Day: agosto 15, 2022
71% dos estudos sobre cotas raciais avaliam política positiva, mostra análise
Geledés*
Levantamento realizado pelo Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas em 980 publicações sobre políticas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro aponta que 71% dessas pesquisas avaliaram positivamente as cotas raciais e 62% as cotas sociais. Os estudos analisados foram publicados entre 2006 e 2021.
Sobre as cotas raciais, 53% dos estudos avaliaram a política como “bastante positiva”, 18% como “levemente positiva” e 12% como negativas (com 16% sem identificação clara). Já em relação às cotas sociais, 43% foram “bastante positivas”, 19% “levemente positivas” e 12% negativas (25% sem identificação).
Esse é um dos achados que foram apresentados nesta quinta-feira no evento “Dez anos da Lei de Cotas: resultados e desafios”, no Museu Afro-Brasil, no Parque Ibirapuera, em São Paulo.
Na primeira parte do evento, dedicada à importância das cotas, Sueli Carneiro, fundadora da Geledes – Instituto da Mulher Negra, defendeu a Lei de Cotas especialmente em um “cenário temerário que clama pela defesa intransigente de projetos de democratização da educação” no país.
— Queremos de volta aquela democracia de baixo impacto que, apesar dos pesares, nos garantiram avanços como a Lei de cotas. Que a coragem demonstrada pela sociedade no dia de hoje nos inspire a defender estas conquistas — afirma a filósofa e escritora que é pensadora central sobre o feminismo negro.
O consórcio, que inclui especialistas da UFRJ, UnB, UFBA, UFMG, UFSC, Unicamp e Uerj, foi criada, frisam os acadêmicos, como contraponto à “ausência de propostas do governo federal para a revisão da Lei de Cotas, prevista para este ano”. O grupo tem, entre seus objetivos principais, entender as consequências de uma década com a legislação em vigor no ensino superior, saber se os beneficiários conseguem concluir suas graduações e adentrar no mercado de trabalho, analisar trabalhos acadêmicos sobre o tema e comparar o desempenho entre cotistas e não-cotistas no momento em que entram nas universidades e durante a graduação.
A Lei das Cotas completa dez anos em 2022. No entanto, houve uma fase experimental que durou de 2002 a 2007, quando a política chegou a 40 instituições de ensino superior públicas brasileiras. Depois disso, entre 2008 e 2011 o país viveu uma fase em que o Reuni, programa de expansão das universidades federais, garantia incentivos para quem implementasse as cotas. Só em 2012 foi aprovada a lei federal.
De 2001 a 2020 o número de pretos, pardos e indígenas matriculados em universidades públicas no Brasil passou de 31% para 52% do total de estudantes. E os de classe C, D e E de 19% para 52%. Os dados, amealhados pelo Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas a partir de informações incluídas na Pnad Contínua, são de alunos de todos os cursos universitários de instituições federais, estaduais e municipais, de 18 a 34 anos, e não incluem apenas os que entraram nas faculdades através da Lei Federal de Cotas e de outras políticas afirmativas. Eles foram
— Neste período, também houve um aumento de quase 6% do número de pessoas que passaram a se identificar como pretos, pardos e indígenas no país, mas, sozinho, isso não explica tamanha mudança da cara do ensino superior brasileiro. As cotas, como apontam vários estudos produzidos desde 2012, foram fundamentais para aumentar o interesse destas pessoas pela universidade — diz o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor de Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-Uerj) e um dos 31 acadêmicos de sete universidades e oito grupos de pesquisa que criaram o Consórcio no fim do ano passado.
Uma das pesquisas destacadas no encontro desta quinta-feira, comandada pelas professoras de ciência política da UFMG Ana Paula Karuz e Flora de Paula Maia compara justamente o desempenho médio de cotistas e não-cotistas no Enem de ingressantes em todos os cursos da universidade (admitidos entre o primeiro semestre de 2016 e o segundo semestre de 2020) com o desempenho acadêmico no mesmo período. O resultado mostra uma desvantagem significativa dos alunos cotistas pretos, pardos e indígenas de baixa renda em relação aos não-cotistas que não se repete na média da nota semestral global de graduandos da UFMG, em que a diferença se esvai.
