Day: fevereiro 13, 2022
Dorrit Harazim: Umbral de guerra?
Dorrit Harazim / O Globo
O livro “Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers”, de Emiko Ohnuki-Tierney, não é volumoso (265 páginas na edição em inglês) nem recente (2007). Em compensação, é impossível esquecê-lo. A obra corrige de forma definitiva um dos clichês da Segunda Guerra mais difundidos no Ocidente: que os jovens kamikazes recrutados nas melhores escolas do Japão para pilotar voos suicidas eram um bando de fanáticos nacionalistas honrados em se explodir pelo bem da pátria e do imperador. A correspondência reunida no livro revela, ao contrário, os medos, angústias e ambivalências dessa geração empurrada à força para a morte. Nem voluntários eram. Seus solilóquios manuscritos em páginas de diários, ou singelas cartas para namoradas, pais, companheiros, são dilacerantes. Demonstram o que já deveríamos ter entendido desde que nos tornamos bípedes: guerras são um horror, qualquer uma. Vale para a Ucrânia.
Os Estados Unidos continuam sendo uma nação relativamente distanciada desses horrores, em parte porque a lembrança nacional mais recente de um conflito militar, em casa, data da Guerra Civil de 1861. Foi para encorpar essa desmemória coletiva que um acadêmico da Califórnia criou o Center for American War Letters Archives, museu interativo on-line dedicado a coletar correspondências privadas e todo tipo de material guardado por combatentes. Idealizado por Andrew Carroll, diretor de um centro de estudos da Universidade Chapman, o espaço virtual de acesso fácil e navegação amigável pretende, no futuro, cobrir desde a Guerra de Independência (aquela que Eduardo Bolsonaro, em palestra nos Estados Unidos, confundiu recentemente com a Revolução Francesa) até os dias atuais.
Por enquanto, a “ala” do site de conteúdo mais robusto reúne cartas, áudios, depoimentos e memorabilia doados por veteranos da Guerra do Vietnã. Ali deparamos com momentos de fé, humor, saudade, desesperança, camaradagem, medo de ser esquecido. Numa dessas peças, garimpada pelo New York Times, ouve-se o coronel George S. Patton júnior (não confundir com seu espaçoso pai, o generalíssimo da Segunda Guerra) dirigindo-se à esposa Joana. É lacônico seu tom de voz na fita gravada em 1968, um dos anos mais carniceiros no Vietnã. “O comandante está vivo neste momento. Mas um braço foi arrancado, e ele perdeu o outro antebraço...”, relata Patton júnior 24 horas após uma granada inimiga ter matado um soldado e ferido outro. “A explosão o dividiu em dois, literalmente em dois.”
O distanciamento físico entre a população dos Estados Unidos e as muitas ações militares americanas pelo mundo, com oceanos e continentes inteiros a separá-los, favoreceu a “normalização” do desenrolar de guerras intermináveis e inúteis. Até 2010, os Estados Unidos dispunham de um tapete de 1.180 bases militares cobrindo o planeta. A justificativa oficial para essa onipresença era o legado deixado pela Segunda Guerra, que acabara 70 anos antes. “Alguém realmente acredita que, se fecharmos nossas bases na Alemanha, a Rússia vai invadir?”, indagava à época o colunista do New York Times Nicholas Kristof. Com o fim da Guerra Fria e a derrocada do império soviético, essa presença foi sendo reduzida para atuais 750 bases — sem contar as mantidas em sigilo, é claro.
Pois eis-nos de volta a algo que parecia inimaginável num ontem ainda recente: um embate capaz de resvalar, por acidente de percurso, num confronto direto entre forças das duas maiores potências militares. Por mais que o presidente Joe Biden afirme e confirme que em hipótese alguma enviará um único soldado aquartelado na Europa para combater na Ucrânia, a História não lhe dá razão.
A partir do maciço paredão bélico russo exibido na região, ficou evidente que um conflito armado na Ucrânia em tudo se assemelharia a uma guerra convencional, com seu corolário de horror também convencional. Não parece sobrar mais espaço para operações cirúrgicas pontuais nem ameaças de represálias financeiras. Morreriam os de sempre. “Perdedores” e “otários”, como o ex-presidente Donald Trump designou vilmente os soldados tombados na Primeira Guerra e enterrados no cemitério americano Aisne-Marne, em Belleau, norte da França.
Embora as mentes humanas sejam o único instrumento do universo capaz de refletir sobre o sentido da vida, cá estamos novamente no umbral de uma guerra.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/umbral-de-guerra.html
Míriam Leitão: O racismo é tema central
Míriam Leitão / O Globo
Há uma lucidez nas férias que ajuda o jornalismo. Às vezes, a distância da correria diária permite um olhar mais agudo sobre o país. As tragédias recentes atingindo negros colocam o combate ao racismo como ponto central de qualquer projeto de futuro. Não precisamos de mais mortes para entender que esse problema pode destruir a Nação, se não for encarado com coragem, obstinação e propostas objetivas. Séculos de violência contra o povo preto nos olham desafiadores.
Não há palavras de repúdio que confortem os que vivem sob a ameaça constante e perdem pessoas queridas de maneira brutal. O refugiado congolês Moïse Kabaganbe foi vítima de uma barbárie tão imensa que nos cobriu de vergonha. Ele era apenas um menino de 24 anos que buscou abrigo entre nós. A mancha não sairá da nossa bandeira, nada há que apague esse crime hediondo. Só podemos, diante dele, fortalecer a convicção de que é preciso resgatar o país do fosso cada vez mais fundo em que estamos. Ver logo depois Durval Teófilo Filho com o braço estendido, como um pedido de paz, diante do seu assassino, foi dilacerante. O sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra já havia dado um tiro no seu vizinho de condomínio. Foi quando, caído, Durval levanta a mão desarmada. Ele estava apenas tentando chegar em casa. Aurélio saiu do carro, mirou a vítima caída e deu mais dois tiros. O sargento quis matar. Aos 38 anos, Durval foi executado por ser negro e seu vizinho achou que ele só podia ser um ladrão. Um ato explícito de racismo que termina tragicamente. Na sua defesa, o sargento fez alegação absurda. Disse que atirou “para reprimir a injusta agressão iminente que acreditava que iria acontecer”. O jovem Yago Corrêa de 21 anos saiu para comprar pão e foi preso. O delegado disse que Yago “estava na hora errada, no lugar errado”. Graças à mobilização da família e de moradores da favela do Jacarezinho ele foi solto.
Com quanto sangue mais vamos manchar nossa bandeira antes de entender que só haverá futuro quando o país encarar seu racismo? O racismo é inimigo da pátria, que só será pátria se honrar a sua rica diversidade étnica. Não é tarefa dos negros combater essa violência, é de cada pessoa e de todos os poderes.
O presidente da Central Única de Favelas e escritor Preto Zezé, em artigo na terça-feira, na “Folha de S.Paulo”, exprimiu o sentimento dos negros. “Somos exilados de direitos no nosso país e perseguidos como inimigos. O cenário inviabiliza qualquer ideia de nação, já que, devido à cor da pele, somos privados de direitos básicos. E corremos riscos, pois o imaginário popular está habitado com a ideia de preto como perigoso.”
Um país assim, que mata negros por serem negros, que escravizou africanos por três séculos, que nunca teve política de reparação, que até hoje os discrimina, não pode perder tempo com debate estapafúrdio. Não há racismo reverso. Ponto final. Os brancos não são ameaçados por serem brancos. Pelo contrário. Chega de dar espaço a debate falso. A mentira não é inocente, ela nos afasta do essencial e urgente.
Sempre houve quem lutasse a luta justa no Brasil. O herói da Pátria Luiz Gama é desses. O filme “Doutor Gama”, de Jeferson De, no Globoplay, narra uma das suas muitas lições de resistência. Precisa ser visto. O livro “Avesso da Pele”, de Jefferson Tenório, é outra recomendação que faço. Nele, o narrador, em diálogo com o pai, vai revelando ao leitor o cotidiano das feridas que os olhares, as palavras, as portas fechadas vão impondo ao negro. A pessoa adoece e um dia não aguenta mais. Tenório nos conta dessa morte lenta, desse cumprimento de uma pena sem culpa e sem remissão. Por quanto tempo mais o tecido social brasileiro suportará tamanha covardia?
Gosto dos números, acho que eles são reveladores, mas prefiro nem levantar aqui estatísticas para mostrar o que é evidente, a hegemonia dos brancos, a exclusão dos negros. Por natureza sou otimista. Acredito em políticas públicas e nas decisões privadas para mitigar problemas sociais. As poucas que surgiram nos últimos anos, como as cotas nas universidades públicas, ajudaram. As empresas que sinceramente querem mudar estão avançando. Tudo somado é pouco perto da imensidão da tarefa. Este é um ano eleitoral. O combate ao racismo deveria ocupar as agendas como uma obsessão.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-racismo-e-tema-central.html
Elio Gaspari: Flávio Bolsonaro disse quase tudo
Elio Gaspari / O Globo
Na sua entrevista à repórter Jussara Soares, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) disse quase tudo:
— Para mim, quem soltou o Lula foi o Moro. Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, ele fez coisas que estavam fora da lei. Era só ter cumprido a lei que o Lula estava preso até hoje.
Quase tudo, porque não há como garantir que, cumprindo-se a lei, Lula estaria preso. Quase tudo, porque também faltou lembrar o famoso tuíte do general Eduardo Villas Bôas. Mesmo assim, é certo que ao divulgar às vésperas do primeiro turno a colaboração do ex-ministro Antonio Palocci, Moro levou água para o moinho de Bolsonaro. Fortaleceu-o aceitando a costura de Paulo Guedes, ocorrida (sem divulgação) pouco antes do segundo turno.
Numa trapaça da sorte, Bolsonaro foi ajudado primeiro pela colaboração premiada de um ex-ministro da Fazenda (divulgada por Moro), e depois pelo futuro ministro da Economia, à época chamado de Posto Ipiranga.
A entrevista do senador pareceu um momento de moderação e, sobretudo, revelou a possibilidade de uma campanha na qual são aceitas as regras do jogo, até mesmo da vacina. Referindo-se a manifestações dos aliados do presidente que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo, ele disse que “se fosse chutar o balde, o Brasil afundaria”. Boas palavras, admitindo-se que o tamanho do chute viraria o balde. De qualquer forma, vale a conclusão: o Brasil afundaria.
Prever os próximos lances dos Bolsonaro é coisa temerária, mas fica o registro de que essa entrevista do senador foi pelo menos um momento de moderação.
Ele diz que o governo se comunica mal. Na realidade, Jair Bolsonaro se comunica de forma eficaz para seus admiradores e assim chegou à Presidência da República em 2019. A conjuntura era outra, e nela teve não só a ajuda de Moro, mas também de um outro tipo de negacionismo, vindo de seus adversários.
Se há um problema, não está na forma da comunicação, mas no seu conteúdo.
