Day: abril 14, 2022
Revista online | Derrota de Bolsonaro é essencial para o Brasil, analisa Marco Antonio Villa
Equipe da Política Democrática e Paulo Roberto de Almeida, como convidado especial
O historiador Marco Antonio Villa acredita que o maior desafio para o Brasil, nos próximos anos, é o crescimento econômico com democracia. Para isso, segundo ele, é necessário que o presidente Jair Bolsonaro (PL) seja derrotado nas eleições de outubro deste ano. Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), colunista do UOL e autor de mais 30 livros, Villa é o entrevistado especial desta 42ª edição da revista Política Democrática online (abril/2022).
Marco Antonio Villa, que lançou no fim de 2021 o livro Um País Chamado Brasil - que apresenta panorama sobre a formação econômica, política e cultural nacional -, afirma que há uma crise de lideranças políticas brasileiras, o que, conforme analisa, fortalece os extremismos. Contudo, na avaliação do escritor, transformações importantes ocorrem na América Latina e Europa em relação à democracia, e a população precisa manter o otimismo.
A guerra entre Rússia e Ucrânia é outro tema abordado com profundidade pelo entrevistado. “O mundo está passando por transformações abruptas desde 24 de fevereiro. Até então, a história tinha registro de dois pontos de inflexão: a segunda guerra e a queda do muro de Berlim”, explica. “A invasão russa da Ucrânia lança novo desafio para todos nós, nos planos da economia, da política e da sociedade”, complementa.
As dificuldades da terceira via e os cenários políticos para as eleições de 2022 no Brasil também estão entre os temas da entrevista especial. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa Marco Antonio Villa.
Revista Política Democrática Online (RPD): Seu livro Um país chamado Brasil consegue ser uma crônica de nossa trajetória desde o descobrimento até o século 21, portanto, de leitura leve e envolvente. Sem descurar o rigor histórico, traça a origem de várias distorções de nossa formação. Destaco apenas uma: o descaso dos governantes quanto às necessidades e às aspirações das classes menos favorecidas. Herbert de Souza, o saudoso Betinho, costumava falar da incapacidade da elite de elaborar um conceito de humanidade que incluísse o pobre. Seu livro ilustra essa assertiva. Seria esse o maior óbice ao nosso projeto de desenvolvimento, isto é, enquanto não corrigirmos as imensas desigualdades, o Brasil não poderá decolar?
Marco Antonio Villa (MV): Uma das questões importantes do século 20 brasileiro, especialmente do período 1930 e 1980, meio século, portanto, quando o Brasil exibia os mais elevados índices de crescimento no Ocidente, era precisamente como incorporar as classes populares, no sentido sociológico mais amplo, ao processo político e aos ganhos do desenvolvimento econômico. Basta levantar a literatura no campo da economia, da sociologia, da política, da história dessa época.
A cidade de São Paulo, no final dos anos 1950 e anos 1960, era conhecida como a que mais crescia no mundo. E não era exagero. Era uma verdade, como resultado da industrialização, do deslocamento populacional do nordeste e do próprio interior do Estado para a cidade, para a região metropolitana, que desenvolveram os serviços, modernizaram o Estado, impulsionaram a infraestrutura. Dá gosto explorar os sebos do centro da cidade e olhar aquelas estantes de sociologia, cheias de projetos para o Brasil, em que tudo se discutia. Mas a questão hoje não é incorporar na base programas sociais e intervenções imediatas da dimensão de um Bolsa Família, hoje renomeado e mal elaborado. Além disso, são necessários, para se combater com eficácia a miséria e a pobreza, programas efetivos que desloquem socialmente, usando uma expressão ao Elio Gaspari, o andar de baixo para andares intermediários na estrutura social brasileira.
Esse é o grande desafio da atualidade, políticas permanentes. É a condição sine qua non para o país voltar a crescer. Fico ouvindo discussões sobre como melhorar a defesa dos direitos trabalhistas no campo do direito, quando, na verdade, a questão central não está no que falta ou sobra na legislação trabalhista. A questão é que a economia não volta a crescer, como crescemos em certo momento da nossa história. Se olharmos as últimas quatro décadas – a de 80, a de 90 no século passado e as duas primeiras deste século – são quase décadas perdidas. Quando dizíamos que os anos 80 foram uma década perdida, tínhamos como referência os anos 60 e 70. Mas, na comparação com o que veio depois, não há dúvida de que 80 foi a melhor das últimas quatro décadas.
