Day: novembro 16, 2021
Míriam Leitão: Mil e uma mentiras nos países árabes
Todo governo fala bem de si mesmo, mas é preciso ter o mínimo de base na realidade
Míriam Leitão / O Globo
O que leva esse governo a repetir mentiras com tanta frequência, e de tão forma compulsiva? Ontem, em apenas uma apresentação em Dubai, foi uma sucessão de falsidades. A Amazônia não pega fogo porque a floresta é úmida, mais de 90% dela permanece como estava em 1500, os ataques que o governo sofre quando se fala de Amazônia são injustos, disse o presidente Jair Bolsonaro. O Brasil está crescendo acima da média mundial e mesmo na recessão de 2020 criou emprego, disse o ministro Paulo Guedes. Os fatos: o governo Bolsonaro estimulou a grilagem e o desmatamento na Amazônia e, por isso, a destruição da floresta voltou a superar 10 mil km2 por ano e tem tido recorde de focos de incêndio. Na economia, o Brasil terá um PIB positivo este ano, mas abaixo da média mundial. No ano que vem, o mundo crescerá forte e o Brasil ficará estagnado. E não, o país não criou emprego no ano passado. Ao contrário, em 2020 houve destruição de empregos como registram as estatísticas do IBGE.
É cansativo, toma tempo, ficar desmentindo o que dizem os integrantes deste governo em qualquer área. O hábito da mentira que sempre acompanhou Bolsonaro, em sua vida pública, contaminou o governo. Os ministros em geral se comportam à moda Bolsonaro, repetindo afirmações falsas, totalmente descoladas da realidade.
Todo governo fala bem de si mesmo, mas é preciso ter o mínimo de base na realidade. Há uma história poderosa a contar sobre o nosso patrimônio ambiental, se a ideia é dar uma visão positiva do país. O problema é que o governo Bolsonaro sempre desprezou esse patrimônio. E mais do que isso: investe contra ele desmontando os órgãos de fiscalização, propondo leis ou baixando decretos que favorecem a legalização do crime na Amazônia. Se o presidente acreditasse que seu governo está preservando a floresta, seria natural que tivesse ido a Glasgow disposto a defender isso com dados verificáveis. Mesmo estando na Europa, ele não teve a coragem de ir à COP-26. Prefere repetir agora suas mil e uma mentiras nos Emirados Árabes, onde não será contestado.
Na Amazônia, além da escalada de desmatamento e grilagem, o que tem acontecido de mais trágico é a invasão de terras indígenas. Os povos indígenas têm estado sob constante ameaça de grileiros e garimpeiros.
Na versão alienada dos fatos, apresentada por Paulo Guedes, o Brasil teria crescido mais do que outros países “graças à orientação do nosso presidente de não deixar nenhum brasileiro para trás durante a pandemia”. Bolsonaro deixou o país inteiro para trás. Em momento algum o presidente deu qualquer sinal de compaixão pelas vítimas da Covid, demonstrou preocupação com a pandemia ou se comportou como o líder de um país enfrentando uma calamidade sanitária que ceifou a vida de mais de 611 mil pessoas. Se dependesse apenas dele, não teria sido adotada qualquer medida de proteção — ele condena até a máscara — e o governo não teria comprado vacinas. Tudo o que o governo fez foi por ser empurrado pela Justiça, pelo Congresso, pela imprensa, pela opinião pública, pelos governadores e prefeitos.
Mais do que afirmações controversas, ou dados falsos, o governo Bolsonaro tem sido uma ameaça em todas as áreas. Agora mesmo se vive a crise da intervenção e censura no Enem, com o presidente se vangloriando disso, porque agora a prova estaria com a “cara do governo”. Imagina se jovens, que estão com a vida pela frente, têm que passar num teste que reflete um governo de quatro anos.
Na economia, o país está enfrentando inflação de dois dígitos, escalada de juros, e desmoralização do teto de gastos. Paulo Guedes disse que inflação é assunto do Banco Central. Evidentemente é também assunto do Ministério da Economia, como sempre foi. O BC tem combatido sozinho com política monetária, o que torna o remédio ainda mais amargo. Segundo Guedes, o Brasil privatizou estatais, está aprovando reformas e “ se tornando um paraíso para investimentos”. O governo não privatizou, as reformas estão paradas — é até melhor assim já que foram mal formuladas — e os investidores estão se afastando do país. Na era da comunicação, na qual os dados e os fatos estão disponíveis, que investidor sério se deixaria convencer por uma farsa governamental?
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/mil-e-uma-mentiras-nos-paises-arabes.html
Andrea Jubé: Sobre tirar as meias com o sapato nos pés
Valdemar disse a Lula que não punirá quem optar pelo PT
Andrea Jubé / Valor Econômico
Um presidente de partido, que está em campo desde os tempos dos acordos firmados e cumpridos no fio do bigode, disse à coluna estar perplexo diante de tantas patacoadas protagonizadas pelos principais atores da política nacional.
Um exemplo de amadorismo para este decano da política são os apupos entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, depois que o mandatário anunciou o “casamento” com legenda.
Outro fato digno de reprimenda seria a negociação à luz do dia para levar o tucano Geraldo Alckmin para o PSB, e torná-lo companheiro de chapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em uma das mais inusitadas acrobacias políticas da história recente.
Para este dirigente partidário, de tão sensíveis, esses movimentos deveriam ser conduzidos detrás das coxias. Aumentariam as chances de serem bem sucedidos se alinhavados na surdina.
“Publicar passo a passo nos jornais gera ruídos e atrapalha”, criticou este veterano. Ele pondera que as atuais lideranças políticas deveriam seguir a cartilha das velhas raposas.
Um dos exemplos mais ilustrativos é o ex-presidente Getúlio Vargas. Então governador do Rio Grande do Sul, havia chegado a hora de Getúlio comunicar ao presidente Washington Luís que se lançaria candidato à sucessão presidencial em 1930. Era preciso cautela, porque a notícia abalaria os pilares da política nacional.
Os mineiros resistiam ao nome imposto pelo presidente para sucedê-lo, o governador paulista Júlio Prestes. Por isso, o presidente contava com o apoio do Rio Grande do Sul, terceira força eleitoral do país, como fiel da balança contra Minas Gerais.
Nos bastidores, havia meses, o deputado federal João Neves da Fontoura, aliado de primeira hora de Getúlio, costurava com aliados a colocação do nome do caudilho. Em maio de 1929, quando Getúlio foi pressionado a se posicionar, escolheu as palavras exatas para redigir uma carta a Washington Luís informando sua decisão.
O mensageiro seria o deputado Flores da Cunha, liderança gaúcha com livre trânsito junto ao Palácio do Catete. Ele tomaria o vapor em Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, mas faria uma escala em Santos, onde poderia se encontrar com o governador Júlio Prestes.
O risco do encontro alarmou Getúlio, que mandou uma mensagem pelo rádio do navio orientando o mensageiro a suspender a encomenda. Flores da Cunha não se encontrou com Prestes, mas eles se falaram por telefone no intervalo da viagem.
Somente após instalado em seu hotel no Rio, Flores da Cunha foi autorizado a levar a mensagem ao destinatário. Quando leu a carta, Washington Luís ficou estarrecido. Mas receber a notícia interceptada por Júlio Prestes deixaria sequelas ainda piores.