Bolsonaro com o pé no acelerador
A entrevista do senador Flávio (01) Bolsonaro estava nas ruas quando seu pai fez a live semanal e apontou para um novo desentendimento com o Tribunal Superior Eleitoral.
Nas suas palavras:
“Nosso pessoal do Exército, da guerra cibernética, buscou o TSE e começou a levantar possíveis vulnerabilidades. Foram levantadas várias, dezenas de vulnerabilidades. Foi oficiado o TSE para que pudesse responder às Forças Armadas. Passou o prazo e ficou um silêncio. O prazo de 30 dias se esgotou no dia de hoje. Isso está nas mãos do ministro Braga Netto (Defesa) para tratar desse assunto. E ele está tratando disso e vai entrar em contato com o presidente do TSE. E as Forças Armadas vão analisar e dar uma resposta”.
Além disso, prometeu para “os próximos dias” algo para “nos salvar”.
Na véspera, o deputado Eduardo (03) Bolsonaro, havia dito que “a gente vai dar um golpe que vai acabar com o Lula”.
A dificuldade de Doria
O governador João Doria definiu como “jantar dos derrotados” o encontro em que estavam, entre outros tucanos de muita plumagem, Tasso Jereissati, Eduardo Leite e Aécio Neves.
De fato, Doria derrotou-os na prévia do partido, mas seu modesto desempenho nas pesquisas estimulou-os para costurar alianças mais adiante, sobretudo com a senadora Simone Tebet, do MDB.
Menosprezar adversários do mesmo partido sempre é uma política arriscada. A menos que Doria esteja em busca do título de candidato derrotado.
O preço do nazismo
O deputado Kim Kataguiri disse que a Alemanha errou ao criminalizar o nazismo. Depois, explicou-se, desculpando-se. Para quem acha a mesma coisa, até mesmo em nome da liberdade de opinião, aqui vai uma lembrança das boas razões que levaram os alemães a isso.
Se fosse possível esquecer o que o nazismo fez com os outros, hoje completam-se 77 anos do dia em que as sirenes de Dresden começaram a soar. Em 25 minutos, oitocentos aviões ingleses despejaram cerca de duas mil toneladas de bombas sobre a cidade medieval. A “Florença do rio Elba” foi bombardeada por outros dois dias. Uma tempestade de fogo derreteu até estruturas de aço. Tudo o que poderia queimar, queimou e restou uma paisagem lunar.
Os ingleses perderam apenas seis aviões, e os americanos da segunda leva, um. Morreram cerca de 25 mil alemães.
(Nunca uma população civil tinha sofrido ataques de tais proporções. Em março, os americanos queimaram parte de Tóquio, e em agosto jogaram duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki).
Os alemães criminalizaram o nazismo porque, entre outros crimes, tendo iniciado a guerra, persistiu nos combates, mesmo sabendo que sacrificava seu próprio povo.
A Alemanha criminalizou o nazismo por vários motivos mas, acima de tudo, pelo mal que ele custou aos alemães.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, nunca trabalhou na vida nas encantou-se com o doutor Zezeco. José Medeiros Nicolau, diretor do Departamento de Ordenamento, Parcerias e Concessões da Secretaria Nacional de Atração de Investimentos do Ministério do Turismo, informava em sua agenda que estava ocupado com “despachos internos”.
O repórter Patrik Camporez descobriu que ele estava na região de Courchevel, nos Alpes franceses. Explicando-se, Zezeco disse que trabalhou de forma remota e “nada parou”.
Eremildo vai a Brasília para ver se descola uma boquinha em Courchevel e promete que nada haverá de parar.
De mão em mão
Vender aeroportos tem sido motivo de orgulho para sucessivos governos brasileiros.
Falta explicar o que esses governos sentem quando os compradores devolvem a mercadoria.
O aeroporto do Galeão foi vendido em 2013 para a Odebrecht, com financiamento do BNDES e do FGTS, mais a participação minoritária da Changi, administradora do celebrado terminal de Cingapura, que tem até piscina para os passageiros. Antes mesmo do impacto da pandemia, os concessionários reclamavam do negócio, e em 2017 a Odebrecht foi-se embora.
Em outubro passado, a Changi começou a negociar a venda da concessão, e na semana passada decidiu devolvê-la à Viúva.
Com isso, o Galeão será oferecido junto com o aeroporto do Centro da cidade.
Os governos gostam de falar bem de tudo o que fazem. Falta contar porque o Galeão virou um mico.
Trump
Vem aí, às vésperas da eleição americana de novembro, um novo livro sobre Donald Trump, e o título já diz bastante: “Confidence Man”, “Vigarista”, em tradução livre. A autora é Maggie Haberman, repórter na Casa Branca durante o governo do presidente.
Ela já revelou que às vezes o pessoal da limpeza encontrava papéis rasgados nas privadas do seu gabinete. No caso de Trump, papéis em privadas são coisa suspeita, pois acredita-se que o doutor destruía documentos que, por lei, deveria preservar. Já se sabe, por exemplo, que Trump usava os celulares de assessores para não ser rastreado.
Puro palpite
Bolsonaro vai se vacinar.
Se o fizer, não tomará a vacina chinesa.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/elio-gaspari/flavio-bolsonaro-disse-quase-tudo-1-25391833
Eliane Cantanhêde: Putin não invadirá a Ucrânia, porque ganha com pressão e perderia com guerra
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
Na avaliação – ou aposta – do governo brasileiro, incluídos embaixadores e generais, o presidente Vladimir Putin tem claros objetivos externos e internos para esticar a corda, mas não chegará ao ponto de invadir a Ucrânia. Ele ganha com a pressão, mas perderia muito com a guerra.
Caem chuvas e trovoadas, aumenta o risco de a Rússia invadir a Ucrânia em dias, ou horas, e EUA, Japão, Reino Unido, Holanda e Coreia do Sul pedem que seus cidadãos saiam imediatamente de território ucraniano. Mas a viagem do presidente Jair Bolsonaro está firme e forte amanhã, e não há nenhum pedido para que brasileiros saiam do alvo.
Planalto e Itamaraty têm uma leitura mais branda do que fazem a mídia internacional e os demais governos dos comunicados em que Joe Biden admite que a Rússia “poderá”, não que “irá” invadir a Ucrânia. O Brasil aposta num recuo, sobretudo porque Biden e Putin continuavam conversando ontem. A ver.
Nos “papers” e reuniões de governo, Putin não é só um troglodita impulsivo. Vem da inteligência russa, é estratégico e obcecado com “Russia first” e “Russia great again” – ao estilo Trump – e tem razão em reagir à OTAN nas suas fronteiras, após os traumas históricos: invasões viking, mongol, polonesa e investidas de Napoleão e Hitler.
Gorbachev e Yeltsin deixaram o país em frangalhos e Putin, com mãos de ferro, pôs a economia nos eixos, investiu em segurança alimentar, tropas e armamento e acha que chegou a hora de recuperar o lugar entre os grandes, além de acalentar a alma imperial da sociedade russa, que vem desde sempre, passou pela União Soviética e deixou um rastro de saudosismo.
Ao ameaçar com a invasão, a Rússia recupera ares de potência política: rival à altura dos EUA, conquista apoio da China, mobiliza a Europa e atrai líderes de França e Alemanha a Moscou. Se partir para a guerra, Putin jogará todos os ganhos fora. Guerra é guerra. Nesse contexto, ele dará ouvidos aos interesses do Brasil, ou usará Bolsonaro para reforçar os Brics como contraponto aos EUA e demonstrar que seu raio de ação inclui o “quintal de Washington”?
O Brasil fez nota simpática sobre os 30 anos de relações diplomáticas com a Ucrânia, mas os vexames já começaram. Depois da mesa de quatro metros para o francês Macron, quantos metros terá a de Putin e Bolsonaro, que nem vacinado é? Ele fará os cinco testes de Covid exigidos pela Rússia? Qual a comitiva, reduzida a pedido de Moscou? Aliás, Mário Frias, que gastou R$ 80 mil com um assessor para ir aos EUA, faria um tour por Rússia, Hungria e Polônia com cinco subordinados. Para que? Tem lutadores de jiu-jítsu cultural por lá?
Fonte: O Estado de S, Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,aposta-do-brasil-putin-nao-invadira-a-ucrania-porque-ganha-com-pressao-e-perderia-com-guerra,70003977714
Merval Pereira: O mito da imparcialidade
Merval Pereira / O Globo
A questão da imparcialidade na justiça brasileira, discutida desde que o ex-juiz Sérgio Moro foi considerado “suspeito” no processo que condenou o ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá, ganha novos ares com um trabalho da jurista Bárbara Gomes Lupetti Baptista em número recente da revista Insight Inteligência, baseado em uma pesquisa empírica que realizou no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro há dez anos, que ela comparou com a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Ela não se refere ao caso recente de perseguição a Moro por parte do Tribunal de Constas da União (TCU), mas demonstra que a proximidade do Ministério Público com a magistratura é corriqueira no sistema judiciário brasileiro. Nesse caso atual, essa relação está explicitada na relação do Subprocurador do Ministério Público de Contas Lucas Furtado com o ministro do TCU Bruno Dantas.
Também o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que comandou o julgamento da Segunda Turma que considerou Moro “suspeito”, não está citado, mas é exemplo de juiz que julga segundo critérios próprios de Justiça, colocando seus pontos de vista acima dos regulamentos, como acusa Moro de ter feito. A mudança de voto da ministra Carmem Lucia, determinante para a condenação de Moro, também é referida no trabalho como exemplo da fluidez do conceito de “imparcialidade”.
A jurista ressalta que a maior parte dos casos da Operação Lava Jato no STF foi decidida por maioria, sem consenso, e mais de dois anos após os fatos, demonstrando que “condená-lo à pecha de “parcial”, também explicita a lógica pendular e seletiva desse sistema”. Segundo a jurista, “o contraste dos dados (antigos) e os fatos (novos) permitiu pensar não apenas sobre a fluidez da categoria “imparcialidade”, como também nos paradoxos de nossa cultura jurídica que, entre dogmas e práticas, ilustram que os interlocutores, ao mesmo tempo em que expressam a sua descrença na imparcialidade, (…) por outro lado também reverberam a necessidade de sustenta-la enquanto crença”.
A jurista conversou na pesquisa, para sua tese de doutoramento, com cerca de 80 magistrados, e diz que ouviu diversas vezes frases como “você sabe que imparcialidade é uma coisa que não existe, né ?”, assim como a explicação de que “as pessoas têm que acreditar que ali tem um juiz imparcial”. Essa dicotomia mostra que “mais que existir de fato, a imparcialidade se constitui como crença. E guarda uma ambiguidade: de um lado, manter vivo o seu discurso serve para ocultar sua eventual inexistência, e de outro, produz efeitos para os destinatários do sistema de Justiça”. Se o Judiciário assume que o juiz não consegue ser imparcial, o sistema vai falir. Acaba o sistema.