O desafio é, portanto, voltar a crescer e combinar crescimento econômico, que em si já é um desafio, com democracia. Este é o desafio duplo brasileiro. Já tivemos, em certo momento da nossa história, no século 20, crescimento econômico sem democracia: durante o primeiro governo Vargas e durante a ditadura militar. A democracia plena foi recuperada a partir da Constituição de 1988. O que precisamos agora é voltar a crescer de forma sustentável mesmo, ter um papel de destaque no mundo, entrar nas cadeias produtivas globais. Tudo isso que se fala todo dia, e, ao mesmo tempo, enraizar o que dizia Otávio Mangabeira, essa plantinha tão frágil que é a democracia no Brasil.
RPD: Virou moda, hoje em dia, matizar o conceito de democracia diante das dificuldades de o sistema capitalista fazer refletir sobre os níveis de renda e emprego da população, os frutos das incessantes conquistas alcançadas pela tecnologia. Seria essa a origem de discursos políticos alternativos, populistas e demagógicos, que buscam simplificar conceitos que fissuram o edifício da democracia para valorizar o recurso à discórdia, senão o ódio, entre os cidadãos?
MV: Na breve conversa que tivemos hoje no café da manhã, minha mulher fez uma relação entre a vitória do Orbán, na Hungria, a guerra da Rússia contra Ucrânia e questões do Brasil. É inevitável, muitas vezes, entrever uma leitura um pouco pessimista da conjuntura contemporânea. Não sou o doutor Pangloss redivivo, o célebre personagem de Voltaire, eternamente otimista. Mas temos que ver sempre um outro lado das questões. Estamos com o espírito tão baixo – natural depois da tragédia do governo Bolsonaro – que não conseguimos ver transformações importantes e positivas que estão ocorrendo no mundo até mesmo no tocante à democracia.
Por exemplo, o que está ocorrendo no Chile é muito positivo e torço muito para que dê tudo certo lá e influencie nas eleições na Colômbia, onde são promissores os avanços na direção do fortalecimento da democracia. Lembro, ainda, os resultados da última eleição portuguesa, em que o partido socialista obteve a maioria absoluta das cadeiras. Na Alemanha, os sociais-democratas fizeram pelo menos o chanceler. Vamos ver o que vai acontecer na França, onde tudo é sempre problemático. Macron deverá vencer no segundo turno, mas a extrema direita é historicamente fortíssima. Basta recordar que, no século 19, se germinou todo aquele antissemitismo alemão, cujo padrão teórico veio de Gobineau, na França, e de Chamberlain, na Inglaterra.
O mundo está passando por transformações abruptas desde 24 de fevereiro. Até então, a história tinha registro de dois pontos de inflexão: a segunda guerra e a queda do muro de Berlim. A invasão russa da Ucrânia lança novo desafio para todos nós, nos planos da economia, da política e da sociedade.
Refiro-me, em particular, a essa disputa na sociedade em torno de questões identitárias. Reli, recentemente, textos – decerto de autoria de jovens pesquisadores – que refletem visões da sociologia americana que não se podem aplicar à realidade brasileira, na análise da revolução burguesa no Brasil e da integração do negro na sociedade de classe. As contradições do Brasil não são as mesmas da sociedade americana. Falar isso eu sei que é um terreno pantanoso, perigoso, mas temos que falar, não dá para tergiversar. A questão que envolve a identidade no Brasil não é naturalmente a mesma que a dos Estados Unidos, por exemplo.
São desafios, assim, que temos de considerar no campo acadêmico e no campo político. Há, infelizmente, nos tempos atuais, uma fratura entre esses dois campos, que não existia nos anos 1950, nos anos 1960. Basta recordar que, nos anos 1970, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promovia grandes reuniões, prática que se estendeu a alguns momentos da década de 1980. Hoje, temos só fratura, justo quando enfrentamos questões complicadíssimas e fundamentais que mereceriam nossos melhores esforços conjuntos para, senão resolvê-las, listar as melhores recomendações para equacioná-las.