— Fica claro que a desvantagem destes alunos (cotistas) nas etapas anteriores do ensino não influem no desempenho durante o curso superior. E não se trata de uma especificidade da UFMG. A UFBA está em processo final de pesquisa comparativa de desempenho e os resultados são semelhantes — diz Campos, que é coordenador do Observatório das Ciências Sociais (OCS) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Uerj, pioneira na implantação de políticas afirmativas no ensino superior, uma década antes da implementação da Lei Federal de Cotas.
Já Ana Paula Karruz, explica que a diferença de desempenho é de apenas 5 pontos numa escala de 0 a 100, em 85 dos 86 cursos analisados.
— A mensagem é clara, uma vez que entram na universidade o desempenho é muito próximo. A lição da UFMG é que não prestamos qualquer apoio às ideias de que haveria queda acadêmica. O foco é o oposto: há um desempenho superior, se relacionado diretamente às notas do Enem — afirmou Ana Paula Karruz, da UFMG.
Um dos casos mais interessantes apresentados no encontro foi o da UFSC, instituicao publica no estado mais branco do país. Em 2005, 8.5% dos estudantes da instituição eram negros para uma população de 11,7% de negros. Com a adoção da lei de cotas em 2008 o quadro foi mudando e em 2000 os números se equipararam: 18.8%. Mais: no curso de Medicina, de 2008 a 2012 apenas 3% dos médicos formados eram negros, de 2017 a 2021 passou para 23%.
— Buscar essa igualdade entre estudantes e o números de pretos e pardos na população era o mínimo que queríamos fazer em uma universidade pública. Mas talvez foi possível conseguir este aumento neste período porque o número de beneficiados não passa de 20%, a grita é menor — afirma o professor Mauricio Tragtenberg, da UFSC.
Outra pesquisa inédita mostrou o aumento do número de estudantes pretos, pardos e indígenas em todas as universidades federais, de 2012 a 2016. Os números mostram o aumento especialmente em cursos tradicionalmente classificados como “de elite”, como Relações Internacionais, Medicina, Odontologia, Direito e Engenharia
— Os números mostram que as políticas afirmativas aplicadas não criaram guetos de exclusão — afirmou o pesquisador Adriano Senkevics, do INEP.
Senkevics também lembrou que a velocidade do avanço de entrada de estudantes de classe C, D e E (menos favorecidas) diminuiu nos últimos anos e que a pandemia deve ser um fator para a desaceleração, mas faltam dados para se confirmar esta percepção e entender essa detecção “preocupante”.
Outro estudo, qualitativo, do sociólogo Jefferson Belarmino de Freitas, do IESP-Uerj, e do cientista político João Feres Júnior, também da Uerj, concluído em maio, mostra, através de entrevistas com os graduandos, como as cotas raciais na instituição fluminense ultrapassaram os benefícios individuais e aumentaram a disseminação de valores antirracistas.
O racismo se tornou mais perceptível nas vidas de estudantes pretos e pardos, por exemplo, ao passarem a circular em espaços nos quais a presença de negros ainda é minoritária, e no próprio processo de aprendizado social que os levam a articular melhor a dimensão do problema. Os efeitos sociais e políticos da disseminação de valores antirracistas, proporcionados pelas cotas, ultrapassa, defendem os pesquisadores, os portões das universidades e chega, como revelam os depoimentos, às famílias e locais de trabalho dos beneficiados.
Amparado por pareceres de diversos juristas e da ONG Conectas Direitos Humanos, o Consórcio defende que a Lei de Cotas, não pode, de forma alguma, ser suspensa se a revisão prevista para este ano for adiada para 2023. Na avaliação de especialistas em ensino superior, a lei em vigor não prevê sua revogação após dez anos, mas sim uma reavaliação. Hoje, 109 universidades públicas adotam algum tipo de ação afirmativa, contra 79 em 2012 e apenas 6 em 2003.
