Day: maio 17, 2022
Garimpeiro ilegal mostra fugas e dribles à fiscalização em terra yanomami
João Fellet, BBC News Brasil*
"É três 'blackhawkzão', três!", prossegue o narrador, referindo-se ao modelo da aeronave militar. "Todo mundo, vamos se esconder, agora o bicho pega", ele diz.
Cenas como essa, que mostram garimpeiros fugindo de forças de segurança, são comuns num canal no YouTube criado por um garimpeiro que atua ilegalmente dentro do território yanomami, em Roraima.
Os vídeos do canal, 120 ao todo, foram postados nos últimos três anos, período de forte crescimento da mineração ilegal em terras indígenas, apesar de operações policiais pontuais.
No território yanomami, onde se estima que haja até 20 mil garimpeiros, a atividade ganhou visibilidade nas últimas semanas após denúncias de violência sexual contra mulheres e meninas indígenas.
O garimpo também está associado à presença de facções criminosas no território e à contaminação de indígenas por mercúrio (leia mais abaixo).
Rotina do garimpo
Os vídeos do canal "Fabio garimpo Junior" mostram garimpeiros à vontade diante das câmeras durante seus trabalhos, ainda que garimpar em terras indígenas seja crime passível de prisão.
Sem esconder o rosto, eles discursam em defesa do garimpo e criticam a repressão à atividade, muitas vezes ecoando posições do presidente Jair Bolsonaro.
Os vídeos mostram ainda como o garimpo na terra yanomami ganhou uma escala industrial nos últimos anos.
As gravações mostram helicópteros e aviões privados transportando os garimpeiros até as minas ilegais (não há acesso terrestre ao território).
Nos garimpos, máquinas pesadas abrem grandes clareiras na Floresta Amazônica e rios são desviados na busca por ouro e cassiterita. Alguns acampamentos parecem minicidades, com eletricidade e internet.
Segundo a Hutukara Associação Yanomami, a área desmatada por garimpeiros dentro do território indígena cresceu 46% em 2021 em comparação com o ano anterior.
A atividade, porém, implica sérios riscos para os garimpeiros. Dois vídeos mostram helicópteros a serviço do garimpo em destroços após caírem na floresta.
Outras filmagens mostram manobras arriscadas de barcos com garimpeiros subindo corredeiras, helicópteros descendo em pequenas clareiras e aviões pousando sob forte chuva.
As cenas são exaltadas no canal como exemplos da coragem e perícia dos envolvidos.
Perseguições com tiros
A rotina nos garimpos no território yanomami também abarca perseguições com tiros.
Um vídeo publicado em janeiro de 2020 tem como título "Piloto no garimpo do Uraricoera tenta fugir do Exército brasileiro".
As imagens mostram um piloto que navegava em alta velocidade enquanto era perseguido por um barco com quatro soldados no Uraricoera, principal rio do território yanomami.
Após quatro disparos, um homem na margem do rio grita: "Pegou, pegou". Ouvem-se então outros dois tiros, mas o vídeo termina sem que seja possível ver se o piloto foi realmente atingido nem qual foi o desfecho da perseguição.
Outra versão dessa cena, publicada em fevereiro de 2022, envolveu um carro da Polícia Militar de Roraima que perseguia em alta velocidade um pequeno avião num aeroporto não identificado.
Segundos após a decolagem, ouve-se um disparo, mas a aeronave prossegue o voo, aparentemente ilesa.
Garimpeiro youtuber
O canal no YouTube que exibe os vídeos existe desde janeiro de 2018 e tem 324 inscritos. A última gravação foi publicada em 28 de abril de 2022.
Em vídeo de agosto de 2021, o dono do canal se apresenta como Fábio Júnior Rodrigues Faria e se define como garimpeiro, mas diz ter a ambição de viver como youtuber.
"Se um dia futuramente der, vou viver disso, mostrando a realidade do garimpo, mostrando a dificuldade que os garimpeiros passam", ele afirma no vídeo.
Faria aparece em vários vídeos num dos maiores garimpos no território yanomami, conhecido como garimpo do capixaba. O local foi alvo de sucessivas operações nas últimas décadas - a última delas, em março de 2021, quando o Exército destruiu uma pista de pouso usada por garimpeiros.