RPD: Com relação à conjuntura política atual, estamos vivendo uma espécie de inflexão. A polarização entre Bolsonaro e Lula parecia ter vencedor garantido, mas começa a revelar uma certa reversão em favor do presidente, ao passo que forças da oposição batem cabeça. Essa avaliação é procedente? Em caso afirmativo, o que as forças oposicionistas deveriam fazer?
MV: Hoje de manhã, olhava no portal Metrópoles um levantamento interessante sobre o que acontecia há cerca de seis meses antes das eleições de 1989, 1994, 1998 e, sucessivamente, até 2018. Qual era o desenho eleitoral no primeiro e segundo turnos. O estudo verificou que, na maior parte das vezes, o retrato seis meses antes não foi o retrato do primeiro turno das eleições presidenciais. Pode ser que o fato se repita, não sei, é necessário cuidar.
Lembro que, em 2014, a morte do Eduardo Campos, em 13 de agosto, mudou a situação eleitoral. Naquela segunda quinzena de agosto e na primeira semana de setembro, Marina Silva passou a liderar as pesquisas, quando sofreu o maior bombardeio da história de fake news, na eleição mais suja das eleições presidenciais, e acabou chegando ao terceiro lugar no primeiro turno. Em 2018, o atentado de 6 de setembro afetou radicalmente as pesquisas pela exposição de cerca de um mês de Bolsonaro. O que poderá ocorrer em 2022? São aqueles fatos incontrolados, a bela história do futebol, do Sobrenatural de Almeida. Tem aqueles fatos que a gente não domina.
Há, ainda, outras variáveis. A pesquisa que saiu hoje (6/4/2022), do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), dá 41% para Lula e 30%, Bolsonaro, confirmando que haverá segundo turno, diante da impossibilidade de se construírem alternativas em torno de uma chamada terceira via, seja por uma explosão de Ciro Gomes, seja por uma composição entre o MDB e o PSDB. Tudo indica que uma chapa liderada por Simone Tebet, uma mulher com ampla experiência política, poderia ser viável. Só que acertos desse tipo são bastante difíceis em momentos tão polarizados, tanto mais porque uma terceira via não pode ser buscada às vésperas das eleições. Teria de ser construída no processo cultural, como um produto da história, pelo menos desde 2019, e não agora, diante da cristalização de tantas rivalidades regionais e interesses pessoais. Tenho vontade de rir quando ouço algumas análises no sentido de que, em julho, todos se unirão. Será necessário combinar com os eleitores, porque por essa época tudo já deverá estar decidido. Temos 27 unidades da Federação. Imaginem a diversidade das alianças estaduais. Quem não entender isso não entende de eleição presidencial. Mas haverá sempre alguém que diga que, em 2018, Bolsonaro era um ponto fora da curva e agora é candidato à reeleição. Não cabe a comparação.
RPD: O que as oposições deveriam fazer para crescerem na disputa?
MV: Justamente o que não fizeram nos últimos três anos, uma política na unidade, na diversidade das diversas forças oposicionistas. A questão central é que há uma pedra no meio do caminho, como alguém já disse. E a pedra é o PT. Este é o nó górdio. O bolsonarismo se construiu contra o PT, e as forças chamadas de democráticas têm uma visão de política também oposta ao PT. Dá impressão que elas são forças auxiliares ao bolsonarismo, e não são. Ao combater o PT, passa-se para um eleitorado mais atrasado – recordando o baixo nível da cultura política no Brasil, que venho confirmando diariamente, para minha perplexidade – a impressão de que está fazendo o jogo do bolsonarismo, tanto quanto, ao atacar o Bolsonaro, é a vez de fazer o jogo do PT.
O desafio é, então, como construir uma alternativa de poder não só eleitoral, mas algo que demonstre que, no futuro, quando se chegar ao poder, não se seguirá as linhas do bolsonarismo nem as do PT. O problema, embora seja duro reconhecer, é que o país nunca teve uma crise de liderança política como a que temos hoje. Costumo dar o exemplo da eleição de 1982, final do regime militar, quando Franco Montoro venceu em São Paulo, Tancredo Neves venceu em Minas e Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Hoje temos João Doria, Romeu Zema e Cláudio Castro, referências que dispensam análise, diante da evidente pobreza de lideranças nacionais. Na eleição de 1989, tivemos número elevado de candidatos, os nomes mais notáveis do cenário político nacional, incluindo Roberto Freire. E o que temos hoje? A pobreza não é só de líderes políticos; estende-se também ao setor empresarial, ao setor acadêmico. Não temos nada.