— Há mais pessoas negras e pobres na universidade pública? Sim. Diferentes pesquisas mostram que houve uma grande diversificação racial e socioeconômica. Nossa avaliação é a de que o saldo é claramente positivo e que melhorias pontuais podem ser propostas e feitas a partir de dados e pesquisas – diz Campos.
*Texto originalmente publicado no Geledés.
Concurso público: Biblioteca Salomão Malina oferece espaço para estudos
João Vítor*, sob supervisão da Coordenação de Publicações da FAP
Concurseiros têm mais uma opção de ambiente de estudo na região central de Brasília. A Biblioteca Salomão Malina, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) no Conic, tem se tornado referência como lugar de concentração para quem que se prepara para maratona de provas Brasil afora. A entrada é gratuita.
Na corrida pela aprovação em um concurso público, a solução para driblar as distrações de casa, para o engenheiro civil Rafael de Castro Ballarin, de 30 anos, foi ir à biblioteca, próximo à Rodoviária do Plano Piloto. No local, ele passa cada detalhe de conteúdo a limpo.
“É bem melhor do que [estudar] em casa. Tenho gatos, então, eles ficam querendo brincar o tempo todo. No meu computador, tem jogos, e eu me vejo tentado a jogar”, explica Ballarin, que escolheu estudar para concursos em busca de estabilidade financeira.
Confira, a seguir, galeria de imagens:
Pesquisa mais recente do Atlas das Juventudes mostra que 32% dos jovens do Brasil têm de lidar com a falta de um ambiente tranquilo para estudar em casa. A maioria deles precisa encontrar na própria garra para encontrar forçar, enfrentar a realidade do dia a dia e manter o foco.
Ballarin se prepara para o concurso do Senado Federal, que será organizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ele foi aprovado, em 2018, no concurso da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), mas não foi nomeado.
O engenheiro diz ter conhecido a Biblioteca Salomão Malina ao caminhar pelo Conic. “Achei ela [biblioteca] por acaso. Uso só para estudos. Fica perto da rodoviária, o que facilita para mim”, afirma.
Nascido em Brasília, Ballarin chegou a trabalhar na área da engenharia civil. No entanto, ele afirma ter se “desagrado” com a profissão. “Me desiludi muito com a engenharia”, diz. Ele é graduado pela Universidade de Brasília (UnB).
O técnico de contabilidade Luiz Henrique Souto Ribeiro, de 34, diz que o espaço da biblioteca foi fundamental para que ele acertasse metade da prova do concurso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
“Tenho uma rotina muito apertada para horários de estudos. Então para mim, ela [biblioteca] é muito importante. É o melhor lugar para estudar”, afirma o técnico.
Ribeiro é de Brasília, mas mora no Entorno e diz que, apesar de não ter distrações em casa, ele prefere ir à biblioteca. O espaço, conforme acrescenta, serve, também, para “arejar a cabeça''. “É um lugar para eu me isolar dos problemas. Um refúgio interno”, explica.
O técnico de contabilidade afirma que conheceu a Biblioteca Salomão Malina ao caminhar pelo Conic na hora do almoço. “Eu entrei ainda um pouco acanhado porque não conhecia e não sabia se tinha alguma exigência para entrar”, diz, ressaltando que foi bem atendido no local.
Ao menos 115 concursos públicos estão com inscrições abertas no Brasil. Juntos, totalizam mais de 6,4 mil vagas em cargos de todos os níveis de escolaridade.
Serviço
Biblioteca Salomão Malina
Endereço: SDS, Bloco P, ED. Venâncio III, Conic, loja 52, Brasília (DF). CEP: 70393-902
Funcionamento de Segunda à Sexta das 9h às 18h.