Artífice da Revolução de 30, João Neves da Fontoura, que seria chanceler de Getúlio no mandato democrático de 1951-1954 _, gostava de dizer que o caudilho era tão ladino que tirava as meias sem descalçar os sapatos.
Se vivo fosse, João Neves talvez observasse que no jogo atual, Bolsonaro tira as meias e acaba descalço. Há dois anos, desde que rompeu com o PSL do deputado Luciano Bivar (PE), o mandatário, que já passou por oito partidos, continua sem destino.
A tentativa de fundar o Aliança pelo Brasil naufragou. Depois ele divulgou que cerraria fileiras com o Patriota, mas o movimento deu em água.
O mundo político sempre soube que o casamento entre Bolsonaro e o PL seria uma união de fachada. Há cerca de dois meses, Valdemar disse a Lula em um encontro reservado em São Paulo que não poderia estar ao lado do PT em 2022 porque estava “enterrado até o pescoço” no governo Bolsonaro, com cargos e emendas. O cargo principal é a Secretaria de Governo, comandada pela ministra Flávia Arruda, com gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto.
No entanto, segundo fontes do PT e do PL, Valdemar ponderou a Lula que não impediria os deputados do PL de caminhar com o petista em seus Estados, principalmente no Nordeste.
Um dos motivos do impasse com o PL é o palanque em São Paulo e o controle do diretório paulista, que Bolsonaro confiaria ao deputado Eduardo Bolsonaro, hoje no PSL. Mas por que anunciar publicamente o enlace, se uma das principais cláusulas do contrato nupcial não estava ajustada?
Quando combinou a filiação com o PSL, no começo de 2018, Bolsonaro exigiu o controle de 25 dos 27 diretórios estaduais da legenda. Só ficaram de fora os diretórios de Pernambuco, porque estava sob a direção direta de Luciano Bivar, e do Maranhão, porque era o único em que o dirigente havia sido eleito pelos filiados.
Na conversa com a coluna, este decano da política nacional criticou a articulação às claras para filiar Geraldo Alckmin no PSB, e transformá-lo em vice de Lula. O movimento é encabeçado pelo ex-governador Márcio França (PSB) e pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT).
A costura nunca foi desautorizada pelos envolvidos. Ontem Lula disse na Bélgica que “não há nada que aconteceu entre eu e o Alckmin que não possa ser reconciliado”. Poucos dias antes, o tucano afirmou que se sentia “honrado” pela lembrança de seu nome, e que Lula é um democrata.
Quem conhece Alckmin bem, não descarta que se o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, vencer as prévias tucanas, ele permaneça na legenda.
Para um cacique do PSB, a publicidade da articulação para atrair Alckmin conturba a estratégia. Mas, a despeito desse revés, uma condição é imperiosa para o desfecho favorável: o PT tem que retirar o nome de Haddad, e comprometer-se com o apoio a Márcio França na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes.
Ontem Lula disse que a política é como o futebol: “você dá uma botinada no cara, ele cai chorando, mas depois que termina o jogo, eles se encontram, se abraçam, vão tomar uma cerveja e discutir o próximo jogo”. O craque da política, entretanto, seria aquele que, antes da cerveja, ainda no vestiário, tirasse as meias sem descalçar as chuteiras.
Fonte: Valor Econômico
Blog do Noblat: Por que Bolsonaro tanto mente e não se constrange em mentir
E assim será até o último dia do seu desgoverno
Ricardo Noblat / Metrópoles
Não é por ignorância ou compulsão que o presidente Bolsonaro mente tanto, é por necessidade. Atravessou quase metade do planeta para dizer em Dubai diante de uma plateia de investidores que a Amazônia é uma floresta úmida que não pega fogo.
Informa o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial que foi batido mais um recorde de queimadas para o mês de outubro com 877 quilômetros de focos de desmatamento na Amazônia. Em alguns casos, a desflorestação precede as queimadas.
O ministro Paulo Guedes, da Economia, seguiu o exemplo do chefe e disse que o Brasil cresce acima da média mundial. A Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico estima que o Brasil deve crescer 2,3% no próximo ano, e o mundo, 4,5%.
Depois de visitar os Emirados Árabes Unidos, Bolsonaro passará pelo Bahrein e Catar. Sente-se à vontade naquele pedaço do mundo porque não corre o risco de enfrentar manifestações hostis, só a favor. São ditaduras conduzidas com mão de ferro.
Nas duas viagens anteriores, ele amargou as inconveniências da democracia na Itália e nos Estados Unidos. Em Roma, seus agentes de segurança bateram em jornalistas. Em Nova Iorque, de um ônibus, seu ministro da Saúde reagiu às vaias dando o dedo.
Democracia é uma dor de cabeça, e as trapalhadas cometidas por Bolsonaro são filmadas. Na reunião dos chefes de Estado das 20 maiores economias, ele ignorou o futuro chanceler da Alemanha e foi pisar no pé da atual chanceler, Angela Merkel. Que tal?
Onde quer que esteja, Bolsonaro fala preferencialmente para seus devotos, e isso é o que o motiva a deixar de lado a verdade e a verossimilhança e a mentir descaradamente. Pegaria mal para ele dizer lá fora o contrário do que diz aqui. Então, mente lá como cá.
Quem o ouve no exterior tem meios fáceis de saber quando ele mente. Quem aqui o ouve, nem sempre. As mentiras infames para uso interno o isolam dos demais governantes e emporcalham a imagem do Brasil, mas ele pouco liga. E assim será até o fim.
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/por-que-bolsonaro-tanto-mente-e-nao-se-constrange-em-mentir
Efeito estufa: Impacto da degradação da Amazônia não é contabilizado
Brasil bateu novo recorde de desmatamento durante a COP26
Aldem Bourscheit / PlenaMata / Amazônia Real
A destruição da Amazônia não ocorre só pelo corte raso da floresta, mas também pela extração seletiva de árvores para o comércio de madeira ou com o uso de fogo para eliminar a vegetação. Mas as perdas pela chamada degradaçãoEliminação parcial e gradual da vegetação florestal para a extração seletiva de madeira e de outros recursos naturais. Pode ocorrer também por fogo e alterações climáticas [+] da floresta ainda não entram no cálculo das emissões de gases-estufa, o que gera um retrato distorcido da participação do Brasil nas mudanças climáticas globais.
Uma carta publicada na revista Nature por pesquisadores brasileiros e de outros países endereçada às discussões na COP26, a conferência sobre clima das Nações Unidas em Glasgow (Escócia), que acaba hoje (12), alerta que essas emissões precisam entrar nos balanços nacionais e nos debates climáticos.
Conforme o documento, grandes emissões de carbono são mascaradas porque países amazônicos não avaliam e não informam sobre a degradação florestal (+). Entre 2003 e 2015, as emissões de carbono por incêndios florestais e efeitos de borda foram estimadas em 88% das emissões brutas por desmatamento na Amazônia brasileira. A poluição climática cresce ao longo dos anos pela morte e decomposição de árvores atingidas pelo fogo.
“Conhecer as emissões por degradação em ambientes não adaptados ao fogo, como florestas úmidas com grande estoque de carbono na América do Sul, África e Ásia, ajudará o mundo a ter um cenário mais realista das emissões e das ações que devemos tomar para conter a crise do clima”, ressaltou Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e um dos pesquisadores que assina a carta.