Diante desse vazio de líderes, não se surpreende o crescimento dos extremismos, segundo a máxima do futebol de que espaços vazios têm de ser ocupados. Daí a expansão do extremismo bolsonarista, esse circo dos horrores que a gente vê todo santo dia. O desafio é, portanto, a conquista dos espaços, fazer política democrática. Mas isso não é fácil, demora e não se resolve em um processo eleitoral. É algo de médio prazo. Não foi feito no passado. Então, vamos ver se ao menos consigamos fazer neste processo eleitoral de 2022.
RPD: Existe hoje, em alguns setores da sociedade, certa perplexidade quanto à percepção popular do conceito de democracia, como se fosse difícil para muitos alcançar a complexidade dos valores envolvidos na questão. Isso estaria na base de sua afirmação do baixo nível político do eleitorado brasileiro, que dificulta a arrancada cívica da sociedade?
MV: Estamos vivendo um desafio que afeta o processo de conhecimento sobre nosso próprio país. E, se não sabemos em que país vivemos, como será possível fazer política? E nós não conhecemos o Brasil de hoje. O Brasil de hoje não é o Brasil da década de 1950, não é aquele reducionismo do Jacques Lambert dos dois Brasis, o atrasado e o moderno, o do litoral e o do sertão. Hoje o país é muito complexo. A região metropolitana de São Paulo, que é a maior do Brasil, tem cerca de 20 milhões de habitantes, 18 a 20 milhões na região metropolitana, que são três dúzias de municípios. Só que parte desses municípios não tem serviço de tratamento de água e esgoto, na região metropolitana mais desenvolvida do país.
Trata-se de uma geração nem-nem, que nem trabalha nem estuda, diante da ausência do Estado na criação de empregos, na escola, na saúde, no posto de saúde, na segurança pública, na água tratada.
A presença hoje do conflito religioso político é nova na história do Brasil. Nunca tivemos isso: a presença do catolicismo nunca colocou o dilema catolicismo versus política. Quando houve uma tentativa na eleição de 1933 de criar a liga eleitoral católica, não teve relevância eleitoral alguma. Foi coisa do Tristão de Ataíde, do Alceu de Amoroso Lima. Hoje, não tem essa novidade, e temos de tentar entendê-la para superá-la. Os partidos políticos não conseguem compreender o fenômeno. Ao contrário, passam a mão na cabeça do pastor, e todos os partidos, sem exceção, vão beijar a mão do pastor, do dono da franquia religiosa, a cada dois anos, na coincidência dos processos eleitorais. Os partidos não conseguem mais uma relação direta com o eleitor, ou com o “rebanho”, como gostam de falar.
Temos um país que não cresce há décadas, as pessoas estão frustradas. Antigamente, o filho vivia melhor que o pai, e o pai, melhor que o avô. Hoje isso não ocorre mais. Não existe mais esse processo de deslocamento social, de ascensão social. É um país que tem dificuldade de entender o que ele é. É um país muito fraturado. O fenômeno do agronegócio reforça isso. Pela primeira vez na história do Brasil, o agronegócio, o setor mais dinâmico da economia, está deslocado absolutamente do litoral. Alguém vai falar assim: a mineração do século 18 estava vinculada ao litoral, por meio dos portos do Rio de Janeiro e Parati. Mas o agronegócio é outro mundo, é como se fosse um outro Brasil, fortemente reacionário, que não tem identidade com as grandes questões sociais do Brasil, paga poucos impostos, tem um olhar de violência para a democracia e as questões do século 21. Até sua saída não é mais pelos portos tradicionais. Suas mercadorias partem pelo norte do Brasil, e já se pensa em usar a alternativa do Peru. São segmentos da sociedade totalmente dissociados, têm outra cultura, ouvem outras músicas, não leem nada, têm ódio da cultura. É outro mundo. Esse é o Brasil que queremos? Nós queremos outra coisa.