Mas as operações não foram capazes de paralisar os trabalhos. Os vídeos mostram que, assim que as forças de segurança deixam os acampamentos, os garimpeiros saem dos esconderijos nas matas para retomar as atividades.
Ao se esconder, costumam levar consigo o ouro extraído e motores que usam para garimpar. Os equipamentos que ficam para trás costumam ser queimados pelos agentes.
Um vídeo de outubro de 2021 mostra uma distribuição gratuita de cerveja a garimpeiros logo após forças de segurança deixarem um acampamento, quando parte do local ainda estava em chamas.
"Pode pegar que tá liberado", diz um homem, ele próprio com duas latas na mão. "Aqui é por conta da (Polícia) Federal", ironiza.
Outras gravações mostram acampamentos de garimpeiros em outras áreas do território yanomami, como nos rios Catrimani e Uraricoera.
Procurado por meio de seu canal no YouTube, Faria não respondeu as perguntas da BBC.
Na última tentativa de contato, na última quarta-feira (11/05), a BBC postou no canal uma mensagem questionando se Faria estava ciente das penas para o garimpo ilegal em terras indígenas.
No dia seguinte, porém, a mensagem tinha sido deletada.
Problema histórico
Com área equivalente à de Portugal, a Terra Indígena Yanomami abriga cerca de 27 mil membros dos povos yanomami e ye'kwana, que vivem em 331 aldeias.
O território ocupa porções do Amazonas e de Roraima e se estende por boa parte da fronteira do Brasil com a Venezuela. A região é alvo de garimpeiros desde ao menos a década de 1980.
A atividade viveu um declínio com a demarcação da terra indígena, em 1992, mas voltou a crescer nos últimos anos.
Eleitor de Bolsonaro
No vídeo em que se apresenta, Faria se declara eleitor do presidente Jair Bolsonaro. "Em 2022, é Bolsonaro na cabeça, vai arrebentar de novo", afirma.
Em outro vídeo, quando se escondia na mata durante uma operação policial, o garimpeiro critica as forças de segurança e torce para que o presidente tome providências. "Espero que nosso presidente Bolsonaro veja isso", afirma.
Em várias ocasiões, Bolsonaro defendeu a aprovação de um projeto de lei - atualmente em debate no Congresso - que regulamentaria a mineração em terras indígenas.
O presidente também costuma criticar órgãos de fiscalização ambiental e afirmar que garimpeiros "não são bandidos", mas sim trabalhadores em busca de melhores condições de vida.
Discurso semelhante é ecoado pela categoria. Nos vídeos do canal, Faria e colegas dizem que os garimpeiros são perseguidos injustamente.
"Muita gente crucifica o garimpeiro, (diz) que o garimpeiro é sem vergonha, mas em nenhum momento você vê que a Bíblia condena o garimpo", diz Faria.
"Pelo contrário, Deus ama o ouro e deixou isso aqui que é pra tirar mesmo", defende.
A BBC questionou a Presidência da República sobre o conteúdo do canal e as menções dos garimpeiros a Bolsonaro, mas não houve resposta.
Interação com indígenas
Embora os vídeos tenham sido gravados dentro do território yanomami, são raros os momentos em que indígenas aparecem nas gravações.
Numa dessas ocasiões, Faria e colegas se depararam com uma mulher e três crianças yanomami enquanto atravessavam um riacho numa pinguela.
"Ó os índios da tribo aí", disse o garimpeiro. "Uma fome, miséria", afirmou.
Os indígenas aguardavam a travessia dos garimpeiros, esperando por sua vez para cruzar o rio.
Bem mais comuns que os encontros são as menções a indígenas nos discursos de Faria.
No vídeo em que se apresenta, o garimpeiro se refere aos indígenas como "uma raça de gente imunda" e os acusa de "roubar" os garimpeiros.
"É uma raça de gente que não merece você nem dar um prato de comida para eles", afirma. "São bandidos".
Um líder indígena yanomami ouvido pela BBC comentou a declaração.
