Day: janeiro 16, 2022

Relatório destaca uso no Brasil de pesticidas vetados na União Europeia

Gero Rueter | Marcio Damasceno / DW Brasil

O Brasil é um dos países de destaque de um novo relatório de grupos ambientalistas alemães sobre uso de pesticidas no mundo e suas consequências para a saúde humana e o meio ambiente. O trabalho de 50 páginas intitulado Pestizidatlas 2022 (Atlas dos pesticidas 2022) foi apresentado nesta quarta-feira (12/01) em Berlim pela Fundação Heinrich Böll, entidade próxima ao Partido Verde, em cooperação com a filial alemã do grupo ambientalista Amigos da Terra e o jornal Le Monde Diplomatique.

Na publicação, especialistas descrevem o negócio bilionário com agrotóxicos e suas consequências. "O Atlas fornece dados, informações e se concentra em certas áreas. Que tipo de substâncias são essas realmente? Onde estão os problemas? O que os pesticidas fazem aos pequenos agricultores no sul global? Qual o risco para as pessoas em diferentes partes do mundo? Pesticidas nos afetam em todos os lugares, mesmo quando não estamos próximos à plantação", diz a engenheira agrônoma Susan Haffmans da rede Pestizid Aktions-Netzwerk, que desempenhou um papel de liderança no desenvolvimento do relatório.

Segundo o texto, desde 1990, o uso de agrotóxicos no mundo cresceu 80%.

Leis pouco rígidas

Um dos pontos abordados na obra é o uso por países em desenvolvimento, como o Brasil, de pesticidas com substâncias consideradas altamente tóxicas e que são, por isso, proibidas na União Europeia (UE).

"O Brasil, país que está em terceiro lugar no mundo em utilização de defensivos agrícolas, importa a maioria dos ingredientes ativos de pesticidas do exterior, inclusive de países da UE", diz o trabalho.

"Em 2019 estiveram entre eles pelo menos 14 ingredientes ativos altamente perigosos que não são mais permitidos na UE, como, por exemplo, Fipronil da Basf, altamente prejudicial a abelhas, e o clorpirifós, da portuguesa Ascenza Agro, altamente tóxico por seus efeitos neurológicos. Além disso, a perigosa cianamida, da alemã Alzchem, e a propineb, que prejudica a função sexual e a fertilidade, da Bayer. Outra substância que chega ao Brasil é o epoxiconazol, da Basf, que desde abril de 2020 não é permitido na UE", ressalta o texto.

O relatório aponta como uma das causas disso o fato de a legislação brasileira ser branda em relação aos limites de toxicidade nos resíduos em alimentos. "O Brasil impõe à sua população limites para resíduos tóxicos em alimentos que às vezes estão duas ou três vezes, e em alguns casos 100 vezes acima dos valores máximos permitidos na UE", diz o estudo. "Em 2019, segundo dados oficiais brasileiros, 23% da amostras excederam os valores máximos permitidos de resíduos, que já são altos", ressalta do texto.

Pesticidas são espalhados pelo vento, chegando a percorrer centenas de quilômetrosFoto: DW

"Também resíduos de substâncias proibidas na UE mas permitidas no Brasil foram encontrados em grãos, frutas e vegetais brasileiros. Através da exportação, esses resíduos chegam também a outros países", acrescenta o trabalho.

O alto uso de defensivos na agricultura brasileira nem sempre se traduz em crescimento da safra, conforme os autores do relatório. "No Brasil, o uso de herbicidas (especialmente do glifosato) triplicou no cultivo de soja entre 2002 e 2012, chegando a até 230 mil toneladas por ano. Mas apesar do aumento na quantidade de agrotóxico aplicado, os rendimentos por hectare aumentaram apenas cerca de 10%", ressalta o texto.

Quase 400 milhões de intoxicados por ano

De acordo com um estudo científico recente publicado na revista Public Health, 385 milhões de pessoas envolvidas com agricultura desenvolvem intoxicação aguda por pesticidas todos os anos. Os trabalhadores rurais e agricultores sentem-se fracos após o envenenamento, têm dores de cabeça, vômitos, diarreia, erupções cutâneas, distúrbios no sistema nervoso e desmaios. Em casos graves, o coração, os pulmões ou os rins são severamente afetados.

Cerca de 11 mil pessoas no ramo morrem a cada ano de envenenamento agudo. Trabalhadores agrícolas e pequenos proprietários no sul global são particularmente atingidos pelo envenenamento por pesticidas. 

"Vemos que 44% dos agricultores em todo o mundo sofrem pelo menos uma intoxicação por ano. E em alguns países o número é muito maior", diz Haffmans.

Segundo o estudo, existem várias razões para o número significativamente maior de intoxicações nos países do sul: por um lado, um número particularmente grande de pesticidas altamente perigosos é empregado nesses países, muitas vezes também aqueles que são proibidos na Europa.

Além disso, muitos pequenos agricultores não usam roupas de proteção e não são informados sobre os perigos. "Às vezes, os pesticidas são simplesmente enchidos em pequenos sacos plásticos ou garrafas plásticas pelos revendedores, sem etiqueta, sem instruções de segurança sobre como usá-los e sem aviso", afirma Haffmans.

Ventos alastram pesticidas

Segundo o Atlas, os pesticidas são espalhados pelo vento, chegando a percorrer centenas de quilômetros. O uso de pesticidas tem consequências para todos: as toxinas afetam rios e lençóis freáticos. Insetos, pássaros e animais aquáticos morrem intoxicados, e a biodiversidade fica ameaçada. Além disso, muitas vezes resíduos são encontrados nos alimentos. Os pesticidas já podem ser detectados na urina de muitas pessoas.

Estudo aponta que cerca de 11 mil pessoas no ramo morrem a cada ano de envenenamento agudo provocado por pesticidasFoto: Sia Kambou/AFP/Getty Images

Os pesticidas causam doenças crônicas. "Estudos mostram, por exemplo, uma conexão com doença de Parkinson, diabetes tipo dois ou certos tipos de câncer", diz Haffmans. Eles também estão associados a asma, alergias, obesidade e distúrbios das glândulas endócrinas, bem como abortos e deformidades em regiões particularmente afetadas.