Por isso, digo que é difícil fazer hoje política no Brasil com tantos Brasis, como na cidade de São Paulo tem muitas cidades de São Paulo. A questão que se coloca é entender aqueles trabalhos clássicos que tínhamos de interpretação do Brasil, nos anos 30, 40, 50 e 60 até anos 70, com mais visões de totalidade, o que não temos, e acho difícil termos na atualidade. Tomando emprestada uma expressão de Ortega y Gasset, o Brasil, tal como a Espanha, é um país invertebrado, invertebrado socialmente, culturalmente, politicamente. Daí, com isso, eu vou saltar no rio Tietê? Não, temos de entender isso, compreender e dar o passo adiante. Este é o nosso desafio. Fácil não é.
RPD: Quando você usa a primeira pessoa do plural “nós”, nós quem? Não se trata de uma consciência individualizada, mais do que plural, com dificuldades de contaminar o conjunto da sociedade?
MV: Tenho conversado com muitas pessoas, e o que ouço é uma demonização dos partidos e da política, o que fez muito mal ao país. Isso decorreu do que se passou na década passada, com os escândalos de corrupção do governo do PT, o mensalão, petrolão, coisas absurdas que minaram a base da democracia. Quando menciono "nós'', em termos abstratos, me refiro às universidades, sobretudo, nas áreas de ciências médicas e biológicas, que tiveram papel fundamental na pandemia, agiram muito bem. O Brasil conheceu cientistas que desconhecia e foi apresentado a gente muito importante, a cientistas de valor. Mas, no campo das ciências humanas, entram em campo a universidade, os partidos políticos, organizações da sociedade civil, e aí o astral muito baixo.
Bolsonaro tem de perder no dia 2 de outubro e no segundo turno. Esta é a condição sine qua non para a gente começar a enfrentar algumas dessas questões que acho que o Brasil tem de enfrentar. Hoje o desenho que se projeta é a vitória do PT, ou seja, voltarmos a algo que imaginávamos já ter superado com o processo de impeachment. Só que, nesse processo, as forças democráticas foram derrotadas pelos extremistas reacionários. Digo nós porque eu participei desse processo ativamente, imaginando que teríamos de construir alternativas democráticas após o impeachment.
Mas aí veio o governo Temer, que tem uma conta terrível a pagar na história, que não o absolverá. O governo Temer poderia ter sido um governo Itamar Franco, não foi. Primeiro, porque há uma distância enorme entre Itamar Franco e Michel Temer, em todos os sentidos, da moralidade republicana, de fazer política, de entendimento do Brasil. E, segundo, ele prometeu um ministério de notáveis e entregou um ministério de Geddels. O fracasso do governo Temer conduziu o que estamos vivendo hoje. perdemos a chance de mudança para transformar 2018 em um bom processo eleitoral. Inclusive para a participação dele, porque ele poderia ser candidato à reeleição. A gente se esquece disso, porque ele estava tão embaixo, tinha sido tão desastroso que ninguém cogitou mantê-lo no poder.
De qualquer forma, é muito difícil buscar as origens dessa crise. É melhor nos concentrarmos no desafio de construir a participação. E a eleição serve para isso, sacode as pessoas e as leva a se identificarem com ideias e com candidatos. Revelados os resultados das urnas, o desafio é fazer com que o eleitor que escolheu seus candidatos, no dia 2 e no dia 30 de outubro, continue se interessando por política. É importante manter a sociedade atenta à política, porque é onde se constroem os consensos, pelo debate, pelo intercâmbio de ideias, a coluna vertebral do regime democrático.
RPD: Na sua opinião, o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia é um ponto de inflexão da história contemporânea quanto à queda do muro de Berlim. Poderia ampliar um pouco essa sua visão?
MV: Na minha leitura, tivemos, grosso modo, de 1945 até a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, a Guerra Fria, que opôs os Estados Unidos e a União Soviética, implicando a formação de blocos de países de um lado e de outro do confronto. Aí veio a queda do muro e, dois anos depois, no natal de 1991, o fim da União Soviética. De 1989 a 24 de fevereiro de 2022, os Estados Unidos foram militarmente a potência hegemônica e deram as cartas. Mas, no plano econômico, sofreram com a sombra da China, que não é (ainda) uma potência militar à altura dos Estados Unidos nem da Rússia, mas já é uma potência econômica. Dizem mesmo não PIB per capita, mas o PIB total deve ser nesta década superior ao dos Estados Unidos.