A jurista Bárbara Gomes Lupetti Baptista diz em diversos momentos que não pretende minimizar a revelação da intimidade e cumplicidade da relação entre o Ministério Público e a magistratura no caso dos processos conduzidos pelo ex-juiz Sérgio Moro, e sua consequência, como a prisão do ex-presidente Lula às vésperas da eleição, mas não o condena nem absolve. Apenas confirma que sua pesquisa empírica demonstra que “ explicitar (ou tratar) como absurda, incomum, inédita ou extraordinária a conduta do juiz que conduziu o processo da Operação Lava Jato é, de um lado, desconsiderar a realidade processual brasileira, e de outro manter viva a crença em um conceito de imparcialidade sem correspondência com a realidade”.
Uma frase que diz ter ouvido muito foi “a minha verdade é a minha justiça”. Outra: “Você não pode julgar com o coração. A sua referência é a lei. Mas só que você tem um coração. O que faz com ele?”. Nessa linha, diz a jurista Bárbara Gomes Lupetti Baptista, a postura de Sérgio Moro, “comprometida por suas convicções pessoais e senso particularizado de justiça no tratamento e na condução da Operação Lava Jato, apontando, inclusive sua relação pessoal com o Ministério Público, não é inédita, nem extraordinária; é recorrente no sistema de justiça”. Segundo ela, muitos juizes brasileiros cuidam de processos, avaliam provas, decidem casos e interpretam fatos e leis a partir de sensos particulares de justiça. “Moro e a Operação Lava Jato são, portanto, a mais pura explicitação da Justiça brasileira”.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/o-mito-da-imparcialidade.html
Bolsonaro fala em 'dificuldades' para renovar concessão da TV Globo, mas decisão cabe ao Congresso
Felipe Frazão e Eduardo Gaye /, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou a ameaçar neste sábado, dia 12, a renovação da concessão pública da TV Globo. Segundo o presidente, a emissora carioca poderá “enfrentar dificuldades” para obter a renovação da outorga de serviços de radiodifusão, que vence em 5 de outubro, quando completa o prazo de quinze anos.
"A renovação da concessão da Globo é logo após o primeiro turno das eleições deste ano. E, da minha parte, para todo mundo, você tem que estar em dia. [...] Não vamos perseguir ninguém, nós apenas faremos cumprir a legislação para essas renovações de concessões. Temos informações de que eles vão ter dificuldades", disse o presidente em entrevista ao ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho (PROS), na Rádio Tupi.
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O presidente retomou, dias depois de alegar que defende a liberdade de imprensa, críticas à Globo e se disse “perseguido” pelo jornalismo do canal. "Eu fui muito mais perseguido que você, Garotinho", acenou o presidente ao radialista da Tupi, agora seu aliado político. "Com todo respeito, eu sou um herói nacional. Sempre disseram que ninguém resiste a dois meses de Globo. Eu estou resistindo."
As declarações de Bolsonaro também ocorrem num contexto de reiteradas críticas à ideia defendida pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu virtual adversário nas eleições presidenciais deste ano, de regulação da mídia.
Ao longo do mandato, Bolsonaro deu diversas declarações dúbias, que deixam dúvidas sobre sua intenção de não recomendar a renovação da outorga à empresa da família Marinho. Ele costuma usar essas declarações como forma de mobilizar seus simpatizantes, principalmente nas redes sociais, contra a emissora. Em uma delas, disse que a empresa deveria estar “arrumadinha”, do ponto de vista tributário.
Apesar de sugerir a não renovação do canal aberto da Globo, Bolsonaro não tem o poder de decisão sobre essa e outras concessões. Pela lei em vigor, cabe ao presidente apenas indicar uma posição por meio de decreto, mas a palavra final é do Congresso Nacional.
Além da concessão da TV Globo, também vencem neste ano as concessões para exploração de canais abertos como a Band, TV Cultura e Record TV, em São Paulo. Mas, sobre elas, Bolsonaro nada fala.
As concessões pala exploração dos canais abertos de TV duram quinze anos. A detentora da outorga pede a renovação ao Ministério das Comunicações, que encaminha parecer ao Palácio do Planalto. Fontes do setor afirmam ser improvável uma derrubada, se os requisitos documentais estiverem atendidos, e que a não renovação exigiria motivos graves, como dívidas junto à União.
A Presidência envia sua posição ao Congresso, que delibera pela renovação ou não. O pedido passa por comissões temáticas e pelo plenário, na Câmara e no Senado. A não renovação exige votação nominal do Congresso. Já a cassação de uma outorga tem de ser feita por via judicial, conforme fontes do setor.
As reiteradas ameaças de Bolsonaro contra a Globo causam apreensão do setor de rádio e TV. Isso porque, se o presidente enviar ao Congresso mensagem contrária à renovação, deverá justificar o ato e adotar os mesmos critérios ao analisar o caso das demais emissoras. Um ato casuístico poderia repercutir negativamente, inclusive, em avaliações sobre a liberdade de imprensa no País, o que é analisado na adesão à OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Procurada pela reportagem, a TV Globo não respondeu sobre a declaração do presidente, até a conclusão desta edição.
Urnas
Na mesma entrevista ao aliado Garotinho, Bolsonaro repetiu a estratégia de colocar em suspeita a segurança das urnas eletrônicas, sem mostrar evidências. "Temos um sistema eleitoral que não é de confiança de todos nós ainda. A máquina não mente, mas quem opera a máquina é um ser humano", disse.
Na última quinta-feira, em transmissão ao vivo nas redes sociais, Bolsonaro disse que as Forças Armadas identificaram "dezenas de vulnerabilidades" no sistema de votação e cobrou uma resposta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A resposta da Corte veio no dia seguinte, com desmentido. “As declarações que têm sido veiculadas não correspondem aos fatos nem fazem qualquer sentido”, disse o TSE em nota oficial. Conforme o Estadão havia antecipado, os quesitos elaborados por especialistas do Exército em Defesa Cibernética têm caráter técnico sobre o funcionamento do sistema de votação eletrônica.
Por iniciativa da base do governo, o Congresso votou e rejeitou no ano passado uma proposta para adoção do voto impresso. Mesmo derrotado, o presidente ignorou a decisão do Legislativo e continuou sua cruzada lançando suspeitas nunca comprovadas sobre o sistema de urnas eletrônicas.
O tom afável da entrevista revelou mais um ato na aproximação do presidente com outro político que esteve atrás das grades. Bolsonaro já havia ingressado no PL, presidido por Valdemar Costa Neto, um dos condenados no escândalo do mensalão.
Nos últimos dias, Bolsonaro visitou a família Garotinho em Campos dos Goytacazes (RJ), reduto do clã. O prefeito da cidade é Wladimir Garotinho, filho do ex-governador com a ex-governadora Rosinha Matheus. O casal foi preso mais de uma vez e depois solto, por causa de contratos da gestão municipal com empreiteiras. No ano passado, Garotinho foi condenado a 13 anos e 9 meses de prisão por compra de votos, usando recursos da prefeitura de Campos. Ele também foi condenado criminalmente por um esquema de loteamento de cargos em delegacias de polícia, no governo do Estado. /Colaborou Lauriberto Pompeu
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Fonte: O Estado de S. Paulo
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Semana de 22 ainda diz muito sobre a grandeza e a barbárie do Brasil de hoje
José Miguel Wisnik / Folha de S. Paulo
[resumo] Iniciada há cem anos, Semana de Arte Moderna de 22 extrapolou os contornos paulistas para tornar-se marco da vida brasileira no século 20. O embate de suas potências e limitações prefiguraram os impasses da instauração do moderno por aqui, nas artes e na sociedade, o que se manifesta hoje em um Brasil espremido entre a grandeza e a barbárie.
A Semana de Arte Moderna é, hoje, uma pauta cultural e midiática que rememora a eclosão de cenas de modernismo explícito em fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo. Neste domingo (13), a inauguração da Semana completa cem anos.
A cidade explodia na condição de polo do comércio mundial do café, passando em ritmo acelerado de província à miragem da metrópole ("risco de aeroplano entre Mogi e Paris", diz um verso irônico de Mário de Andrade na "Pauliceia Desvairada").
Nela, o peso tradicional das oligarquias contracenava com a presença de multidões, de imigrantes de variada proveniência e de movimentos operários incipientes mas já organizados, como se viu na greve geral de 1917, cujo impacto paralisou a cidade por vários dias.
A frenética expansão urbana se dava a reboque dos interesses privados, sem projeto que não fosse o da aliança do monopólio dos serviços de transporte, de água, de gás e de luz (controlados pela Light) com a especulação imobiliária. O pai de Oswald de Andrade, por exemplo, ficou mais rico do que já era loteando o bairro de Cerqueira César, enorme extensão entre a avenida Doutor Arnaldo e o largo da Batata.
O escritor, contudo, virará muitas vezes do avesso as marcas dessa origem, com seu "fundamental anarquismo" e suas espetaculares traições de classe, o que faz de sua figura, literariamente transfigurada em "Memórias Sentimentais de João Miramar" (1924) e em "Serafim Ponte Grande" (1933), uma espécie de Brás Cubas não póstumo, ativo e autoparódico, exibindo descaradamente em vida o descaramento de seus pares, com brilho sarcástico e fulminante.
A seu modo, a biografia de Oswald já é ela mesma um índice da história do crescimento anômalo de São Paulo e a perfeita tradução da cidade como "avesso do avesso", condição que ele levou a dimensões insuspeitadas e extraordinariamente fecundas.
A profusão de estilos arquitetônicos importados e misturados dava à paisagem urbana um quê de miscelânea e de pastiche, em um clima de hibridismo polifônico e "arlequinal".
O antropólogo Claude Lévi-Strauss, que foi professor da USP nos seus inícios, nos anos 1930, disse mais tarde que a metrópole dos tristes trópicos ostentava uma vida intelectual novidadeira até o limite da inconsequência mas, no extremo, surpreendente; que ladeava arranha-céus com terrenos baldios e quase selvagens; e que a metamorfose indômita que nela se vivia contribuiu mais, em poucos anos, para a sua própria chegada ao pensamento estruturalista que a longa convivência com as seculares e sedimentadas cidades europeias.
São Paulo era, na verdade, um acontecimento urbano e humano em que se insinuavam alguns aspectos da vida mental das metrópoles industriais, quando a sensibilidade é exposta, em modo de aceleração, à eletricidade dos estímulos, à exaltação e ao trauma.
Porém, tudo isso na periferia do capitalismo ("galicismo a berrar nos desertos da América", outro verso da "Pauliceia") e em atrito com o marasmo dos hábitos arraigados de uma cidade que tinha cerca de 20 mil habitantes em 1872, 60 mil em 1890, quase 600 mil em 1922 e 1 milhão em 1930. A curva demográfica fala por si só do tamanho do empuxo e do quanto o fenômeno paulista era diferente do Rio. São Paulo era uma onda em processo de arrebentação.
