Day: abril 17, 2022

Reprodução: Horizontes Democráticos

A globalização continua

Luiz Sérgio Henriques* / O Estado de S. Paulo

Vozes econômicas influentes informam que a globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.

Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.

Reprodução: CNN Brasil
Reprodução: CNN Brasil

Os nacionalismos em questão articulam-se em rede, trocam experiências, auxiliam-se mutuamente sem constrangimento. Não se limitam a proclamar, fechados em si mesmos, que cada uma das respectivas nações de referência deve vir “em primeiro lugar” ou “acima de tudo” – e acompanhada por alguma versão pré-moderna de um Deus “acima de todos”.

A inter-relação tem se imposto desde os triunfos inaugurais do moderno nacional-populismo com o Brexit e a eleição de Donald Trump. O fluxo planejado de desinformação, possivelmente gestado ainda na era soviética, esteve presente nestes dois acontecimentos e em muitos outros, acirrando ressentimentos e explorando situações inéditas, como a fragmentação das velhas classes sociais e a emergência de uma “sociedade dos indivíduos”, na expressão de Pierre Rosanvallon. Nada faz supor que tal fluxo se detenha em eleições futuras, inclusive na brasileira, e só este fato deveria servir como segunda e poderosa advertência.

O nacional-populismo ganhou parte da juventude de esquerda na Europa | Reprodução: Mises Brasil
O nacional-populismo ganhou parte da juventude de esquerda na Europa
| Reprodução: Mises Brasil

Nunca é muito claro o exato momento em que uma “democracia iliberal” se despe de ornamentos e assume as feições de uma autocracia ou, para usar linguagem mais direta, de uma ditadura. E nem sempre lhe será possível, adequado ou conveniente apresentar-se como tal. O fato é que os nativistas aprenderam, ao menos em parte, a lição da hegemonia, empregando recursos que permitem dar uma orientação a amplos setores desnorteados com a velocidade das transformações em curso.

O nacionalismo autoritário sempre provê uma comunidade ilusória, permanentemente mobilizada contra os mais fracos e os “diferentes”. Às vésperas do fascismo clássico, há pouco mais de cem anos, espalhava-se a fantasia da “nação proletária” injustamente explorada pelas demais. Enquanto lutava pela sua parte no butim colonial, tal nação devia unir-se compactamente, calando as discrepâncias internas mediante a fruição do trabalho dos “povos inferiores”. Hoje, o populismo recorre demagogicamente a uma suposta defesa dos “perdedores da globalização”, investindo contra os imigrantes e tentando herdar os eleitores da esquerda clássica. O que não muda, em circunstâncias tão distintas, são o culto do homem providencial (Marine Le Pen é, aqui, uma exceção) e a consequente compressão da vida democrática.

Reprodução: PsicoDigital
Reprodução: PsicoDigital

Esta compressão apresenta-se com toda a nitidez no exemplo-limite da Rússia de Vladimir Putin, na qual o Estado aparece quase inteiramente como pura força. O plurissecular passado despótico – seja o dos czares, seja o do comunismo stalinista – constitui o repertório no qual se buscam as razões últimas do poder autocrático. A bem da verdade, o bolchevismo original é alvo da ideologia eslavófila de Putin, pois nele ainda pulsa uma ligação com o Iluminismo e a cultura ocidental, não obstante o radicalismo jacobino que o levaria à perdição. Internamente, por isso, o Estado de Putin se apoia no controle repressivo da sociedade civil; externamente, na guerra, em particular nas suas modalidades mais destrutivas, o que vemos a cada dia, com horror, na agressão à Ucrânia.

Recorrendo à lição hegemônica ou valendo-se da força, ou, ainda, empregando uma mistura de ambas, o nacionalismo populista é a grande ameaça atual à comunidade das nações democráticas. A estas últimas, também abaladas em seu interior por forças e personalidades autoritárias, não convém ostentar nenhum tipo de húbris ou vocação missionária. Elas podem regredir pavorosamente, bastando lembrar o assalto ao Capitólio e o mau exemplo semeado. Como indivíduos, para seguir viagem em meio às ondas tempestuosas da unificação do gênero humano, temos à disposição o cultivo do “instinto de nacionalidade”, na forma de lealdade à Constituição, e o aprofundamento da condição de cidadãos do mundo, envolvidos inexoravelmente em cada avanço e em cada recuo das nossas sociedades.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

(Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, em 17 de abril de 2022)


Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula e Clauber Cleber Caetano/PR

Nas entrelinhas: Autoritarismo e corrupção são naturalizados no pleito

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense 

Por suas convicções, declarações e atitudes, o presidente Jair Bolsonaro (PL) é considerado pela oposição uma ameaça à democracia no Brasil. Sua visão de mundo, a compreensão sobre o papel do Estado na vida nacional, seus métodos de atuação, tudo corrobora o seu perfil político autoritário. Em decorrência disso, e da postura negacionista e da falta de empatia com as vítimas da pandemia de covid-19, disseminou-se uma grande rejeição na opinião pública à sua reeleição, que se reflete nas pesquisas.

