Day: maio 12, 2022

Astrojildo Pereira e Luiz Carlos Prestes: admiração e respeito mútuos

*Anita Leocadia Prestes, Blog da Boi Tempo

A nova edição de toda a obra de Astrojildo Pereira, revista e ampliada, e a reedição da sua biografia, escrita por Martin Cezar Feijó, pela editora Boitempo em comemoração aos 100 anos do PCB,1 constituem um ensejo propício ao resgate de alguns momentos do relacionamento estabelecido entre este fundador do partido, reconhecido intelectual brasileiro, e Luiz Carlos Prestes, conhecido como o “Cavaleiro da Esperança” e secretário-geral do Partido Comunista por cerca de 40 anos.

O primeiro contato entre Astrojildo e Prestes aconteceu na cidade boliviana de Puerto Suarez, na segunda quinzena de dezembro de 1927. Desde fevereiro desse ano, Prestes encontrava-se na Bolívia trabalhando numa empresa inglesa de terraplenagem junto com os combatentes da Marcha da Coluna, que haviam se exilado nesse país. Astrojildo, secretário-geral do PCB, viajara com a tarefa de tentar uma aproximação política com o líder dos “tenentes” – vistos pelos comunistas como a representação da “pequena burguesia revolucionária” – e, ao mesmo tempo, levava uma certa quantidade de livros de autores marxistas para lhe oferecer. Nas palavras do próprio Astrojildo:

Entreguei-os a Prestes dizendo-lhe que era nosso desejo que ele estudasse por si mesmo a teoria e a prática da política pelas quais buscávamos orientar o Partido Comunista, inteirando-se assim, não só dos princípios e fins da nossa atividade prática, mas também das soluções que a ciência marxista apresentava para os problemas sociais do nosso tempo. Devo hoje acrescentar que, ao dizer-lhe estas coisas, eu guardava a esperança de que Prestes, ao tomar conhecimento direto das ideias marxistas, não demoraria em compreender que elas exprimiam a verdade do presente e do futuro. Sua inteligência, sua honradez, sua experiência pessoal no contato com a gente e as coisas brasileiras fariam o resto. Os fatos demonstraram que eu não me enganava.2

Palavras estas que foram escritas 35 anos depois do encontro com Prestes; reveladoras, portanto, da permanência da admiração e do respeito de Astrojildo pelo seu interlocutor de então. No início de 1928, de volta ao Rio de Janeiro, o dirigente comunista publicou longa entrevista com Prestes, em três números consecutivos do jornal tenentista A Esquerda, dirigido por Pedro Mota Lima.

Consequência da virada na política da Internacional Comunista com a realização em 1928 do seu VI Congresso e da sua repercussão no PCB, Astrojildo Pereira foi expulso das fileiras comunistas em 1930.3 Afastado do partido, ao qual até então dedicara todos seus esforços, nunca o criticou de público, mantendo-se fiel às ideias marxistas e aos ideais revolucionários que abraçara ainda na juventude; dedicou-se especialmente à atividade literária e à manutenção de sua própria sobrevivência.

Ao final do período do Estado Novo, nos anos 1944/45, Astrojildo se uniria às forças democráticas que se mobilizavam na luta contra o nazifascismo e pela democratização do país. Foi um participante ativo e destacado do I Congresso Nacional de Escritores realizado no início de 1945, que desempenhou papel importante nesse processo.

Sob a influência do ambiente reinante nos meios intelectuais daquele momento, empolgados com o lançamento da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República, considerado herói dos “18 do Forte” de Copacabana e das revoltas tenentistas dos anos 1920, Astrojildo – nas palavras de Nelson Werneck Sodré – “acompanhou, de início, esta candidatura. E não foi ele, somente, mas muitos democratas sinceros e até pessoas de formação política de esquerda.”4

Astrojildo foi dos primeiros a visitar Prestes na prisão, quando isso lhe foi permitido, em março de 1945. Nessa ocasião comunicou a Prestes que acabara de assinar manifesto de apoio à candidatura do Brigadeiro. Advertido por Prestes ser esse o candidato do imperialismo e dos setores de direita empenhados na preparação de um golpe para deter o avanço das medidas de democratização do país que estavam sendo realizadas com a permanência de Getúlio Vargas no poder, Astrojildo imediatamente retirou sua assinatura do manifesto, revelando respeito e admiração pelo líder comunista, que se mostrara atencioso e compreensivo com ele.5