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) apresentou um estudo na COP26 mostrando que apenas os incêndios florestais na Amazônia engrossaram em 21% as emissões brasileiras de carbono desde 2005, em relação à década anterior. O gás amplia o efeito estufa e acaba elevando a temperatura média planetária. “Estamos omitindo parte importante das emissões de florestas tropicais como a Amazônia, que são muito afetadas pelo fogo”, destacou Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam em coletiva de imprensa no Brazil Climate Hub. Segundo ela, é necessário melhorar o balanço das emissões-captações e estudos sobre a biomassa queimada antes de incorporar formalmente a degradação ao inventário.
A degradação está comendo a capacidade da floresta absorver o carbono da atmosfera. Precisamos de mais estudos sobre degradaçãopara a Amazônia e demais florestas do mundo para que tenhamos um quadro completo do problema, de forma que o IPCC incorpore a degradação de fogo em sua metodologia.
Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do IPCC
Hoje, os protocolos brasileiros e do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima) não contabilizam as emissões de gases-estufa que não estejam amarradas ao desmatamento. O Brasil tem uma estimativa de poluição climática por degradação, mas não é obrigado a somá-las nos inventários nacionais remetidos às Nações Unidas, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e colunista da plataforma PlenaMata. “A degradação está comendo a capacidade da floresta absorver o carbono da atmosfera. Precisamos de mais estudos sobre degradaçãopara a Amazônia e demais florestas do mundo para que tenhamos um quadro completo do problema, de forma que o IPCC incorpore a degradação de fogo em sua metodologia”, reforçou o pesquisador e membro do IPCC.
Munidos com imagens de satélites, pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos descobriram que a degradação da Amazônia por fogo e corte seletivo de árvores para comércio de madeiras superou o desmatamento entre 1992 e 2014. Conforme o estudo publicado na Science, enquanto 308 mil km² foram desmatados no período, uma área quase 10% maior foi degradada, ou 337 mil km².
A diferença cresceu nos últimos anos. Uma análise do InfoAmazonia sobre alertas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)Ferramenta do governo federal que gera alertas rápidos para evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia e no Cerrado [+] mostra que a degradação por fogo e perda de cobertura florestal em 2021 (5.217 km² ) é 66% da área desmatada (7.882 km²) na Amazônia Legal em 2021 (de janeiro a 31 de outubro). As cicatrizes de incêndios florestais respondem por quase 41% dessa degradação, ou 3.223 mil km².
“Há um descolamento entre áreas atingidas por desmatamento e por fogo, pois o fogo é usado para abrir pastagens e tende a se deslocar para dentro das florestas. Por isso, políticas para controle do desmatamento não necessariamente atacam as emissões de gases-estufa por fogo. Elas devem ser complementares”, ressaltou Aragão, do INPE.
De acordo com o Ipam, a queima e a decomposição de árvores, folhas e galhos atingidos pelo fogo na Amazônia lançou na atmosfera mundial quase 1,3 bilhão de toneladas de carbono entre 1990 a 2020. Se forem distribuídas ao longo dos 30 anos, as emissões anuais equivalem às do Japão. Florestas degradadas pelo fogo guardam 25% menos carbono do que as preservadas, aponta a ONG.
Apenas de fogo, foram 674 mil focos de calor na Amazônia Legal em 2021 detectados pelo satélite S-NPP/VIIRS da Nasa de janeiro a 31 de outubro. Desse total, 18% dos focos ocorreram em áreas protegidas (10,4% em unidades de conservação federais e estaduais e 7,6% em terras indígenas).
Retrato distorcido
Não pesar as emissões geradas pela degradação da Amazônia amplia o problema de metas insuficientes para cortes de poluentes na contribuição nacionalmente determinada, a NDC brasileira.
Analistas do Política por Inteiro avaliaram que os compromissos que o país apresentará às Nações Unidas, para reduzir pela metade as emissões até 2030 em relação às taxas de 2005, permitem que o Brasil siga prejudicando o clima global até o fim da década. Ou seja, o novo percentual para redução de emissões não compensa o aumento da poluição climática desde 2015, quando o Brasil prometeu cortar 43% do lançamento de gases-estufa. “Para se alinhar ao Acordo de Paris, o Brasil deveria aumentar sua ambição e prometer uma meta maior do que aquela proposta há seis anos”, avalia o estudo.
“A NDC deveria ser uma ferramenta para o Brasil reorientar seus planos de desenvolvimento para uma economia que emita pouco carbono. Sem isso, ela não sinaliza a diferentes setores, aos tomadores de decisões e à sociedade que o país quer um futuro de baixo carbono, que reduz desigualdades sociais e melhora a vida da população, como outras nações estão fazendo”, ressaltou Walter De Simoni, diretor de Articulação Política e Diálogo do Instituto Talanoa.
Não atingiremos nenhuma meta para cortar a poluição climática com esses níveis de desmatamento e de degradação florestal, que aumentam as contas de emissões. Mesmo que zeremos o desmate, muita floresta degradada por fogo e outros impactos seguirá emitindo gases-estufa.
Ane Alencar, diretora do Ipam
O problema nas contas climáticas não é exclusivo do Brasil. Um levantamento do jornal Washington Post mostrou que a grande maioria dos 196 países analisados joga para debaixo do tapete as emissões reais de gases-estufa em seus balanços às Nações Unidas. As emissões subnotificadas pelos países variam de 8,5 bilhões a 13,3 bilhões de toneladas anuais.
Na COP26, o governo brasileiro prometeu zerar o desmatamento ilegal entre 2022 e 2028. Mas alertas do INPE mostram que o desmatamento em outubro na Amazônia superou os 877 km², um dos piores índices da história. O desmate consolidado entre agosto de 2020 e julho deste ano ainda não foi divulgado pelo instituto, como ocorre durante as COPs. “Não atingiremos nenhuma meta para cortar a poluição climática com esses níveis de desmatamento e de degradação florestal, que aumentam as contas de emissões. Mesmo que zeremos o desmate, muita floresta degradada por fogo e outros impactos seguirá emitindo gases-estufa”, arrematou Ane Alencar, do Ipam.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.
Fonte: Amazônia Real
https://infoamazonia.org/2021/11/12/cop26-degradacao-amazonia-emissoes-gases-estufa/
Eliane Catanhede: Depois da ONU e das lives, Bolsonaro agora mente em Dubai
Presidente brasileiro disse que a Amazônia é uma floresta úmida que não pega fogo e está igualzinha desde 1500
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
Não bastassem os vexames na Europa, com ausência na COP 26, inutilidade no G-20 e agressão a manifestantes na Itália, o presidente Jair Bolsonaro mente, com um sorriso sem graça, em Dubai, numa viagem de uma semana aos Emirados Árabes.
Para espanto geral, o presidente brasileiro disse que a Amazônia é uma floresta úmida que não pega fogo e está igualzinha desde 1500. Para piorar, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse na maior cara dura que o Brasil “cresce acima da média”.
Peguem os dados do Inpe, um instituto público, e do Observatório do Clima, que é independente, e a verdade está toda lá: as queimadas e o desmatamento da Amazônia (e não só) são os piores em muitos anos.