WhatsApp: (61) 98401-5561. (Clique no número para abrir o WhatsApp Web)
*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão da Coordenação de Publicações da FAP
*Título editado
Nas entrelinhas: Campanha começa hoje com foco no Sudeste
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A campanha eleitoral começa hoje com o foco voltado para as pesquisas de intenções de voto realizadas pelo Ipec (sucessor de Ibope) nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Brasília, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Nos três estados do Sudeste, a disputa entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro começa mais nervosa, porque são os três maiores colégios eleitorais do país. Os dois deverão comparecer à posse do ministro Alexandre de Moraes na Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para a qual foram convidados todos os ex-presidentes. José Sarney, Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff confirmaram presença; Fernando Henrique Cardoso, não, devido a problemas de saúde. A posse será um termômetro do clima da campanha eleitoral no plano institucional.
O nervosismo que antecede os programas eleitorais de rádio e tevê, que somente começarão no dia 26 de agosto, já tomou conta das equipes de marketing dos candidatos. Por hora, está radicalizado nas redes sociais, principalmente entre petistas e bolsonaristas. O jogo bruto nas redes sociais tende a esquentar o clima político, mas essa pode não ser uma boa receita para os programas eleitorais de rádio e teve, a partir do próximo dia 26, que têm audiência difusa e não segmentada em bolhas de apoiadores como as redes sociais.
Na semana passada, as pesquisas mostravam o encurtamento da distância entre Lula e Bolsonaro no Sudeste. Nas pesquisas de ontem, porém, Lula mantinha uma margem de 13 pontos de vantagem em relação a Bolsonaro em Minas (39% a 26%), dez pontos em São Paulo (38% a 28%) e um empate técnico no Rio (35% a 33%), o que reduziu o estresse na cúpula petista. Como são as primeiras pesquisas regionais desse instituto, não há termos de comparação.
Em relação aos demais candidatos, entretanto, a pesquisa mostra que a tendência de polarização e a narrativa do “voto útil” pode explicar a recuperação da vantagem de Lula. Ciro Gomes (PDT), com média de 3%, parece ter sido desidratado em São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. No cômputo geral do Ipec, Lula aparece com 44%, Bolsonaro com 32%, Ciro com 6% , Simone Tebet (MDB) com 2% e Vera (PSTU) com 1%. Lula venceria o segundo turno com 51% dos votos, contra 35% de Bolsonaro.
Depois de uma semana na qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva jogou parado, com a sociedade civil se mobilizando em defesa das urnas eletrônicas, do Supremo Tribunal Federal e do Estado democrático de Direito, o presidente Bolsonaro reagiu em duas frentes: a primeira, foi nas redes sociais, nas quais viralizou um meme no qual bolsonaristas espalhavam o boato de que Lula pretende fechar os templos evangélicos, o que obrigou a campanha de Lula a desmentir a fake news; a segunda foi na esfera administrativa do governo: o pagamento de duas parcelas do Auxílio Brasil, equivalente a R$ 1.200,00; o subsídio de R$ 1 mil para os taxistas; e nova redução de preços dos combustíveis pela Petrobras.
Uma batalha especial está sendo travada no mundo evangélico, no qual a forte atuação da primeira-dama Michele Bolsonaro começa a surtir efeito entre as mulheres, segundo pesquisas internas das campanhas de Lula e Bolsonaro. O discurso de Bolsonaro é o de sempre, contra o comunismo e corrupção, em defesa da família e da fé cristã, mas o de Lula ainda não está claro. Tradicionalmente ligado à esquerda católica, Lula teme uma aproximação forçada com os evangélicos. Esse é o nó ainda não desatado de sua campanha, o que abre o flanco para a recuperação de Bolsonaro em segmentos desse eleitorado que haviam se aproximado do petista.
Calmaria
Do ponto de vista institucional, o aspecto mais positivo é que o confronto de Bolsonaro com o ministro Alexandre de Moraes parece ter desanuviado, após o novo presidente do TSE tê-lo convidado pessoalmente para a sua posse, em visita ao Palácio do Planalto. Moraes também tem boas relações com os militares. O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, moderou as críticas à Justiça Eleitoral. O procurador-geral da República, Augusto Aras, também contribuiu para a calmaria, ao dar entrevista a jornalistas estrangeiros garantindo que o presidente eleito nas urnas tomará posse.