Uma cidade que deixava de ser provinciana sem chegar a ser cosmopolita, à força de suas próprias contradições gritantes, que a abismavam entre o passado conservador estreito da província, limitado e ancorado nas suas oligarquias e nos seus hábitos morigerados, e um futuro galopante e irrefreável que se abria concretamente a uma nova complexidade da sociedade e da cultura, na base da fricção e do choque.
"Não era moderna, mas já não tinha mais passado", diz Nicolau Sevcenko em "Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes Anos 20". Brotava "como um colossal cogumelo depois da chuva" e como um enigma devorador "para seus próprios habitantes".
Não à toa, o modernismo paulista vocalizou pela primeira vez no Brasil, de maneira programática, com alarde exibicionista e provocador, questões então candentes como a quebra dos tabus estéticos da representação realista da natureza, da linearidade sintática, da poesia metrificada, da consonância tonal em música —rupturas que marcariam a linguagem artística do século 20.
Anunciava com estrépito, embora as obras daquele momento em geral não acompanhassem o tamanho do espalhafato, uma arte não linear, não naturalista, não aprazível e liberadora de novas potências. Na "Pauliceia Desvairada", escrita em 1921 e publicada no ano da Semana, Mário de Andrade praticou e teorizou, como ninguém até então, uma poesia simultaneísta, que ele associou com excepcional agudeza ao harmonismo e ao polifonismo em música.
A Semana poderia perfeitamente ter se resumido a um episódio datado, um arroubo curioso e sintomático em um momento localizado de transformações urbanas, mas acontece que dela participaram três dos maiores artistas brasileiros do século —Mário, Oswald e Villa-Lobos—, cujas obras terão desdobramentos e consequências fundamentais, aprofundando as promessas do movimento com o imponderável de suas criações singulares. Queiram ou não, a Semana foi uma conjugação artística de São Paulo e Rio.
Muita água rolou depois desses primeiros embates, e o arco das questões do movimento modernista ampliou-se, dos anos 1920 aos 1940, abrindo-se às interpretações do Brasil, à pesquisa e ao engajamento social, ao mesmo tempo que se abriam suas rachaduras internas e suas fraturas políticas.
Na conferência de 1942 ("O Movimento Modernista"), pronunciada no Rio, quando avaliava criticamente a Semana 20 anos depois, Mário deixa explícito que foi a oligarquia cafeeira quatrocentona —de corte aristocrático e já decadente, por isso mesmo disponível, na figura do empresário intelectual Paulo Prado— que deu suporte material ao movimento, desejando acertar passo com a modernidade da Segunda Revolução Industrial, por um lado, e confrontando a burguesia do dinheiro pelo dinheiro, por outro (o "burguês burguês", "a digestão bem feita de São Paulo", conforme a "Pauliceia").
Mário esboçava então uma análise das bases de classe do movimento e criticava o alheamento das responsabilidades sociais e políticas que marcou, segundo ele, a "orgia intelectual" dos anos 1920. Muita crítica que se tenta fazer hoje ao modernismo já está feita ali com mais lucidez. Mário, no entanto, a fazia não porque negasse o modernismo, mas porque afirmava em âmbito nacional o seu vetor construtivo, as conquistas da cultura moderna brasileira, "o direito permanente à pesquisa estética", a "atualização da inteligência artística" e a estabilização de suas instituições, sempre penosamente sustentada.
Em outras palavras, o que ele defendia naquele momento eram os pilares daquilo que hoje está sob o ataque atroz do bolsonarismo, com a sua corrosão antimoderna dos valores intelectuais e dos símbolos artísticos acumulados durante esses cem anos e com sua política de desmantelamento das instituições culturais.
Restrita em grande parte, na sua época, aos contornos paulistas, com o tempo a Semana tornou-se uma referência histórica, uma data reverencial e um mito de origem, consolidando-se depois como marco da vida brasileira no século 20.
Profanação do templo da cultura burguesa tradicional sem deixar de ser uma cerimônia de elite, autopublicitária já na origem, como costumavam ser as manifestações da vanguarda artística europeia que ela emulava, sem imitá-las à risca, a Semana recebeu na altura dos seus 50 anos (1972) outras camadas de consagração institucional que incitam, por sua vez, ao desmanche de sua mitologia.
O que resulta na mistura confusa, que temos no ar, hoje, de profanação datada com consagração da profanação e profanação da consagração. Nenhum desses formatos corresponde propriamente a uma reavaliação crítica capaz de identificar as potências e os limites do movimento segundo as perspectivas atuais.
Avaliação crítica não se confunde, por exemplo, com sanha diminuidora pautada pela querela localista, com "petite histoire" dos bastidores e com a manipulação arbitrária do anedotário, tudo baseado em uma visão rasa da literatura que jamais enfrenta as obras. Ruy Castro põe aquelas comemorações oficialescas do cinquentenário da Semana, em tempos de ditadura, na conta de Mário e Oswald, como se isso comprovasse uma vocação originária do movimento modernista para a direita.
Porém, o que havia de apropriação oficial e mumificante do ideário da Semana, em 1972, vinha justamente da articulação de remanescentes ligados às correntes ufanistas do verdamarelismo e da anta, isto é, Menotti del Picchia (que odiava Oswald, visceralmente) e Cassiano Ricardo, ainda vivos àquela altura e vendo na ocasião política uma oportunidade para recuperar o prestígio que a obra deles nunca teve.
Os artistas de oposição, os que não só lutavam contra a ditadura mas estavam fazendo obras seminais para a iluminação crítica e criadora do período, estavam encenando "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, como Zé Celso no Oficina em 1967, filmando e encenando "Macunaíma", de Mário de Andrade, como Joaquim Pedro de Andrade em 1969 e Antunes Filho em 1978. Ou Julio Bressane, mais tarde, fazendo em "Tabu" (1982) um contraponto entre Oswald e Lamartine Babo.
Exposição revê legado do modernismo na arte contemporânea; conheça obras
Outros intelectuais e pesquisadores difundiam o modernismo dentro dos meios institucionais possíveis e dentro de uma perspectiva crítica resistente e antiautoritária. A exposição internacional promovida pelo Ministério das Relações Exteriores, que Ruy Castro cita como exemplo de franca cooptação, trazia à frente a frase "Toda canção de liberdade vem do cárcere", extraída do "Prefácio interessantíssimo" à "Pauliceia Desvairada".
O movimento modernista só poderia ter irrompido em São Paulo, pelas especificidades locais já apontadas, mas desenvolveu variantes virais poderosas em outros lugares, por contágio e irradiações recíprocas, como se vê nos livros de Manuel Bandeira, Drummond e Murilo Mendes lançados em 1930.
Os penetrantes retratos de Oswald e de Mário traçados por Pedro Nava em "Beira-mar" relembram o momento em que os paulistas chegavam a Belo Horizonte em 1924. O poema de Carlos Drummond de Andrade, "No Meio do Caminho" ("no meio do caminho tinha uma pedra"), que vale por um movimento inteiro em dez versos, sendo já a compactação madura do modernismo, também foi alvo de intensa profanação e consagração cruzadas.
Talvez porque o Brasil, "condenado ao moderno" (segundo a famosa frase de Mário Pedrosa) sem nunca chegar a sê-lo, agarre-se ao fetiche de uma imagem que nunca atinge e nunca supera, do mesmo modo como acontece com a Semana, reivindicada por campos ideológicos opostos, cultuada e apedrejada, sintoma e ídolo polêmico, pauta jornalística que retorna e repete "ad infinitum" as mesmas perguntas.
Quando Mário morreu em 1945, Drummond escreveu uma elegia ("Mário de Andrade desce aos infernos", em "A Rosa do Povo") que é, além de um depoimento afetivo profundo, o reconhecimento de que o poeta da rua Lopes Chaves encarnava a entidade Brasil e tinha se tornado um ponto crucial de ligação entre as muitas dimensões simbólicas do país.
Quem o ler há de ver que a importância nacional de Mário de Andrade não é uma invenção fraudulenta da USP nos anos 1960 e 1970 (como defende Luís Augusto Fischer), mas tinha entrado na corrente sanguínea da cultura desde muito tempo.
As obras dos autores modernistas fortes se irradiaram participando vivamente do caldo de uma cultura brasileira cujo índice inicial ficou sendo retroativamente a Semana. Mito de origem inventado a posteriori, certamente, como todos esses marcos históricos, mas que "colou" como sintoma e como promessa das possibilidades do país no século 20. Acompanhar essa irradiação diz muito mais do que a volta aos "fatos" e fofocas feita na base da marcha a ré apequenante.
De Di Cavalcanti e Anita a Tarsila, Brecheret, Cícero Dias, Portinari, ela ressoa nos artistas visuais que redesenharam a face do país. Sérgio Buarque de Hollanda faz parte disso no campo do pensamento.
'O Rei da Vela'
A obra do carioca Heitor Villa-Lobos, cuja presença em 1922 foi marcante e definidora (Fischer o omite em seu artigo sobre o modernismo nesta "Ilustríssima" para não embaraçar a tese monocórdica do paulistismo estrito do movimento), está profundamente presente em três artistas tão poderosos quanto diferentes: Tom Jobim, Glauber Rocha e Zé Celso; a música popular, o cinema e o teatro; Rio, Bahia e São Paulo.
Villa era o ídolo musical e o modelo de Tom, que dialoga expressamente com ele no disco "Matita Perê" (1973). Mesmo tendo sido o braço musical e pedagógico da política de massas do Estado Novo, com o programa do canto orfeônico, Villa-Lobos foi parar com toda a força no cinema do subdesenvolvimento de Glauber Rocha, irrigando sonoramente "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "Terra em Transe" (1967), inconcebíveis sem ele.
Zé Celso concebeu o estraçalhamento de Penteu nas "Bacantes" de Eurípedes com base no extasiante coro do "Choros n. 10", conhecido como "Rasga o Coração", cujos meandros polifônicos são sustentados por todo o elenco em um verdadeiro"tour de force".
No mesmo movimento, resgata as palavras de Catulo da Paixão Cearense sobre música de Anacleto de Medeiros, que Villa-Lobos tinha tomado como referência na parte coral-sinfônica da obra, e rasga o coração da nossa dor mergulhando-a na "prismatização da luz solar" que vem da música brasileira.
Volto então a Oswald, para esclarecer um ponto crucial e urgente. Ao procurar chocar admiradores mais ingênuos de Oswald e Mário trazendo à tona facetas menos conhecidas dos dois autores em sua juventude, Ruy Castro transcreveu em sua coluna nesta Folha trechos de um artigo racista do jovem Oswald sobre o pugilista negro Jack Johnson.
O texto, que saiu em "O Pirralho" na altura de 1914, cerca de oito anos antes da Semana, é certamente um atestado da origem de classe do escritor e um comprovante dos estereótipos violentos que circulavam livremente entre os pares burgueses, naturalizando a estigmatização do negro e expressando, de quebra, o ressentimento diante de um homem preto e vencedor. O interesse histórico do documento só se completa, no entanto, quando posto em perspectiva.