Se tiverem paciência e estômago, também vão ver que as multas ambientais despencaram com Bolsonaro, para alegria de grileiros e criminosos e profunda tristeza de quem se preocupa com Amazônia, florestas, ambiente e planeta.
E a fala de Guedes, num horizonte de recessão, inflação e juros disparando, desemprego renitente, sem planos e estratégia de recuperação econômica e social?
É tudo tão inacreditável que a gente não sabe se é piada de mau gosto ou só cara de pau, até dissipar a dúvida revendo as manifestações do presidente em variados momentos e ambientes. Aí, tudo faz sentido.
Bolsonaro já usou a ONU, sem tomar a vacina, para defender medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19, combinando dois erros fatais que cometeu durante toda a pandemia: ataque às vacinas e propaganda de remédio inútil, até perigoso.
E as lives do presidente? 1) atribuindo ao TCU um estudo falso negando metade das mortes por covid; 2) inventando uma “pesquisa” alemã dizendo que máscaras fazem mal às crianças; 3) atribuindo casos de aids à segunda dose de vacina contra covid na Inglaterra.
Sem contar que ele questionou os dados do desmatamento, mandou demitir o presidente do Inpe e refazer a metodologia. Pois ela foi refeita e os dados continuaram os mesmos. A retórica negacionista de Bolsonaro também.
E temos a longa live em que ele usou relatório vazado ilegalmente da Polícia Federal para “comprovar” uma outra fake news: as urnas eletrônicas são fraudadas, logo, é preciso cédula de papel.
É ótimo buscar investimentos estrangeiros, apesar dos regimes ditatoriais, mas mentindo, violentando os fatos e batendo bumbo para uma realidade paralela? Bolsonaro é sem noção e sem limite.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,depois-da-onu-das-lives-e-do-cercadinho-bolsonaro-agora-mente-em-dubai,70003899638
Luiz Carlos Azedo: Federação de partidos complica as alianças regionais de Bolsonaro
O projeto político nacional se imporá às alianças regionais e provocará intensa troca de partido
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A grande novidade nas eleições do próximo ano será a formação de federações partidárias, de caráter nacional e duração de pelo menos quatro anos, o que está complicando a vida do presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição. Sua filiação ao PL, de Valdemar Costa Neto, por exemplo, subiu no telhado, porque a aliança do político paulista em São Paulo é com o candidato do PSDB a governador, Rodrigo Garcia. Mas não é somente isso. A formação de frentes partidárias exige mais nitidez em relação ao projeto nacional, o que complicou também a relação de Bolsonaro com o Centrão, a fortaleza patrimonialista e oligárquica, porque uma parte do seu eleitorado rejeita essa aliança e começa a migrar para a pré-candidatura do seu ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que se notabilizou como juiz da 13a Vara Federal de Curitiba, com a Operação Lava-Jato, por ter condenado à prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A tendência é a formação de quatro ou cinco blocos partidários. A mudança parecia um retrocesso, por facilitar a vida dos pequenos partidos em dificuldades para montar chapas proporcionais nos estados, capazes de ultrapassar o quociente eleitoral (votação mínima para eleger um candidato, cujo cálculo é a divisão do número de votos válidos pelo número de vagas de cada estado); agora, estamos vendo que a formação de federações pode ser um avanço no sentido de dar mais nitidez aos projetos nacionais, pois o eixo de formação desses blocos políticos são as candidaturas à Presidência da República. Por enquanto, o bloco com mais nitidez é o formado pelo ex-presidente Lula, que articula uma “frente ampla”, nucleada por aliados tradicionais do PT: PSB, PSol e PCdoB.
A segunda frente em formação é o Centrão, a partir da aglutinação de três partidos: o PP de Ciro Nogueira (PI), ministro da Casa Civil, Arthur Lira (AL), presidente da Câmara, e Ricardo Barros (PR), líder do governo na Casa; o PL, do ex-deputado Costa Neto e da ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (DF); e Republicanos, do bispo Marcos Pereira, o braço político da Igreja Universal do Reino de Deus. Todos também participaram do governo Lula e são pragmáticos. Bolsonaro prometeu acabar com a política do toma lá dá cá, mas aderiu a ela e entregou a gestão das emendas parlamentares do Orçamento da União ao Centrão. Pretendia se filiar ao PL, que já estava conversando com Lula, mas deu marcha a ré.
Terceira via
Ainda não está claro o verdadeiro motivo do adiamento da filiação de Bolsonaro ao PL, tanto pode ser a gestão do fundo eleitoral da federação (que não está regulamentada, ou seja, não se sabe se esses recursos permanecerão controlados por cada partido ou se irão para um caixa único, com gestão própria) quanto a resistência do vereador carioca Carlos Bolsonaro, seu filho, porta-voz dos grupos bolsonaristas de extrema-direita, que gerencia suas redes sociais, diante das reações negativas à filiação de Bolsonaro ao PL. Bolsonaro deixou o PSL, partido pelo qual se elegeu, mas não conseguiu formar seu próprio partido, a Aliança pelo Brasil, e está sem legenda para concorrer à Presidência. A formação desse bloco é indispensável para tentar a reeleição.
Havia uma expectativa de fragmentação da chamada “terceira via”, devido ao grande número de pré-candidatos: o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT); os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), que disputam as prévias do PSDB; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); a senadora Simone Tebet (MDB-MS); o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE); e, agora, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que se filiou ao Podemos. Qualquer candidatura com possibilidade de ultrapassar 10% de votos pode ser mantida para viabilizar uma bancada federal, ainda quer isolada.
Mesmo assim, essas candidaturas correm o risco de não vingar, por pressão de deputados e senadores das respectivas legendas. Ciro e Moro são os candidatos com melhor desempenho nas pesquisas, mas têm dificuldades para fazer alianças. O primeiro está isolado na franja do bloco de esquerda; o segundo, por causa da Lava-Jato, enfrenta a ojeriza da maioria dos deputados e senadores que defendem a terceira via. Doria e Leite protagonizam uma disputa autofágica, quem vencer terá que formar uma federação robusta. Tebet é uma novidade no MDB, mas pode ser cristia nizada, como é da tradição da legenda. Mandetta e Alessandro postulam o apoio dos demais, mas são operadores declarados da “terceira via”. Em todos os casos, o projeto político nacional se imporá às alianças regionais e provocará intensa troca de partido, em razão do alinhamento aos governadores e da sobrevivência eleitoral.
Gaudêncio Torquato: A moeda divina na compra do poder
O fato é que os evangélicos crescem em ritmo geométrico, enquanto os católicos se expandem de forma aritmética
Gaudêncio Torquato / Blog do Noblat / Metrópoles
Padre Américo Sérgio Maia, antigo vigário de Cajazeiras (PB), teve um dia de viajar 28 quilômetros a cavalo para dar a extrema-unção a um doente. Cansado, apeando do animal logo perguntou: “Minha senhora, por que vocês não fizeram uma casa mais perto da cidade?”. Ouviu a ácida resposta: “Padre, e por que não fizeram a cidade mais perto da gente?”. Essa historinha serve para explicar o distanciamento de fiéis da Igreja Católica e sua perda para credos evangélicos.
