Day: janeiro 22, 2022
Alon Feuerwerker: A volta do pêndulo
Alon Feuerwerker / Análise Política
No período em que enfrentou a ação combinada dos adversários para enfraquecer e afinal derrubar o governo Dilma Rousseff, o PT viu criarem contra ele um ambiente político-social de catástrofe iminente, catalisado ao final pelos achados e construções da Operação Lava-Jato. Que se somou vetorialmente à brutal recessão de 2015-16 para afinal dar no que deu.
Mas a ideia-força de “qualquer coisa menos o PT” acabou não beneficiando os criadores, pois a contagem dos votos de 2018 trouxe Jair Bolsonaro, e não algum candidato mais representativo da ampla aliança do impeachment de 2016. Por circunstâncias únicas (foram arrastados pela Lava-Jato), fizeram o bolo, mas não comeram o bolo. Aliás, o núcleo político do governo Michel Temer (PMDB-PSDB) saiu enfraquecido das urnas.
Agora o clima é semelhante, mas, de novo, quem mais agita na esfera psicossocial o que os militares chamam de “guerra psicológica adversa” não parece em situação de colher os frutos. A força do PT na criação de ondas de opinião pública é apenas relativa, mas quem recolhe, até o momento, os dividendos do “tudo menos Bolsonaro” é Luiz Inácio Lula da Silva.
A razão é óbvia. Lula é o antípoda de Bolsonaro, pois este elegeu-se na maré para “evitar a volta do lulopetismo” três anos atrás. E, se Bolsonaro não está bem na nuvem da psique coletiva, para onde o eleitor vai olhar antes de tudo? Na volta do pêndulo, para o outro produto conhecido, o principal concorrente, o que disputa as grandes fatias de market share.
Em 1984, com a derrota das “diretas já”, o movimento político para dar fim ao regime confluiu naturalmente para o PMDB, o antípoda do statu quo instalado em 1964. E nasceu a Aliança Democrática de Tancredo Neves e José Sarney. O fluxo costuma mesmo fluir conforme as linhas de menor resistência.
Daí que Lula, empenhado em evitar surpresas, esteja numa “operação-Tancredo”. Busca consolidar rapidamente a convicção de que vai liderar uma espécie de Aliança Democrática 2.0. Alguém poderia, é claro, levantar dúvidas sobre os resultados da Nova República três décadas depois, mas no atual ambiente não encontrará... ambiente.
O debate, inclusive o debate interno no PT, costuma trazer incógnitas sobre dois pontos: o programa e as alianças. Quanto ao primeiro, a lógica diz que o PT não precisará fazer grandes recuos no ideário social-democrata, desde que possa agitar o “vocês querem mais quatro anos de Bolsonaro?”. Sobre as alianças, há no espectro analítico um certo equívoco recorrente.
Não é verdade que o PT não goste de alianças. O partido tem uma compreensível mentalidade hegemônica, decorrente de seu tamanho e seus resultados na história. Era o que se passava com o PSDB até um tempo atrás. Lula é hiperflexível a alianças, desde que seja o comandante. E é refratário a alianças em que tenha de abrir mão do comando.
O que pode atrapalhar a caminhada petista no momento? Menos a “terceira via” e mais se Jair Bolsonaro conseguir reduzir as taxas de rejeição, se o presidente conseguir desfazer a ideia geral de que ele na Presidência é sinônimo de desastre econômico, sanitário e político. As recentes manifestações do chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, apontam para essa tentativa.
Claro que a terceira via tem tempo para encorpar, mas por enquanto não dá sinais. Pois não comanda o espetáculo. E não é fácil o pêndulo parar sozinho no meio da trajetória.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2022/01/a-volta-do-pendulo.html
Marco Aurélio Nogueira: Dúvidas e esperança para os brasileiros em 2022
Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo
O ano novo veio à luz carregando um fardo de problemas para os brasileiros. Era de esperar.
