Day: novembro 15, 2021
Eliane Brum: O negacionista “sincero” pode nos levar à extinção
Não basta admitir a obviedade da emergência climática, é preciso viver segundo a emergência climática
Eliane Brum / El País
Negacionismo, uma palavra que até bem poucos anos atrás era alienígena para a maioria da população, se tornou íntima. Circula nas bocas como chiclete, nem trava mais a língua de ninguém. Obra de Jair Bolsonaro, no Brasil, de Donald Trump, nos Estados Unidos, cujos seguidores são capazes de negar até o formato da Terra, conhecido desde a Antiguidade Clássica. Negacionismo é justamente negar uma realidade verificável e comprovada porque ela é inconveniente ou desconfortável. No século 20, o grande exemplo foi a negação do Holocausto Judeu. Hoje, o terraplanismo, o movimento antivacina e principalmente a negação da emergência climática são os principais exemplos do negacionismo. O problema é que o negacionista é sempre o outro. E este é um grande problema, em especial no que se refere ao colapso climático, porque está nos impedindo de reagir com a velocidade necessária ao maior desafio da trajetória de nossa espécie na única casa que temos.
O negacionismo promovido pelo fenômeno dos ditadores eleitos da virada da segunda década para a terceira, como Trump, Bolsonaro etc. é um negacionismo estratégico, planejado. Eles representam as grandes corporações que provocaram e seguem provocando o superaquecimento global, entre elas as de combustíveis fósseis, que têm poucos anos para seguir lucrando. Representam também, no caso de Bolsonaro, o interesse do agronegócio predatório, que também tem poucos anos para conseguir derrubar as barreiras que ainda impedem a transferência das terras públicas protegidas (concentradas hoje nos territórios indígenas e unidades de conservação) para o estoque de terras comercializáveis, acessíveis a mãos privadas e à exploração predatória.
O cerco ao desmatamento e à destruição de enclaves da natureza como a Amazônia está aumentando. O Brasil e outros países destruidores vão enfrentar cada vez mais resistência aos seus produtos originados no desmatamento no mercado internacional. Esta é a principal razão pela qual Bolsonaro não sofreu impeachment, apesar de ser comprovadamente responsável pelas mais de 600.000 mortes por covid-19, apesar das mais de 20 milhões de pessoas com fome, apesar dos mais de 14 milhões de brasileiras e brasileiros desempregados, apesar da corrosão da imagem e da posição do Brasil no cenário global. Bolsonaro ainda não terminou o trabalho que faz para essa entidade chamada “Mercado”, a qual pertence um grupo de bilionários e supermilionários, além de executivos e lobistas de suas corporações e políticos que os servem, gente como eu e você, da mesma espécie, pelo menos, mas que multiplicou seus lucros na pandemia enquanto a maioria da população empobrecia ou morria.
O negacionismo desses governantes a serviço das grandes corporações é, portanto, um truque. Quando os acusamos de negacionistas, apenas aumentamos seu passe e sua capacidade de receber apoio e financiamento para suas campanhas. Volta e meia parte do Mercado finge que se escandaliza com as pirotecnias perversas de Bolsonaro e outros, ou mesmo com seus frequentes crimes, e finge que reage, como no roteiro de um espetáculo. A oposição simulada é uma das principais marcas dos Governos desse fenômeno que no Brasil atende pelo nome de bolsonarismo e em outros países têm o nome de seus expoentes nacionais —fenômeno que precede e irá muito além das figuras que o encarnam e nomeiam.
O que precisamos perceber com a urgência que a gravidade do momento exige é o negacionismo que mora em nós. Chamar o outro de negacionista e achar que somos pessoas esclarecidas porque reconhecemos a obviedade da crise climática (assim como a obviedade da eficácia das vacinas, a obviedade de que a Terra é redonda, a obviedade de que os nazistas exterminaram 6 milhões de judeus, além de ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência) não é suficiente. Esta é a parte fácil. Qualquer um que não esteja empenhado em criar uma realidade paralela para chamar de sua, sabe de tudo isso. A questão é viver conforme aquilo que se sabe. A questão, no caso da emergência climática, é viver conforme a urgência do momento, a questão é lutar segundo a urgência do momento. Esta é a parte difícil. E nesta a maioria está falhando.
Se a maioria tem certeza de que não é negacionista, os fatos apontam que a maioria se comporta como negacionista. É o que podemos chamar de “negacionismo sincero”. O negacionista sincero é aquele que não sabe que é. Não é negacionista por truque ou por cálculo, em nome de seus próprios interesses imediatos, como na turma de Bolsonaro, mas sim por desconhecer que se comporta como negacionista. Alguns poderiam ser mais duros, chamando-os de negacionistas preguiçosos ou negacionistas alienados, mas me parece que a maioria das pessoas está paralisada pelo medo e usando a negação como uma forma de proteção. Não justifica, já que é a pior forma de proteção, aquela que desprotege e agrava o problema. Não justifica, mas ao menos explica. Serei menos dura que os adolescentes que gritam: “Eu quero seu pânico porque a casa está em chamas”.