O herbicida glifosato -- o pesticida mais usado -- produziu manchetes repetidas vezes. Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) classificou o glifosato como "provavelmente cancerígeno". Um metaestudo científico da Universidade de Washington em 2019 também determinou um risco aumentado de tumores malignos de linfonodos devido ao glifosato, o chamado linfoma não Hodgkin.

Lucro importa mais que saúde

Vender pesticidas é lucrativo. Os quatro maiores produtores mundiais de agrotóxicos são Syngenta (Suíça/China), Bayer e BASF (Alemanha) e Corteva (EUA). De acordo com o Atlas, eles alcançaram um faturamento combinado de 31 bilhões de euros em 2020.

Nos últimos anos, as vendas globais de pesticidas cresceram em média 4% ao ano. Via de regra, porém, as empresas não pagam nada por danos à saúde ou ao meio ambiente, ou apenas se houver decisões judiciais correspondentes, como nos EUA. Pessoas que haviam usado o pesticida Roundup com o ingrediente ativo glifosato ficaram gravemente doentes, 125 mil delas processaram a Bayer. O grupo já pagou alguns prejudicados, e cerca de 10 bilhões de euros foram reservados no balanço da empresa para indenizações pela Bayer.

Apesar destes casos, a Bayer e outras empresas continuam a vender pesticidas altamente tóxicos, incluindo aqueles que são proibidos na UE devido à sua periculosidade.

Os fabricantes de pesticidas estão atualmente tentando obter uma nova aprovação para o glifosato na UE. Nove países da UE votaram pela proibição em 2017, 18 pela extensão, agora a proibição deve vigorar a partir de 2024.

Um fato grave é que, de acordo com o Atlas, as autoridades responsáveis da UE não fizeram análises adequadas sobre a aprovação do glifosato. "É alarmante e assustador", diz Haffmans, De acordo com o trabalho, três quartos de estudos independentes sobre a substância chegam à conclusão de que o glifosato é mutagênico.

Grupos ambientalistas estão pressionando por uma mudança que afaste os pesticidas químicos. Os 30 autores do Atlas usam artigos para destacar políticas que podem diminuir seu impacto. "Nas últimas duas décadas, o Sri Lanka salvou comprovadamente quase 10 mil vidas ao proibir pesticidas perigosos", ressalta Haffmans. "Na Índia, algumas regiões já cultivam abrindo mão de pesticidas, em parte ou completamente. Isso, por sua vez, incentiva que outras regiões sigam o exemplo."

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/relat%C3%B3rio-destaca-uso-no-brasil-de-pesticidas-proibidos-pela-ue/a-60404475


Alon Feuerwerker: A palavra esquecida

Alon Feuerwerker / Análise Política

Quem tem caminho para chegar vitorioso a outubro de 2022, em um ou dois turnos? No momento, todos os campos, apesar do clima de estagnação. Está é natural, pois as pesquisas mostram-se algo inalteradas e convergentes. Se a eleição fosse hoje, Luiz Inácio Lula da Silva ganharia. O detalhe: a eleição não é hoje, temos pelo menos longos oito meses e meio até lá.

É um período para a terceira via tentar conectar-se ao ponto sensível das massas. O principal obstáculo é ela, a terceira via, continuar acreditando que existe na sociedade um desejo, ainda não completamente decifrado, de “rejeitar os extremos”. O problema: esse tem-se revelado um assunto forte na bolha autonomeada centrista, mas vem sendo completamente ignorado pela maior parte da população.

Lula e Jair Bolsonaro têm hoje somados uns 60% de intenção de voto estimulado e não muito longe disso de espontâneo. Se ambos fossem vistos pelo eleitorado como “extremistas”, poder-se-ia concluir que o extremismo é mais popular do que dizem por aí. Claro que não é isso. Bolsonaro e Lula lideram porque, desculpem a tautologia, são identificados como líderes pelo respectivo campo político e por ofertarem propostas concretas para problemas reais.

Lula vem liderando seu campo há uns trinta anos, desde que o antecessor, o PMDB da resistência ao regime militar e herdeiro até então do trabalhismo, associou-se à ruína econômica do governo José Sarney. A liderança petista estabilizou-se a partir de 1989, tanto que o PSDB, nascido naquele momento como centro-esquerda, precisou depois procurar outra freguesia, outro mercado eleitoral. Que ocupou com sucesso de 1994 a 2018.

O PSDB foi destroçado no segundo tempo da Operação Lava-Jato e quem pagou o pato quatro anos atrás foram Geraldo Alckmin, candidato a presidente, e os principais governadores da legenda. Aí o vácuo sugou Jair Bolsonaro, que calhou de estar no lugar certo na hora certa. Competência e sorte. Mas Bolsonaro não soube navegar bem na tempestade da Covid-19 e vem emagrecendo politicamente. O que anima os candidatos a sucedê-lo na turma dele.

Pois Lula parece consolidado na esquerda. Ciro Gomes que o diga.

O desafio de todos jogadores é o mesmo: tomar para si a bandeira da prosperidade, a imagem de quem mais tem condição de levar o país, as famílias e as pessoas a uma vida melhor. Lula está em vantagem pelo currículo. Bolsonaro retém os fiéis ideológicos, procura trabalhar a má lembrança do segundo período Dilma Rousseff e também o fantasma das dificuldades econômicas enfrentadas por Venezuela e, em grau bem menor, Argentina.

O presidente tem um problema adicional: não consegue se conectar às entregas de seus ministros, pela simples razão de não transmitir a impressão de estar voltado à operação governamental propriamente dita. Um exemplo extremo se dá nas tragédias causadas pelas chuvas. Agitar a própria bolha 24x7 ajuda a manter a base mais fiel, mas tem pelo menos um efeito colateral: não sobra espaço comunicacional para tentar capitalizar o que o governo efetivamente faz.