Em 1937, Oswald foi convidado pela Frente Negra Brasileira a discursar em uma cerimônia de homenagem a Castro Alves, que se realizou no Theatro Municipal. Apenas dois outros brancos, além dele, foram chamados ao palco.
Em seu discurso —feito no tom solene que a circunstância exigia e na dicção de um tribuno das arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que ele também era—, Oswald invoca Zumbi dos Palmares e afirma que os negros "são a vanguarda dos que pedem a justiça social". Concita a uma aliança afro-indígena com os "humilhados dos três continentes", "irmanados pela má alimentação e pela péssima moradia, pela doença e pela falta de escola" —"brancos, amarelos e índios" organizando-se "sob as bandeiras heterogêneas mas unidas da democracia".
Ressalta que cabe aos negros o protagonismo nessa luta, pois são eles que vieram do fundo tenebroso do navio negreiro e que fazem parte da "população mesclada do outro navio de escravos" que é a própria sociedade brasileira, na qual arcam com "as fornalhas do trabalho e os duros serviços da tripulação".
Suas marcas de nobreza, arrancadas "do tronco infame, das cadeias e do chicote", dão à população negra, diz ele, "direitos enormes". Em suma, afirmação da dimensão racial da luta política.
Oswald relata ainda que a Frente Negra Brasileira, "uma das mais belas organizações sociais que tivemos", era perseguida e agredida impunemente pelos "roncos" e "ameaças" dos "camisas-verdes" integralistas que, na ocasião, tomaram metade do teatro, fardados, tentando sabotar o ato.
O discurso, proferido entre vivas e vaias, constitui, segundo Oswald, "uma das maiores alegrias de [sua] vida de lutador". Naquele momento, diz ter se sentido, como nunca antes, em um lugar para além "dos salões futuristas de 22". 1
Toca-me profundamente que a imagem do navio negreiro, no discurso da Frente Negra Brasileira, lembre um trecho de "O Santeiro do Mangue", peça teatral que Oswald escrevia nessa época e que o Teatro Oficina encenou com o nome de "Mistérios Gozozos".
Mário de Andrade
A canção "Coração do Mar", que eu musiquei sobre palavras dele, faz parte dessa peça sobre a zona do mangue no Rio de Janeiro. Elza Soares a escolheu em 2015 para abrir o álbum "A Mulher do Fim do Mundo", desembocando no refrão "É o navio humano quente/ Negreiro do Mangue", que ela fez questão de cantar à capela, ostentando na voz a dor, a nudez e a força das palavras. Palavras às quais Zé Celso tinha já acrescentado, em consonância com o original: "É o navio humano quente/ Guerreiro do Mangue".
Elza não teve qualquer dificuldade para entender imediatamente a dimensão profunda dessas canções oswaldianas, ela que é a expressão total da antropofagia popular tal como Oswald a define, capaz de absorver diferentes estilos e fundi-los com amor e humor, como faz com o "Mambo da Cantareira", interpretado como se fosse uma peça de flamenco ("Elza Soares & João de Aquino"), ou "Fadas", de Luiz Melodia, como se fosse Astor Piazzola ("Do Cóccix até o Pescoço").
Gravou "Flores Horizontais", expressão da voz da mulher prostituída e violentada, também sobre texto de "Mistérios Gozozos", rasgando a voz e o coração, e me contou que seu refrão ("Com Deus me deito/ Com Deus me levanto") era uma oração íntima dos negros pobres no Brasil, que ela rezava com o pai antes de dormir.
Em suma, se você aperta Oswald de um lado, ele cresce de outro. Morreu no ostracismo em 1954, mas foi reconhecido em alto nível pelo grupo da poesia concreta e pelos músicos-poetas tropicalistas por sua poesia, seus manifestos, seus romances (o par "Miramar"/"Serafim") e seus escritos filosóficos tardios, nos quais se combinam de modo próprio Nietzsche, Freud, Marx e o pensamento selvagem.
Haroldo de Campos identificou na sua poesia a radicalidade da linguagem ligada ao "ready made", à visualidade e à síntese. Roberto Schwarz a relacionou com o "potencial materialista e rebelde da obviedade bem escolhida" que "se encontra na poética de Brecht", como já tinha sido lembrado por Haroldo, fazendo uma análise aguda do seu sentido crítico, de seus ambivalentes vínculos com a oligarquia cafeeira, e reconhecendo-a dialeticamente como "um dos momentos altos da literatura brasileira".
Oswald de Andrade
Recentemente, a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro destacou a sua intuição surpreendente do perspectivismo ameríndio. Oswald identificou a crise da posição patriarcal no mundo contemporâneo e augurou a utopia de uma vida humana sem finalidade mercantil, à altura do seu destino e "à espera serena" da devoração do planeta pelo imperativo cósmico, sem precipitá-la em nome do lucro e sem abdicar da alegria (como Ailton Krenak).
Oswald é discutível, polêmico, anárquico e incorreto até a medula, mas a crítica não tem como negar-lhe as dimensões da grandeza e da complexidade. O negacionismo de Ruy Castro faz par com o de Lobão, quando este malha Oswald e emula Olavo de Carvalho em seu livro "Manifesto do Nada na Terra do Nunca" (com mais conhecimento de causa, aliás, e mais envolvimento na leitura do texto, mesmo que completamente equivocado, do que as avaliações puramente externas de Ruy).
Para mim, o que há de mais significativo, hoje, sobre o acontecimento em si da Semana de Arte Moderna não está contido nem na cena nem nos bastidores do Municipal, mas no poema final da "Pauliceia Desvairada", de Mário de Andrade, que se chama "As Enfibraturas do Ipiranga".
É um poema longo, meio descalibrado, escrito ainda em 1921, mas que tem o efeito de uma espécie de antevisão alucinada e sintomática, como só a poesia poderia fazer, dizendo nas linhas e nas entrelinhas aquilo que os programas explícitos não dizem. 2
Mário figura a população de São Paulo reunida no vale do Anhangabaú para cantar em coro um grande "oratório profano" com acompanhamento sinfônico. Não se trata de um coro unitário, mas de um campo conflagrado de blocos corais que se enfrentam em uma "grita descompassada", acompanhados de uma orquestra agigantada e caótica.
Entrincheirados nos terraços e janelas do Theatro Municipal estão os artistas acadêmicos, parnasianos e beletristas ("orientalismos convencionais") entoando com voz grandiloquente a marcha fúnebre da conservação universal dos costumes e dos padrões estéticos.
Com os pés no fundo do vale, assumindo a própria desafinação e a falta de ensaios, os modernistas ("juvenilidades auriverdes") deblateram uma espécie de "hino à alegria" tropical que faz pensar em uma parada gay "avant la lettre".
Não porque tematize a questão de gênero, mas porque levanta um clamor erótico no sentido mais amplo da palavra —o de Eros como expressão fusional da existência, afirmando a multiplicidade polimorfa do desejo contra o paredão conservador, refratário às linhas mutáveis da vida.
Nas sacadas elegantes do lado oposto do vale, a burguesia endinheirada ("senectudes tremulinas") exibe sua posição de privilégio apoiando de maneira caricata o bloco conservador.
Postados no viaduto do Chá, trabalhadores ("sandapilários indiferentes") assistem ao entrevero burguês e vaiam tanto os "passadistas" como os "futuristas", mais interessados na ópera (tradição importante para a cultura operária italiana) e nos sucessos da nascente música popular urbana, em que despontava o recente "Pé de Anjo", de Sinhô.
Colocando-se o embate não dentro, mas fora do teatro, a cidade é vista como aquilo que ela passava a ser: palco social explícito, anfiteatro aberto de choques. Comparecem os grupos que participaram, mas também os que não participavam do acontecimento no Municipal, fazendo parte de uma batalha campal de forças comportamentais e artísticas, encenando suas contradições gritantes.
Enquanto ricaços, apresentados como decrépitos, dão as mãos ao moralismo esteticamente reacionário, o poema não esconde que há entre modernistas e trabalhadores, mais que uma distância, uma fratura. A polêmica estética acontece dentro de um arregaço maior que engolfa classes e grupos sociais em reações díspares e autocontraditórias.
A arte erudita da cultura dominante não rege a sociedade de massas. O café com leite das oligarquias não dá mais conta da escala dos novos embates socioculturais. A própria exaltação modernista namora com a autoaniquilação decadentista.
Sob um regime de polifonia acirrada, a batalha ritual passa por um processo de fricção, fritura e fratura, rompendo-se afinal o tecido esgarçado sem que seja vencido o bloco conservador.
Recobertas pelo manto de uma "enorme vaia de assovios, zurros, patadas", as "juvenilidades auriverdes" morrem como sementes no solo do Anhangabaú, augurando-se sua utópica redenção futura em um tempo mais propício.
Mário passava longe, como se vê, de uma previsão eufórica e triunfante sobre o destino do movimento modernista. Trata-se de uma encenação dramática e francamente problemática da instauração do moderno no Brasil, não só do ponto de vista artístico, mas do ponto de vista social e político, enquanto abertura a uma sociedade complexa e desigual cuja crise Mário pensou sanar depois com o resgate da cultura popular e, mais tarde ainda, com uma agônica adesão à arte engajada.
O poema de 1921 é um índice convulsionado da funda dificuldade de mudança que nele se constata e anuncia. Não deixa de nos soar estranhamente atual a presença de uma agressiva e empedernida ação antimoderna acumpliciada com a casta empresarial, como se já assistíssemos, cem anos antes, à dança de Damares com faria limers.
A face luminosa dessa atualidade encontra-se no emblemático show de Emicida no Theatro Municipal de São Paulo em 2020, que costura a matéria documental e artística do filme "AmarElo – É Tudo pra Ontem" (disponível na Netflix). O espetáculo é uma assumida profanação (enquanto ocupação do espaço interdito, tomando-o para usufruto dos excluídos), ao mesmo tempo que uma consagração do espaço público destinado a todos.
Emicida dialoga diretamente com a Semana de Arte Moderna, elege uma epígrafe de Mário de Andrade ("nosso modernista favorito"), homenageia a antropofagia oswaldiana ("só o que é do outro me interessa") e mostra o quanto o Theatro Municipal e o vale do Anhangabaú permaneceram ao longo do tempo como o eixo de referência das pulsações culturais da cidade para os invisibilizados e postos à margem.
Resgatando as enfibraturas históricas da negritude em São Paulo, chama a atenção para o fato de o MNU (Movimento Negro Unificado) ter elegido as escadarias frontais do Municipal como espaço de suas manifestações históricas, em 1978, e como as batalhas de ritmo e poesia do movimento hip-hop escolheram o largo São Bento como seu território, homenageando o escravizado-arquiteto Tebas, construtor de igrejas no século 19.