Com a legalização do PCB no final de 1945, Astrojildo solicitou sua reintegração no partido, cujo secretário-geral, eleito em 1943 na Conferência da Mantiqueira, era Luiz Carlos Prestes, dirigente comunista que nutria consideração e admiração pelo fundador do PCB. O velho militante dispôs-se a realizar uma autocrítica de suas atividades políticas, de acordo com a prática então em vigor entre os comunistas. Voltou a militar nas fileiras partidárias, concentrando seus esforços principais no trabalho intelectual na redação de revistas ligadas ao PCB, passando a dirigir, por exemplo, a revista Literatura, cujo conselho de redação revelava o caráter amplo que lhe foi atribuído, contando com a participação de intelectuais como Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Artur Ramos, Graciliano Ramos, Orígenes Lessa e Manuel Bandeira.6 

Poucos meses depois, em julho de 1946, por ocasião da Terceira Conferência Nacional do PCB, foi eleito um Comitê Central, renovado e ampliado, sendo Astrojildo incluído entre seus novos suplentes,7 o que confirmava sua aceitação por parte de Prestes e do novo núcleo dirigente do partido.

No IV Congresso do PCB, realizado na clandestinidade em novembro de 1954, Astrojildo foi escolhido para fazer o discurso de abertura do conclave, honraria especial prestada ao fundador do partido.8 Posteriormente, no V Congresso, em 1960, Astrojildo foi eleito membro efetivo do Comitê Central,9 posição em que seria mantido após o golpe civil-militar de 1964, segundo dados apresentados por Ronald H. Chilcote, tendo por base fontes aparentemente confiáveis.10

Na condição de membro da direção do PCB, Astrojildo dirigiu várias revistas do PCB ou próximas ao partido. Foi diretor e redator-chefe de Problemas da Paz e do Socialismo, revista dedicada aos temas do movimento comunista internacional. Em 1958, fundou e dirigiu Estudos Sociais, revista teórica vinculada ao PCB, que circulou até 1964. Colaborou nos jornais do PCB, Imprensa Popular (1948-1958) e Novos Rumos (1958-1964).

Em 1962, a editora Vitória, pertencente ao PCB publicou o livro Formação do PCB (1922/1928): notas e documentos de autoria de Astrojildo Pereira.11 Seu lançamento oficial, durante as comemorações do 40° aniversário da fundação do PCB, teve caráter festivo com a presença de Luiz Carlos Prestes e de vários dirigentes do partido. Nesses anos, de 1958 a 1964, durante os quais, embora o PCB não tivesse a legalidade reconhecida, sua atuação na prática era quase legal, Prestes, então seu secretário-geral, procurou prestigiar a figura do fundador do partido. Apoiou a publicação do seu livro sobre a história da formação do PCB e, sempre que possível, comparecia às homenagens que lhe eram prestadas.

Nas fotos abaixo estão registrados momentos do banquete oferecido a Astrojildo por um número expressivo de representantes da intelectualidade carioca, em 12 de maio de 1962, por ocasião dos 50 anos de sua atividade jornalística. Em lugar de honra, à sua esquerda, encontro-me eu, filha de Luiz Carlos Prestes, que me pedira para representá-lo, uma vez que, devido às suas atividades partidárias, estava fora do Rio; Novos Rumos, o jornal legal do PCB, publicou uma página inteira dedicada à efeméride,12 revelando a admiração e o respeito que Prestes e a direção do PCB tinham pela personalidade de Astrojildo Pereira.13

Da direita para a esquerda: Anita L. Prestes, Astrojildo Pereira, Sra. Embaixador Álvaro Lins e o pintor Di Cavalcanti em evento em homenagem aos 50 anos da atividade jornalística de Astrojildo, em 1962. (Foto: Acervo UH/Folhapress)
Da esquerda para a direita: Sra. Embaixador Álvaro Lins, Astrojildo Pereira e Anita L. Prestes, em evento em homenagem aos 50 anos da atividade jornalística de Astrojildo, em 1962.
Página inteira dedicada à efeméride dos 50 anos da atividade jornalística de Astrojildo Pereira no jornal Novos Rumos, do PCB.