E a terceira via? Sergio Moro vem até o momento prisioneiro de um único tema, que nesta hora não leva jeito de ser a principal preocupação das pessoas: a corrupção. Ciro Gomes está encapsulado, tem seu público mas não consegue crescer para nenhum dos dois lados. E João Doria enfrenta uma certa descrença decorrente das pesquisas e de um desempenho relativamente inferior em São Paulo, quando comparado ao retrospecto de governadores tucanos paulistas candidatos a presidente.

Mas o jogo ainda está sendo jogado. E, de novo, vai ganhar quem conseguir associar-se à esperança de um futuro de prosperidade. Que obrigatoriamente estará vinculado ao desenvolvimento. Uma palavra ultimamente pouco lembrada. Mas cuja hora vai chegar.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2022/01/a-palavra-esquecida.html


José Luis Oreiro: Desenvolvimento ou morte

Em 7 de setembro de 2022, o Brasil vai completar 200 anos da sua independência. Durante 200 anos, a civilização brasileira obteve notáveis avanços. Em primeiro lugar, ao contrário do ocorrido com as ex-colônias da Espanha, o país não só manteve sua integridade territorial como ainda acrescentou novos territórios aos que pertenciam originalmente a Portugal. Em segundo lugar, depois de um processo lento e penoso, o Brasil se livrou do flagelo da escravidão, vergonha perante o mundo civilizado e uma das causas do atraso econômico com respeito a outros países da América Latina no século 19. Esse atraso continuou após a Proclamação da República, a qual nada mais foi do que um acordo entre as elites latifundiárias para se manterem no poder, obtendo os privilégios de sempre.

Foi apenas com a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, que o Brasil começou a sua revolução industrial. Entre 1930 e 1980 a economia brasileira cresceu a taxas médias de mais de 7% ao ano, por intermédio de um processo de industrialização liderada pelo Estado. No final da década de 1970, o Brasil possuía o maior e mais sofisticado parque industrial do mundo em desenvolvimento e sua produção industrial era superior à produção combinada de China, Índia e Coreia do Sul.

A crise da dívida externa no início dos anos 1980 combinada com a alta inflação interrompeu a bem-sucedida trajetória de desenvolvimento econômico do Brasil até então. A redemocratização, a renegociação da dívida externa com o plano Brady e o fim da alta inflação com o Plano Real não foram capazes de devolver o dinamismo da economia brasileira. Com efeito, o país encontra-se semiestagnado há 40 anos, apresentando uma taxa média de crescimento de 2,88% entre 1980 e 2014, ano em que se inicia a grande recessão (2014-2016).

Passada a grande recessão, a taxa média de crescimento da economia brasileira se reduz para uma média de 1,5% no período 2017-2019. Embora o PIB deva apresentar crescimento de 4,5% em 2021, devido em larga medida ao efeito do carregamento estatístico de 2020, as projeções para 2022 apontam para avanço em torno de 0,5%, índice inferior ao crescimento da população brasileira. Nesse ritmo, levará ainda alguns anos para que o Brasil consiga recuperar o PIB de 2013. Em suma, nos últimos 10 anos, o Brasil passou da semiestagnação para o empobrecimento em termos absolutos.

A primeira pergunta que temos que fazer é: o que deu errado com o Brasil? Minha reflexão sobre o tema me leva a concluir que o Brasil cometeu dois erros estratégicos nos últimos 50 anos. O primeiro foi aprofundar o processo de substituição de importações nos anos 1970 com o II Plano Nacional de Desenvolvimento ao invés de adotar um modelo de promoção de exportações de produtos manufaturados, como foi o caso dos países do sudeste asiático. A indústria é o motor do crescimento econômico, mas, para que o desenvolvimento industrial possa ocorrer, é necessário obter economias de escala, as quais só podem ser obtidas na magnitude necessária com o aumento da participação das exportações brasileiras de manufaturados nas exportações mundiais desses produtos.

O segundo erro foi promover a abertura financeira da economia brasileira no início dos anos 1990, o que permitiu ao Brasil financiar deficits em conta corrente com a entrada de capitais especulativos provenientes dos países desenvolvidos. Essa abertura propiciou a adoção do modelo de "crescimento com poupança externa", o qual levou o país a cair na armadilha do câmbio sobrevalorizado — juros elevados durante o período 1994-2019. A lógica do modelo de crescimento com poupança externa se baseia na hipótese (equivocada) de que países como o Brasil precisam atrair poupança externa para aumentar o investimento e assim elevar o potencial de crescimento. O que o caso brasileiro mostrou foi que a poupança externa, atraída pela taxa de juros elevada, gerou sobrevalorização cambial e, com ela, redução na poupança doméstica. Em outras palavras, poupança externa e poupança doméstica são substitutos, não complementares. O câmbio sobrevalorizado, por sua vez, foi uma das principais causas da desindustrialização prematura da economia brasileira.

Para retomar o desenvolvimento é necessária a reindustrialização do Brasil. Sem isso, nosso país estará condenado a cair na armadilha da pobreza. Desenvolvimento ou morte.

*JOSÉ LUIS OREIRO - Professor do Departamento de Economia da UnB e do Programa de Doutorado em Desenvolvimento Econômico da Universidade do País Basco (Bilbao, Espanha)

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2022/01/4977156-jose-luis-oreiro-desenvolvimento-ou-morte.html


Luiz Sérgio Henriques: Chile, Itália, Brasil, palcos de acidentadas histórias políticas

Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S. Paulo

Palcos de acidentada história política, Chile e Itália compartilharam, nos anos 1970, desafios que de triviais nada tinham. Descontada a diversidade institucional – entre um presidencialismo latino-americano e um parlamentarismo quase clássico –, havia ainda assim similitudes.

Nosso vizinho chileno vivia o embate entre forças de esquerda, como o Partido Socialista e o Partido Comunista, e de centro ou centro-direita, a principal das quais a Democracia Cristã. A paisagem italiana, até nominalmente, parecia replicar a disputa, uma vez que lá também se defrontavam uma democracia cristã de profundas raízes populares e o mais criativo dos partidos comunistas do Ocidente – duas agremiações, de resto, corresponsáveis pela reconstrução no pós-guerra.