O fato é que os evangélicos crescem em ritmo geométrico, enquanto os católicos se expandem de forma aritmética, a denotar que a moeda da fé circula pelos centros e pelas margens, mostrando o pendor e a falta de pudor com que o evangelismo usa a vida divina como chave para entrar no reino dos céus.
Fosse apenas essa a questão, a disputa seria apenas uma soma de números. Não. O problema é de natureza política. Os evangélicos querem ocupar o centro do poder, o que significa montar um partido político (Republicanos), dotá-lo das condições para influir na pauta legislativa, integrar a malha da administração pública por meio de ministros e, claro, culminar com a eleição de um presidente com o qual tenham ligação direta: Jair Bolsonaro. Que luta para inserir um ministro “terrivelmente evangélico” no STF.
A população católica se estreita. Dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram uma fuga média de 465 pessoas por dia. Já os evangélicos perderam a vergonha: falam claramente sobre seu projeto de poder, com seus quadros de comando, como o pastor Silas Malafaia sendo um dos maiores interlocutores de Bolsonaro. A par dessa observação, vem outra: quanto mais crescem mais o tintim da moeda enche os cofres de credos, que continuam a preencher os horários vazios das tevês, inclusive em horário nobre, para exibir discursos, perorações e milagres inventados para engabelar as massas.
Quais as razões que explicam tal fenômeno? O afastamento dos fiéis da política tradicional e a opção por uma nova política, está sob a égide das cortes divinas. É grande o descolamento entre a esfera política e a sociedade. Políticos fecham os ouvidos ao barulho das ruas e menosprezam o sentimento da plebe.
E qual o motivo para tal afastamento, quando se sabe que o mandato não pertence ao eleito, mas ao povo, que apenas lhe transfere temporariamente a representação? A resposta contempla a mudança do conceito de política, de missão para profissão, aquela abrigando o ideário coletivo, está incorporando o interesse individual. O verbo transitivo indireto servir (ao povo) cedeu lugar à forma pronominal servir-se (do povo). A esganiçada luta do poder pelo poder tornou mais ferina a competição política, formando um arsenal de poderosos instrumentos para os guerreiros usarem na arena eleitoral: recursos financeiros, espaços midiáticos, partidos sem doutrina e uma retórica de glorificação personalista, focada na grandeza dos perfis em detrimento das ideias.
Os conjuntos legislativos são vistos como braços políticos do ciclo produção-consumo, cujo foco é o rendimento, o ganho, a concorrência, o jogo de soma zero, no qual a vitória de um se dá graças à derrota de outro.
O rosário de virtudes desfiado pelo papa Francisco para revitalizar a Igreja Católica e resgatar a fé de rebanhos desgarrados não deixa de ser sábia contribuição para oxigenar a política. O pontífice usa as chaves da Igreja de Roma para abrir portas, mas a resposta tem sido pequena ao seu. O papa parece querer nos deixar um legado valorativo, algo como um manual de conduta política, tão franciscano quanto ele, contraponto ao Breviário dos Políticos, aquele manuscrito que o cardeal Mazarino produziu nos tempos dos Luíses XIII e XIV da França, pregando a desconfiança, a emboscada, a simulação e a dissimulação.
O livrinho do papa argentino alinha preceitos inerentes ao escopo da Política (com P maiúsculo), seja para uso da Igreja, seja para a vida partidária. E, ao contrário aos políticos, não aprecia esse marketing que espetaculariza eventos. Simplicidade, exibir um perfil sem máscaras, despojado, transparente. Simplicidade não usada pela liturgia pirotécnica dos evangélicos. Como lembra André Comte-Sponville, “simplicidade é ter a virtude dos sábios e a sabedoria dos santos”.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-moeda-divina-na-compra-do-poder-por-gaudencio-torquato
Alon Feuerwerker: O ovo cru e o omelete no Auxílio Brasil
Hoje em dia, basta eleger meia dúzia de deputados e recorrer ao STF quando o governo faz algo que desagrade à opinião pública
Alon Feuerwerker / Análise Política
Um aspecto tem passado algo despercebido em todo esse imbróglio sobre o novo valor do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família) e de onde virão os recursos: o assunto ter provocado a necessidade de aprovar uma emenda constitucional. Isso parece ter resultado de dois fatores: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os precatórios e o teto de gastos ter sido lá atrás introduzido na Constituição.
Tudo sempre guarda alguma explicação, mas é bastante anômalo que decisões simples de governo tenham passado a depender de mudar a Constituição. É um sintoma de várias coisas, antes de tudo de ter caducado a ordem constitucional construída em 1988. É sintoma também do grave enfraquecimento do Executivo. Uma tendência inaugurada pelas vicissitudes de Dilma Rousseff e acelerada no intervalo Michel Temer.
A eleição de Jair Bolsonaro representou um impulso à retomada da centralidade política do Palácio do Planalto, mas a tendência centrífuga retornou conforme o presidente se enfraquecia devido aos próprios erros políticos, especialmente na abordagem da Covid-19. E chegamos à situação atual, quando mexer nos programas sociais depende de PEC, e a rotina diária dos ministros do STF supõe passar o tempo desfazendo o que o governo faz.
A situação agrada a quem está na oposição pois vai levando à progressiva paralisia governamental, e também neutraliza as teóricas vantagens operacionais da maioria congressual. Antigamente, governar dava trabalho. Era preciso ganhar a eleição de presidente e formar base parlamentar sólida. Hoje em dia, basta eleger meia dúzia de deputados e recorrer ao STF quando o governo faz algo que desagrade à opinião pública.
É uma situação confortável para quem, na política, não tem perspectiva de poder formal e regular, e também para quem mais pode influenciar o ir e vir dos cordéis que movimentam a opinião pública. A dúvida é sobre a sustentabilidade. Um debate constante no Brasil é se as instituições estão funcionando. Estão funcionando sim, e funcionando tanto que o sistema de freios e contrapesos chegou ao estado da arte, com eficiência ótima: tudo travou.
A dúvida é como vamos sair da pasmaceira. Um caminho de sempre é a eleição presidencial. O problema: faz muito tempo a humanidade já sabe como transformar ovo cru em omelete, mas a rota inversa é um mistério que permanece insolúvel, desde sempre, aos mais brilhantes cérebros científicos. É ilusão imaginar que bastará eleger alguém para “as instituições” recolherem-se à casinha.
Mas História não é Biologia ou Química. Na História, o omelete pode voltar a ovo cru. Geralmente, situações assim são destravadas por alguém que acaba cortando o nó górdio. Uma coisa é certa, como já foi dito: o cenário crônico de paralisia política, baixo crescimento econômico e travamento institucional não permanecerá indefinidamente. Alguma transição virá. Há apenas duas dúvidas: quem a fará e como.
Alon Feuerwerker – jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/11/o-ovo-cru-e-o-omelete.html
Brasil ultrapassa EUA em taxa de vacinação completa contra a Covid
Especialistas alertam para a necessidade de continuar a vacinação e planejar o esquema para 2022
Patrícia Pasquini / Folha de S. Paulo
O Brasil ultrapassou os Estados Unidos no percentual de vacinados contra a Covid-19. É o que mostra o portal Our World in Data, vinculado à Universidade de Oxford, na Inglaterra.