O que ocorreu em 24 de fevereiro surpreendeu a todos, pensou-se num primeiro momento que Putin estivesse blefando, mas a invasão aconteceu. Alegaram-se razões históricas para justificar o ataque à Ucrânia, e também o apoio a mercenários russos para os combates nas regiões separatistas. O fato é que a invasão ocorreu, sem uma declaração formal de guerra, porque até hoje o governo russo se recusa reconhecer a existência de uma guerra.
Acontece que a invasão foi mal calculada. Não se confirmou o pretenso passeio de no máximo sete dias para derrubar o governo de Kiev. O que se viu foi a ineficácia militar do exército russo, para a surpresa – e alívio – de muitos, e, mais importante a indignação coletiva e frontal da comunidade de nações, sobretudo dos Estados Unidos e membros da Comunidade Europeia, circunstância que gerou particular tensão internacional, ante a possível ampliação do conflito, envolvendo forças da OTAN.
O desgaste político de Putin aumentou em vista da resistência heroica dos ucranianos às forças superiores em armas, tecnologia e efetivos, e, ao que tudo indica, os riscos de um conflito mundial, até mesmo com o uso de armas nucleares, parecem não ser iminentes.
Vive-se, atualmente, situação complicada por conta dos efeitos sobre a economia mundial das sanções impostas à Rússia pelos EUA e a Comissão Europeia (CE). A meu ver, o governo brasileiro se saiu muito mal nessa situação. Não parece estar acompanhando o rearranjo geopolítico que a guerra implicará. A provável derrota política e econômica da Rússia terá graves consequências. Como uma das possíveis ironias da história antecipadas por Isaac Deustcher, a Rússia provavelmente vai passar a depender da China, que, a médio prazo, deverá se transformar em uma potência militar superior à Rússia, situação que será particularmente grave levando-se em conta o isolamento a que o mundo ocidental, o Japão e outras nações asiáticas estarão relegando o regime de Moscou no cenário internacional.
Quando terminará a guerra? Não sabemos, mas é muito provável que ocorram alguns dos seguintes fenômenos. A Ucrânia será neutralizada, não poderá entrar na OTAN, mas deverá ser admitida na CE. Terá de reconhecer a incorporação pela Rússia da Crimeia. Vai gastar bilhões para reconstruir o país, contando, decerto, com a ajuda de países ocidentais. Putin vai se declarar vencedor, mas terá de sair do país. Nem mesmo a autocracia do regime russo conseguirá seguir bancando essa aventura militar malsucedida.
De qualquer forma, 24 de fevereiro é uma ruptura no contexto das relações internacionais. Como se costurarão as articulações dessa nova realidade. Qual será o papel do Brasil? Isso é uma questão importante. Como o Brasil vai se posicionar? O Brasil está nos BRICS, mas, se olharmos para os BRICS, quem cresce no BRICS são o I, de Índia e o C, da China, já que o B, o R e nem mesmo o S, da África do Sul, parecem estacionados.
Como vai ficar isso, como vai ser o mundo? Realmente, nós estamos sendo testemunhas presenciais de um novo momento da história, de uma nova recomposição de forças. Quem imaginaria uma guerra, uma guerra mesmo de um país contra outro na Europa depois de 45? Alguém vai mencionar a Iugoslávia? Mas a Iugoslávia foi uma história de secessão, uma divisão de mais de meia dúzia de países. Não se aplica, portanto. Ninguém imaginava que isso fosse ocorrer, e ocorreu. Na verdade, ninguém conseguiu antever a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Os famosos analistas internacionais erraram nas previsões. Recentemente, falaram do fim da história, do fim da globalização, do fim do nacionalismo, e o mundo nunca foi tão nacionalista como o que estamos vivendo na terceira década do século 21.
Saiba mais sobre o entrevistado
*Marco Antonio Villa é historiador, escritor e comentarista político brasileiro. Villa é bacharel e licenciado em história, mestre em sociologia e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. É professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos.
** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de abril/2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Nas entrelinhas: Por que a terceira via não empolga nem ela própria?