No início de 1965, com a saúde seriamente abalada, Astrojildo, por força de um habeas corpus, saiu da prisão, em que estivera detido pelos militares que governavam o Brasil naquele período de ditadura militar. A pedido de Prestes, forçado a viver clandestino devido à intensa repressão policial, eu e minha tia Lygia Prestes visitamos Astrojildo em sua modesta residência situada na Rua do Bispo, na cidade do Rio de Janeiro.  Muito debilitado devido a problemas cardíacos, agravados durante os meses de prisão, Astrojildo faleceu aos 75 anos em 20 de novembro daquele ano. Novamente, a pedido do meu pai, eu e a tia Lygia o representamos no enterro, realizado em cemitério de Niterói, no Rio de Janeiro.

Ao destacar a atitude de admiração e respeito de Luiz Carlos Prestes por Astrojildo Pereira, vale a pena lembrar o empenho do então secretário-geral do PCB, durante seu exílio na União Soviética nos anos 1970, pela preservação do arquivo do fundador do partido, que corria o risco de ser apreendido pela polícia no Brasil. José Luiz Del Roio, escritor e então militante do PCB, ex-senador na Itália, conta em vídeo-entrevista que Prestes, preocupado, se dirigiu a ele, em busca de uma instituição na Europa para onde a documentação reunida por Astrojildo – uma coletânea valiosa de documentos e jornais do movimento operário brasileiro – pudesse ser transferida e abrigada com segurança.14 Segundo Del Roio, Prestes não desejava que o referido arquivo fosse encaminhado para um país socialista, pois dizia que, uma vez entregue, não sairia mais desse local. Del Roio conseguiu a guarda dessa documentação pela Fundação Feltrinelli, situada em Milão (Itália), de onde mais tarde foi transferida para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de São Paulo.

Em outro depoimento, José Luiz Del Roio afirma:

Apesar da repressão tinha gente muito interessada em estudar o movimento operário, todo mundo falava deste misterioso e fundamental arquivo. Isso tudo passou por uma discussão e eu perguntei ao Luiz Carlos Prestes se ele sabia onde estava, como estava e se era possível retirá-lo do Brasil. Ele pessoalmente apoiou a ideia e nos incentivou muito, nos deu muito apoio.15

Ao concluir estas notas despretensiosas sobre Astrojildo Pereira, na ocasião da reedição de todos os seus livros pela Editora Boitempo, no ano do centenário do PCB, tentei revelar aspectos até hoje pouco conhecidos ou inéditos das relações que efetivamente existiram entre Luiz Carlos Prestes e o fundador do PCB, relações por vezes ignoradas, subestimadas ou deturpadas por diversos intérpretes da história do movimento operário e dos comunistas brasileiros.

*Texto publicado originalmente em Blog da Boi Tempo


A necessária liderança do SUS na revolução digital | Imagem: reprodução/Outras Palavras

Luiz Vianna: a necessária liderança do SUS na revolução digital

*Redação do Outras Palavras

Luiz Vianna Sobrinho em entrevista a Gabriela Leite

Em que bases será construído o SUS de que a sociedade brasileira precisa? Luiz Vianna Sobrinho, médico e doutor em bioética, tem uma hipótese contundente no que diz respeito à ciência médica e à medicina de dados – que, de alguma maneira, pensa, são vistas de esguelha pela Reforma Sanitária desde os anos 1980. Ele argumenta que é a hora de o SUS entrar com força na disputa pelo desenvolvimento das tecnologias médicas e hospitalares, e utilizá-las de acordo com seus princípios coletivos de saúde. Do contrário, perderá espaço para a abordagem mercadológica que tanto tenta combater.

A obra em que Vianna expõe essas ideias essenciais será relançada hoje, a partir das 18h, na livraria da Travessa de Niterói (RJ). O ocaso da clínica veio ao mundo em 2021, e a prova de sua relevância é que o debate torna-se cada vez mais atual. A última investida daqueles que enriquecem com a lógica da saúde como mercadoria foi feita pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Alinhado com o mercado, ele sustenta a criação do chamado open health, sistema que compartilha dados de saúde dos brasileiros com empresas de planos de saúde, hospitais, farmácias, organizações sociais e laboratórios. A proposta é considerada inconstitucional e ilegal por juristas, mas festejada por capitalistas da saúde.