A informação foi compartilhada numa rede social pelo cientista Eric Topol, cardiologista, fundador e diretor do Scripps Research Translational Institute, e professor de Medicina Molecular no Scripps Research Institute.
Segundo Topol, o Brasil se uniu a outros 55 países que superaram os índices americanos. Ele tem relatado dados sobre a Covid-19 em sua conta no Twitter.
Conforme a plataforma Our World in Data, no dia 14 de novembro, 59,8% dos brasileiros já estavam com o esquema vacinal completo contra a Covid-19. Enquanto nos EUA, na mesma data, o índice chegou a 57,6%.
De acordo com as informações do consórcio de veículos de imprensa, no dia 14 de novembro, o Brasil atingiu 125,4 milhões de pessoas vacinadas com duas doses, de um total de 213,3 milhões —número que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) projeta para a população brasileira atual.
Assim, estão completamente imunizados contra a Covid 58,8% da população do país. Os percentuais do consórcio de imprensa e do Our World in Data diferem ligeiramente por usarem bases de dados diferentes, com atualizações distintas.
O percentual de imunização do Brasil é semelhante ao computado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (compare no gráfico abaixo). O órgão registra a vacinação completa de cerca de 195,3 milhões de americanos.
Na plataforma inglesa é possível comparar dados de vários países. Na ferramenta, é possível notar, por exemplo, que o Chile ultrapassou os EUA no início de junho na proporção de pessoas que completaram o esquema vacinal contra a Covid.
No dia 4 daquele mês, o país da América do Sul marcou 43,9% da população vacinada com as duas doses, 0,2% a frente. No dia 12 de novembro, último dado divulgado pelo Chile, estava com 81,8%.
A Austrália, em 18 de outubro, passou os EUA em um ponto percentual e chegou a 69,3% em 14 de novembro. A União Europeia, em 2 de agosto, havia alcançado 49,9% de vacinados contra 49,8% dos americanos e subiu até 66,2% em 13 de novembro, último dado informado até a conclusão da reportagem.
O governo dos EUA autorizou o início da vacinação contra o coronavírus para 14 de dezembro do ano passado, com o imunizante produzido pela americana Pfizer em parceria com a alemã BioNTech. No dia 17 de janeiro, em São Paulo, a enfermeira do Instituto de Infectologia Emílio Ribas Mônica Calazans, 54, foi a primeira brasileira a receber a vacina. Ela foi imunizada com a Coronavac, produto da chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan.
Para Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, o fato de o Brasil ter alcançado quase 60% de população completamente vacinada é uma boa notícia, mas não deve ser visto como uma vitória.
"É muito mais mérito dos Estados Unidos do que do Brasil. O Brasil deveria ter ultrapassado os Estados Unidos em meados de maio, porque nós temos uma população que aceita muito a vacinação, graças ao Programa Nacional de Imunização em suas campanhas", pondera.
"Só não avançamos mais devido a alguns fatores como a dificuldade em termos vacinas e não termos começado mais precocemente a vacinação. A nossa projeção, enquanto infectologistas e sanitaristas, é que o Brasil poderia ter alcançado os 80% de população vacinada já no primeiro semestre."
Marcia Castro, cientista, professora de demografia da Faculdade de Saúde Pública de Harvard, membro do Observatório Covid-19 BR e colunista da Folha, não se surpreende com a notícia.
Ela também ressalta que o Brasil tem tradição em campanhas de imunização e isso não é uma regra nos EUA.
"Há estados com a cobertura muito baixa —os Estados Unidos vivem a pandemia dos não vacinados— e tem cidades que oferecem dinheiro tentando fazer com que as pessoas tomem a vacina. Você chega no limite e não consegue mais ter pessoas se vacinando. Era inevitável que o Brasil ultrapassasse os EUA, porque a força do movimento antivacina é muito mais forte", comenta.
Para ela, o Brasil precisa agora expandir a cobertura, garantindo a segunda dose a quem ainda não recebeu, assim como o reforço aos idosos que tomaram a Coronavac no começo da campanha.
"Essa euforia de achar que tudo acabou e tirar o requerimento das máscaras... É preciso ter cuidado, porque ainda tem muita gente não vacinada e o vírus ainda está circulando", diz Castro.
Além disso, o Brasil necessita aumentar a estratégia de testagem, afirma a professora.
"Seria necessário muito mais teste de antígeno, que tem um resultado rápido para a população. As pessoas deveriam ter acesso a esses testes rapidamente, direto via SUS ou com custo baixo. Sem uma estratégia de contenção, como diminuir a circulação?"
O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor de saúde pública da USP, vê o desempenho brasileiro como uma consequência de haver aqui um sistema de saúde pública universal, o SUS.
"Os americanos foram mais ágeis em comprar vacina e menos em utilizá-las. Nós compramos menos vacinas, tivemos distribuição menor, mas conseguimos aplicar mais", resume.
Evaldo Stanislau de Araújo, infectologista do Hospital das Clínicas da USP, lembra que, para além da marca positiva brasileira ao conseguir superar os EUA, é preciso atenção com a duração da resposta de imunidade.
Os Estados Unidos já têm hoje pelo menos três estados que liberaram a dose de reforço para qualquer pessoa vacinada. No Brasil, o reforço ainda não foi adotado nesses moldes.
"Essa questão da resposta imune é importante para essas vacinas que estamos utilizando agora. Se o Brasil não fizer um planejamento adequado para 2022 e os outros anos que virão, com certeza voltaremos a ter problemas, inclusive porque a circulação aumentou muito", afirma Araújo.
"Hoje, o Brasil está numa situação confortável, mas precisa se planejar para manter um nível de imunidade bom", conclui.
Como reflexo da imunização, quatro em cada cinco cidades com mais de 100 mil habitantes no Brasil tiveram redução de novos casos da Covid-19 em outubro, maior índice de toda a pandemia.
Os dados são do monitor de aceleração da Covid da Folha, que mede a velocidade de crescimento de novas infecções pelo coronavírus nos estados e municípios grandes, que têm dados mais estáveis e confiáveis que os menores.
Em média, outubro teve, por dia, 260 cidades no estágio de desaceleração, quando o número de novos casos está em queda. Isso representa 80% das 326 cidades com mais de 100 mil habitantes.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/11/brasil-ultrapassa-eua-em-taxa-de-vacinacao-completa-contra-a-covid.shtml
Biden e Xi trocam gentilezas e citam necessidade de evitar conflito
Trato afável de presidentes em sua mais longa conversa sinaliza redução de tensões na rivalidade entre as potências
O Globo e agências internacionais
PEQUIM E WASHINGTON - A mais longa conversa entre Joe Biden e Xi Jinping desde que o democrata chegou à Casa Branca começou cordial, com ambas as partes trocando gentilezas e sinalizando uma redução de tensões nas relações entre as potências.
As negociações, que começaram pouco antes das 22h de segunda-feira no Brasil, têm o objetivo de definir os termos de competição entre os países. O encontro virtual acontece menos de uma semana depois de as potências anunciarem um inesperado acordo de cooperação na área climática durante a COP26.
Os primeiros momentos do diálogo em vídeo dos dois líderes foram observados por um pequeno grupo de repórteres, que se juntaram a Biden, a seu secretário de Estado, Antony Blinken, e outras autoridades americanas na Casa Branca. Autoridades americanas disseram que o diálogo deve durar várias horas. Quase todo o encontro acontece a portas fechadas.