"AmarElo" resgata, assim, um arco de tempos e espaços contendo múltiplas manifestações políticas e criativas, individuais e coletivas, de modo a construir, a partir das periferias, uma inesperada ponte sobre a fenda, apontando para o Anhangabaú.
Se há algum lugar onde se cumpre o desejo adormecido no sonho convulsionado e inconcluso do poema final da "Pauliceia", para além de si mesmo, não é nas frenéticas comemorações da Semana, mas nesse acontecimento.
A força e a fraqueza do grande arco da cultura moderna no Brasil, que vai dos anos 1920 aos 1960, consiste na aliança entre o erudito e o popular com base na mediação da classe média. Esse arco poderoso incluiu a literatura, as artes visuais, a música de concerto e chegou à MPB e ao cinema novo, apontando para um salto social que a ditadura interrompeu.
Acontecimento decisivo no campo cultural mais recente é a emergência de um sujeito periférico que se encarrega das próprias mediações, a começar do "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MC’s, em 1997. Emicida leva adiante essa chama. Sabe das diferenças com os modernistas, mas não abre mão da grandeza inspiradora de quem acrescenta mundos ao mundo.
Oswald de Andrade distinguia a alta e a baixa antropofagia. A alta antropofagia reside basicamente na capacidade de "ser outro" ao reconhecer o outro em si (trata-se de uma operação de rigor que não se confunde com a indiferenciação do consumo onívoro nem com o ato de comer e "vomitar" influências).
Já a baixa antropofagia, ele resumiu, no "Manifesto Antropófago", em quatro palavras: inveja, usura, calúnia e assassinato. Não é difícil reconhecer essas forças nefastas no panorama atual, na forma da cultura do ressentimento (inveja), do liberalismo oportunista (usura), das fake news (calúnia) e da necropolítica ostensiva (assassinato).
O assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe é a evidenciação horrenda da baixa antropofagia dada em espetáculo dantesco —a consumação do Brasil como o cu do mundo arreganhado e à mostra. "A mais triste nação/ Na época mais podre/ Compõe-se de [...]/ Grupos de linchadores", diz a canção de Caetano Veloso ("O Cu do Mundo").
Por uma ironia cruel, alegórica e quase surrealista, o quiosque em que Moïse foi morto se chama Tropicália. Tropicália, além de nos remeter a Caetano e a Hélio Oiticica, associa-se a Oswald e, em um passo, estamos de volta ao espectro da Semana de Arte Moderna, na encruzilhada entre o século 20 e o 21.
Trata-se de transformar o horror em totem. Marcar e venerar o lugar de Moïse. Revirar e reexistir. Tornar inadmissível a normalização do inadmissível. Rasgar o coração, banhar a imensidão do nosso penar na prismatização da luz solar.
Em 2022, o Brasil está espremido entre a alta e a baixa antropofagia. Eis a questão.
[1] O discurso foi transcrito por Oswald em sua coluna "Banho de sol", publicada no periódico Meio Dia, em 14/03/1939, com o título "Comemorando Castro Alves". Encontra-se na antologia do jornalismo oswaldiano organizada por Vera Maria Chalmers e publicada com o nome de "Telefonema" (Civilização Brasileira, 1974, p. 56-57). Já a narrativa do ato encontra-se em "Sobre Castro Alves", publicada em 30/03/1944 no Correio da Manhã, e recolhida em edição posterior de "Telefonema", organizada também por Chalmers (Globo, 2007, p. 114-116).
[2] Desenvolvo o argumento em "A República Musical Modernista", publicado em Gênese Andrade, (org,), Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras, 2022, p. 170-195).
*José Miguel Wisnik é professor sênior de literatura brasileira na USP, ensaísta e compositor, é autor, entre outros, dos livros “Maquinação do Mundo” (2018) e “Veneno Remédio” (2008)
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml
Plataformas demoram a reagir a alertas, e fake news seguem em expansão nas redes
Marlen Couto e Lucas Mathias / O Globo
Em meio à pressão para barrar a circulação de notícias falsas, plataformas de redes sociais disponibilizaram ferramentas que permitem aos usuários denunciar as publicações, mas a demora na reação tem permitido que as mensagens sigam no ar, sem avisos sobre o teor enganoso — e ganhando impulso mesmo depois das comunicações. O GLOBO testou os mecanismos criados por Facebook, Instagram e Twitter em 20 postagens com desinformação sobre saúde e política, entre 26 de janeiro e 3 de fevereiro. As redes agiram até as 18h de sexta-feira com rótulos de mensagem enganosa ou remoção de conteúdo em apenas quatro casos — em um deles, após a identificação de que se tratava de uma reportagem.
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Os outros 16 posts seguem no ar, sem qualquer alerta. Nesse grupo, sete receberam links para sites de instituições ligadas aos temas citados, como o Ministério da Saúde e a Justiça Eleitoral, e textos reforçando a segurança de vacinas, mas sem afirmar que são conteúdos desinformativos.
Entre as publicações que permanecem online, sem selos de mensagem enganosa, estão conteúdos dos deputados federais Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP) e Filipe Barros (PSL-PR) e do ex-senador Magno Malta. Na maioria das postagens, são lançadas dúvidas sobre a eficácia de vacinas contra o coronavírus — há também associações falsas entre a aplicação do imunizante, mortes e efeitos colaterais.
Em um dos casos, por exemplo, Bia Kicis usa um site americano que se apresenta como conservador para divulgar dados sobre “doenças graves” decorrentes da vacina — cientistas são unânimes em afirmar que a imunização contra a Covid-19 é segura. Já Carla Zambelli afirma que tem “imunidade maior” do que a conferida por vacinas — também há consenso entre pesquisadores de que o meio mais eficaz para conquistar imunidade é receber as doses.
No caso de Filipe Barros, as postagens são relacionadas às urnas eletrônicas. Em quatro delas, três no Twitter e uma no Facebook, há afirmações de que a votação no Brasil não é confiável e de que as urnas eletrônicas não são auditáveis, o que já foi diversas vezes rebatido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Professor de Estudos de Mídia da Universidade da Virginia e de Harvard, nos Estados Unidos, o pesquisador David Nemer avalia que não há transparência e critério claro sobre quais conteúdos devem ou não ser alvo de ações das redes. Ele defende que as plataformas identifiquem e atuem com foco em perfis centrais na cadeia de desinformação:
— Campanhas de desinformação são lideradas por poucas contas. Quando o Donald Trump perdeu a eleição, e houve disseminação sobre fraudes, uma dezena de contas liderava a campanha. Uma vez removidas, a desinformação caiu bastante. Não é preciso remover todas as contas, mas identificar quais são os hubs de desinformação. Isso qualquer rede consegue, mas não acontece porque são contas que geram engajamento, e engajamento é dinheiro para as redes sociais.
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Fundadora e coordenadora do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ, Rose Marie Santini ressalta que as plataformas têm se esquivado de atuar especialmente contra perfis de “parlamentares, celebridades e famosos”, figuras que movimentam os debates nas redes. A especialista também questiona a demora no tempo de resposta das plataformas e o impacto que isso pode causar, por exemplo, no cenário eleitoral.
— É gravíssimo. Sabemos, por estudos históricos, que o voto é decidido nos últimos dias para a maioria dos eleitores indecisos. Se uma fake news é disseminada dois dias antes da votação, pode alterar o resultado, com esses indecisos. O tempo de resposta é completamente insatisfatório.
Impulso pós-alerta
O Facebook incluiu um selo de mensagem parcialmente enganosa em uma postagem em que Bia Kicis compartilhou um vídeo de um homem que se diz inventor das vacinas de mRNA e afirma que elas não estão funcionando, conteúdo já classificado como falso por serviços de checagem. A postagem foi denunciada pelo GLOBO no dia 26 de janeiro. Após o alerta, a publicação somou mais 7 mil compartilhamentos e 9,1 mil curtidas, além de totalizar 110 mil visualizações de vídeo.
A plataforma também incluiu um selo de mensagem “parcialmente falsa” em um vídeo em que Magno Malta lança dúvidas sobre a segurança de vacinas contra a Covid-19 em crianças. O post foi denunciado pelo GLOBO no dia 1º de fevereiro, mas só recebeu o selo dez dias depois, na sexta-feira, quando o Facebook já sabia que o aviso era parte do teste para a reportagem. Até a denúncia, o vídeo contava com 74 mil visualizações, e ainda somou mais 71 mil depois do aviso, chegando a a 145 mil.
No Instagram, o vídeo teve mais 69,7 mil visualizações após a denúncia, mas não recebeu o mesmo selo de mensagem “parcialmente falsa”. A plataforma incluiu na parte inferior uma mensagem em que afirma que as vacinas passam por vários testes de segurança e eficácia.
Já o Twitter suspendeu a conta da médica infectologista Roberta Lacerda. O GLOBO denunciou no dia 2 de fevereiro uma postagem da conta com um link em que se dizia que a vacina contra a Covid-19 é experimental e ineficaz. No dia seguinte, o perfil não estava mais no ar. O Twitter também incluiu um selo de mensagem enganosa em uma postagem da revista “Oeste” com a afirmação falsa de que, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão de saúde dos Estados Unidos, haveria 12 mil mortes relacionadas a vacinas contra a Covid-19. Em nota, a revista afirmou que a reportagem é fruto de “apuração jornalística”, não configura desinformação e não é enganosa.
"Sem papel de arbitrar”
A Meta, controladora do Facebook e do Instagram, informou que conta com parceiros independentes para a verificação de fatos, mas que não envia conteúdo de políticos eleitos para a revisão, caso da maioria das postagens denunciadas pelo GLOBO. “Não acreditamos que seja nosso papel arbitrar debates políticos e impedir que o discurso de um representante eleito chegue ao seu público e seja alvo de amplo debate e escrutínio”, destacou. A Meta afirmou que não permite “desinformação grave sobre Covid-19 que possa colocar a vida das pessoas em risco”.
O Twitter afirmou em nota que, como informado no anúncio do teste de denúncia de desinformação, feito em janeiro, pode “não avaliar todas as denúncias e não responder a cada uma delas, uma vez que o objetivo do experimento é ajudar a identificar novas narrativas e aprimorar os esforços de enfrentamento à desinformação”.
Integrante da Coalizão Direitos na Rede e representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet (CGI), Bia Barbosa defende uma discussão mais ampla sobre a formulação das regras apresentadas pelas plataformas:
— Trata-se de uma seara que não é só a discussão sobre se as redes estão aplicando as regras ou não, mas sobre quais regras deveriam existir e sobre em que espaços essas políticas e diretrizes da comunidade são definidas, para que isso não seja uma discricionariedade só dessas empresas. Elas já são bastante poderosas em relação à definição do fluxo de conteúdo na rede.
Os deputados Bia Kicis, Filipe Barros e Carla Zambelli não retornaram aos pedidos de posicionamento. O ex-senador Magno Malta não foi encontrado.
