Day: julho 12, 2022
Revista online | 10 anos do Código Florestal: retrocessos e pouco a comemorar
Raul Valle*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
“Agora temos a lei ambiental mais rigorosa do mundo”, bradou o então deputado federal Paulo Piau (MG) sobre o novo Código Florestal que acabava de ser aprovado pelo Congresso Nacional – com seu voto e atuação proativa. Para a senadora Kátia Abreu (TO), outra fervorosa defensora da nova lei, ao contrário do que as ONGs diziam, o desmatamento ilegal iria cair “drasticamente” nos anos seguintes com a aprovação do novo texto, não havendo, portanto, porque temê-lo.
No último dia 25 de maio completou-se 10 anos da aprovação do novo Código Florestal (Lei Federal 12651/12). Em 2021, o desmatamento na Amazônia foi 200% superior ao do ano anterior ao da aprovação da lei. Mesmo na Mata Atlântica, que havia atingido o estágio de quase “desmatamento zero”, este atingiu patamares maiores do que antes da aprovação da nova lei. No Mato Grosso, capital do agronegócio, o desmatamento não apenas aumentou, mas continuou ilegal: 92% do desmatado até 2019 não tinha qualquer tipo de autorização, embora a quase totalidade dos imóveis rurais já esteja dentro do Cadastro Ambiental Rural – CAR. A promessa vendida à sociedade à época da aprovação da lei era de que, em troca das muitas anistias concedidas aos produtores rurais, estes iriam a partir de então parar de desmatar e começar a restaurar os seus passivos remanescentes, pois ao entrar no CAR seriam vigiados de perto pelos órgãos ambientais, que poderiam enviar as multas “pelo correio” caso verificassem qualquer desmatamento ilegal. Ledo engano.
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Fruto de um longo embate dentro do Congresso Nacional, o qual opôs representantes do agronegócio, de um lado, e ambientalistas, cientistas e pequenos agricultores de outro, a lei foi a primeira vitória maiúscula que a então crescente bancada ruralista obteve na sua guerra contra o que, em sua visão, conformava o “eixo do mal”: as regras de proteção ao ambiente, de reconhecimento de terras indígenas e de garantia de direitos trabalhistas. Até então, desde a redemocratização, o setor havia acumulado apenas “derrotas”, com a aprovação de leis ambientais mais rigorosas, que impunham limites ao uso de recursos naturais em propriedades privadas e aprimoravam a forma de punir o descumprimento das regras estabelecidas. Foi após a aprovação do Decreto Federal 6514, em 2008, que o setor resolveu dar um basta e pressionar por uma mudança na lei, que datava de 1965. Até então era simples descumprir as regras estabelecidas. O decreto, no entanto, fechou lacunas jurídicas há muito usadas e tornou real a possibilidade de que a lei teria que ser cumprida. Confrontado com essa perspectiva, o setor resolveu que era melhor mudar a lei do que se esforçar para cumpri-la.
Confira, a seguir, galeria de fotos:
O balanço de 10 anos da aprovação da lei não é bom. Embora a maior parte dos imóveis rurais já estejam inscritos no CAR – em alguns estados os números superam os 100%, dentre outras razões porque houve fracionamento artificial de imóveis para aproveitar o máximo as benesses da lei, maiores para pequenas propriedades – é ínfima a quantia dos que foram efetivamente analisados para saber se há passivos e obter do proprietário o compromisso de recupera-los. No Pará, apenas 0,1% chegaram nessa etapa e na maioria dos estados o número é ainda menor. A honrosa exceção é o Espírito Santo, que tem o mais robusto programa de apoio à restauração florestal do país e mais de 70% dos imóveis já analisados.
Quando a lei foi aprovada muitos elogiaram seu suposto equilíbrio. Por não ter agradado nem os ambientalistas, que viam com horror regras que dispensavam a recuperação de 21 milhões de hectares de florestas, nem os representantes do agronegócio, que gostariam de eliminar totalmente qualquer restrição legal ao desmatamento, vendeu-se a ideia de que ela seria justa. Se efetivamente o setor agropecuário tivesse se engajado em sua implementação, cumprindo com a promessa de que dali pra frente a coisa seria diferente, ou seja, que mesmo menos protetiva a lei finalmente sairia do papel, talvez pudéssemos concordar com essa análise.
O que vemos, no entanto, é que a aprovação do novo Código Florestal foi a abertura de uma caixa de pandora. Ao conseguir uma vitória tão maiúscula, o setor agropecuário descobriu que podia fazer muito mais. De alguma forma, normalizou-se a lógica de que, com poder, é melhor mudar a lei que impõe alguma restrição do que cumpri-la. Disso resultaram muitos outros projetos de lei que avançam rapidamente no Congresso Nacional para anistiar grileiros e permitir mais desmatamento. Como podemos perceber, isso tem feito muito mal não apenas ao meio ambiente no país, mas à própria qualidade de nossa democracia.