Por tudo o que já aconteceu entre o presidente Bolsonaro e o futuro presidente do TSE, não se pode dizer que estamos num processo eleitoral como os que já vivemos desde a redemocratização. Entretanto, o fato relevante são as eleições em si, com milhares de candidatos, a deputados estaduais e federais, nas eleições proporcionais, e a senadores e governadores, em pleitos majoritários, além da disputa presidencial. O eleitor vota simultaneamente em cinco candidatos, já tem experiência de participação eleitoral acumulada, num processo de engajamento político que se intensifica após a campanha eleitoral pelo rádio e a tevê começar. Para Bolsonaro, não resta alternativa a não ser pleitear a reeleição de acordo com as regras do jogo, sobretudo depois do repúdio antecipado à qualquer virada de mesa. A mobilização da sociedade esvaziou a narrativa golpista.
Como polarização política se manifesta nos pátios das escolas
Adriana Stock*, BBC News Brasil
No recreio do Colégio João Paulo I, uma escola privada, em Porto Alegre, o chão está rabiscado com giz. Ao invés de desenhos ou números para pular amarelinha, o que mais chama a atenção é a frase escrita: "Fora Bolsonaro". Uma menina do 4º ano observa as letras com traços tortos, indicando que alguém mais novo do que ela tinha feito aquilo. Talvez alunos do 3º ano. Indignada, ela pega o giz e reescreve "Dentro Bolsonaro". Sente um certo alívio, mas não sabe bem explicar o porquê.
Bem longe dali, no Colégio Santo Agostinho Novo Leblon, uma escola privada, no Rio de Janeiro, durante o intervalo entre as aulas, quando não há nenhum professor na sala, um grupo de alunos começa uma discussão. Alguns gritam "Melhor boca suja do que ladrão!". Os outros revidam "É óbvio que não!".
Também é fora do alcance da supervisão de professores ou monitores, durante intervalo ou recreio, que surgem as discussões mais acaloradas na Escola Municipal Paulino Melenau, em Jaboatão dos Guararapes, próximo a Recife. Lá, uma aluna do 9º ano conta que "o debate às vezes fica grosseiro" e não é incomum escutar xingamentos como "bolsominion" e "fascista".
As discussões se estendem até mesmo fora do ambiente escolar e vão parar no grupo da turma no WhatsApp. "Meu filho fala que é uma verdadeira guerra de figurinhas e memes", conta a mãe de um aluno do 6º ano da escola estadual CIEP 112 Monsenhor Solano Dantas Menezes, na Baixada Fluminense.
Se as discórdias, fruto da polarização política no país, invadem o ambiente familiar e o círculo de amizade entre os adultos, entre as crianças a situação não é diferente. Afinal, elas são uma verdadeira esponja e absorvem, ainda sem pleno entendimento, as opiniões dos pais, principalmente.
"A criança é uma esponja porque precisa de um referencial. Quanto menor ela for, mais fácil a criança estar apenas repetindo aquilo o que foi falado porque ela precisa partir de algum lugar", explica a psicanalista Sylvia Caram, especialista em Educação Infantil da PUC-Rio. É apenas a partir da adolescência que elas começam a se aproximar de uma opinião própria, mas, até lá, defendem como verdades absolutas o que ouviram em casa.
A autonomia de opinião, no entanto, está cada vez mais precoce, acelerada pela maior exposição à internet durante a pandemia, como relata Sylvia. São crianças de até oito anos de idade que deixaram de ter somente os pais como única referência, passando a escutar o que dizem influenciadores nas redes sociais, além de absorver o conteúdo dos inúmeros vídeos e memes que circulam pelas telas.