Veja algumas das postagens denunciadas
Conteúdo: A deputada compartilhou um vídeo em que um homem que se apresenta como Robert Malone e se diz inventor das vacinas de mRNA a!rma que os imunizantes não estão funcionando e não são completamente seguros
Ação da rede: O Facebook incluiu selo de “informação parcialmente falsa”
Impacto: Quando o GLOBO fez a denúncia, a postagem registrava 4,9 mil compartilhamentos e 6,9 mil curtidas. Em seguida, somou mais 7 mil compartilhamentos e 9,1 mil curtidas, além de totalizar 110 mil visualizações de vídeo
Conteúdo: O ex-senador defende, em um vídeo, que crianças não devem ser vacinadas contra Covid-19 e lança dúvidas sobre a segurança dos imunizantes
Ação da rede: Após contato do GLOBO, o Facebook incluiu selo de mensagem parcialmente falsa dez dias depois da denúncia. Já o Instagram não incluiu selo para o mesmo conteúdo
Impacto: Até a denúncia do GLOBO o vídeo contava com 74 mil visualizações no Facebook. Em seguida, somou mais 71 mil, chegando a 145 mil visualizações. No Instagram, o vídeo teve mais 69,7 mil visualizações após a denúncia
Conteúdo: O deputado compartilhou um vídeo de uma entrevista em que se afirma que as urnas eletrônicas não são auditáveis
Ação da rede: A postagem continuou no ar e não foi incluído selo de desinformação
Impacto: Até a denúncia do GLOBO, o vídeo somava 2,2 mil visualizações no Facebook. Em seguida, chegou a registrar 104 mil
Conteúdo: A postagem diz que, segundo o CDC dos EUA, há 12 mil mortes relacionadas a vacinas contra Covid-19
Ação da rede: A publicação recebeu selo de mensagem enganosa
Impacto: O número de curtidas e compartilhamentos não ficou mais disponível após a ação da rede
Conteúdo: Reproduz vídeo em que se afirma que há 21 mil casos de miocardite nos EUA causados pelas vacinas
Ação da rede: A postagem continuou no ar e não foi incluído selo de desinformação
Impacto: O vídeo teve mais 6 mil visualizações após denúncia do GLOBO
Conteúdo: Deputada compartilhou mensagem que afirma que dados de levantamento na base militar dos EUA registram aumento de condições médicas adversas relacionadas à vacinação contra Covid-19
Ação da rede: A postagem continuou no ar e não foi incluído selo de desinformação
Impacto: A postagem recebeu mais 4 mil curtidas após a denúncia do GLOBO
‘Bolsonaro facilitou a vida das milícias digitais’, diz Barroso
Mariana Muniz / O Globo
BRASÍLIA — Ao longo de um ano e nove meses à frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso teve de conviver com ataques do presidente Jair Bolsonaro à confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e com insinuações, menos ou mais explícitas, de que poderia não respeitar uma derrota nas urnas. Para o ministro, as investidas do titular do Planalto contra as urnas eletrônicas revelam “limitações cognitivas e baixa civilidade”, enquanto favorecem a atuação de milícias digitais — uma relação investigada pela Polícia Federal. O ministro afirma que Bolsonaro facilitou a vida desses grupos ao divulgar dados sigilosos do inquérito que apurava um ataque hacker à Corte.
Antes de passar o bastão ao seu colega Edson Fachin no próximo dia 22, Barroso avalia que a suspensão do aplicativo de mensagens Telegram é uma medida viável durante as eleições deste ano. A plataforma, criada por russos e com sede em Dubai, tem ignorado as tentativas de notificação feitas pelo TSE para cooperar no combate à desinformação. Ao GLOBO, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) afirma que “o Brasil não é casa da sogra para ter aplicativos que façam apologia ao nazismo, ao terrorismo, que vendam armas ou que sejam sede de ataques à democracia”.
É realmente viável a possibilidade de o Telegram ser banido do Brasil?
Nenhum ator relevante no processo eleitoral pode atuar no país sem que esteja sujeito à legislação e a determinações da Justiça brasileira. Isso vale para qualquer plataforma. O Brasil não é casa da sogra para ter aplicativos que façam apologia ao nazismo, ao terrorismo, que vendam armas ou que sejam sede de ataques à democracia que a nossa geração lutou tanto para construir. Como já se fez em outras partes do mundo, eu penso que uma plataforma, qualquer que seja, que não queira se submeter às leis brasileiras deva ser simplesmente suspensa. Na minha casa, entra quem eu quero e quem cumpre as minhas regras.
Esse é um papel do TSE?
Eu penso que essa é uma decisão que preferencialmente cabe ao Congresso, onde já há um projeto de lei específico dizendo que, para operarem aqui, as plataformas têm de ter um representante específico e se subordinar à legislação brasileira. É simples assim. Conversei pessoalmente com o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto (das fake news), e enfatizei a importância de que qualquer plataforma que opere no Brasil tenha representação aqui.
Na ausência de uma ação do Congresso, o TSE pode adotar alguma medida em relação ao Telegram?
De modo geral, o Poder Judiciário não age de ofício, sem que haja uma provocação adequada. Acho muito possível que este pedido venha em alguma demanda ou perante o TSE ou o Supremo. Nesse caso, o tribunal não pode deixar de decidi-la por supostamente inexistir uma lei específica. Portanto, teremos que decidir, na forma da Constituição e das leis, se alguém pode operar no Brasil fora da lei.
Como o senhor responde às críticas de que eventual suspensão do aplicativo afetaria a liberdade de expressão?
Liberdade de expressão não é liberdade para vender arma. Não é liberdade para propagar terrorismo, para apologia ao nazismo. Não é ser um espaço para que marginais ataquem a democracia. Portanto, ninguém quer censurar plataforma alguma, mas há manifestações que não são legítimas. É justamente para preservar a democracia que não queremos que estejam aqui livremente plataformas que querem destruir a democracia e a liberdade de expressão.
Na última quinta-feira, Bolsonaro voltou a lançar dúvidas sobre a transparência das eleições e, sem apresentar provas, disse que foram levantadas supostas “vulnerabilidades” do sistema eleitoral. Como lidar com esses novos ataques?
O presidente tinha dado a palavra de que esse assunto estava encerrado. Chegou a elogiar o sistema de votação eletrônico brasileiro. O filme é repetido, com um mau roteiro. Não há nenhuma razão para assistir à reprise. Antes, o presidente dizia que tinha provas de fraude. Intimado a apresentá-las, (ficou claro que) não havia coisa alguma. Essa é uma retórica repetida. É apenas um discurso vazio.
O presidente declarou que as Forças Armadas questionaram o TSE sobre supostas vulnerabilidades no sistema eleitoral. O que ocorreu?
O que há de minimamente verdadeiro: há um representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições. Em dezembro, ele apresentou uma série de perguntas para entender como funciona o sistema. Elas entraram às vésperas do recesso. Em janeiro, boa parte da área técnica do TSE faz uma pausa, e agora as informações solicitadas estão sendo prestadas e vão ser entregues na semana que vem. Só tem perguntas. Não há nenhum comentário. Não falam de vulnerabilidade. Quando o presidente diz que encontraram vulnerabilidades antes mesmo de receber as respostas às indagações, ele está adiantando, desavisadamente, a estratégia que ele pretende adotar. Para falar a verdade, ele queimou a largada. Ele lança mão dos questionamentos feitos pelo representante das Forças Armadas, quando, na verdade, tudo o que foi feito foram algumas perguntas e, antes de ter recebido as respostas, já disse que tem vulnerabilidades. Ele antecipou a estratégia dele, que é: não importa quais sejam as respostas, eu vou dizer que o sistema eleitoral eletrônico tem vulnerabilidades. Ele não precisa de fatos, a mentira já está pronta.
Na abertura do ano Judiciário no TSE, o senhor disse que o presidente da República vazou a estrutura interna da área de Tecnologia da Informação da Corte. Na prática, Bolsonaro cometeu crime?
Eu não tenho que julgar. Eu me referi ao relatório da delegada que conduz o inquérito e que tem uma opinião que merece ser respeitada. A delegada tem estabilidade. E isso dá o tom do que de fato aconteceu. Ainda na gestão anterior do TSE, houve uma tentativa de invasão (do sistema). Foi instaurado um procedimento sigiloso no TSE, um inquérito sigiloso na Polícia Federal no qual foram requeridas informações sensíveis sobre a arquitetura interna do TSE e esse material foi colocado na rede social do presidente. O presidente facilitou a vida das milícias digitais.
É possível que tenhamos uma das eleições presidenciais mais acirradas desde a redemocratização. O senhor tem algum temor?
O TSE assegurará eleições livres, limpas e seguras. A polarização existe em todo o mundo. E a democracia tem lugar para liberais, para progressistas e para conservadores. Ela só não tem lugar para os que querem destruí-la. Acho que já superamos os ciclos do atraso, e não acho que haja risco de retrocesso, apesar de termos tido alguns maus momentos recentes.
Quais foram?
Comício do presidente na porta do quartel-general do Exército, tanques na Praça dos Três Poderes, a minguada manifestação do 7 de setembro com discursos golpistas de desrespeito a decisões judiciais e ataques a ministros. Tudo isso eu acho que mais revela limitações cognitivas e baixa civilidade do que propriamente um risco real.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/entrevista-bolsonaro-facilitou-vida-das-milicias-digitais-diz-barroso-25392162
Narrativa nazista contamina discurso político no país
Cristiane Noberto e Tainá Andrade / Correio Braziliense
Na última semana, a internet se deparou com influenciadores digitais famosos colaborando com ideias antissemitas disfarçadas de liberdade de expressão. O tema movimentou a pauta política e mobilizou as redes sociais. O Correio ouviu especialistas e parlamentares para desmistificar o assunto e o que pode acontecer com quem colabora com esse tipo de pensamento.
Na segunda-feira (7), o ex-apresentador do Flow Podcast, Bruno Monteiro Aiub, conhecido como Monark, defendeu que não há nada de errado em perseguir judeus. "Eu acho que tinha que ter o partido nazista reconhecido por lei. [...] A questão é: se o cara quiser ser um antijudeu, eu acho que ele tinha o direito de ser." Na ocasião, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) também criticou a criminalização de ideologia nazista na Alemanha. Na terça (8), o comentarista político Adrilles Jorge encerrou sua participação no programa Opinião com um gesto associado a uma saudação nazista. Ambos influenciadores foram desligados dos canais.
Outro episódio foi reportado à delegacia regional de Polícia Civil de Divinópolis (MG), na quinta (10). Enquanto era realizada a Primeira Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial, indivíduos invadiram o debate e projetaram símbolos visuais e textuais nazistas.
As manifestações movimentaram a agenda política. Na quinta, o Senado Federal promoveu sessão solene para homenagear e relembrar as vítimas do holocausto e realizar a cerimônia do Yom HaShoá, conhecido como Dia da Lembrança do Holocausto. Um dia antes, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) enviou à casa um PL para criminalizar condutas associadas à promoção do nazismo e do fascismo. Simone Tebet (MDB-MS) também protocolou o projeto que pretende suprir a ausência da criminalização ao que se refere ao nazismo, por meio da Lei Antirracismo.