Sobre o autor
*Raul Valle é advogado, mestre em Direito Econômico e coordenador de incidência política do WWF Brasil.
* Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho/2022 (45ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Nas entrelinhas: Conceito de “inimigo objetivo” estimula a violência política
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O marco de afirmação dos Direitos Humanos foi a Declaração de 1948, da Organização das Nações Unidas (ONU). Inspirada na declaração francesa de 1789 e na declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é fruto do trauma provocado pela Segunda Guerra Mundial, principalmente pelo genocídio nazista. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito”, proclama o primeiro artigo da Declaração, que enumera em 30 pontos os direitos humanos, civis, econômicos, sociais e culturais inalienáveis e indivisíveis. O texto foi aprovado em Assembleia da ONU presidida pelo brasileiro Osvaldo Aranha.
A globalização desses direitos parte da ideia de que sua violação em qualquer lugar repercutiria nos demais. A Convenção da ONU de 1965 para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, são exemplos desse entendimento. A origem dessa compreensão é a violência nazista. A “racionalidade” no campo de concentração em Auschwitz, na Polônia, levou à discussão do tema do mal sob dois aspectos: o mal ativo, infligido pela violência prepotente e sem limites do poder, e o mal passivo, sofrido por aqueles que padecem uma pena sem culpa, no qual se enquadram os preconceitos de gênero e o racismo.
O genocídio foi o maior delito até agora perpetrado por homens contra outros homens. Entre o horror da guerra e o horror do genocídio existe uma diferença de natureza: a guerra pode conduzir ao extermínio, mas o seu fim é a vitória, não o extermínio. No genocídio organizado e premeditado, o extermínio foi o fim em si mesmo. Nas suas reflexões sobre o julgamento do criminoso nazista Adof Eichmann, em Jerusalém, Hannah Arendt mostrou que o conceito de “inimigo objetivo” alimentou esse fim: “o ódio racional, o ódio voltado não contra esta ou aquela pessoa, mas contra um genus e, portanto, contra todos aqueles que pertencem àquele genus independentemente do fato de nos terem trazido algum dano”.
Segundo Arendt, “não existe uma culpa coletiva. A culpa coletiva, admitindo que seja lícito usar essa expressão, é sempre uma soma, grande ou pequena, de responsabilidades individuais”. Já a responsabilidade coletiva tem outra característica: é política e envolve uma preocupação que não é com o próprio ser, mas com o mundo. Chegamos ao ponto que nos interessa, no caso do petista assassinado na sua festa de aniversário por um bolsonarista. Aconteceu em Foz do Iguaçu (PR), mas poderia ser em qualquer outro lugar do país onde houvesse homens armados, mesmo que policiais, supostamente treinados para empregar o uso proporcional da força no exercício da segurança pública e em defesa dos direitos humanos.
Armas de fogo
O conceito de “inimigo objetivo” alimenta a violência política. A narrativa dos grupos de extrema-direita bolsonaristas, cujo ódio aos petistas é generalizado, não é contra uma pessoa, mas contra todos os adversários. Mesmo quem é um liberal que discorde do governo é tratado como inimigo nas redes sociais. A narrativa política do presidente Jair Bolsonaro disseminou o conceito entre seus apoiadores. O caso de Foz do Iguaçu é um evento gravíssimo, porque mostra a ultrapassagem de uma guerra virtual nas redes sociais para um contexto de confrontos físicos.
Isso já estava sendo observado em manifestações e comícios, porém era inimaginável numa festa de aniversário, que reunia familiares e amigos. A radicalização política de indivíduos armados, que estão se mobilizando para a luta política por meios truculentos, é um fato perturbador do processo eleitoral e uma ameaça ao Estado de Direito democrático. A Constituição de 1988 se fundamenta nos direitos humanos. O estímulo generalizado ao porte de armas e à justiça pelas próprias mãos, quando parte do Presidente da República, transforma a violência em política de Estado. A expressão material dessa política está no aumento vertiginoso de armas em poder da população.
Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública registra 1.490.323 armas de fogo com cadastro no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), um crescimento de 21% dos índices de 2021 em relação a 2020, que tinha 1.233.745 unidades. Desse total, 243.806 armas estão no Distrito Federal, que lidera como a unidade federativa com o maior número de registros. São Paulo registrou 50 mil armas de fogo a menos, com uma população 15 vezes maior. Em 2017, o DF tinha 35.693 armas particulares. O crescimento do número de registros de armas de fogo no DF foi de 583%. Nenhuma outra unidade federativa cresceu mais. Estamos falando da capital do país, não dos grotões.