Natural que a atenção dos italianos se voltasse para a experiência de mudança que transcorria no outro lado do oceano. Contando com maioria relativa, não passava pela cabeça do presidente Allende implantar uma “segunda Cuba”, o que lhe era substantivamente estranho, mas, antes, discernir uma via original para algum tipo de socialismo, obviamente imaginado segundo os parâmetros da época.

O golpe pinochetista de 1973 iria alarmar Enrico Berlinguer, o Partido Comunista Italiano (PCI) e seu eurocomunismo. A “reflexão sobre os fatos do Chile” que o dirigente italiano logo empreendeu o fez proclamar que, até para introduzir modestos “elementos de socialismo”, não bastava conseguir metade mais um dos votos. Simplesmente inaceitável cortar ao meio um país para levar adiante a boa transformação.

Contemporâneos costumam se iludir, no todo ou em parte, sobre o combate que travam. O finalismo socialista – a ideia de uma sociedade superior inscrita nas coisas, uma espécie de meta histórica in progress – já começara a definhar, e disso nem sempre os atores se davam conta. Mas conceitos que circularam, como o “compromisso histórico” ou a “solidariedade nacional”, ajudaram a Itália a suportar as ações torpes do terror, como o sequestro de Aldo Moro, dirigente democrata-cristão protagonista do diálogo com os comunistas. (No Brasil do regime de 1964 – cabe lembrar – a parte mais lúcida da esquerda reiterava o adeus às armas e a condenação da violência política, fosse qual fosse, mesmo quando aparentemente “justificada”.)

Há 30 anos o Chile se despediu da noite pinochetista com governos de conciliação nacional. A Concertação entre democratas-cristãos e socialistas terá se esgotado depois de múltiplos governos, em alternância mais recente com a direita democrática representada – bem ou mal, não importa – por Sebastián Piñera. O esgotamento deste largo ciclo político do Chile redemocratizado, abrindo espaço para o mal-estar profundo que abala tantas sociedades mundo afora, trouxe consigo os traços inquietantes da rebelião moderna, ou pós-moderna, como a deslegitimação do conjunto da “classe política” – o temível que se vayan todos – e o esvaziamento das instituições representativas.

O estallido social de outubro de 2019 pareceu indicar, da parte dos extremistas, uma hipótese de revolução popular permanente, ou ainda – o que fatos pretéritos sempre indicam como mais provável – apontar para uma demanda irreprimível de ordem e segurança, a serem impostas com mão de ferro. No entanto, à hipótese “revolucionária” de outubro sucederamse, em sequência relativamente breve, acordos que envolveram a proposta de uma original “convenção constituinte” e um denso calendário eleitoral para a renovação dos corpos legislativos e da Presidência da República. Em princípio, assim, dava-se uma chance à oxigenação dos grupos dirigentes e à reconstrução das instituições.

A “reflexão sobre os fatos do Chile”, desta feita, deslocase dos tempos heroicos de Allende e Berlinguer e se impõe como necessidade absoluta para nós, brasileiros. Prever que alguém como Gabriel Boric, protagonista recentíssimo de lutas estudantis e manifestações populares, terá a estatura de Allende é arriscado ou, quem sabe, expressão de pensamento desejoso. Serve-nos como referência, contudo, a estratégia de recompor o centro político a que se lançou, ao buscar o apoio de personagens simbólicos da Concertação, como Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, para não falar da própria Democracia Cristã. Parece ainda haver plena consciência da força – na sociedade e no futuro parlamento – da extrema direita, que, ainda por cima, atraiu por gravidade amplos setores da própria direita democrática. Convém sempre manter tais setores no jogo político normal – um país partido ao meio, como dissemos, é a antessala do caos e da regressão.

Boric tem se voltado para outra frente que requer lugar central na nossa reflexão “berlingueriana”. Rodeado por uma esquerda muitas vezes condescendente com “seus” caudilhos – em região brutalizada por este mal –, o novo presidente chileno distancia-se sistematicamente das “ditaduras progressistas”. Este último termo, com perdão do clichê, bem merece a lata de lixo da História, mas antes é preciso que se firme em outras partes uma ligação de ferro entre esquerda e democracia política.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,chile-italia-brasil,70003951529


Paulo Fábio Dantas Neto: A encruzilhada de Lula

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

Os resultados da primeira grande pesquisa do ano de 2022 envolvendo intenções de voto para a eleição presidencial (da Quaest, consultoria e pesquisa) registraram uma estabilidade do quadro virtual da competição que não dá lugar a comentários novos. Continua a valer a distinção feita, nesta coluna, na semana passada, entre conjuntura e cenários. Mas é fato que, dentre os cenários possíveis, o correr do tempo, até aqui, sugere como mais provável o mesmo que, em linhas gerais, há meses está posto por pesquisas dessa mesma fonte e outros institutos de análoga credibilidade.  O céu aparentemente sem nuvens que sorri ao ex-presidente Lula instiga o analista a desviar o olhar prospectivo de conjecturas sobre possíveis cenários alternativos de competição e a fixá-lo nos movimentos do ex-presidente e do seu entorno, tentando analisar as tendências da sua campanha eleitoral e de um eventual governo seu. Se essa é, até aqui, a hipótese mais provável, é interesse público especular sobre sentidos que ela pode assumir, a depender de movimentos que fazem e dos que podem fazer o próprio Lula e outros atores.

De início é preciso registrar e honrar a presença, também nesse assunto, dela, da incerteza - a onipresente companhia da qual nenhum assunto político se separa. A pergunta talvez mais relevante no momento seja se Lula está indo/irá ao centro em busca de uma eleição numericamente consagradora e indiscutível ou se buscará outro tipo de consagração, por vencer um terceiro turno da eleição de 2018. Nesse último caso, um acerto de contas em torno do passado recente, seu e do seu partido; no primeiro caso, a busca de liderar diferentes forças civis e políticas do país numa quadra de reconstrução nacional.