Em contrapartida, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aparecia como franco favorito nas pesquisas eleitorais, gerando grande expectativa de poder, uma vez que já não estava preso e suas condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Diante de um cenário de 660 mil mortos, 11 milhões de desempregados, alta da inflação e estagnação econômica, a volta de Lula ao poder parecia apenas uma questão de tempo e não, como seria necessário ser, de uma estratégia bem-sucedida para consolidar o isolamento de Bolsonaro.

O presidente parecia fadado a ser enxotado do poder pelo eleitor. Com fim da pandemia, a situação mudou completamente. A principal preocupação da população já não é com a saúde. Passou a ser com a economia, cujos problemas relatados acima estão sendo mitigados pelo governo. O programa de transferência de renda Auxílio Brasil substituiu o Bolsa Família, uma herança do governo Lula. Outras medidas estão sendo adotadas, como mudanças na tabela do imposto de renda, subsídios para o gás de cozinha, adiantamento de 13º salário, liberação do fundo de garantia etc.

O governo opera de forma aberta em favor da reeleição. Bolsonaro exibe a competitividade que parecia perdida e reduz a distância em relação a Lula nas pesquisas. Como são muito conhecidos, esses votos estão sendo consolidados antes da campanha eleitoral de rádio e tevê. Isso ocorre em meio a um choque de narrativas, em quatro chaves: 1) as condições de vida da população durante os governos Lula e Bolsonaro; 2) a disjuntiva democracia x corrupção; 3) a mudança dos costumes, ou seja, as chamadas pautas identitárias; e 4) o tema do desenvolvimento, tendo como eixo a globalização e a questão ambiental.

Voto útil

A primeira chave tem uma base muito objetiva. Para o cidadão comum, as perguntas são: está empregado ou não, consegue serviço ou não, recebe ajuda do governo ou não, dá para pagar as contas, comprar a comida e chegar ao fim do mês com a dinheiro da passagem? O que ameaça Bolsonaro e favorece Lula nesse quesito é a inflação, que está fora do controle. O peso da economia nas eleições costuma ser fundamental, embora possa ser decidida em razão de outros fatores.

Do ponto de vista institucional, porém, a segunda chave é mais preocupante. Não é somente a corrupção na política que está sendo naturalizada com a liquidação da Lava-Jato e anulação de processos e condenações, entre os quais os de Lula. Diga-se de passagem, a aliança de Bolsonaro com o Centrão está tendo um papel determinante para isso, inclusive para livrar o governo de investigações sobre seus escândalos.

Também está havendo, em contrapartida, a naturalização do autoritarismo de Bolsonaro, cujo projeto de reeleição embute propósitos já bastante conhecidos, como subjugar o Judiciário, verticalizar o poder do Executivo e transformar a democracia brasileira num regime “iliberal”. Setores que haviam se afastado do governo, com a desistência de Sergio Moro e a crise instalada na chamada terceira via, na qual os partidos se digladiam internamente — a começar pelo PSDB —, estão começando a tratar o autoritarismo de Bolsonaro como um mal menor, diante da volta de Lula ao poder.

O debate sobre a agenda dos costumes, a terceira chave, consolida a polarização esquerda x direita, num ambiente social em que o conservadorismo vem levando a melhor. O tema do desenvolvimento, no eixo da globalização e da questão ambiental, que seria o verdadeiro debate sobre o futuro do país, está sendo tratado de forma subalterna, quando Lula e Bolsonaro se reverenciam nas ações e realizações de seus respectivos governos, que já fazem parte do passado.

Falta uma candidatura robusta que possa cumprir esse papel de pautar o futuro no debate eleitoral e, assim, oferecer uma alternativa nova para o país. Essa possibilidade está cada vez mais difícil, a ideia de uma candidatura única dos partidos de centro corre contra o tempo. As pesquisas estão dando sinais de que o “voto útil” no primeiro turno pode abduzir a candidatura da terceira via.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-autoritarismo-e-corrupcao-sao-naturalizados-no-pleito/

Foto: Salty View/Shutterstock

Revista online | Políticas de desenvolvimento regional no Brasil: entre a fragmentação e a resiliência das desigualdades

Luiz Ricardo Cavalcante*

O Brasil é recorrentemente apontado como um dos países mais regionalmente desiguais do mundo. Essas desigualdades evidenciam-se, por exemplo, nos indicadores de PIB per capita, muito inferiores à média nacional no norte e nordeste. Os percentuais relativos dessas regiões se mantêm mais ou menos estáveis desde pelo menos a metade do século XX, quando políticas com foco explícito em seu desenvolvimento começaram a ser adotadas no país. 