A variante Ômicron da covid fez a pandemia repicar, embalada pelo réveillon e por sua própria ferocidade. Acredita-se que o pior pode ter passado, mas o que restou ainda é ameaçador. O recrudescimento viral é preocupante. Tocar a vida com menos medo e mais segurança, seja em que área for, parece ter se tornado uma das principais aspirações de 2022.
O repique pandêmico escancara a incapacidade do governo brasileiro de responder aos efeitos do vírus. Por tática ou burrice, o governo olha a pandemia com desdém. Alguma coisa acontece, porém, graças à pressão de prefeitos e governadores, da opinião pública, de agências e instituições estatais. A intenção governamental não é cuidar, mas tumultuar. Sua atuação é pilotada por um Marcelo Queiroga desprovido de autonomia, postura cívica e perfil público. Prolonga-se o desastre.
Some-se a isso a desorientação governamental em política econômica. Inflação, desemprego e baixa atividade produtiva combinam-se com a falta de critérios fiscais e tributários, com os ataques estapafúrdios ao teto de gastos e a distribuição de benesses a amigos e aliados. O cenário é preocupante pelos efeitos de curto prazo e para o que virá à frente: quanto mais tempo se perder, mais difícil será a retomada a partir de 2023, efeito bola de neve fácil de prever.
No terreno político, o ano vem embrulhado para presente. Eleições sempre trazem esperança: redesenham o futuro, abrem a possibilidade de mudança. Bastaria que se elegesse um governo que combine ativismo técnico-administrativo com bom senso e esforço de construção democrática, que respeite a Constituição e ajude a reformar o indispensável. O País necessita ser tratado como um universo repleto de carências e potencialidades. Pacificado, após quatro anos de destruição institucional e tensão.
O que parece fácil de imaginar é difícil de ser construído. A política não saiu da letargia e da crise em que se encontra.
Partidos mal aparelhados, candidatos sem foco claro, egoísmos e cálculos tópicos espalhados por todos os cantos, crenças ingênuas de que a mudança de governo pode advir de meros atos de vontade. Há preocupação em ganhar visibilidade, desinteresse em formular programas que tirem o País do buraco.
O futuro que merecemos passa por uma convergência democrática que garanta não a conquista do poder, mas a formação de um governo que governe e cuide do País. Projetos e ambições particulares (de pessoas ou partidos) precisariam ser arquivados temporariamente. A convergência seria uma barca na qual se acomodassem todos os democratas, dos partidos de esquerda à direita civilizada, dos liberais aos socialistas. O País só avançará, no pós-bolsonaro, se houver uma suspensão das disputas fúteis por poder e protagonismo, uma superação dos privilégios corporativos, uma ênfase no combate à desigualdade.
2022 poderá representar o retorno de Lula. As pesquisas que inflam seu nome sugerem que sua candidatura é irremovível e se projeta como vitoriosa. Mas as águas não param de correr e a disputa, a rigor, ainda não começou. A depender das batalhas que terá de travar, dentro e fora do PT, Lula poderá desidratar um pouco. Afinal, Bolsonaro é um fracasso como presidente, mas não está morto. O centro democrático se movimenta com lentidão e sem direção clara, mas tende a encorpar. Um segundo turno poderá impulsionar a convergência democrática, que viabilize a construção de um governo com musculatura técnica, apetite reformador, foco estratégico e planejamento de longo prazo, assentado em um ministério plural composto por quadros competentes e “despartidarizados”. Lula poderia ser, nele, uma espécie de joia da coroa, assim como os demais líderes que se qualificarem durante a disputa presidencial.
É um equívoco achar que Lula é imbatível, ou que seu governo, caso venha a ser eleito, será autossuficiente e promoverá “rupturas” sem concessões e sem moderação. Necessitará de acordos e negociações, e será melhor para todos se essa necessidade for compartilhada com os democratas, não com os “fisiológicos”. O entorno de Lula tem ingredientes tóxicos, desejosos de um acerto de contas, refratários a pactos e composições consistentes. Como serão processados? Lula permanecerá se equilibrando entre “revanchistas” e “pacificadores”?