"Demonização do debate político"
O fato dessa troca de farpas entre alunos estar acontecendo longe da moderação dos professores ocorre, em parte, pelo receio que muitos docentes têm de propor um debate político em sala de aula e serem acusados de um viés para esquerda ou direita.
É a "demonização do debate político", como descreve Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, que coordena o EducaMídia, um programa de educação midiática direcionado aos jovens e que tem parceria com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
"Depois daquele movimento da 'Escola sem partido', em que as escolas estavam sendo acusadas de doutrinar os jovens com conteúdo de direita ou de esquerda, principalmente, houve um processo de criminalizar o debate sobre política. O professor passou a se sentir desincentivado a tratar desse tema em sala de aula", afirma Patrícia.
Ela cita a pesquisa Juventudes e Política, do instituto Ipec, publicada neste ano, a qual aponta que o jovem está interessado em questões políticas, mas vem se informando e formando sua opinião a partir de influenciadores que muitas vezes têm o mesmo nível de conhecimento que ele em tais temas.
"Daí a importância de a escola entrar nesse debate formando esse jovem para que ele possa ir atrás de informações e construir sua própria opinião. Não podemos deixá-lo à margem e só convidá-lo a se manifestar na época da eleição. Temos que dar subsídios para que ele possa fazer uma escolha bem informada, que entenda quais são os critérios que deve levar em conta na hora de decidir o voto. Isso transcende a questão partidária", ressalta.
Na Escola Nova, no Rio de Janeiro, desde o 4º ano do Ensino Fundamental há um exercício feito com regularidade em sala de aula para quebrar o engessamento de opiniões que geram brigas. A diretora Vera Affonseca conta que são escolhidos temas polêmicos. A sala é dividida em grupos que defendem um ponto de vista e depois eles invertem as posições. "É uma prática que temos para que os alunos entendam como o outro pensa. Para que aquele que é contra um determinado assunto assuma um posicionamento a favor", conta. Para os mais velhos, já foram debatidos temas como demarcação de terras indígenas e porte de armas, e, com a proximidade das eleições, nomes de pré-candidatos.
"É uma brincadeira muito interessante porque eles precisam pensar em como defender aquilo que detonaram tanto, vivenciar os dois lados. Com política, fica mais acirrado. Então tem que ter o professor como mediador e regras. Saber discutir sem agredir. Eles aprendem a respeitar o ponto de vista do outro", diz a educadora.
A organização de simulados de eleições é outra forma que escolas encontram para incentivar o debate político construtivo. Foi o que fez, por exemplo, o Colégio Militar de Paraíso do Tocantins em parceria com a Escola Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral e o cartório local, que, juntos, desde 2018, promovem o projeto "Agentes da Democracia - Formação de Eleitores e Políticos do Futuro". Participaram todos os alunos do Ensino Médio e muitos saíram do evento já com o título eleitoral encaminhado.
"O intuito era mostrar que a política não é um grande vilão. Eles fizeram um trabalho muito dinâmico, com uma roda de conversa. Falaram sobre diversos temas, como, por exemplo, a segurança da urna eletrônica. Inclusive eles trouxeram urnas, explicaram como elas funcionam", conta Jordana Marques, orientadora disciplinar do Colégio Militar de Paraíso do Tocantins.
"Pão com salame por voto"
O conhecimento de todas as esferas do poder e o entendimento das funções de cada cargo político foram vitais para acabar com os conflitos na Escola Estadual José Ferreira Maia, em Timóteo, Minas Gerais. É de lá a professora Karina Letícia Pinto, vencedora do Prêmio Professor Transformador 2021 pelo trabalho que fez na construção de valores democráticos.
"O projeto surgiu por causa da intolerância em sala de aula, havia uma polarização muito forte. A gente via a replicação da fala dos pais nos alunos. Dava muita confusão porque um não aceitava o que o outro falava e eram crianças de nove a dez anos de idade. A discussão terminava com um dizendo 'lá fora na saída vou te pegar'. Isso atrapalhava o convívio. Eu nunca tinha visto aquilo em 13 anos de sala de aula", lembra a docente.