"A população indígena yanomami não é bandida, não estamos colocando em risco a vida de ninguém, não estamos invadindo a terra de ninguém. Quem está invadindo são os garimpeiros", afirmou o indígena, que preferiu não ter o nome revelado por motivos de segurança.
Ele afirmou ainda que a existência do canal mostra que os garimpeiros "não têm medo de ninguém".
"Eles não têm medo da PF (Polícia Federal), não têm medo de mostrar os rostos. Eles sabem que não vão responder absolutamente (por crimes), que não vão ser presos", diz o indígena.
Questionado pela BBC, o YouTube disse que "conteúdos que incentivem a violência ou ódio contra pessoas" com base em características como etnia ou religião não são permitidos na plataforma, mas não comentou a exposição de cenas de garimpo ilegal no canal.
"Quando não há violação à política de uso do YouTube, a análise final sobre a remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet", afirmou a empresa.
O YouTube disse ainda que o canal do garimpeiro está "sob análise".
Penas para o garimpo ilegal
A Constituição de 1988 determina que a exploração mineral em terras indígenas só pode ocorrer se for regulamentada por leis específicas. Como as leis jamais foram aprovadas, a atividade é ilegal.
A exceção é quando o garimpo é realizado pelas próprias comunidades indígenas, em escala artesanal.
Segundo a Lei 9.605/98, extrair recursos minerais sem autorização é crime com pena de seis meses a um ano de prisão, além de multa. Como terras indígenas pertencem à União, garimpar nessas áreas também pode ser enquadrado como crime contra o patrimônio da União (lei 8.176/91), com pena de um a cinco anos de prisão e multa.
Porém, mesmo quando condenados na Justiça, garimpeiros raramente cumprem pena na cadeia.
Em audiência no Senado em abril, o procurador da República Alisson Marugal, que atua no combate ao garimpo no território yanomami, disse que as condenações de garimpeiros não costumam ultrapassar 4 anos de prisão e são normalmente substituídas pela prestação de serviços.
Segundo Marugal, hoje o Ministério Público Federal tem como foco investigar o garimpo enquanto organização criminosa que promove lavagem de dinheiro, crimes que geram penas maiores para os líderes dos grupos.
O procurador citou denúncias de que o "narcogarimpo" esteja presente no território yanomami, conforme facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) passam a se envolver com a atividade.
Para coibir os crimes na região, o procurador cobrou o fortalecimento da fiscalização, o bloqueio dos rios usados por garimpeiros e um maior controle da cadeia de venda e processamento do ouro.
Outro impacto do garimpo ilegal no território se dá pela contaminação de indígenas por mercúrio, usado pelos garimpeiros para aglutinar o ouro.
Em 2016, um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Fiocruz e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que 92% dos moradores de uma aldeia yanomami vizinha a uma frente de garimpo tinham altos níveis de mercúrio no sangue.
Acusações contra o Exército
O Exército também é alvo de acusações constantes nos vídeos dos garimpeiros.
"O governo manda o Exército aqui para dentro, e o Exército, quando vem, vem morrendo de fome", afirmou Faria num vídeo publicado em junho de 2019.
"Eles não querem tirar os garimpeiros, eles querem roubar o que o garimpeiro tem. Eles roubam celular, comida, qualquer coisa que beneficie eles", disse.
Contatado pela BBC desde a última terça-feira (10/05), o Exército não se posicionou sobre as acusações nem sobre os demais conteúdos do canal.
A corporação não tem como atribuição principal combater crimes ambientais, embora costume dar apoio logístico a operações em terras indígenas na Amazônia.
Desde 2019, porém, vários decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) determinados pelo presidente Jair Bolsonaro deram às Forças Armadas o papel de coordenar o combate ao garimpo ilegal nesses territórios.
A estratégia foi abandonada em outubro de 2021, decisão que analistas atribuem a seus fracos resultados e aos altos custos das operações lideradas pelos militares.
Desde então, o Ministério da Justiça (MJ) passou a coordenar a ação da Polícia Federal, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) no combate ao garimpo em terras indígenas.
Sob a coordenação do MJ, o ritmo das operações no território yanomami diminuiu.
Diretor-adjunto da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), o agente ambiental Wallace Lopes afirmou em 9 de maio no Twitter que o Ibama não é convocado a atuar na Terra Indígena Yanomami desde dezembro de 2021.
"Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade", afirmou.
A BBC questionou o Ministério da Justiça sobre os vídeos dos garimpeiros e o crescimento da atividade na terra yanomami.
Em nota, o órgão afirmou que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça está finalizando "um novo calendário de ações operacionais" no território.
"Tão logo esteja pronto poderá ser apresentado à mídia e à sociedade", disse o ministério.
Questionada se tinha conhecimento do canal no YouTube, a Polícia Federal disse que "não comenta eventuais investigações em andamento".
A corporação disse ainda que realizou 31 operações policiais contra crimes ambientais em terras indígenas em Roraima em 2021, e que há mais de 200 procedimentos investigativos em andamento, com mais de 170 indiciados por crimes ligados ao garimpo ilegal.
A Funai disse em nota que mantém bases para coibir crimes e controlar o acesso ao território yanomami.
"Cabe lembrar que a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é um problema crônico, sendo que a atual gestão da Funai tem trabalhado firmemente para resolvê-lo, bem como outros problemas que são fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira que, no passado, era guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não-governamentais", afirmou a fundação.
Em entrevista à Jovem Pan News em 12 de abril, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, disse que o garimpo no território yanomami "tem duas vítimas: tanto o indígena quanto o garimpeiro".
Ele defendeu a aprovação de uma lei para regulamentar a atividade "para trazer transparência ao processo e, quem sabe, garantir uma solução de vida mais digna para esses indígenas".
*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil (Título editado)
Eleições 2022: o papel e as polêmicas dos militares na votação para a Presidência
Leandro Prazeres, BBC News Brasil*
O tema voltou a ser discutido, principalmente, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e acusá-lo de recusar sugestões feitas pelo Exército sobre o funcionamento do sistema eleitoral.
Em uma live, Bolsonaro chegou a afirmar que as Forças Armadas não se limitariam a "participar como espectadoras" das eleições deste ano.
Mas afinal: qual é o papel definido, até agora, para as Forças Armadas durante as eleições deste ano? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, apesar das afirmações do presidente, o papel dos militares nas eleições deverá se limitar ao transporte de urnas eletrônicas para locais de difícil acesso, garantir a segurança da votação em municípios onde haja possibilidade de conflitos e participar do processo de fiscalização do processo eleitoral.
Os especialistas, no entanto, são unânimes: não cabe às Forças Armadas o papel de "revisora" das eleições.
Forças Armadas x TSE
A tensão em torno de qual o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas neste ano começou há pelo menos um ano quando o presidente Bolsonaro e alguns de seus aliados intensificaram suas críticas ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, Bolsonaro levantou dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas.
Alegando supostas falhas no sistema de urnas eletrônicas, Bolsonaro defendeu a implantação de um sistema de contabilização de votos impresso, em que os números digitados por cada eleitor nas urnas sejam impressos e depositados em uma urna de acrílico como forma de garantir segurança em caso de acusações de fraude.
Em julho, o então ministro da Defesa e atualmente cotado para ser vice na chapa de Bolsonaro, general Braga Netto, defendeu o debate sobre o chamado voto impresso e disse que a discussão era "legítima".
Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas ela não obteve os votos necessários e foi derrotada, em agosto de 2021.
Todo esse debate se acentuou ao mesmo tempo em que as principais pesquisas de intenção de voto passaram a mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a frente de Bolsonaro na disputa pela Presidência da República.
Logo após a derrota da PEC do voto impresso, os militares voltaram à cena. Eles foram convidados pelo TSE para fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), criada em setembro de 2021 pelo então presidente do tribunal, Luiz Roberto Barroso.
A comissão tinha o objetivo de receber sugestões de diversas entidades da sociedade para ampliar a segurança do processo eleitoral. Entre os órgãos convidados estavam a Polícia Federal e as Forças Armadas.
E é justamente a participação dos militares nessa comissão que deu ainda mais munição para o debate sobre a atuação das Forças Armadas durante as eleições.
Isso porque os militares enviaram um conjunto de 88 questões ao TSE sobre quais medidas seriam tomadas diante de supostas fragilidades no sistema encontradas por eles.