Não sabemos se haverá um centro ativo e um conjunto de lideranças propensas a convergir democraticamente em nome do futuro. Proclamamos sua necessidade, mas não temos como descortinar, agora, os rumos que a política tomará ao longo do ano.
Os anos pandêmicos estão mostrando que somente com uma democracia revigorada será possível pensar em um Estado inteligente, regulador e não empresarial, que defina políticas estratégicas (a saúde e a educação antes de tudo) e trabalhe para inserir o Brasil no mundo como um player importante da convivência pacífica entre as nações, do combate à crise climática, de um novo modo de viver e conviver.
Empenhemo-nos por ela.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,duvidas-e-esperanca,70003957424
Ex-assessor de Bolsonaro é o 4º nome a apontar rachadinha em gabinetes do clã
Denise Luna, Wilson Tosta e Fabio Grellet / O Estado de S.Paulo
Amigo de Jair Bolsonaro, a quem assessorou na campanha presidencial de 2018, Waldyr Ferraz, o “Jacaré”, tornou-se a quarta pessoa próxima a gabinetes da família a citar a existência de um esquema de rachadinha (desvio de salários) envolvendo ex-funcionários do presidente ou de seus filhos. A suposta apropriação de parte dos salários de assessores pelos políticos foi revelada a partir de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), em reportagem do Estadão em dezembro 2018.
Waldyr afirmou à revista Veja que a advogada Ana Cristina Valle, segunda ex-mulher do presidente, comandou o esquema para desviar vencimentos dos assessores do ex-marido, então deputado federal, do senador Flávio Bolsonaro (à época, deputado estadual) e do vereador Carlos Bolsonaro. Cobrado pelo presidente a dar explicações, “Jacaré” negou ter testemunhado crimes e disse ter certeza que a família Bolsonaro não sabia de nada.
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Apesar da tentativa de isentar o amigo, as declarações do ex-assessor incomodaram Bolsonaro, que escalou Flávio para rebater a publicação e tentar reduzir danos. O filho mais velho do presidente gravou um vídeo pouco antes de embarcar para o velório da avó, Olinda Bonturi Bolsonaro, em qual leu uma nota na qual Jacaré diz que suas declarações foram deturpadas pela publicação.
Jacaré participou de todas as campanhas de Bolsonaro – eles se conhecem desde o tempo em que o hoje presidente era vereador. Ele fica sabendo quando Bolsonaro vem ao Rio antes mesmo de agenda oficial do presidente ser divulgada.
Segundo Veja, Jacaré descreveu o suposto esquema que Ana operaria. Com poder para fazer uma cota de contratações dos gabinetes, nessa versão ela recolhia documentos de algumas pessoas, abria contas bancárias e lhes dava uma pequena parte do salário, ficando com o restante. Muitas vezes, os assessores seriam fantasmas. Bolsonaro, segundo essa narrativa, de nada saberia. Só teria descoberto, de acordo com Waldyr, quando o Estadão revelou a investigação já aberta. Waldyr também não participaria do esquema. O Ministério Público do Rio, porém, suspeita que o esquema beneficiava os parlamentares. Há um processo sobre o caso, envolvendo Flávio, e uma investigação sobre Carlos. O presidente não está sob investigação e, no exercício do mandato, não pode ser investigado por fatos anteriores a ele.
“Ela fez (a rachadinha) nos três gabinetes”, disse Waldyr, segundo a Veja. “Em Brasília (na Câmara dos Deputados), aqui no Flávio (na Assembleia Legislativa do Rio) e no Carlos. O Bolsonaro deixou tudo na mão dela para ela resolver. Ela fez a festa. É isso. Ela que fazia, mas quem é que assinava? Quem assinava era ele. Ele vai dizer que não sabe? É batom na cueca. Como é que você vai explicar? Ele está administrando. Não tem muito o que fazer.”