Biden falou primeiro, e disse que são necessárias medidas de "contenção" que funcionem como “grades de bom senso”, porque "a competição entre os dois países não deve se transformar em um conflito".
Risco de guerra?: Como a China vê a escalada americana na Ásia e no Pacífico
O presidente americano fez referência à sua antiga relação com Xi. Quando era vice-presidente de Barack Obama, Biden várias vezes se encontrou com o líder chinês, a quem considerava um parceiro de trabalho
— Talvez eu deva começar de forma mais formal, embora você e eu nunca tenhamos sido tão formais um com o outro — disse Biden a Xi.
Xi, por sua vez, disse estar muito feliz em ver Biden, a quem chamou de "velho amigo". O líder chinês afirmou que os dois lados devem "melhorar sua comunicação e cooperação".
— Uma relação saudável e estável entre a China e os Estados Unidos é necessária para promover o desenvolvimento respectivo da China e dos EUA, manter um ambiente internacional pacífico e estável e lidar de forma eficaz com os desafios globais, como a mudança climática e a Covid-19 — afirmou Xi segundo a mídia estatal chinesa.
A despeito da troca de cordialidades, espera-se que Biden pressione Pequim em áreas como comércio e questões de segurança. Logo antes do encontro, Biden afirmou a repórteres que iria abordar áreas de preocupação para Washington, incluindo direitos humanos e outras questões na região do Indo-Pacífico.PUBLICIDADE
Os Estados Unidos e a China, as duas maiores economias do mundo, trocam acusações que envolvem desde as origens da pandemia de Covid-19 até um avanço de tecnologias militares por ambas as partes.
Mesmo assim, nenhum dos lados deseja que a competição evolua a ponto de gerar um conflito, e ambos entendem ser necessário manter o diálogo para isso. Assessores de Biden apresentam a cúpula como uma oportunidade para tentar evitar uma escalada das tensões, especialmente em relação a Taiwan, ilha que a China considera uma província rebelde.
Segundo os assessores, Biden deixará claro na conversa que os EUA pretendem criar salvaguardas comuns para evitar erros de cálculo ou mal-entendidos entre as partes. Um funcionário disse também que não se deve esperar grandes resultados da reunião.
Biden e Xi conversaram por telefone duas vezes desde a eleição do americano. A última conversa foi no dia 9 de setembro, em uma chamada de 90 minutos que um oficial americano disse que abordou questões econômicas, a mudança climática e a pandemia.
Ainda não há comunicados conjuntos nem individuais do encontro. Esta notícia será atualizada quando houver mais informações.
Merval Pereira: A mesma linguagem de Jair Bolsonaro
Bolsonaro não é mais o mesmo porque não encontra uma legenda que aceite suas condições
Merval Pereira / Globo
A demonstração exemplar de que o presidente Bolsonaro já não é mais o mesmo está contida na discussão virtual de baixo calão que teve com seu grande líder político Valdemar da Costa Neto, dono de fato e direito do Partido Liberal (PL). Estou falando do ponto de vista de poder, e não de ideologia, pois Bolsonaro, como admitiu recentemente, sempre foi do Centrão, embora figura do baixo clero que nunca teve expressão política nos nove partidos dos quais já fez parte.
Não é mais o mesmo porque não encontra uma legenda que aceite suas condições, e nem conseguiu criar a sua própria, num quadro partidário que tem mais de 35 partidos em ação, e outros tantos pedindo registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com o PSL, seu último partido, por cuja legenda elegeu-se presidente da República, a briga foi pelo butim partidário. Junto com o PT, o PSL é o partido mais rico com os fundos partidário e eleitoral, graças ao tsunami eleitoral liderado por Bolsonaro em 2018.
Mas o partido tinha e tem dono, Luciano Bivar, que não deu a chave do cofre, agora milionário, para o clã guloso. No PL, que também tem um cofre recheado, a briga, aparentemente, foi pelos palanques regionais, mas indiretamente também pela bufunfa. Quem indica o candidato a governador de São Paulo, por exemplo, coloca a mão em mais dinheiro.
A briga foi feia, com direito a troca de xingamentos e palavrões, em negociação nada republicana. Nessa queda de braço, porém, Valdemar da Costa Neto tem mais bala na agulha. Preso no mensalão, continuou a mandar no PL de dentro da cadeia, da mesma maneira que os chefões dos comandos criminosos mandam suas orientações da própria prisão. Livre, leve e solto, com influência fundamental no Centrão, por que abriria mão de seu poder para dar parte dele a Bolsonaro e seus filhos ?
Boi preto conhece boi preto, como dizia outro grande parlamentar do baixo clero, Clodovil Hernandes, que, aliás, terminou sua carreira política no Partido da República (PR), que depois integrou-se ao PL. O sentido da frase eternizada por Clodovil deixou de ter um restrito cunho de gênero para um significado mais amplo, de que pessoas da mesma laia se reconhecem.
A vida dos Bolsonaro não será fácil também no PP, outro partido que controla o Centrão, com interesses políticos amplíssimos. Ambos já fizeram parte da base aliada de Lula, Dilma e Temer, e por isso têm interesses regionais diversificados, que abrangem também o PT. Inclusive porque, com a decadência da popularidade de Bolsonaro e o ex-presidente Lula liderando as pesquisas de opinião, não é possível, nessa concepção inortodóxica de coalizão do Centrão, fechar portas para uma provável mudança de rumo.
Se não chegar a um acordo com partidos controladores do Centrão, Bolsonaro terá que aceitar ir para um partido com menos tempo de televisão e menores fundos partidário e eleitoral, tudo o que ele não quer, mesmo sendo presidente da República. Perderá, também, poder político dentro do Congresso. Em 2018, Bolsonaro concorreu pelo então nanico PSL por não ter grandes opções. Hoje, está de olho grande na fenomenal massa de dinheiro que autorizou para os partidos, que agora, com o dinheiro sobrando devido à PEC dos Precatórios, vai ser maior ainda.
Mas Bolsonaro, que já é refém de sua base aliada na concertação política, sem voz de comando real, submetendo-se às vontades do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, agora ficará sem legenda partidária de peso, sujeito a chuvas e trovoadas no decorrer da campanha. Mesmo que se submeta ao comando real de Valdemar da Costa Neto, à medida que sua popularidade for sofrendo baixas, a debandada das seções regionais de sua suposta aliança nacional será a mesma, no sentido inverso, que ele provocou em 2018.
Acabou sendo apoiado por deputados de vários partidos, que oficialmente apoiavam outros candidatos. O eleitor foi se aproximando de Bolsonaro na proporção em que ele se tornou a alternativa para derrotar o PT. Em 2022, ele será alvo também dessa rejeição. Apoiar Lula contra Bolsonaro é uma opção que pode se apresentar a parte do eleitorado, o mesmo que em 2018 fez o contrário. Ou não apoiar nenhum dos dois, desde que um candidato alternativo se firme.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/mesma-linguagem.html
RPD || Reportagem Especial: Afeto e cuidado aumentam diversidade de configurações de famílias
Modelo tradicional passou a ser ocupado por concepções distintas de organização familiar
Cleomar Almeida
Cenas típicas de comerciais de margarina, com pai, mãe e filhos ao redor de uma mesa de café da manhã, já não refletem mais a realidade das famílias no Brasil e no mundo, já que, ao longo dos anos, o modelo tradicional passou a ser substituído por uma diversidade de novas composições. Todas elas são baseadas, sobretudo, no afeto e no cuidado entre as pessoas.