A lista de perguntas feitas pelos militares é dividida em cinco grandes grupos: dúvidas sobre o teste de integridade das urnas eletrônicas; nível de confiança nos sistemas de votação e apuração dos votos; solicitação de documentos, listas, relatórios e informações sobre as políticas do TSE; funcionamento das urnas; e propostas de aperfeiçoamento da transparência do tribunal.
Em suas respostas, o TSE voltou a defender que o sistema eleitoral do país é seguro e rejeitou a maior parte das propostas feitas pelos militares.
Analistas avaliam que as perguntas feitas pelo Exército desconsideram o histórico de segurança apresentado pelas urnas eletrônicas, em uso desde 1996, e incorporam elementos do discurso de Bolsonaro que coloca em xeque o sistema eleitoral.
A temperatura ficou ainda mais alta depois que o ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Roberto Barroso, disse que as Forças Armadas estariam sendo "orientadas" a atacar o processo eleitoral.
"Desde 1996 não tem nenhum episódio de fraude. Eleições totalmente limpas, seguras. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar. Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo", afirmou Barroso.
Em resposta, o Ministério da Defesa rechaçou a declaração do ministro e a classificou como "irresponsável".
E em meio a esse cenário, Bolsonaro voltou a levantar dúvidas sobre a segurança das eleições.
Em um evento no dia 27 de abril, ele chegou a dizer que os militares teriam sugerido uma apuração paralela dos votos feita pelas Forças Armadas.
Para isso, segundo ele, bastaria a instalação de um "cabo" para que os dados da votação fossem enviados a um computador dos militares.
"Uma das sugestões é que, [com] esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores, seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil", disse.
Na semana seguinte, no dia 27 de abril, o presidente disse, em uma transmissão em suas redes sociais, que os militares não teriam um papel passivo durante as eleições.
"Convidaram as Forças Armadas. Repito, as Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadores do mesmo. Não vão fazer isso", disse.
Dois dias depois, o presidente do TSE, Edson Fachin, disse que não há "poder moderador" para intervir na Justiça Eleitoral.
"Não há poder moderador para intervir na Justiça Eleitoral", disse Fachin, em uma entrevista.
"Colaboração, cooperação e, portanto, parcerias proativas para aprimoramento, a Justiça Eleitoral está inteiramente à disposição. Intervenção, jamais.", afirmou o ministro.
Transporte, fiscalização e acesso a sala-cofre
O ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ayres Britto, que comandou o tribunal entre 2008 e 2010, disse à BBC News Brasil que, desde a redemocratização, o papel exercido pelas Forças Armadas nas eleições têm se resumido a transportar urnas para regiões de difícil acesso e garantir a segurança da votação em municípios ou localidades onde haja possibilidade de conflito.
O ex-ministro ressaltou que isso só acontece quando a Justiça Eleitoral requer a ação dos militares e que, neste ano, esse papel não deverá ser diferente. Ele diz ainda que não cabe aos militares o papel de "revisor" das eleições.
"Desde a volta da democracia, os militares só atuam nas eleições por determinação da Justiça Eleitoral. Em geral, a atuação deles se limita a distribuir urnas e garantir a segurança em alguns locais de votação sempre que solicitado", afirmou o ex-ministro.
Procurado pela BBC News Brasil, o TSE informou que, desde 2019, as Forças Armadas também estão habilitadas a atuar como fiscalizadoras do processo eleitoral.
Entre as instituições que podem exercer este papel estão os partidos políticos, polícia federal e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Segundo o TSE, as Forças Armadas podem participar de todas as fases do processo de fiscalização das eleições, inclusive da contabilização dos votos.
"Os integrantes da CTE (Comissão de Transparência Eleitoral) poderão participar de todas as etapas do processo eleitoral, inclusive com acesso à sala-cofre", disse o TSE em nota enviada à BBC News Brasil. Sala-cofre é onde são armazenadas cópias físicas dos programas que serão usados durante as eleições.
Ayres Britto, faz uma ressalva, porém. Segundo ele, os militares não podem atuar como "mentores" do processo eleitoral.
"As Forças Armadas não são um poder e nem um ministério. Elas não podem atuar como mentores do processo eleitoral, determinando o que pode ou não pode ser feito. Elas atuam apenas como colaboradores", diz o ex-ministro.