O processo teve início na década de 1950, quando foram criados o BNB, a Sudam e a Sudene. Na década seguinte, foi a vez da Zona Franca de Manaus (ZFM). Criados na década de 1980, os fundos constitucionais de financiamento dirigiram-se para as regiões norte (FNO), nordeste (FNE) e centro-oeste (FCO). A esse conjunto pode se somar a Sudeco, as áreas de livre comércio e as zonas de processamento de exportações, além de outras iniciativas menores. Em seu conjunto, esses instrumentos oferecem incentivos fiscais e financeiros para investimentos nas regiões menos desenvolvidas do Brasil a um custo fiscal da ordem de 0,75% do PIB em 2018. Trata-se de um valor correspondente a cerca de 1,7 vezes em relação ao orçamento do Programa Bolsa Família daquele ano.

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A lógica é romper uma espécie de círculo vicioso observado nas regiões menos desenvolvidas: os investimentos as evitam porque nelas não há oferta de insumos ou de mão de obra especializada, e a baixa oferta decorre da ausência de demanda. A ideia é, portanto, oferecer menores níveis de tributação e empréstimos em condições mais favoráveis para que novas empresas se instalem nas regiões menos desenvolvidas e rompam uma espécie de armadilha em que essas regiões se encontram. Os investimentos criariam economias de aglomeração que permitiriam que, após algum tempo, as regiões beneficiadas já não precisassem dos incentivos.

Ao se examinar o histórico desses instrumentos no Brasil, fica evidente que não houve diretriz unificada que orientasse sua adoção. A ausência de coordenação das ações pode ser atribuída a uma espécie de “desbalanceamento” já apontado em análises da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). Nesse “marco legal invertido”, instrumentos específicos – como a ZFM, o FNO, o FNE e o FCO – têm previsão constitucional, ao passo que as superintendências de desenvolvimento regional – que, em tese, teriam um caráter mais estruturante – têm apenas previsão legal. A eventual coordenação dos instrumentos, por sua vez, seria feita pela PNDR, editada por decreto. 

Na ausência de uma coordenação explícita e de uma definição constitucional ou legal de prioridades, a abrangência geográfica dos vários instrumentos assume contornos fortuitos, resultantes da ocasional capacidade de mobilização de representantes de regiões específicas. Eventuais tentativas de criação de um padrão de intervenção – como aquela proposta na PNDR – fracassaram porque não têm força constitucional ou legal. Acresce que municípios mais ricos em regiões pobres dificilmente estariam dispostos a abrir mão dos incentivos que têm hoje em favor de uma distribuição mais sistemática dos recursos.

Uma análise das proposições legislativas sobre o tema indicou, por exemplo, que há incentivo para que os parlamentares busquem beneficiar as regiões onde estão suas bases eleitorais, ainda que seus indicadores agregados não sejam necessariamente inferiores à média nacional. Nesse quadro, embora a adoção de políticas explícitas de desenvolvimento regional remonte à década de 1950, as desigualdades regionais no país que lhes deram origem parecem bastante resilientes. Os indicadores de desenvolvimento das regiões norte e nordeste se mantêm mais ou menos estáveis em relação à média nacional, embora a região centro-oeste – destinatária do FCO, mas que não conta com incentivos como os da Sudam ou da Sudene – a tenha superado.

A resiliência das desigualdades regionais sugere que haveria espaço para uma melhor alocação dos recursos destinados à sua superação. Não se trata apenas da distribuição regional dos recursos, mas da própria natureza dos instrumentos, uma vez que há evidências de que formatos alternativos em alguns casos podem ser mais bem sucedidos. Por exemplo, já se mostrou, há mais de dez anos, que programas sociais têm forte impacto na redução das desigualdades regionais. Iniciativas mais ajustadas às realidades locais podem também contribuir para maior enraizamento dos investimentos, evitando o caráter itinerante das empresas que se movem de acordo com os incentivos que lhes são oferecidos e que não criam as economias de aglomeração que motivaram as políticas originais. Na ausência de coordenação e de reflexões desse tipo, as políticas de desenvolvimento regional correm o risco de se converter em um balcão permanente de reivindicações fragmentadas, perpetuando as desigualdades apontadas no início deste artigo.

Saiba mais sobre o autor

Reprodução: LinkedIn
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*Luiz Ricardo Cavalcante é consultor legislativo do Senado Federal e professor do Mestrado em Administração Pública do IDP.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.


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