogo e crítico literário Antônio Cândido (1918-2017) indicou a obra como a melhor introdução sobre o que é o Brasil. “Livro trepidante, cheio de ideias originais”, disse o professor emérito da USP, em artigo escrito no ano de 2000, quando listou quais seriam as 10 melhores leituras para conhecer o país.
Além de todas as qualidades de homem público e intelectual militante, Darcy era uma figura vibrante, que defendia ideias de maneira eloquente e apaixonada. Amigo de meus pais, frequentador da minha casa, Darcy foi quem, em abril de 1978, proferiu o discurso de despedida à beira do túmulo de meu pai, Darwin Brandão.
Depois disso, no período da luta pela redemocratização, assisti a inúmeras palestras e debates em que Darcy era a estrela, lotando auditórios – sempre defendendo os índios, suas terras e cultura, e preconizando a importância do papel da educação como elemento libertador para o povo brasileiro. A frase “a crise da educação não é uma crise, é um projeto” sintetiza a sua luta política.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
Tive um encontro que me marcou para sempre com Darcy. Foi em um Natal. Ateu, não faço questão de comemorar a data. Mas essa ficou na memória. Creio que era o ano de 1978, o primeiro sem meu pai. Estávamos eu, meus irmãos e minha mãe. Se não me falha a memória, também estavam presentes Marcos Palmeira e Betsy de Paula, filhos de Zelito Vianna e da Vera, em cuja casa acontecia a reunião. Havia ainda um índio recém-chegado do Mato Grosso, onde Zelito havia rodado seu filme Terra do Índios, Darcy e sua mulher, Claudia Zarvos, e Frei Betto, que organizou a cerimônia natalina.
Sentamos todos em uma roda e sorteamos uns papeizinhos que continham o nome de cada um de nós. Coube a mim pegar o nome do Darcy. E assim fomos nós, eu e ele, para um canto da casa conversar. Na volta, deveríamos relatar a conversa para o resto da turma, assim como todos os outros também o fariam. Devo confessar que a surpresa de poder compartilhar certa “intimidade” com um homem por quem tinha profunda admiração travou minha língua. Falei quase nada.
Sorte a minha que o Darcy falava pelos cotovelos e me salvou de gaguejar na hora de contar aos demais sobre o que havíamos conversado: falou por nós dois. E foi assim que passei o Natal mais inusitado de minha vida, na companhia da família, de amigos, um frei revolucionário, um índio e... Darcy Ribeiro. Inesquecível.
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Após Putin convocar 300 mil reservistas para guerra na Ucrânia, China pede "diálogo"
Thales Schmidt*, Brasil de Fato
Após uma escalada na guerra da Ucrânia, com a decisão por um referendo nos territórios ucranianos conquistados por Moscou e uma declaração de mobilização militar de Putin, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, defendeu nesta quarta-feira (21) uma saída "pacífica" para o conflito que já matou 5.916 civis, segundo cálculos da ONU.
Perguntado sobre a questão em coletiva de imprensa, Wang afirmou que a China tem uma posição "consistente e clara", defendeu a carta da ONU e destacou que "as preocupações legítimas de segurança de qualquer país devem ser levadas a sério".
"Apelamos às partes interessadas para que resolvam adequadamente as diferenças através do diálogo e da consulta. A China está pronta para trabalhar com membros da comunidade internacional para continuar a desempenhar um papel construtivo nos esforços de desescalada", disse Wang.
Em outras ocasiões, diplomatas chineses destacaram o expansionismo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) quando perguntados sobre o conflito. Nessa mais recente ocasião, Wang não citou nominalmente a aliança militar liderada pelos Estados Unidos.
China e Rússia afirmam ter uma "aliança sem limites" e costumam apresentar uma frente unida diante dos Estados Unidos e do Ocidente, mas o prolongamento da guerra na Ucrânia tem tensionado a parceria. Quando o presidente russo, Vladimir Putin, e o líder chinês, Xi Jinping, se reuniram durante a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) na semana passada, Putin afirmou entender as "preocupações" chinesas com o conflito.
Nesta quarta-feira (21), Putin anunciou por meio de discurso na televisão a convocação de 300 mil reservistas para o campo de batalha e apoiou a realização de referendes de adesão à Rússia das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, além das regiões ucranianas de Kherson e Zaporozhye.
O presidente russo disse que se a integridade territorial do país for ameaçada, a Rússia usará todos os meios à sua disposição.
"No caso de ameaça da integridade territorial da Rússia, usaremos todos os métodos, incluindo armas nucleares, isso não é um blefe", disse Putin.