Outro ex-ministro do TSE e advogado especializado em direito eleitoral, Henrique Neves, diz que ainda que as Forças Armadas participem como fiscalizadoras das eleições e integrantes da comissão de transparência, o TSE não é obrigado a acatar as recomendações.
"As Forças Armadas não podem atuar como revisoras das eleições. Os militares podem fiscalizar e fazer parte da comissão de transparência, mas por lei, não há nada que obrigue o tribunal a acatar essas sugestões", disse o ex-ministro.
Preocupação e alerta
Para a pesquisadora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Carolina Botelho, as manifestações dos militares até o momento devem ser vistas como uma tentativa de intervenção no processo eleitoral.
Segundo ela, desde a redemocratização, em 1985, as Forças Armadas vinham atuando dentro de suas atribuições sem fazer interferências na esfera política.
Ela afirma, no entanto, que esse histórico muda em abril de 2018, quando o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas fez uma postagem no Twitter às vésperas do julgamento de uma ação sobre a prisão do ex-presidente Lula que foi interpretada por alguns analistas como uma ameaça aos ministros do STF.
Para a pesquisadora, o teor dos questionamentos sobre o funcionamento do sistema eleitoral feitos pelo Exército deve ser visto como uma "intervenção" dos militares no processo das eleições.
Ela ressalta, porém, que não é possível afirmar o tamanho do apoio que essa corrente tem dentro do meio militar.
"Esses questionamentos devem, sim, ser vistos como uma intervenção indevida dos militares no processo eleitoral. O que não sabemos, no entanto, é qual é a dimensão da parcela de militares envolvidos nessa tentativa de intervir. Há uma opacidade na instituição que nos impede de ver isso na sua totalidade", afirma Carolina Botelho.
Para o professor de Teoria Política da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Hesaú Rômulo, o grande número de militares na gestão do presidente Jair Bolsonaro torna mais difícil indicar onde termina o governo e onde começam as Forças Armadas.
Por conta dessa particularidade, ele avalia que o comportamento dos militares às vésperas das eleições deste ano é atípico.
"O simples fato de estarmos tendo esse tipo de debate mais de 30 anos depois da redemocratização mostra que a atuação dos militares nos últimos anos mudou. De certa forma, os militares tomaram pra si a função de revisores do processo eleitoral, ainda que isso não exista na nossa legislação", afirma o professor.
Na avaliação do ex-ministro Ayres Britto, porém, apesar do clima tenso, a atuação dos militares nas eleições deste ano não ultrapassou as regras institucionais.
"Até agora, as Forças Armadas têm atuado somente no campo da colaboração, inclusive enviando suas sugestões. Não avalio que houve avanço de nenhum sinal. Agora, se o presidente está fazendo uso político disso, isto é um outro problema", avalia o ex-ministro
*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil
Nas entrelinhas: Lembrai-vos de 1964! Não custa nada
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O título da coluna é um trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981. Antes, o general havia escrito duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos em 1977.
Àquela altura, a luta armada contra o regime militar havia sido dizimada, com seus lideres mortos, presos ou no exílio. O PCB estava quase completamente desbaratado e os remanescentes de seu Comitê Central, entre os quais Luiz Carlos Prestes e Giocondo Dias, viviam no exílio. Embora defendesse a via eleitoral como forma de luta principal pela redemocratização, um terço dos seus dirigentes fora assassinado e apenas meia dúzia permanecera no país, na mais profunda clandestinidade.
Entretanto, o que estava em curso era a abertura política, alargada e acelerada pelas sucessivas derrotas eleitorais do regime, cujo projeto de institucionalização como “democracia relativa” já havia fracassado. Batido nas eleições de 1974 e 1978, seria derrotado novamente em 1982, depois da anistia política que trouxera de volta os exilados e às ruas os prisioneiros políticos.
O general João Batista Figueiredo, cada vez mais enfraquecido na Presidência, era desafiado pelos porões do regime, em atentados terroristas cujo desfecho foi a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento e feriu um capitão do Exército ao seu lado. O artefato seria detonado no local onde se realizava um grande show artístico comemorativo do 1º de Maio, com milhares de estudantes e sindicalistas.