Ainda segundo a Veja, Bolsonaro, quando soube do esquema, ficou “desesperado”.
“O cara foi traído”, afirmou Jacaré, segundo a revista. “Ela começou tudo. Bolsonaro nunca esteve ligado em nada dessas coisas. O cara (não) tinha visão do que estava acontecendo por trás no gabinete. Às vezes o chefe de gabinete faz merda, o próprio deputado não sabe. Mesmo o deputado vagabundo não sabe, só vem a saber depois.”
Ao Estadão/Broadcast, porém, depois de ter recebido o telefonema de Bolsonaro anteontem, Waldyr negou conhecer qualquer esquema nos gabinetes da família.
“Tudo o que eu disse à jornalista da Veja eu li nos jornais, não é nada que eu tenha visto. Eu vivi lá dentro e nunca vi esses esquemas de rachadinha”, afirmou. Segundo ele, o presidente estava irritado ao telefone e disse que ele não deveria ter falado nada. “Comigo nunca aconteceu (rachadinha) e tenho certeza que nem ele (Bolsonaro) e nem os filhos sabiam de nada. Nem sempre o que acontece nos gabinetes os deputados ou vereadores ficam sabendo”.
Quando o Estadão/Broadcast perguntou a Waldyr se ele tinha dito à repórter da Veja que, ao falar de Ana, citava noticiário de jornais, ele teve dificuldades para responder. Não há, nas gravações divulgadas no site da revista, menção, por “Jacaré”, a noticiário da imprensa como fonte das informações sobre a rachadinha.
Queiroz
Outra ex-assessora que revelou a existência do suposto esquema foi Luiza Souza Paes. Segundo o jornal O Globo revelou em novembro de 2020, Luiza contou ao Ministério Público do Rio que repassava quase tudo o que recebia para Fabrício Queiroz, motorista do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, nomeado seu assessor na Assembleia Legislativa do Rio. Luiza também era assessora, mas admitiu que não trabalhava. Foi a primeira vez que um ex-funcionário admitiu que era uma “fantasma” – apenas um CPF usado para, supostamente, sangrar os cofres públicos.
Luiza disse aos promotores que era obrigada a repassar mais de 90% dos seus salários para Queiroz. Ela apresentou extratos bancários que mostram transferências de R$ 160 mil para o ex-assessor de 2011 a 2017. A ex-assessora contou que se envolveu nos desvios aos 19 anos, enquanto ainda cursava a faculdade de Estatística.
Com Flávio, Queiroz e mais quatorze pessoas, Luiza foi denunciada à Justiça. Os crimes são peculato, lavagem de dinheiro, organização criminosa e apropriação indébita. O processo teve provas anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça.
Uma irmã de Ana Cristina, Andréa Valle, em áudios que lhe foram atribuídos e foram publicados pelo site UOL, também citou o suposto esquema de desvio de salários de assessores. O caso teria ocorrido no gabinete do próprio Jair Bolsonaro, quando era deputado federal. Um irmão de Ana e Andréa, André, teria sido exonerado porque se recusava a repassar uma parte do salário ao suposto esquema.
Outro que citou o suposto esquema de desvio de parte dos salário que recebia como assessor parlamentar foi Marcelo Luiz Nogueira dos Santos. Ele contou ao site Metrópoles em setembro de 2021 que, por quatorze anos, trabalhou para a família Bolsonaro. Marcelo disse que “devolveu” 80% do que recebeu no gabinete de Flávio – uns R$ 340 mil, acumulados ao longo de quatro anos.
O Estadão não localizou Ana Valle para se manifestar sobre a reportagem. A Veja, ela negou ser “mentora da rachadinha” e também ter tido qualquer participação no suposto esquema.