Personagem muito apetente, do ponto de vista político, Lula parece perseguir ambas as consagrações, para ser ao mesmo tempo amado como pacificador da pátria e temido como vencedor de uma revanche. Ao seu redor há coadjuvantes adequados e figurantes aptos para cada um dos dois scripts, embora os da revanche façam, por hábito e vocação, bem mais barulho. A trama ambígua, aos poucos, começou a chegar a públicos mais amplos, nos estertores do ano passado e nesses primeiros dias de 2022.  

O barulho da esquerda negativa às vezes confunde e leva gente de opinião ponderada e progressista a improvisar juízos reativos rápidos que terminam se somando à histeria que acomete a direita negativa. É precisamente o caso da discussão instalada a respeito de uma eventual revisão, ou revogação, da reforma trabalhista de 2017. É possível, em meio à cacofonia, ter juízo racional sobre o tema. Como teve o ex-presidente Michel Temer, personagem implicadíssimo no enredo, em recente entrevista concedida à jornalista Daniela Lima e seus colegas Renata Agostini e Leandro Rezende. Pelo conteúdo esclarecedor e politicamente lúcido da fala, vale, quem não assistiu, dar uma busca nos arquivos de vídeo da CNN. Ajudará a distinguir, no debate atual, visões de quem quer debate público das de quem quer revanche.

De início, é preciso dizer (como frisou também Temer) que se trata de muito bem-vinda pauta.  Será uma sorte se esse tipo de tema de interesse público substituir, na campanha eleitoral, conflitos pessoais entre candidatos postados em um ringue virtual, “batendo” - como se costuma dizer na gíria vulgarizada do marketing político - uns nos outros com acusações superficiais, por vezes levianas, trocando insultos em torno de assuntos pedestres, desprovidos de utilidade pública e tratados amiúde em termos chulos. Em vez de recriminação, o ex-presidente merece pontuação positiva, por ter sugerido que os brasileiros acompanhem de perto a revisão, ora em curso na Espanha, da reforma trabalhista ali feita, por decreto, em 2012 e que agora é objeto de ampla discussão, podendo dar lugar a uma lei do Parlamento. Além de sugerir que esse acompanhamento seja feito pela sociedade, o próprio Lula acompanha o processo. Ter ido à Espanha e levado quadros consigo a reuniões e um seminário com condutores dessa política no governo espanhol é também sinalização positiva, de um pré-candidato que se prepara para governar, se eleito, com antenas ligadas no mundo sem se limitar a lógicas do contencioso doméstico.

Entretanto, é preciso não perder de vista a trajetória diversa que o tema cumpriu, no caso brasileiro. A começar pelo fato de que, à diferença da Espanha, tivemos aqui, como marco legal da reforma trabalhista, não um decreto do Executivo, mas uma lei aprovada no Congresso depois de ampla exposição pública do assunto, seja na fase preliminar de gestação de um projeto de Lei, pelo Executivo, seja depois, durante os meses em que tramitou no Legislativo. Na primeira fase, em 2016, houve audiência a diversos atores interessados, incluídas as representações de patrões e empregados, um entendimento e um projeto de lei bastante moderado, se comparado à lei que foi, afinal, aprovada pelo Congresso. E essa discrepância entre projeto e lei deve-se, em boa parte, ao tipo de enfrentamento que se deu nessa segunda fase. O relator – o atual ministro Rogério Marinho – agiu determinado a “passar a boiada”, em articulação com toda a sorte de pressões de grupos e lideranças empresariais e respaldado por uma ampla base de parlamentares associada a esses grupos de pressão ou mesmo a empresários individuais, inclusive parte deles próprios. Essa fronda promoveu uma operação plástica de grande extensão no projeto do Executivo, cuja expressão foi um substitutivo do relator que ainda ganhou mais vitamina disruptiva com centenas de emendas apresentadas na Comissão Especial e em plenário, grande parte delas animadamente acolhidas pelo relator e chanceladas pela maioria congressual formada em torno da ideia de uma reforma radical, que acabou se impondo sobre a moderação inicial.

Quem quiser conferir pode ir ao portal da Câmara dos Deputados e encontrará a memória do processo. E constatará não só essa dinâmica avassaladora da fronda que tentei resumir como poderá viajar, se quiser, no outro lado da lua, isto é, na racionalidade política (ou subpolítica) que presidiu a conduta da esquerda no mesmo processo. Lembremo-nos de que eram tempos de denunciar “o golpe” e gritar “Fora Temer”. Nesse pique, o tique era rejeitar tudo que viesse do governo “ilegítimo”. Teto de gastos, reforma trabalhista e reforma da previdência eram encarados como itens de um pacote golpista, não importando, portanto, o mérito particular de cada reforma, o que cada uma dessas matérias trouxesse de atendimento ou recusa dos diversos interesses sociais envolvidos, muito menos as soluções objetivas resultantes que pudessem surgir para esses embates legítimos, em termos de governabilidade do país, superação da crise econômica e combate ao desemprego galopante, requerimentos inadiáveis face a situações concretas que se apresentavam ao final da guerra do impeachment. Tudo isso perdia sentido, aos olhos da esquerda politicamente destituída e conflagrada, diante da necessidade de protestar e, quiçá, reverter a situação política. Os olhos e cérebros mais moderados dessa oposição aguerrida miravam as eleições de 2018. Os menos comprometidos com rituais democráticos usavam o impeachment como “prova” de que a democracia era finda, o que requeria outros métodos de luta. Assim, no Congresso, não houve olhos e cérebros relevantes para procurar, na matéria da reforma trabalhista, o que, afinal, era interesse de trabalhadores. Por certa lógica se esperaria que, vendo-se em clara minoria, a esquerda procurasse reduzir danos. Mas para isso era preciso ancorar-se no projeto moderado do Executivo, que o relator radicalizava. Como a polarização política não permitia tal cogitação, viu-se a base governista inteiramente liberada para aderir à passagem da boiada. E a esquerda restrita ao esperneio cheio de adjetivos, que se encontra na consulta a discursos nos arquivos.