O engajamento de indivíduos armados nas disputas políticas precisa ser desencorajado. Se essa iniciativa não parte do governo federal, como deveria, a sociedade deve reagir. Aliás, já está reagindo.
Artigo: A economia política do deficit
Benito Salomão, Correio Braziliense*
Em função dos efeitos perniciosos da inflação sobre a renda das famílias e da proximidade com o primeiro turno das eleições, o governo encaminhou e o Congresso avalizou mais um pacote fiscal que contém "bondades". A PEC 16/2022, aprovada no Senado e em revisão na Câmara dos Deputados, prevê transferências de renda para setores da sociedade que, somadas, podem custar mais de R$ 40 bilhões aos cofres públicos. A medida abre uma prerrogativa perigosa de extrapolar regras fiscais e eleitorais motivada pelos objetivos eleitorais do governante de plantão.
A criação de benefício em ano eleitoral afronta a legislação eleitoral que veda tal comportamento. Isso porque expansões fiscais em períodos próximos das eleições causam assimetrias de forças entre situação e oposição em um pleito eleitoral. Buchanan e Wagner, no clássico livro de 1977 Democracy in Déficit: The Legacy Economic of the Lord Keynes, chamam a atenção para esse fenômeno. Os autores sustentam que deficits públicos apresentam seus benefícios (como elevação nos níveis de emprego e renda) a curto prazo, porém seus custos ocorrem mais a longo prazo e, portanto, quando contratados às vésperas de eleições, desequilibram as forças do jogo democrático.
Entre os custos dos deficits fiscais, Dornbush e Edward (1990) listam no clássico ensaio Macroeconomic populism alguns desequilíbrios macroeconômicos como deficits externos; volatilidade na taxa de câmbio; inflação e expansão de juros no curto e longo prazo.
Entretanto os custos não param por aí, deficits fiscais levam à ampliação a posteriori do tamanho dos governos. Retornando à literatura clássica, Adolph Wagner (1890) estilizou uma tendência das democracias contemporâneas de absorverem demandas sociais em seus orçamentos. Portanto, o orçamento do governo tende a crescer acima da renda nacional, o que ficaria consagrado na literatura como Lei de Wagner.
Décadas mais tarde, Peacock e Wiseman (1961) retornam ao tema e após ampla análise da política fiscal no Reino Unido e concluem que o tamanho do governo está relacionado com a dinâmica do gasto público. Em outras palavras, na visão destes autores, é o lado das despesas que causa uma ampliação do tamanho dos governos pelo lado dos impostos. Surge assim a taxonomia Spend-Tax.
Já em 1978, Milton Friedman retorna ao tema e atesta, em um ensaio que discutia regras fiscais na economia estadunidense, que o governo só poderia gastar recursos tributários disponíveis. E que, na ausência de disponibilidade de recursos tributários que permitissem a ampliação de despesas, por mais meritórias que pudessem parecer, seria preciso "starve the beast", que, em tradução livre, significa "deixar que a fera morra de fome". Surge, com isso, a clássica taxonomia Tax-Spend.
A economia brasileira é, segundo a evidência empírica disponível, enquadrada na taxonomia Spend-Tax. Isso está relacionado com o quadro normativo da política fiscal cujo crescimento inercial das despesas públicas, somado às restrições quanto a cortes de despesas, pressiona a longo prazo o crescimento da carga tributária.
Em ensaio recente, aceito para publicação no periódico argentino Estúdios Econômicos, eu e o professor Cleomar Gomes do (PPGE-UFU) buscamos enquadrar a política fiscal brasileira em uma das taxonomias supracitadas. Nossos resultados a partir de estimações de modelos não lineares, sugerem que a economia brasileira é Spend-Tax para a relação entre receitas tributárias; despesas primárias totais e despesas primárias obrigatórias. Porém, pode ser considerada como Tax-Spend no caso da relação entre receitas e despesas discricionárias, dentre as quais, o investimento público.
As conclusões do nosso ensaio mostram que o cenário fiscal brasileiro é bastante pernicioso. Isso porque as despesas obrigatórias pressionam, a longo prazo, as despesas primárias totais e as receitas tributárias. Entretanto, as despesas discricionárias dependem do crescimento de receitas para poderem também crescer. Essas rubricas de despesas são fundamentais para acelerar a trajetória de crescimento da economia brasileira, pois contemplam investimentos públicos e transferências diretas às famílias de baixa renda com elevada propensão a consumir. Utilizando a terminologia técnica, as despesas discricionárias têm elevado efeito multiplicador.
A chamada PEC Kamikaze agrava ainda mais essa situação, rompe as regras fiscais e eleitorais brasileiras, exacerbando incertezas. Também produzirá a médio prazo um aumento da carga tributária e uma limitação do investimento público tão necessário para que o país cresça.
*Texto publicado originalmente publico no Correio Braziliense