Em entrevista ao Outra Saúde, Vianna aborda o tema do open health e como ele se encaixa no contexto histórico em que a medicina de dados vem ganhando cada vez mais força – tema central de seu livro. Faz críticas contundentes ao ministro Queiroga e à gestão da pandemia no Brasil. Mas vê um futuro possível em que a tecnologia seja incorporada pelo SUS e esteja disponível de forma justa a todos os brasileiros: “É esse modelo de política de Estado que tem de liderar a revolução digital da saúde. Não será fácil, mas é o futuro bem próximo que está nas mãos do SUS”.

Seu livro O ocaso da clínica, que está sendo relançado hoje, causou impacto. Mas nos últimos meses surgiram novos sinais de que o uso da medicina de dados está se alastrando. Como você vê o programa “open health”, que o ministério da Saúde pretende promover?

Bem, primeiramente, eu penso que esses sinais estão presentes já desde a década passada; mesmo antes do desenvolvimento de algoritmos mais complexos baseados em machine-learn, no próprio modelo em que as metas e práticas de gestão passaram a ter um peso mais decisivo nas decisões clínicas. Reduzir toda a possibilidade de conhecimento da questão médica à objetividade de dados possibilitou que se aplicasse a extração e gestão desses dados em proporções populacionais, como nunca visto antes… Então, o que estamos vendo agora, é a aplicação plena por corporações e mesmo por sistemas de gestão estatal da saúde, como o chinês.

No Brasil, surgiu a ideia do “Open Health” nos últimos meses. Ela vem sendo apresentada como proposta de política sanitária, declaradamente inspirada em modelo praticado pelo mundo financeiro; notadamente pelos grandes bancos, que nadaram em lucros vultuosos nos últimos anos, destacando-se em plena crise. Mas, no cuidadoso e bem trabalhado artigo distribuído para a apresentação pública desta proposta na grande mídia, o aprimoramento e melhoria da dinâmica de concorrência no mercado de planos de saúde demonstra, com clareza, que a tônica está na oportunidade de crescimento para melhores negócios. E está totalmente inserida nessa dinâmica da medicina de dados.

O próprio ministro da Saúde diz que criou o termo “open health” e analogia a “open banking”. O que este paralelo sugere sobre a tendência hoje hegemônica na medicina de dados?

Não podemos deixar de destacar, que a mensagem publicada em jornais de distribuição em todo o país foi a de um Ministro dos Negócios, não de um Ministro da Saúde. (FSP/6/3/22). Nos provoca desde a apresentação do problema em seu contexto, quando relata no primeiro parágrafo que “a pandemia de Covid-19 deixou clara a necessidade de fortalecer a capacidade de resposta dos sistemas de saúde”. Pois, tudo o que vimos nas suas atitudes, à frente da pasta durante a pandemia, foi a total ausência de organização de um sistema, onde governos estaduais e municipais se sobressaíram no comando das melhores condutas sanitárias; e coube ao seu comando federal uma defesa insana, do ponto de vista das evidências científicas utilizadas em todo o mundo, de medidas que seguiam apenas a orientação de sua política. Surpreende, então, que ainda no mesmo parágrafo ele clame pela “transparência na adoção de políticas públicas”. O que assistimos foi um escárnio. Uma situação da qual nos envergonhamos frente às entidades sanitárias e acadêmicas do exterior.

Assim, o que temos: um projeto incostitucional e ilegal, como já vem sinalizado, pois viola as garantias fundamentais da proteção de dados da intimidade e vida privada dos cidadãos, já que a Lei Geral de Proteção de Dados é clara ao proibir expressamente este uso pelas operadoras de planos de saúde “para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneciários” (Art. 11,parágrafo 5º). No interesse de que não haja “discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos” (Art. 6º, inciso IX).

Além disso, não há preocupação com os mais de 75% da população que estão fora do segmento de saúde suplementar. Não há crítica à renúncia fiscal que desidrata o erário e subsidia a assistência mais onerosa ao quarto da população que conta com a saúde suplementar. Não há, definitivamente, uma proposta que inspire a confiança de que estejamos caminhando para a organização e fortalecimento do que o início do artigo se propõe, um sistema – o SUS. E o que esperamos de um ministro da saúde, em seu papel constitucional, é que defenda, lute e fortaleça esse Sistema Único, que mostrou sua potência justamente na crise sanitária mais difícil das últimas décadas.