Ferdinando de Carvalho fez a cabeça de muitos militares hoje reformados e alguns jovens cadetes e oficiais que voltariam ao poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) — entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota, o hoje general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.
A matéria prima dos livros é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), responsável por apurar as atividades do PCB no território nacional, que coordenou. Muito do que os militares e a direita ideológica brasileira, hoje, falam sobre a esquerda no Brasil são uma reprodução de suas teses, lançadas no começo dos anos 1980 como uma tentativa desesperada de impedir a redemocratização do país.
Memória
Domingo, recebi uma ligação do ex-deputado Marcelo Cerqueira, um dos líderes da campanha pela anistia, preocupado com a conjuntura política: “Estou me sentindo em 1963”. Diretor da UNE à época, Marcelo viveu intensamente o processo político que antecedeu o golpe militar de 1964. Emoldurada pela guerra fria, a vitória de João Goulart no plebiscito para restabelecer o presidencialismo derivou para a radicalização, cujo desfecho foi a destituição do presidente da República.
O comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, no qual Jango anunciou a decretação das reformas de base — que o Congresso havia rejeitado —, serviu apenas para acirrar ainda mais a crise, que desaguaria na sua destituição, em 31 de março daquele ano, com três navios da Marinha norte-americana ao largo do Espírito Santo, prontos para intervir.
Marcelo e o então presidente da UNE, José Serra, hoje senador do PSDB por São Paulo, estavam entre aqueles que tentaram jogar água fria na fogueira, como San Thiago Dantas. Os líderes estudantis chegaram a procurar o marechal Castelo Branco, que até então dizia defender a legalidade, nos esforços de apaziguamento. Mas a rota de colisão entre os militares e Jango já era irreversível. E a maioria da opinião pública acreditava que o país caminhava para o comunismo, o que não era verdade.
O problema era outro. O principal líder do PTB, o partido de Jango, o ex-governador gaúcho e deputado federal Leonel Brizola, queria ser candidato a presidente nas eleições convocadas para 1965, mas era inelegível por ser cunhado do presidente da República. Os candidatos favoritos eram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN). JK era o candidato da conciliação, Lacerda o do confronto.
O líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de Jango, em aliança com o PTB, o que provocou a ruptura da aliança com o PSD, que levara Juscelino ao poder em 1955.
Jango era um estancieiro gaúcho, de viés populista, formado no trabalhismo de Alberto Pasqualini e San Thiago Dantas. Não tinha nada de comunista. Se decidisse apoiar JK, mantendo a aliança de 1955, muito provavelmente não teria ocorrido o golpe militar. Considerado imbatível, Juscelino era visto como um retrocesso pela esquerda, o que foi um grave equívoco. O retrocesso era o golpe militar.
Com sinal trocado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas para a Presidência, também é visto como um retrocesso por amplos setores da sociedade. Bolsonaro tenta se aproveitar da situação para se manter no poder, mesmo que perca a reeleição, com uma narrativa que nos remete ao ambiente pré-golpe militar de 1964, na percepção daqueles que viveram aqueles momentos. Entretanto, os tempos são outros.
Revista online | Conquistas e desafios na luta contra a LGBTfobia no Brasil
Mariana Valentim*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)
Em 1990, a homossexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa data histórica foi utilizada para que, em 2004, fosse criada uma campanha que culminou no primeiro dia internacional contra a homofobia, em 17 de maio de 2005.
A transfobia (violência e discriminação contra pessoas transgêneras) tornou-se parte da campanha, em 2009, depois de uma intensa movimentação com mais de 300 organizações não governamentais (ONGs) de 75 países, que culminou na retirada da transgeneridade da lista de doenças mentais na França. A bifobia (violência e discriminação contra pessoais bissexuais) entrou na campanha, em 2015.
No Brasil, nos últimos 20 anos, houve diversos avanços na luta de garantias de direitos fundamentais e proteções da população lésbica, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais (LGBTQIA+), como listadas a seguir:
O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2011, as uniões homoafetivas como entidades familiares, abrindo caminho a uma década de avanços para a população LGBTQIA+.