Falta de firmeza? Hipocrisia? Tudo isso pode ter ocorrido e ser usado como argumento contra a base do governo Temer para que a esquerda justifique sua própria fuga à responsabilidade política, naquele momento. Fuga ainda mais dramática se atentarmos à conivência de lideranças sindicais de esquerda para com essa conduta absenteísta da base parlamentar. Agiram como correias de transmissão de uma causa partidária, defenderam por isso o status quo trabalhista, reagindo à própria ideia de reforma. Erro político também porque se aprovou uma lei que foi além e em muitos pontos ficou aquém do objetivo declarado da modernização, chancelando e estimulando precarizações talvez evitáveis por normas fixadas por pacto para proteção de trabalhadores tradicionais. Pactos que poderiam ser conseguidos, ou não, mas que sequer foram tentados por quem tinha mandato, parlamentar ou sindical, para fazê-lo. 

É preciso compreender então que Lula, caso faça, se eleito, uma proposta de revisão dessa lei, poderá com isso fazer algo muito mais construtivo do que revogar a lei de 2017. Será uma oportunidade de, pelo debate público e pela coordenação do Estado, corrigir os excessos que a tornaram, em parte, instrumento unilateral das empresas em desfavor dos seus trabalhadores. Mas também atualizar e aprofundar o que ela trouxe de positivo, quando encarou, por exemplo, o inadiável problema de regrar relações trabalhistas de milhões de terceirizados e temporários. Sua revisão pode permitir, inclusive, responder, de modo prático, aos novos reclamos sociais de milhões de indivíduos concretos, jovens e maduros, ligados ao fenômeno, que parece irreversível, da multiplicação espantosa dos trabalhadores de aplicativos que a pandemia intensificou. Em suma, esse é tema politicamente nobre, pelo enorme interesse público que desperta e pela chance que dá à esquerda de se tornar contemporânea. Não é sensato incluí-lo entre os sinais de recusa de Lula a um diálogo ao centro. Muito pelo contrário.

Mas os sinais de recusa são, por outro lado, também evidentes. O silêncio da liderança de Lula diante de toda sorte de diatribes e impropérios que se tem dito, na sua praia partidária e arredores, para bloquear soluções de compromisso ao centro de um hipotético governo seu é um dado preocupante. Indício de que sua campanha e, pior, de que seu governo poderá reproduzir a lógica pendular que, na experiência dos antigos partidos comunistas, ficou conhecida como política do pântano, praticada, por suas cúpulas, contra as esquerdas e as direitas dos partidos. Esse método político tem aplicação bem mais ampla do que naquelas realidades. Ao sabor das suas táticas, uma cúpula (ou um chefe político) ora afaga aliados, atuais ou futuros e, como astuta raposa, recepciona-os com declarações simpáticas, narrativas concessivas e jantares calorosos, ora estimula os radicais do entorno, soltando seus lobos ou demônios para afugentar visitas como se fossem só elas as raposas. Estaremos, se as urnas conferirem a Lula mais um mandato, imersos nessa trama supostamente maquiaveliana? Digo supostamente para fazer justiça ao gênio republicano do florentino, que não propunha o uso das artes da política em benefício de um varejo pessoal. É na grandeza do Estado e na felicidade do seu povo que o governante sábio, porque também prático, encontra o poder que persegue. No mundo de hoje, em que a razão criou instituições coletivas que limitam de modo perene a vontade política do poderoso, é possível a grandeza de um estado e a felicidade de um povo serem achadas no pântano em que se planta um governante apenas tático? É razoável pensar que nem no tempo de Maquiavel um tal sabido teria bom futuro.

Essa "inteligência" tática de uma esquerda que se achava esperta ajudou uma vez a quase arruinar o país. Achou que podia ganhar eleições com muitos parceiros e depois governar sozinha, sem programa comum pactuado com eles, somente contratando, com recursos públicos, o apoio que se fizesse necessário a cada instante. Essa tentação pode ficar maior se Lula puder vencer a próxima eleição como um caudilho, sem compromissos com ninguém, a não ser com o “povo”. E impressiona a quantidade de pessoas de boa formação, boa história e boa intenção, que incorre no autoengano de supor que na hora certa ele saberá encontrar uma solução “inteligente”. Assim até eleitores à direita ficam menos inquietos com a ideia de dar uma carta branca a Lula para governar como déspota pragmático, pois ele estaria livre, inclusive, para enquadrar seus radicais e governar com a turma mais moderada e o PIB. Vale lembrar: ACM também era, para seus seguidores, um PHD em política, infalível, até que falhou tropeçando na própria soberba e foi varrido do mapa político. Morreu sem trono para legar, ficou a memória. Há raciocínios na praça que têm a mesma índole do raciocínio carlista que sacralizava o chefe.

Iniciativas como a de tematizar a reforma trabalhista na campanha aparecem como chance de o país sair do pântano. Essa é uma inteligência que tem a sabedoria de entender que suas proezas, como todas as proezas humanas, têm prazo de validade. O prazo das proezas do lulismo antigo está próximo de vencer. Sem exagero, está na prorrogação, vivendo, na verdade, do seu passado. Se acreditar que seu barro é distinto do que molda os humanos comuns, o mito da esquerda, com a cumplicidade de sectários e áulicos, pode não ver sua recente prisão como lição realista sobre seus próprios limites. E por essa soberba, não por uma conspiração qualquer, terminar perdendo uma eleição quase ganha. Isso poderá ocorrer se ele deixar cair no chão a bandeira da pacificação nacional, que lhe surge como chance de consagração de sua liderança. Um grupo de jogadores, profissionais como ele, mas antenados para a delicadeza do momento coletivo do país, pode armar um jogo alternativo, com o bagaço dessa bandeira.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/01/paulo-fabio-dantas-neto-encruzilhada-de.html


Luiz Carlos Azedo: Nunca os conflitos do Cáucaso estiveram tão perto de nós

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

O escritor Nikolai Vassílievitch Gogol (1809-1852) é considerado um dos pais da literatura russa. Segundo Fiódor Dostoiévski, autor de Crime e Castigo, todos os grandes autores russos que conhecemos saíram do conto O capote, de Gogol, a história tragicômica de Akaki Akakiévitch, um funcionário público na Rússia czarista, cuja maior ambição era comprar um capote novo: “Não, é melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários, empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo sujeito acredita que, se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida”. A novela mostra a frieza e a futilidade da aristocracia do Estado tzarista, em São Petersburgo.