Por outro lado, você tem chamado, insistentemente, a atenção dos movimentos pela Reforma Sanitária para que se envolvam ativamente na disputa pelos sentidos da medicina de dados. Qual a importância de fazê-lo, hoje?

Nós começamos a falar isso na ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz) por volta de 2018, quando criamos o Observatório da Medicina, enquanto fui desenvolvendo minha tese, que está nesse livro. Em 2019, nosso grupo realizou um seminário onde apresentamos esse conceito de ‘medicina de dados‘, reunindo algumas características que a literatura mundial vem discutindo nas novas formas e formatos do capitalismo na atualidade – noções como Capitalismo de Vigilância, Capitalismo de Plataforma etc. O que nós já chamávamos a atenção naquele debate era a necessidade do pensamento sanitário brasileiro não deixar passar esse momento, essa grande transformação…. que é inexorável.

Aos poucos, transparece uma possível estratégia dos planos de Saúde para se beneficiar da medicina de dados. Implica reduzir custos, por meio da telemedicina e do uso de algoritmos para manejar a relação custo-benefício em seu favor; e contar com o atraso do SUS no uso destas ferramentas. Como reagir a esta estratégia?

Na disputa com os interesses de mercado das corporações tem de surgir uma política de Estado que fomente o desenvolvimento e domínio dessa nova tecnologia, mas que a aplique com os propósitos que norteiam a proposta de coletividade do SUS. Temos de escapar tanto dos interesses de exploração mercantil da saúde, quanto de um Estado que utilize esses dados para vigilância coercitiva dos cidadãos ou de grupos específicos, que diminua as iniquidades do sistema. E é esse modelo de política de Estado que tem de liderar a revolução digital da saúde. Não será fácil, mas é o futuro bem próximo que está nas mãos do SUS.

*Texto publicado originalmente em Outras Palavras


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Revista online | O caminho da América Latina é a democracia 

Alberto Aggio*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio/2022)

A América Latina nasceu com o advento da modernidade e sempre esteve vinculada à sua dinâmica histórica, suas crises e destino. É a experiência do “moderno” como um paradigma que nos faz pensar sobre nossas identidades e nossas relações com o mundo. Diversas formulações fizeram-nos cultivar a utopia de uma unidade latino-americana construída pelo antagonismo a um inimigo externo. Essa visão empobrecida e envelhecida não contempla as diversas experiências históricas do continente bem como o conjunto de problemas comuns determinados quer pelo desenvolvimento da formação econômica mundial, que dá sentido unitário a uma época, quer pelas diferenciações internas e conexões que se estabelecem em diversas dimensões da vida. 

Esse debate intelectual é permanente, embora tenha estado mais vivo no momento da transição do autoritarismo para a democracia que abarcou a maioria dos países latino-americanos a partir da década de 1980. Hoje, imersos na complexidade da vida democrática, temos boas razões para retomá-lo. Isso coincidiu com o fim da URSS bem como da Guerra Fria. Buscar um caminho exclusivo tendo como perspectiva o “sul do mundo”, como foi praticado pelo chavismo e outras correntes similares, mostrou-se uma tentativa limitada e, por fim, pouco exitosa. É preciso continuar a pensar em termos globais. 

Em comparação com aquele período, o cenário atual não é de otimismo, e há fortes reminiscências. Condenada à “tradutibilidade” do que não lhe é original, a América Latina sempre foi pensada a partir de alguns modelos. O primeiro deles foi o europeu, visto como algo a ser atingido e, paradoxalmente, como responsável pelos históricos problemas que assolam a região. A partir do século XX, essa referência ganhou a companhia e a concorrência do paradigma norte-americano, que passou a cumprir até com maior rigor a sina de adesão calorosa e repugnante rechaço. Recentemente, o modelo oriental alcançou um inaudito prestígio. Com o deslocamento do eixo econômico para o Pacífico, a China passou a ser o novo Graal, sendo cotidianamente mobilizada como modelo diante dos dilemas de inserção competitiva enfrentados pelas economias latino-americanas. 

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Haveria também formulações alternativas, autoproclamadas antagônicas ou de resistência. No coração delas assenta-se a ideia de uma “segunda independência” para o continente. Com maior ou menor profundidade, isso fez emergir um mosaico de nacionalismos, em geral, débeis e breves. A Revolução Cubana de 1959 avançou por esse sendero, e seu regime tornou-se, na América Latina, o epicentro de um nebuloso projeto de ruptura com a modernidade.  