Em publicação nas redes sociais, Waldyr afirmou: “Informo que jamais presenciei ou soube de algo que tenha havido rachadinha (sic) em qualquer gabinete dos Bolsonaros”. O senador reclamou que “os ataques não param”, mesmo em um “momento difícil”. Na madrugada ontem, Olinda Bolsonaro, mãe do presidente, morreu aos 94 anos. Flávio costuma atribuir as acusações a “perseguição política” de adversários do pai.
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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ex-assessor-de-bolsonaro-e-o-4-nome-a-apontar-rachadinha-em-gabinetes-do-cla,70003957666
Nazistas planejaram em 90 minutos 'solução final' contra 11 milhões de judeus
Katrin Bennhold / BERLIM / THE NEW YORK TIMES
No dia 20 de janeiro de 1942, 15 funcionários de alto escalão na hierarquia nazista se reuniram numa mansão à margem do lago Wannsee, na extremidade oeste de Berlim. Foram servidos petiscos, acompanhados de conhaque. A pauta abrangia um ponto apenas: "Os passos organizacionais, logísticos e materiais para uma solução final da questão judaica na Europa".
Planejar o Holocausto levou apenas 90 minutos.
Oitenta anos após a infame Conferência de Wannsee, que mapeou o Holocausto meticulosamente, a eficiência burocrática do processo ainda é profundamente assustadora.
As minutas anotadas naquele dia e depois datilografadas em 15 páginas não fazem menção explícita a assassinatos. Empregam termos como "evacuação", "redução" e "tratamento" –e dividem a tarefa entre diferentes departamentos governamentais e seus "especialistas pertinentes".
"Quando você lê aquele protocolo, é de gelar o sangue", comentou Deborah Lipstadt, conceituada estudiosa do Holocausto. "É tudo expresso numa linguagem muito camuflada. Mas então você olha a lista dos países e o número de judeus que eles planejaram matar. Eles queriam eliminar 11 milhões de pessoas. Tinham planos muito grandes."
O aniversário daquela reunião fatídica tem significado especial num momento em que restam cada vez menos sobreviventes do Holocausto e que o antissemitismo e a ideologia da supremacia branca estão ressurgindo na Europa e nos Estados Unidos, ao lado de ataques a judeus e membros de minorias étnicas.
No sábado passado (15), um homem fez um rabino e três membros de sua congregação reféns numa sinagoga no Texas. Na Alemanha, onde crimes de antissemitismo também vêm aumentando, as autoridades alertam publicamente que o terrorismo e extremismo de direita constituem a maior ameaça à democracia.
Hoje a mansão de três andares na beira de um lago, que foi usada como casa de hóspedes da SS [polícia do regime nazista] e abrigou a Conferência de Wannsee, parece praticamente igual, vista por fora. Afastada da rua e cercada por jardins amplos, ela saúda os visitantes com um pórtico frontal majestoso e quatro estátuas de querubins dançando no telhado.
As autoridades alemãs ocidentais se debateram durante décadas com a questão sobre o que fazer com o edifício. Enquanto sobreviventes pressionavam o governo a converter a mansão em um lugar para se aprender sobre o Holocausto e documentar os crimes dos perpetradores, as autoridades foram adiando a decisão. Algumas diziam temer que a mansão pudesse tornar-se um local de peregrinação de velhos nazistas; outras sugeriam que o edifício fosse demolido, "para que não reste nada desta casa de horrores".
Joseph Wulf, combatente da resistência judaica que escapou de uma marcha da morte de prisioneiros de Auschwitz e depois da guerra tornou-se um historiador respeitado, liderou a campanha inicial para converter a mansão em um memorial e instituto histórico. Sobre sua mesa de trabalho ele fixou um bilhete para si mesmo, escrito em hebraico, sobre os seis milhões de judeus massacrados pelos nazistas: "Lembre-se! 6 milhões".