Notável contista, os romances mais famosos de Gogol são Tarás Bulba (1834) e Almas Mortas (1842). Maria, um dos seus contos, descreve o drama da filha de um chefe cossaco aliado do Pedro, o Grande, e casada com um dos generais de Carlos XII da Suécia. A filha presencia o marido matar seu pai num duelo e fugir com o exército inimigo. A jovem enlouquece. É uma alusão à fuga de Ivan Mazepa, um general cossaco do Exército sueco. E uma alegoria da histórica divisão da Ucrânia.

Após derrotar a Saxônia, a Dinamarca e a Polônia, aliados de Pedro, o rei Carlos XII da Suécia tentara pôr fim à guerra invadindo a Rússia, em 1708. Em abril de 1709, Carlos XII, com o apoio do líder cossaco Ivan Mazepa, atacou o forte de Poltava no Hetmanato Cossaco. Os suecos atacaram o campo entrincheirado dos russos, que era defendido por 42 mil soldados. A vitória russa obrigou Carlos e Ivan Mazepa a fugirem para o Império Otomano.

Gogol nasceu na pequena aldeia de Sorótchintsi, na província de Poltava, na Ucrânia central, cuja capital, hoje com cerca de 280 mil habitantes, foi construída por Pedro, O Grande, como uma pequena réplica de São Petersburgo, para comemorar a Batalha de Poltava, que lhe garantiu a vitória contra os suecos. Do século XIV a 1569, a região foi parte da Lituânia; depois, da Polônia. Em 1482, foi invadida pelos tártaros da Crimeia. De 1654 a 1667, pertenceu ao Império Russo. De 1917 a 1919, foi um campo de batalha da Guerra Civil. Os bolcheviques haviam tomado o poder, mas as tropas brancas do general Anton Denikin controlavam a Ucrânia, com apoio dos cossacos da região caucasiana de Kuban. Denekin foi derrotado pelo Exército vermelho.

Um tratado de paz com a Polônia encerrou a Guerra Civil. A porção ocidental foi incorporada à Polônia, a oriental formou a República Ucraniana, integrada à União Soviética em dezembro de 1922. Durante a Segunda Guerra Mundial, nacionalistas ucranianos lutaram contra nazistas e comunistas, indistintamente, ou colaboravam com um dos lados. Em 1941, o Exército alemão invadiu a Ucrânia. No cerco de Kiev, em cujo principado nasceu a Rússia, houve feroz resistência do Exército Vermelho e da população local. Foram capturados 660 000 soldados soviéticos, entre cinco e oito milhões civis morreram, sendo meio milhão de judeus. De onze milhões de soldados soviéticos mortos em batalha, um-quarto era ucraniano.

Separatismo

Desde que assumiu o poder, Vladimir Putin tenta manter a Ucrânia como aliada da Rússia, não aceita que o país ingresse no Tratado do Atlântico Norte (Otan), a grande aliança militar do Ocidente, liderada pelos Estados Unidos. Entretanto, desde a chamada Revolução Laranja (2004), seus aliados ucranianos sofreram sucessivas derrotas eleitorais. Em resposta, Putin apoia movimentos separatistas em regiões onde a população é russófila, como Crimeia e Sebastopol, que declaram independência e, em 2014, assinaram um tratado de adesão à Federação Russa, apesar da oposição da ONU.

Nas regiões leste e sul da Ucrânia, em Donetsk e Lugansk, milicias locais ocuparam prédios do governo e delegacias policiais e iniciaram uma guerra civil. Um plebiscito local, não reconhecido internacionalmente, aprovou a independência da região de Donbass, a segunda mais densamente povoada da Ucrânia, superada apenas pela capital Kiev. Reservas de ferro e carvão mineral cobrem cerca de 23.300km² a sul da bacia do rio Donets; é a maior região produtora de ferro e aço da Ucrânia e abriga um dos principais complexos de indústria pesada do mundo.

E nós com isso? Os Estados Unidos acusam a Rússia de preparar uma invasão da Ucrânia, enquanto Putin ameaça instalar bases militares na Nicarágua e na Venezuela, caso o país do Cáucaso realmente ingresse na Otan. Se isso ocorrer, o assunto certamente será um dos temas da campanha eleitoral, porque o presidente Jair Bolsonaro é aliado do atual governo ucraniano e será instado a se posicionar por Joe Biden, o presidente dos EUA, enquanto o ex-presidente Lula não esconde seu apoio político a Nicolas Maduro, na Venezuela, e Daniel Ortega, na Nicarágua. É um assunto cabeludo, que pode mudar muita coisa na geopolítica regional, na qual Bolsonaro anda muito isolado.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-nunca-os-conflitos-do-caucaso-estiveram-tao-perto-de-nos/

Fundo Partidário bancou itens de luxo, avião e reforma em imóvel de dirigente

Katia Brembatti, especial para o Estadão, e Gustavo Queiroz / O Estado de S.Paulo

De cada R$ 10 recebidos pelos partidos de dinheiro público em 2015, R$ 1 foi gasto de forma questionável. Esse foi o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao julgar as prestações de contas das siglas. Entre as despesas que a Justiça Eleitoral reconheceu como irregulares estão compras de itens de luxo, festas, reforma em imóveis de dirigentes, viagens injustificadas, pagamentos em duplicidade e honorários para advogados de réus da Lava Jato, além de indícios de falsidade ideológica.

Embora as despesas sejam de quase sete anos atrás, esse é o período mais recente analisado pela Justiça Eleitoral. Toda a movimentação do Fundo Partidário desde então ainda está passível de apreciação pelo TSE. O tribunal prioriza a avaliação de gastos eleitorais, principalmente dos vencedores, mas as despesas dos derrotados e dos partidos não seguem o mesmo ritmo, até porque os prazos são menos exíguos.