Karina percebeu que as brigas ocorriam por motivos que as crianças nem entendiam direito. Foi aí que teve a ideia de falar sobre o que é política. "Comecei explicando o que era o poder Legislativo, porque as crianças achavam que só o presidente mandava no país. Mas eles foram entendendo como surgem as leis, como são votadas e por quem, quando passam a valer e como interferem em nossas vidas", relata. Depois seguiram as lições sobre os poderes Executivo e Judiciário.
"Ensinei tudo de uma forma bem didática. Expliquei a independência dos três poderes, mas que os três precisam ser amigos, que nenhum faz uma coisa sem o outro, que eles colaboram com o outro. Foi a partir daí que o debate em sala de aula passou a ser mais construtivo. Os alunos expressavam suas ideias, mas sabendo que deveriam respeitar a ideia do colega", diz Karina.
O primeiro exercício de democracia aconteceu na escolha do líder de sala de aula e a professora conta que o processo eleitoral teve até denúncia de compra de voto. "Alguns alunos vieram relatar, indignados, que teve gente querendo trocar a merenda, um pão com salame, por voto", conta em meio a risadas. "Mas eles tinham aprendido o que era corrupção e que aquilo era errado."
Os alunos também aprenderam sobre orçamento, entrevistaram o prefeito de Timóteo e chegaram a fazer uma sessão simulada no plenário da câmara municipal. Enquanto buscava mais ideias de atividades, Karina descobriu o Plenarinho, uma iniciativa educacional da Câmara dos Deputados voltada às crianças.
"Vi que tinha um concurso nacional. As dez melhores redações de professores sobre tolerância dentro da escola eram selecionadas para levar os alunos ao Congresso Nacional, onde seriam deputados mirins por um dia", conta. O texto de Karina foi escolhido. Professora, alunos e pais foram para Brasília - depois de, com muito esforço, conseguirem juntar dinheiro para a viagem, já que a maioria não tinha recursos.
"Foi um impacto para toda a família. Muito interessante as crianças quando chegaram em Brasília e explicaram para os pais o que era o Congresso Nacional. No STF, uma das alunas com dez anos explicou para a mãe o que representava aquela estátua com os olhos vendados. Eles captaram todas as lições", conta a docente. "Eu não tive mais briga, bate-boca. Essa experiência deixou bem claro que é pelo conhecimento que evitamos a escalada de conflitos destrutivos."
*Texto publicado originalmente em BBC News Brasil. Título editado.
Revista online | Representatividade negra na política
Kennedy Vasconcelos Júnior*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Como pode um deputado ou deputada não-negros (brancos) entenderem as demandas dessa população se nunca sofrem discriminação ou racismo na pele? Para iniciar qualquer conversa sobre o tema “representatividade”, é essencial definirmos o conceito do termo de modo que possamos partir do mesmo ponto.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa e o Dicionário de Política, do filósofo e historiador Norberto Bobbio, a representatividade é a expressão dos interesses de um grupo (partido, classe, movimento, nação, etc.) na figura de um representante, de forma que aquele que fala em nome do coletivo o faz comprometido com as demandas e necessidades dos representados.
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Portanto, falar de representatividade revela o sentido político e ideológico por trás do termo. Mesmo que seja possível imaginar o sofrimento do outro, só podem alcançar a compreensão plena do que seja a opressão racial aqueles que sofrem diretamente a violência desse contexto. Qualquer coisa diferente disso é achismo.
A maneira mais reveladora de se enxergar a falta de representatividade negra é nos números: Além de o Brasil ser o maior país em concentração de negros fora do continente africano, temos 125 deputados autodeclarados negros – soma de pardos e pretos, segundo critério do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – de um total de 513 parlamentares na Câmara dos Deputados, o que representa 24,36% da assembleia da Casa.