Para muitas pessoas o aniversário da Conferência de Wannsee é menos marcante que a data da libertação de Auschwitz ou a do levante no gueto de Varsóvia, que enfocam as vítimas do terror nazista. Mas ele se destaca como uma data rara para voltar as atenções aos perpetradores do Holocausto, documentando a máquina genocida do Estado nazista.
O anfitrião da conferência naquele dia de janeiro de 1942 foi Reinhard Heydrich, o poderoso chefe do serviço de segurança e da SS, que Hermann Goring, o braço direito de Adolf Hitler, encarregara de arquitetar uma "solução final" e organizá-la com outros departamentos governamentais e ministérios.
Foi pedido a Adolf Eichmann, chefe do departamento de "assuntos judaicos e expulsões" do Ministério do Interior, que mais tarde organizaria as deportações para os campos de extermínio, que redigisse a ata da reunião. Apenas uma das 30 cópias de seu protocolo de 15 páginas, marcado em vermelho na primeira página como "sigiloso", sobrevive até hoje. Foi descoberta entre os arquivos do Ministério do Exterior por soldados americanos após a guerra.
O protocolo de Eichman resumiu o escopo da tarefa proposta, fazendo uma tabulação estatística detalhada das populações judaicas na Europa, incluindo também a União Soviética, Inglaterra, Irlanda e Suíça.
"Com autorização prévia apropriada do Führer, a emigração agora deu lugar à evacuação dos judeus para o Leste como outra solução possível", destacou o protocolo. "Aproximadamente 11 milhões de judeus serão levados em consideração nesta solução final da questão judaica."
Em seguida o documento passou a explicitar com detalhes que forma assumiria essa solução final.
"Sob supervisão apropriada, os judeus devem ser utilizados para trabalho no Leste de maneira adequada", diz o documento. "Em grandes colunas de trabalho, separados por sexos, os judeus capazes de trabalhar serão despachados para essas regiões para construir estradas. Nesse processo, uma grande parcela deles vai sem dúvida ser eliminada pela redução natural. Aos que permanecerem será preciso dar tratamento adequado, porque eles inquestionavelmente representam as partes mais resistentes."
"Os judeus evacuados serão levados primeiramente, grupo por grupo, aos chamados guetos de trânsito, de onde serão transportados para o Leste", prossegue o texto. "Quanto à maneira na qual a solução final será realizada naqueles territórios europeus que hoje se encontram sob nosso controle ou influência, foi sugerido que os especialistas pertinentes do Ministério do Exterior realizem consultas com o oficial responsável pela Polícia de Segurança e o SD [serviço de inteligência]".
Era a linguagem de burocratas. Mas nunca houve nenhuma dúvida quanto ao que o documento estava propondo: "a eliminação completa dos judeus", conforme escreveu em seu diário Joseph Goebbels, o propagandista chefe de Hitler, depois de ler a ata.
Oitenta anos após a Conferência de Wannsee e 77 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, as testemunhas das atrocidades nazistas estão morrendo.
Quando Lipstadt, 74, professora de história judaica moderna e estudos do Holocausto na Universidade Emory, começou a lecionar sobre o Holocausto, mais de três décadas atrás, era fácil encontrar sobreviventes que pudessem conversar com seus alunos.
"Quando eu queria que um sobrevivente viesse à minha aula, eu me perguntava: ‘Preciso de um sobrevivente de um campo ou um que passou a guerra escondido? Quero alguém do Leste Europeu? Quero um alemão que viveu sob as leis contra judeus por oito anos, até ser deportado? Quero alguém da resistência clandestina?’", ela recordou. "Hoje eu apenas torço para encontrar alguém que tenha condições de saúde para vir."
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/01/nazistas-planejaram-em-90-minutos-solucao-final-contra-11-milhoes-de-judeus-no-holocausto.shtml