Tal fabulação alimentou a reiteração de estratégias terceiro-mundistas de resultados cada vez menos auspiciosos e hoje francamente obsoletos diante de uma realidade marcada pela mundialização e por uma mudança tecnológica acelerada. O fracasso das guerrilhas inspiradas em Cuba, os pífios resultados econômicos, além de um autoritarismo cada vez mais abjeto, acabaram por ensejar a abertura de uma reflexão crítica sobre o regime cubano, até então identificado como o paradigma consagrado dessas perspectivas alternativas. Nesse novo cenário, o imaginário da revolução perdeu energia e vitalidade, mesmo na roupagem do bolivarianismo ou do “socialismo del buen vivir”. 

Galvanizando enormes esperanças, o recente processo político chileno que se inicia em 2019 produziu a vitória da esquerda, com Gabriel Boric, e o estabelecimento de uma Convenção Constituinte, autônoma e paritária, que em breve apresentará ao país um novo texto constitucional para ir a plebiscito, em setembro. As notícias não são animadoras em relação à aprovação do novo texto. De qualquer forma, o Chile mostra-se, no conjunto da América Latina, como um ponto avançado, mas também limite, no processo de democratização latino-americano. Há muita expectativa, muita esperança, mas também muita crítica e até frustração frente ao percurso e aos resultados parciais já definidos pela Constituinte chilena. 

De qualquer forma, a conquista da democracia, das liberdades e do pluralismo facultou as condições para que os latino-americanos pudessem pensar em construir coletivamente o seu futuro. Na quadra em que estamos, trata-se de retomar o debate em novos termos, compreendendo a identidade latino-americana como uma construção em aberto, sustentada em diferenciações específicas e em cinco séculos de diálogo com o mundo. A recente experiência democrática torna-se assim o principal ativo da América Latina para que postule um lugar neste mundo que se transforma aceleradamente. Ela não pode perder esse ativo e não pode se deixar perder por visões anacrônicas, próprias ou externas, que não respondem mais à contemporaneidade e ao futuro. 

Sobre o autor

*Alberto Aggio é mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular em História da América pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália). Dedica-se à história política da América Latina Contemporânea, em especial à história política do Chile. É o diretor do Blog Horizontes Democráticos. É autor de Democracia e socialismo: a experiência chilena (São Paulo: Unesp, 1993; Annablume, 2002, Appris, 2021 – no prelo); Frente Popular, Radicalismo e Revolução Passiva no Chile (São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999); Uma nova cultura política (Brasília: Fap, 2008); Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana (Brasília/ Rio de Janeiro: Fap/Contraponto, 2015) e Itinerários para uma esquerda democrática (Brasília: Fap, 2018). É autor e organizador de Gramsci: a vitalidade de um pensamento (São Paulo: Unesp, 1998), e coorganizador de Pensar o Século XX – problemas políticos e história nacional na América Latina (São Paulo: Editora Unesp, 2003) e Gramsci no seu tempo (Brasília/Rio de Janeiro: Fap/Contraponto, 2010).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Nas entrelinhas - Almirante Bento vira homem ao mar | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: Almirante Bento vira homem ao mar

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

O almirante de esquadra Bento Albuquerque foi demitido, ontem, do cargo de ministro de Minas e Energia, inesperadamente, pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a pretexto de que teria se omitido em relação aos aumentos dos combustíveis, sobre os quais não tem nenhuma responsabilidade direta, porque a decisão é da Petrobras. O real motivo da demissão, porém, foi sua discordância com o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, e os partidos do Centrão, quanto à aprovação de um projeto bilionário de construção de uma rede de gasodutos interligando oito estados do Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, para o qual pretende se destinar cerca de R$ 100 bilhões do lucro do pré-sal. O projeto beneficia diretamente o empresário Carlos Suarez, ex-sócio-fundador da empreiteira OAS, que tem o monopólio de distribuição de gás nos estados beneficiados.

Bento é mais um oficial-general de quatro estrelas de grande prestígio nas Forças Armadas defenestrado por Bolsonaro de forma humilhante, por discordância com o Centrão e o presidente da República. Soube da demissão pelo Diário Oficial. Fez uma carreira militar considerada exemplar: foi observador militar nas Forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) nos setores de Sarajevo, Bósnia e Herzegovina e Dubrovnik, na ex-Iugoslávia; comandante da Base de Submarinos Almirante Castro e Silva; comandante em chefe da Esquadra e secretário de Ciência Tecnologia e Inovação da Marinha.