Mesmo que pessoas negras constituam a maioria da população brasileira (cerca de 56%, de acordo com dados do censo do IBGE de 2018), a representatividade desse grupo está muito aquém da necessária, e isso não é um acidente. O racismo estrutural é fruto do caráter exploratório e excludente da colonização, bem como da desigualdade social que afeta majoritariamente negros e pardos no Brasil.
Veja, abaixo, galeria de imagens:
Jovens negros continuam sendo as principais vítimas da violência no Brasil, o que é facilmente constatado pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. De acordo com a pesquisa, pessoas negras foram 76,2% das vítimas de mortes violentas intencionais. No mesmo ano, representaram 78,9% das vítimas de intervenções policiais. Além disso, 62,7% dos policiais assassinados eram negros.
Nada disso decorre de crimes diretamente caracterizados por ódio racial. No entanto, fazem parte de uma lógica histórica mais profunda, entranhada não só nas percepções individuais e no funcionamento das políticas públicas e das instituições.
Tudo isso, atrelado à falta de perspectivas e oportunidades, justifica a urgência da necessidade de falarmos sobre representatividade negra e diversidade, além da garantia de direitos fundamentais para que a vida de nossas crianças se desenvolva de forma segura, saudável e promissora, por meio de políticas compatíveis com as necessidades de um mundo real, partindo do entendimento de que nossa sociedade é múltipla e diversa. Aceitar e se aliar a essa pauta é uma oportunidade de reforçar o nosso desenvolvimento individual como seres humanos e como sociedade.
A “violência simbólica" é o subproduto das relações de poder, trazendo à margem tudo que foge do padrão eurocêntrico preestabelecido desde as colonizações. O sociólogo francês Pierre Bourdieu define violência simbólica como um conceito social elaborado, o qual aborda uma forma de violência sem coação física, causando danos morais e psicológicos, muitas vezes sutis, e que estão arraigados na estrutura social.
A única forma de combater o racismo estrutural nas instituições é por meio do despertar da consciência da comunidade negra, que precisa se reconhecer como tal e, assim, se empoderar da armadura ancestral de lutas, sacrifícios e vitórias. Os brancos precisam reconhecer seus privilégios e entender que é preciso microevoluções para grandes revoluções. Tudo isso é crucial para este momento de ameaça democrática. É preciso confiar nas instituições e no processo eleitoral e respeitar a luta de muitos que se foram para respirarmos liberdade e escolha.
Doze das 24 legendas com representação na Câmara dos Deputados não têm qualquer instância para debater igualdade racial ou sua organização política, o que fere profundamente a representatividade racial no Brasil, pois dificulta ainda mais que negros e negras disputem eleições no país.
A Comissão de Igualdade Racial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou neste mês de agosto de 2022 um relatório de financiamento de campanha eleitorais para impulsionar campanhas de pessoas negras por meio do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o Fundo Partidário, atribuindo a responsabilidade de empregar os recursos aos candidatos negros, aos órgãos geridos pela base nacional de cada partido, que também será responsável por fixar os critérios internos para o recebimento pelos candidatos, assim como sua prestação de contas ao TSE.
Esses recursos deverão ser solicitados à base nacional do partido através de uma carta de autodeclaração racial. É importante fiscalizar o destino do dinheiro e se atentar a autodeclarantes que não possuem características negras.
A mensagem final que deixo é sobre o aquilombamento, um conceito muito bem abordado por Abdias do Nascimento, político brasileiro, poeta, artista e ativista do direito negro. A perspectiva do aquilombamento vem trazendo uma nova modalidade para a luta negra no Brasil, um lugar seguro de compartilhamento e fortalecimento. É um espaço de conexão e acolhimento com amor.
Uma das maiores características dos quilombos é a união do povo. É preciso um espírito evoluído para olhar integralmente para as questões humanas e saber que a construção de um mundo melhor faz parte de nós. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.
Sobre o autor
*Kennedy Vasconcelos Júnior é coordenador do Igualdade23 de Minas Gerais. Primeiro Secretário na empresa Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora - Concult-JF.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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