Embora a pré-campanha tenha começado de forma muita antecipada, em grande medida em razão das prévias do PSDB, que em vez de unir dividiu ainda mais a legenda, a campanha eleitoral para presidente da República será curta: começará em 15 de agosto. Até lá, o que está se decidindo é o grid de largada: quem serão os candidatos para valer e as respectivas coligações, que garantirão o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na tevê de cada um. De 2 a 30 de outubro, se houver segundo turno, o país poderá estar à beira de uma ruptura institucional.
A distância entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) vem se encurtando, enquanto o espaço para uma candidatura alternativa, nessa pré-campanha, parece cada vez mais restrito. As pesquisas de opinião apontam uma tendência de consolidação de votos, em razão de os candidatos serem mais conhecidos, porém, a eleição ainda está no estágio de “guerra de posições”, ou seja, de ocupação de espaços e acumulação de forças. Entretanto, como sabemos, as eleições presidenciais no Brasil são decididas numa “guerra de movimento”, quando a grande massa de eleitores efetivamente se envolve nos debates eleitorais e decide o que fazer. Ninguém leva o eleitor para votar pelo nariz.
As últimas pesquisas estão mostrando que o favoritismo de Lula continua inequívoco nas pesquisas de segundo turno, mas seu crescimento estacionou, no primeiro turno. O ex-presidente trabalha para esvaziar os candidatos da terceira via e não para atraí-los no segundo turno. É uma aposta perigosa, que mira uma vitória improvável no primeiro turno, mais não impossível, num cenário de extrema radicalização política. O petista se considera mono opção para derrotar Bolsonaro, o que não deixa de ser uma arrogância.
Bolsonaro joga com as mesmas cartas. Aposta suas fichas no sentimento antipetista, que parece ser mais encardido do que Lula imagina. Esse sentimento, diante das fragilidades da chamada terceira via, alimenta seu crescimento na classe média, para além do impacto do auxílio emergencial e outras benesses do governo na massa de eleitores de baixa renda. Setores que haviam se afastado do governo, por causa da pandemia, da recessão e declarações extremadas de Bolsonaro, estão começando a ver a sua reeleição com naturalidade, principalmente no meio empresarial.
Ciro
Enquanto isso, a terceira via não empolga, não consegue se colocar em cena como alternativa de poder. Há um mistério nisso aí, que tem a ver com a mesmice da narrativa de centro, que não enfrenta o problema das desigualdades e da exclusão social. Com a desistência do ex-juiz Sergio Moro, o ex-governador Ciro Gomes (PDT) seria o candidato natural da terceira via, mas não consegue sair do isolamento. É um político experiente, mas de temperamento intempestivo. Seu maior problema é político: seu projeto nacional-desenvolvimentista foi abduzido por Lula e não atrai as forças políticas de centro. Ciro é uma espécie de patinho feio entre os candidatos da terceira via.
Doria
O desempenho do ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB) à frente da administração paulista exibe resultados espetaculares, na infraestrutura, no desenvolvimento econômico, na geração de emprego, na educação, sem falar na saúde, principalmente nas vacinas. Entretanto, não consegue capitalizar esses resultados em termos eleitorais. O ex-governador gaúcho Eduardo Leite faz um piquenique nas articulações da terceira via, mas seu desempenho à frente do governo gaúcho, principalmente do ponto de vista fiscal, não chega nem perto do que Doria realizou em São Paulo. Como se sabe, o Rio Grande do Sul é um estado falido. Talvez a mesmice explique.
Simone
Simone Tebet é uma incógnita. Por sua atuação no Senado, conquistou a simpatia dos colegas e se tornou uma aposta do presidente do MDB, Baleia Rossi, e do ex-presidente Michel Temer. Ontem, mostrou capacidade de reação à ofensiva feita por Lula junto aos velhos aliados do MDB: a maioria dos diretórios da legenda reiterou apoio à candidatura, que havia sofrido um ataque especulativo do grupo de Renan Calheiros e do ex-presidente José Sarney, que apoiam Lula. Simone poderia ocupar o espaço de Marina Silva na cena eleitoral, mas também está muito contingenciada eleitoralmente, inclusive em Mato Grosso do Sul, seu estado. Encarna uma agenda identitária, que não empolga a grande massa de eleitores, como também Eduardo Leite, embora esteja sintonizada com os novos tempos.