Na justificativa, a parlamentar lembrou que países como Bélgica, Alemanha, Itália, Grécia e Áustria, entre outros, criminalizaram a negação do holocausto. "O mote de tais grupos é propagar e alimentar discursos de ódio relacionados à misoginia ou ao antissemitismo, bem como contra negros ou integrantes do grupo LGBTQIAP , entre outros. Por perceber que há uma lacuna legal para o tipo específico do crime, com reclusão de 3 a 6 anos", explicou a senadora.
Procurado pelo Correio, o líder do PL no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), repudiou o tema, mas não se manifestou sobre as ações dos colegas. "Meu maior repúdio e silêncio absoluto sobre esse tema. Por respeito aos judeus e às minorias, o assunto merece toda a minha rejeição. Que a justiça trate daqueles que desconhecem a história", lamentou.
Discurso de ódio
Na avaliação de especialistas, desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a Presidência da República, cresceu o discurso de ódio no país. Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama, aponta que o movimento neonazista cresceu 270% nos últimos três anos no mundo.
"Esse tema volta à tona nas redes sociais de dois modos. Primeiro, porque existem, sim, pessoas e grupos que apoiam ou simpatizam com esses ideais em maior ou menor grau. Portanto, se aproveitam de episódios (como os da semana anterior) para trazer à tona essa ideologia. Segundo, porque algumas pessoas, sob o pretexto de defender uma liberdade de expressão ilimitada, algo que não existe em lugar nenhum do mundo, acham que seria justo as pessoas terem o direito de defenderem os ideais nazistas, ou então, acham que seria melhor descriminalizar o nazismo ou os partidos políticos alinhados com essa ideologia", explicou.
A professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Débora Messenberg atribui a força que o discurso de ódio ganha a um programa orquestrado pela extrema direita, que tenta colocar, "no mesmo plano", nazismo e comunismo. Porém, ressalta a especialista, a principal diferença é que o comunismo não propaga a eliminação de um grupo, por isso se torna "uma distorção da realidade para confundir. Quem adere é quem não tem interesse crítico no assunto", concluiu.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/02/4984877-narrativa-nazista-contamina-discurso-politico-no-pais.html
Luiz Carlos Azedo: Encontro de Bolsonaro com Putin é o centro das atenções mundiais
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Como acontece com algumas palavras do nosso vocabulário, a palavra obrigado em russo tem vários significados. “Spassibo” se pronuncia com a tônica na segunda sílaba e o “a” no lugar do “o”: spa-ssí-ba. Sua origem é a expressão “spassi bog”, do eslavo antigo, que significa “Deus o salve”. Entre os internautas russos, foi abreviada para “spassib”; na comunidade LGBT , “passib”. É uma palavra muito usada para agradecer, mas também pode ter outros significados, como em “skaji spasibo”, usado para dizer que uma pessoa é mal-agradecida.
Os russos podem ser rudes na forma de falar obrigado: “Spasibo v karman ne polojich”, isto é, “você não pode colocar obrigado no bolso”. Ou extremamente agradecidos: “Spassibo ogromnoe” é literalmente um “enorme obrigado”. Essa expressão é usada quando alguém realmente fez um favor ou ajudou muito. Prestemos muita atenção, pois, na forma como o presidente Vladimir Putin agradecerá a visita do presidente Jair Bolsonaro, que viaja amanhã para a Rússia.
Bolsonaro está indo para o olho do furacão da conjuntura política mundial. O conflito da Ucrânia exumou a “guerra fria” e corre o risco de virar guerra quente, se Putin realmente decidir invadir a Ucrânia, o que pode ocorrer a qualquer momento, segundo o alarmismo dos serviços de inteligência norte-americano e britânico. Seus dois encontros com Putin — uma reunião bilateral e um almoço entre os dois chefes de Estado — foram marcados antes da escalada do conflito, com foco nas relações comerciais, principalmente a exportação de carne e a compra de fertilizantes. O contexto, porém, mudou completamente, devido à dimensão geopolítica envolvida na relação Brasil-Rússia.
Houve momentos na História do Brasil em que essas relações estiveram no centro da nossa política nacional. O primeiro foi em 1935, quando Luís Carlos Prestes, líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL), tentou tomar o poder; o segundo, em 1964, quando o líder comunista articulava a reeleição de João Goulart. A aproximação do presidente brasileiro com o então premiê da União Soviética, Nikita Kruschov, corroborada pela visita do astronauta Yuri Gagárin e a exposição soviética no Rio de Janeiro, serviria como um dos pretextos para o golpe militar.
A Federação Russa não tem um regime comunista, porém, em termos geopolíticos, seus interesses estratégicos são os mesmos da velha Rússia czarista e da antiga União Soviética. Após a derrubada do Muro de Berlim, frustraram-se as aspirações russas de ingressar na União Europeia, enquanto a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos e a Inglaterra, avançou em direção às antigas repúblicas do Leste Europeu.
A contrapartida foi a guinada nacionalista de Putin e sua deriva autoritária, a partir de uma aliança com os militares e a Igreja Ortodoxa, o controle do Judiciário, do setor energético e dos meios de comunicação. Quando assumiu o poder, Putin não tinha uma estratégia clara, encontrou um país em profunda crise econômica, desagregação e em meio ao caos social. Ergueu a bandeira da ordem e, com ela, governa há quase 22 anos. O outro lado dessa moeda é que a Rússia se tornou uma “democracia iliberal”.
Há muito mais convergências políticas e ideológicas entre Bolsonaro e Putin do que as aparências, mas os interesses geopolíticos do Brasil e da Rússia são muito diferentes. Geopolítica é um dos pilares de qualquer política de Estado. A crise da Ucrânia empurra a Rússia para uma aliança militar com a China, porque aquela ex-república soviética pode se transformar numa nova Taiwan.
Passo em falso
Na história da Rússia, a Ucrânia sempre foi um corredor de acesso para os invasores europeus, foi assim com Carlos XII da Suécia, Napoleão Bonaparte (França) e Adolfo Hitler (Alemanha). Da França a Moscou, não existe nenhuma barreira natural que facilite a defesa russa, como a Sibéria e os Montes Urais, a não ser a profundidade do seu território e o inverno. Com a entrada da Ucrânia na Otan, essa vantagem seria anulada, porque a distancia entre Kiev e a capital russa são apenas 860km, percurso que pode ser feito em menos de 11 horas.
A expansão da Otan para a Ucrânia, em contrapartida, é um esforço dos Estados Unidos e da Inglaterra para conter o declínio da hegemonia de uma aliança ameaçada pela transformação da China na grande potência econômica que é hoje. Com o deslocamento do eixo do comércio mundial do Atlântico para o Pacífico, as necessidades logísticas da Rússia são outro fator de sua aproximação com a China, ainda mais quando o arranjo econômico que a une aos países da Europa central está sendo colocado sob esse forte estresse da crise da Ucrânia.
O que Bolsonaro fará na Rússia? Em termos geopolíticos, o Brasil é um país do Ocidente, historicamente ligado à Europa e aos Estados Unidos, muito embora hoje nosso principal parceiro comercial seja a China. Por razões ideológicas, Bolsonaro tem mais identidade com líderes autoritários, como o ex-presidente Donald Trump, um amigo de Putin, e Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria. Mas será um grande passo em falso se aproximar de Putin quanto à questão ucraniana, ou seja, para além dos nossos mútuos interesses comerciais, no momento em que o eixo da conjuntura é uma ameaça de guerra. Nossa tradição diplomática é a defesa da paz e da solução negociada dos conflitos. Esse é o caminho a seguir.
Transição para baixo carbono tem mais oportunidades no Brasil
Cleomar Almeida, coordenador de Publicações da FAP
O Brasil talvez seja o único país do mundo onde a transição para o baixo carbono apresenta muito mais oportunidades a menor custo. “País onde a matriz energética pode ser 100% renovável ao menor custo. Temos todas as chances de sermos os primeiros do mundo em biomassa, com uma inserção privilegiada na economia mundial”, diz a obra Sustentabilidade: os desafios do Brasil no Século XXI, que está à venda na internet.
Dedicada exclusivamente ao tema da sustentabilidade, a nova edição temática da revista Política Democrática, editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), será lançada no dia 16 de fevereiro, às 18 horas, durante evento online, com participação dos autores. A transmissão será realizada no portal e nas redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade.
Soluções sinérgicas
“A crise ecológica que a humanidade conhece desde o século passado tem duas faces mais visíveis, a climática e a da biodiversidade, com soluções sinérgicas, pois estão intrinsecamente articuladas”, destaca um trecho da revista temática.
A revista pondera, por outro lado, que essa situação já provoca preocupação em alguns países. “Essa crise, que aos poucos se transforma em uma crise civilizacional, é acompanhada de um crescente amor ao meio ambiente e valorização da natureza, ingrediente já presente nos processos eleitorais dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, como o Brasil”, destaca.
"Precificar carbono"
Na avaliação dos autores, a crise é grave, sobretudo para as populações mais socialmente vulneráveis, e injusta, pois são os ricos os menos afetados e os maiores poluidores. “Sua gravidade é de tal monta que já não se visualiza uma ‘aterrissagem suave’ do mundo dos fósseis”, observa a revista.
“A única solução é precificar o carbono de modo a incentivar investimentos e inovações de baixo carbono. Enganam-se os que pensam que se trata de um problema para as próximas gerações, pois cerca de 2,8 bilhões dos humanos, que atualmente habitam a Terra, estarão vivos em 2100”, diz a obra.
Combate ao aquecimento global, urgência da bioeconomia na Amazônia com redução do desmatamento, a importância da segurança hídrica e a relevância do engajamento da juventude na luta ambiental também estão entre os assuntos discutidos na nova obra da FAP. A publicação é composta por 21 artigos, organizados em nove partes.
Dois dos artigos fogem ao padrão habitual: uma entrevista com o ex-prefeito de Vitória do Espírito Santo, Luciano Rezende, e a transcrição de um debate entre sete ex-ministros do Meio Ambiente do Brasil, promovido por 10 fundações de partidos democráticos brasileiros.
Temas relevantes
Em suas seções, a revista temática aborda temas relevantes ao campo da sustentabilidade, como a mudança climática e o debate em torno da noção da sustentabilidade. Diversos temas desafiantes são tratados com precisão, como da Amazônia, cidade, água e energia. Discute-se, ainda, o gargalo da governança ambiental, a questão da utopia e a da transição.
“Uma das partes mais importantes da revista é sobre o ativismo ambiental dos jovens, o personagem central na superação da crise ecológica. São atores extraordinariamente ativos na COP26, pois cada vez mais sabem que as decisões tomadas nestas reuniões rebaterão sobre suas vidas, sobretudo que, sendo uma geração centenária, estarão presentes em 2100”, dizem os organizadores.