*Texto publicado originalmente no portal do Brasil de Fato.
Nas entrelinhas: O “melhor país do mundo” não é o de Bolsonaro
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O presidente Jair Bolsonaro discursou, ontem, na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos, como é de praxe no cerimonial do órgão, desde a sua criação no imediato pós-II Guerra Mundial, embora não exista nada escrito que o Brasil deva ter essa honraria no seu regimento. Descreveu um país que não é exatamente aquele no qual estamos vivendo, com o claro propósito de aproveitar a oportunidade para se apresentar aos eleitores como um estadista reconhecido internacionalmente e, ao mundo, como um governante generoso e bem-sucedido. A abertura, porém, foi esvaziada pela ausência do presidente dos EUA, Joe Biden, que mudou a agenda e só falará hoje.
O discurso de Bolsonaro foi mais um gesto para se apropriar do nosso sentimento de brasilidade, da mesma forma como fez com a bandeira brasileira e as comemorações do Bicentenário da Independência, no 7 de Setembro, que descreveu no discurso como “a maior demonstração cívica da História do país”. Descendente de italianos, Bolsonaro é um “oriundi” traduzido, no conceito antropológico do termo, como acontece com a maioria dos brasileiros descendentes de europeus, que não renegam a cultura de seus povos de origem nem assumem uma condição “chauvinista”, colocando-a acima da nossa cultura popular.
A dificuldade de Bolsonaro está em não compreender plenamente o conceito de “brasilidade”, a qualidade de quem é brasileiro, que está profundamente associado à nossa diversidade étnica e cultural. O “ser brasileiro” não é uma invenção das antigas elites escravocratas nem das escolas militares, mas uma construção multidimensional, por meio da arte, da dança, dos ritos, da música, da culinária, dos símbolos e, principalmente, da nossa literatura, que fez a crítica dos nossos hábitos e costumes, papel hoje exercido pela nossa teledramaturgia. Num país continental, não poderia ser diferente.
Quando um brasileiro acredita que somos “o melhor país do mundo”, não está se referindo a um governo ou à conjuntura, mas aos vínculos culturais mais profundos, tecidos ao longo de gerações. Iniciado após a Independência, em 1822, o processo de constituição da identidade nacional somente consolidou-se a partir da década de 1930, após Getúlio Vargas chegar ao poder. Está ligado à constituição de um Estado nacional moderno e à língua portuguesa, falada em todo o território nacional. Daí a importância da nossa literatura, hoje tão desprezada. As obras de José de Alencar, autor de O Guarani, por exemplo, foram fundamentais para associar nossa identidade às belezas naturais do território e à presença indígena na formação da nação brasileira.
Na contramão
Os Sermões, de Padre Vieira; Inocência, de Visconde de Taunay; O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Macunaíma, de Mário de Andrade; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Jubiabá e Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado; Navalha na Carne, de Plínio Marcos, por exemplo, construíram um mosaico cultural cujo influência na música, na dramaturgia e nas artes plásticas perdura hoje. Artistas como Tarsila do Amaral, Chiquinha Gonzaga e Ivone Lara, Cartola e Paulinho da Viola, Chico Buarque e Tom Jobim, Caetano e Gil, Cazuza e Renato Russo, cada qual à sua época, foram intérpretes desse sentimento profundo de brasilidade.
O “melhor país do mundo” está no imaginário popular, não estava no discurso que Bolsonaro fez ontem na ONU, onde afirmou que 80% da Floresta Amazônica permanecem intocados: “Dois terços de todo o território brasileiro permanecem com vegetação nativa, que se encontra exatamente como estava quando o Brasil foi descoberto, em 1500”. No mesmo dia, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que o número de queimadas registradas na Amazônia, até ontem, já superou o total registrado em todo o ano de 2021. Em nove meses incompletos (261 dias), foram 76.587 focos de incêndio na região. No ano passado inteiro, foram 75.090.
Bolsonaro é o principal responsável pelo aumento do desmatamento da Amazônia, ao desmantelar órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes, além de estimular garimpeiros, pecuaristas e madeireiros a avançar floresta a dentro. A Amazônia Legal, com 59% do território brasileiro, ocupa nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e uma parte do Maranhão. Na semana passada, por causa das queimadas, a fuligem e o cheiro das queimadas foram sentidos de São Paulo ao Rio Grande do Sul. A política ambiental de Bolsonaro está na contramão da política ambiental preconizada pela ONU e, hoje, é um dos principais fatores do nosso isolamento internacional.