Em 1995, por exemplo, o modelo tradicional correspondia a 58% das famílias brasileiras. Dez anos depois, passou para 42%, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) que fez o levantamento mais recente. Por isso, formatos diferentes dele já são a maioria no Brasil.
Mulheres e homens sozinhos com filhos, pais divorciados que constituíram novas famílias e crianças adotadas por casais homoafetivos são algumas das configurações que se tornam cada vez mais comuns, apesar de ainda serem tratadas como tabu por parte da população.
Pai solo
O médico da Marinha do Brasil Tiago de Oliveira Costa, de 37 anos, é um dos que decidiram por uma configuração familiar diferente do modelo tradicional. Homossexual, ele é pai solo do bebê Henry, que nasceu em 17 de junho deste ano, depois de ser gestado no útero de barriga solidária de uma amiga dele.
O bebê nasceu depois de o material genético do médico ser inseminado artificialmente em óvulo de doadora anônima e transferido para o útero da amiga dele. Na modalidade de reprodução humana assistida escolhida por Costa, a gestante não é considerada mãe do bebê, e o pai genético torna-se o único responsável pelo recém-nascido logo após o parto. Por isso, o genitor é chamado de “pai solo”.
“Quando me entregaram o Henry no hospital, senti uma responsabilidade muito grande, porque passei a ser pai de uma criança. Foi uma mistura de sentimentos e medos, mas com felicidade única, em situação inédita e indescritível”, disse o médico, que mora em Brasília.
O psicanalista Alvarez Velloso, do Rio de Janeiro, explica que o novo sempre assusta porque desconstrói certezas. Foi assim com a entrada da mulher no mercado de trabalho e, mais tarde, com a lei do divórcio.
“Admitir que outros modelos de família são possíveis questiona a solidez da ‘minha’ concepção de família”, afirma. “É como se desvalorizasse. Mas varrê-los para baixo do tapete não é eficaz nem construtivo”, ressalta.
Alerta
A psicóloga e educadora sexual Ana Cristina Silva Fernandes, que atua em São Paulo, afirma que resumir a formação e a educação de crianças ao modelo que a família determina como adequado pode ser preocupante, a ponto de não prepará-las para respeitar outras configurações.
“Na prática, significa limitar a educação da criança à experiência daquela família, em vez de fazê-la pensar além de sua realidade”, explica Ana Cristina. “Isso não ajuda na construção de uma sociedade igualitária”, completa.
Apesar de ainda ser criança, Andressa Soares Rodrigues, de 9, já sabe lidar bem com a diversidade de configurações familiares na sociedade. Ela é filha biológica da empresária Rosane Portela Escórcio, de 35, e da advogada Cíntia Furquim, que recorreram ao sêmen de um doador anônimo para fertilização in vitro. A família mora em São Paulo.
Educada para o respeito à diversidade e acostumada à curiosidade alheia, a menina sempre se adianta: “Olha, eu não tenho pai. Ele não morreu. Tenho duas mães mesmo”, repete, sempre que é questionada sobre a ausência da figura paterna no seu dia a dia.
As mães de Andressa afirmam que nunca tiveram uma conversa formal sobre homossexualidade com a filha porque não consideram necessário neste momento, já que a menina nasceu e cresceu nesse contexto.
A terapeuta de família Denise Rodrigues Almeida ressalta a importância de a questão ser “tratada com naturalidade”. “De fato, o que a criança não pergunta provavelmente considera natural”, afirma a especialista.
Ela defende que os pais estejam preparados para tirar as dúvidas à medida que surgirem e recomenda construir as respostas junto dos filhos – o que vale para todos, não importa a configuração familiar.
Na Justiça
Nesse contexto, cada vez mais arranjos não tradicionais são legitimados pela Justiça, a exemplo da paternidade socioafetiva, que vai muito além da figura do padrasto. Nos tribunais, é crescente a visão de que os laços de afeto são mais importantes que os genéticos.
No entanto, ainda há decisões judiciais que não acompanham as transformações sociais, abertas para novas configurações familiares, como viveu o médico Tiago Costa, pai de Henry.
Ele ainda luta na Justiça federal para reverter decisão da Marinha que negou pedido para concessão de licença-paternidade (20 dias) nos moldes da licença-maternidade (180 dias). O caso dele está na 9ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (DF).
O médico diz que sua luta deve espelhar outros pais na mesma situação. “Estou brigando pelo filho de outros praças e oficiais que perderam a mulher ou companheiro e não têm com quem deixar a criança. A família monoparental é realidade. O mundo está em processo evolutivo, e a gente tem que acompanhar isso”, ressalta.
Não abordar gênero e sexualidade é equívoco, diz psicopedagoga
A psicopedagoga Quézia Bombonatto, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia, diz que as famílias temem que abordar qualquer aspecto de gênero e sexualidade (como o amor entre dois homens ou duas mulheres) traga uma erotização precoce. Segundo ela, no entanto, essa postura é um equívoco.
“Não é o fato de esclarecer algo que o transforma em uma ameaça”, diz Quézia “A escola apresenta as configurações existentes, a família orienta e compartilha suas crenças, mas a criança vai construir autonomia para fazer as próprias escolhas”, acrescenta.
Até a década de 1960, os papéis de gênero eram bastante definidos na organização familiar tradicional. O homem, provedor, trabalhava fora e não costumava se envolver em “assuntos domésticos”, como a criação dos filhos. Essa era a principal tarefa da mulher, a “rainha do lar”, que dava conta da faxina e da rotina das crianças. Os tempos são outros.
Em 2015, segundo a Pnad, as mulheres chefiavam 40% das famílias brasileiras. Por outro lado, se tem ganhado força a luta por equiparação de gêneros no mercado de trabalho tem se equiparado, os cuidados com a criança no dia a dia ainda passam longe de serem vistos como responsabilidade de todos.
Em regra, a mãe é quem se responsabiliza pelos cuidados com a criança, em primeiro lugar. Depois, essa tarefa é repassada a creche ou escola. Os pais aparecem em diferentes pesquisas somente na terceira posição.
Além disso, deixar as crianças com os avós é uma opção vista como menos estressante para os pais, segundo cientistas da Universidade de Melbourne (Austrália). Além de essa decisão ser mais barata e flexível que uma creche ou uma babá, os pais se sentem mais seguros porque compartilham a parte emocional com cuidadores familiares.
“Nem sempre os avós ‘estragam’ as crianças”, diz a psicóloga Vera Zimmermann, coordenadora do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Eles podem ter disponibilidade para exercer a chamada ‘função paterna’, impondo regras e limites.”
A responsabilidade pela educação dos filhos não pode ser terceirizada, segundo especialistas. “Colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais”, afirma o psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli, de São Paulo. “Do ponto de vista psíquico, as famílias são sempre construídas e os filhos, sempre adotivos.”
Saiba mais sobre o autor
Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.