LEIA TAMBÉM
Indicado de Bolsonaro, Mendonça abre cinco dias para presidente, Lira e Pacheco se manifestarem sobre fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões

Dos R$ 811 milhões disponíveis para os partidos em 2015, R$ 76,8 milhões foram considerados irregulares pelo TSE. Naquele ano, nenhuma sigla passou incólume pelo crivo. Tiveram as contas reprovadas 20 legendas. Outras 13 foram aprovadas com ressalvas.

As informações sobre o Fundo Partidário foram reunidas pela iniciativa Freio na Reforma, composta por entidades da sociedade civil, diante da discussão no Congresso de projetos que modificam os sistemas de prestação de contas. As propostas estão em tramitação no Senado – inclusive a que acaba com o prazo de cinco anos para a apresentação de documentos referentes às despesas do Fundo Partidário. 

Questionamento

Enquanto alguns partidos tiveram irregularidades em menos de 1% dos recursos recebidos, outros tiveram a metade do dinheiro aplicada de forma questionável, segundo o TSE. Depois da apresentação das contas, há uma análise pela área técnica da Justiça Eleitoral e as legendas são instadas a apresentar justificativas. Só então as prestações vão a julgamento.

Quando a irregularidade é confirmada, há a obrigatoriedade da devolução dos recursos, que são depositados no próprio fundo. Já para a responsabilização dos envolvidos, a legislação prevê que ela só ocorrerá se for dolosa (intencional), que signifique enriquecimento ilícito e que represente lesão ao patrimônio do partido. Além da dificuldade de cumprir todos esses critérios, ainda demanda a proposição de ação pelo Ministério Público Eleitoral. E, muitas vezes, o tempo transcorrido entre a descoberta da ilicitude e a conclusão do processo é tão grande que o caso prescreve.

Aeronave

A lista das legendas que mais gastaram valores do Fundo Partidário de forma irregular é encabeçada pelo PROS, com R$ 10,7 milhões considerados como despesas irregulares. Do total, chama a atenção o investimento de R$ 3,1 milhões que o partido fez na compra de aeronaves. Segundo a Justiça Eleitoral, 60% dos deslocamentos ocorreram entre as cidades de Formosa e Goiânia, ambas em Goiás. Além de Formosa fazer parte do reduto eleitoral do então presidente do partido, Eurípedes Júnior, os dois municípios estão a apenas 280 quilômetros de distância. Os gastos com manutenção e combustível passaram de R$ 140 mil. 

Como mostrou o Estadão, a compra de um helicóptero R66-Turbine foi o motivo da destituição de Eurípedes da presidência da sigla em 2020. Na ocasião, também foi revelada a compra de um avião. O TSE identificou uma terceira aeronave nas contas do PROS, um avião EMB810D Seneca III, da Embraer. O TSE afirmou que é preciso coibir “práticas recorrentes quanto à atuação de líderes partidários que agem como ‘donos’ das agremiações, em perfeita confusão entre seus interesses e fins partidários.” Procurado, o partido não respondeu à reportagem.

Também o PT teve as contas desaprovadas por não comprovar de forma satisfatória o uso de R$ 8,3 milhões. O montante inclui o gasto de quase R$ 500 mil para a contratação de advogados de réus da Lava Jato, entre eles o ex-tesoureiro do partido Paulo Ferreira. A Justiça identificou que os serviços advocatícios não tinham vínculo com a atividade partidária. “Constitui irregularidade grave, na medida em que recursos públicos estão sendo utilizados ao amparo de causas individuais e personalíssimas, de evidente afronta aos princípios da administração pública.” Em nota, o PT afirmou que apresentou, em outubro, recurso ao Supremo Tribunal Federal contra o acórdão do TSE.

O mau uso de R$ 7 milhões do Fundo Partidário colocou o Patriota no pódio das siglas que tiveram as maiores quantias questionadas. Uma chácara no município de Barrinha (SP) “ganhou” R$ 50 mil em benfeitorias, como TV, frigobar, ar-condicionado e câmera de segurança. O dinheiro público também foi usado para compras de supermercado e a contratação de uma pessoa para fazer a limpeza do local. A chácara pertencia ao então presidente do partido, Adilson Barroso

À Justiça, o partido alegou que a chácara cumpria o papel de sede administrativa da sigla, mesmo localizada a 343 quilômetros da capital. O TSE afirma que a legenda não comprovou tal vinculação. Procurado, Barroso não respondeu.

Sem controle

“Há uma sanha por uso de dinheiro público sem controle”, disse o diretor do movimento Transparência Partidária, Marcelo Issa. Integrante da Freio na Reforma, ele defendeu a necessidade de um controle maior. “O aumento exponencial de recursos públicos não se fez acompanhar de investimentos em recursos humanos e tecnológicos para fazer essa fiscalização.”

Para a coordenadora da Transparência Eleitoral Brasil, Ana Claudia Santano, a reprovação das contas não significa ilicitude. “Se a Justiça Eleitoral não consegue visualizar para onde foi o dinheiro, pode existir irregularidade formal, que precisa ser confirmada se é também material.”

O TSE não se manifestou sobre medidas de controle que são adotadas. Todos os outros partidos que tiveram as contas desaprovadas foram procurados. O PTB informou que “notas fiscais, cheques e extratos foram devidamente apresentados”. O PL disse que irregularidades no pagamento das despesas cartorárias foram detectadas pela própria agremiação, que “imediatamente solicitou instauração de investigação”.

O Podemos afirmou que a responsabilidade de gestões anteriores não pode ser imputada ao atual partido. O PDT, em nota, disse que nunca agiu de “má-fé” na prestação de contas. As demais siglas não responderam.

NOTÍCIAS RELACIONADAS

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fundo-partidario-bancou-itens-de-luxo-aviao-e-reforma-em-imovel-de-dirigente,70003951965