É considerado um dos pais do submarino nuclear brasileiro, pois foi um dos negociadores dos acordos de parceria estratégica do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub) entre a França e o Brasil. Posteriormente, foi comandante da Força de Submarinos e chefe do Gabinete do comandante da Marinha. Em 2016, assumiu a Secretaria de Ciência e Tecnologia e Inovação da Marinha e, posteriormente, a Diretoria-Geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha (DGDNTM). Agora, é o 20º ministro demitido por Bolsonaro.

Sua oposição ao Brasoduto custou sua cabeça. O projeto é um velho conhecido do Congresso, que já rechaçou a proposta 10 vezes, pela maioria dos parlamentares e pelo próprio governo. Agora, com apoio do Centrão e do novo ministro, as possibilidades de aprovação são maiores e vão ao encontro dos interesses eleitorais de Bolsonaro e seus aliados.

Grande beneficiário do projeto, Carlos Suarez tem oito distribuidoras de gás no Norte, Nordeste e Centro-Oeste e quatro autorizações para a construção desses gasodutos. Mas não tem recursos próprios para pô-los de pé. O projeto de financiamento com recursos do pré-sal, que seriam destinados ao reaparelhamento da Marinha, faz renascer das cinzas o velho lobby das empreiteiras no Congresso. Suarez é o S da construtora OAS, que fez acordo de delação premiada com a Operação Lava-Jato.

Resistência

A Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace) faz forte oposição ao projeto, que chama de “Centrãoduto”. Segundo a entidade, o Brasoduto cria privilégios e não respeita critérios de planejamento, de contratações baseadas em eficiência e de modernização do mercado. A Abrace reúne mais de 50 empresas, responsáveis por 40% do consumo industrial de energia elétrica e 42% do de gás natural, entre as quais os grupos Gerdau, Nestlé e Votorantim. O Fórum das Associações do Setor Elétrico (Fase), que abarca 27 associações do mercado, também se opõe ao projeto.

O deputado Fernando Coelho Filho (União-PE), ex-ministro de Minas e Energia, é o relator do Projeto de Lei 414, que trata da modernização do setor elétrico, no qual o Centrão pretende embarcar o jabuti de R$ 100 bilhões. Segundo revelou ao blog do jornalista Tales Faria (UOL), o parlamentar não pretende incluir a proposta no seu relatório. Porém, mesmo contra a vontade, o projeto pode ser aprovado por meio de uma emenda.

Com a demissão de Bento Albuquerque, Coelho tentou voltar ao cargo de ministro de Minas e Energia, mas foi preterido por se opor ao projeto. O cargo caiu no colo do ex-secretário de Política Econômica da Economia, Adolfo Sachsida, servidor concursado do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que integra a equipe econômica desde o início. O novo ministro é mais ligado a Bolsonaro do que ao ministro da Economia, Paulo Guedes, antes mesmo de este se incorporar à campanha eleitoral de 2018.

Ao jogar ao mar o almirante, Bolsonaro fez do limão uma limonada, dois dias depois de a Petrobras anunciar reajuste de 8,87% no preço do diesel nas refinarias, que passou de R$ 4,51 para R$ 4,91 o litro. Na semana passada, a estatal anunciou lucro de R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre de 2022, o que o presidente classificou como um “estupro”. Em 2021, o lucro foi de R$ 106 bilhões.

O almirante está sendo responsabilizado pelos políticos do Centrão pelos aumentos de combustíveis e da inflação, o que não passa de uma cortina de fumaça para o lobby bilionário dos gasodutos. Sachsida assume com a bandeira de privatizar a Petrobras e resolver o problema da alta dos combustíveis

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-almirante-bento-vira-homem-ao-mar/

Arte: Luz Verde Comunicação Estratégica

Confira o vídeo oficial do curso para candidatos, candidatas e suas equipes

João Rodrigues, da equipe da FAP

Foi lançado nesta quinta-feira (12) o vídeo oficial do curso de formação política para candidatos, candidatas e suas equipes. As aulas serão ministradas de 23 a 30 de maio e as inscrições seguem abertas.

Clique aqui e saiba mais sobre a a programação.

Confira o vídeo.