Sete anos depois, o STF confirmou entendimento que autoriza transexuais e transgêneros a alterarem o nome no registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual e a autorização de um juiz, podendo ser realizada diretamente no cartório.
Em 2018, depois de forte atuação do Cidadania, resolução do Ministério da Educação (MEC) foi homologada, autorizando o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares de educação básica. O nome social é aquele pelo qual as travestis, mulheres trans ou os homens trans optam por ser chamados, de acordo com sua identidade de gênero.
Em 2019, também após atuação do Cidadania, houve a criminalização da LGBTfobia, via STF, que equiparou o crime de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero ao de racismo.
Poderíamos citar outras Leis e resoluções que ampliaram as garantias e direitos da comunidade LGBTQIA+, mas os exemplos acima dão um panorama desses avanços e colocam o Brasil como um dos países com a legislação mais robusta no mundo ocidental.
Na teoria, nós somos um dos cinco primeiros países do mundo onde é melhor para se viver enquanto LGBT. Na prática, porém, sabemos que não é bem assim.
Mesmo com todo esse panorama, seguimos sendo um dos países que mais matam pessoas trans e travestis no mundo. Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), pelo menos 140 pessoas foram assassinadas, em 2021, o que corresponde a 38% dos assassinatos no mundo.
E, ainda, segundo o Observatório de Mortes e violências LGBTI+, só em 2021, foram 316 mortes de pessoas da comunidade. Representa um aumento de 33,33%, em comparação com o ano de 2020, quando morreram 217 pessoas.
Para muitos, há subnotificações nesses dados, e é algo mesmo a ser questionado, tendo em vista que não há dados oficiais.
Um dos grandes problemas para a nossa comunidade é justamente este: a falta de, digamos na “melhor” das hipóteses, boa vontade do governo nesses levantamentos que podem munir as políticas públicas para a comunidade LGBT.
Por que os dados oficiais são importantes? Porque não dá para combater algo que não podemos mensurar.
Com dados, podemos investir também na empregabilidade, que é um dos pontos mais preocupantes. Um LGBT precisa, como qualquer pessoa, ser inserido no mercado formal de trabalho e sair do subemprego que muitas vezes lhe resta.
Uma forma de fazer isso é incentivar a responsabilidade social das empresas. A capacitação não só dos empresários, mas de seus funcionários para que possam receber essas pessoas de forma inclusiva.
O que falta para muitos LGBT é uma oportunidade. E, para muitas pessoas heterossexuais cisgêneros, é a instrução no combate à LGBTfobia.
Chegamos ao ponto central deste artigo: Com todas essas conquistas civilizatórias dos últimos anos, qual o motivo de existir ainda tanta violência e repressão contra a comunidade LGBTQIA+?
Deve-se observar vários fatores para se chegar à resposta. Um deles é o crescente avanço da extrema direita mundial, grupos que historicamente sempre foram contra a diversidade e a pluralidade de gênero, raça, etnia e sexual.
Outro aspecto é o fortalecimento desses grupos no Brasil, com a eleição do presidente Bolsonaro, que legitima o discurso extremista de subjugamento e eliminação de direitos das minorias.
Tudo isso se soma à insegurança de termos nossas principais conquistas sendo garantidas, judicialmente, pelo STF.
No entanto, devemos buscar, junto ao Congresso Nacional, a garantia desses direitos em forma de lei, para que não haja retrocessos se torne mais difícil o recuo em relação a essas conquistas da comunidade.
Não esperamos um Congresso “mais progressista” na próxima legislatura, mas chegou ao momento de cada LGBT não contar apenas com os nossos “aliados” da causa lá.
Chegou a hora de sermos os protagonistas de nosso destino. Nós, por nós e através de nós, podemos lutar com mais afinco pela garantia desses direitos. Desde a articulação com convencimento ao voto. Por isso, é importante entender que, para se combater a LGBTfobia, também precisamos eleger mais parlamentares LGBT.
Sobre a autora
* Mariana Valentim é arquiteta, urbanista e empresária. Ativista trans, ocupa o cargo de vice-diretora executiva do Lola (Ladies of Liberty Association) Brasil e de conselheira do Movimento Livres.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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