A maioria da população, e isso em todos os setores, mesmo entre os cientistas, mesmo entre os jornalistas, está vivendo como se não estivéssemos numa emergência climática, como se não estivéssemos testemunhando a sexta extinção em massa de espécies. Se sua casa está em chamas você acordaria, se moveria e dormiria fazendo algo além de todo o seu possível para apagar o fogo? Você não descobriria também um jeito de fazer o impossível? Se a casa está em chamas, todos os cientistas não estariam atravessados por essa questão, independentemente da sua área de atuação? Se a casa está em chamas, toda a imprensa não estaria cobrindo a Amazônia e outros enclaves de natureza com tanto ou mais afinco do que cobre Brasília? O negacionismo está incrustrado em todas as áreas, mesmo onde menos se espera.
Tanto a emergência climática quanto a sexta extinção em massa de espécies foram provocadas por ação humana. Mas não de todas as pessoas humanas, é preciso sublinhar. E sim da minoria dominante que nos trouxe até o abismo do colapso do clima e hoje ergue muros para evitar a entrada de refugiados climáticos, aqueles que com cada vez maior frequência migram pelo planeta porque tiveram suas regiões devastadas pelo superaquecimento global, e com a devastação veio a fome, as doenças e a violência.
Além de muros, essa minoria também está empenhada em construir bunkers de luxo na Nova Zelândia, para se proteger dos efeitos do colapso climático, assim como arrisca alguns passeios pelo espaço para ver se consegue encontrar outro planeta para destruir. Projetos para povoar Marte já estão em curso, como foi noticiado aqui neste EL PAÍS, porque uma parcela minoritária das pessoas humanas acha que basta dispor de tecnologia para dispor de outros planetas, assim como dispôs das terras dos povos originários na época das chamadas “grandes navegações”. O planeta gira, apesar do que dizem os terraplanistas, mas a mentalidade colonizadora segue a mesma, produzindo e reproduzindo crimes onde puder.
Recente pesquisa da organização não governamental Oxfam mostrou que o 1% mais rico do mundo, uma população menor que a da Alemanha, comporta-se como se tivesse direito a destruir o planeta. Este 1% mais rico, caso siga agindo como hoje, deverá exceder em 30 vezes o limite necessário de emissões de carbono para evitar o aumento da temperatura global em 1,5 graus Celsius até 2030, liberando 70 toneladas de CO₂ por pessoa por ano. Ao mesmo tempo, os 50% mais pobres do mundo vão manter suas emissões bem abaixo do limite, liberando em média 1 tonelada de carbono por ano. Portanto, uma diferença de 70 para 1. Mesmo que o tema do carbono ainda seja pouco claro para quem está lendo, é fácil perceber que 70 para 1 é uma diferença abissal, garantida pela desigualdade que estrutura o sistema capitalista. Essa diferença sela o destino da maioria das pessoas humanas no planeta, justamente a maioria que menos colaborou para o colapso climático.
Já a minoria que levou o planeta ao colapso climático e à sexta extinção em massa de espécies, esta segue se comportando como se fosse dona do mundo, de todos os mundos, mesmo dos mundos das pessoas não humanas —e está ameaçando a própria espécie de extinção. Porque, como a experiência nos mostra, não se consideram da mesma espécie. Sempre consideraram que há aqueles que podem morrer, há aqueles que podem ter sua vida esgotada na mais-valia do capitalismo, há aqueles que podem continuar nas ruas contaminadas por covid-19 para manter uma parcela minoritária abastecida de mercadorias, como a pandemia mostrou.
Assim, é preciso deixar muito claro o óbvio: não é dessa minoria que virá nenhuma solução nem virá o enfrentamento da emergência climática. Essa minoria tem certeza de que vai salvar a própria pele, nem que seja em mansões debaixo da terra ou em outro planeta. Se ilude, porque não vai escapar. Pode apenas escapar por mais tempo. A destruição chegará para todos se não nos movermos. Essa minoria, porém, só perceberá isso tarde demais, porque não tem a experiência de se sentir ameaçada e é incapaz de decodificar os sinais. No momento, é nós por nós, como as periferias descobriram desde sempre. Estamos em risco de extinção. Se não extinção completa do que chamamos espécie humana, o risco cada vez mais provável de viver num planeta muito mais hostil à nossa espécie. Num planeta pior já estamos vivendo, imagino que fora os suspeitos de sempre ninguém vai duvidar dessa obviedade.
Estamos em risco de extinção e as pessoas não estão vivendo como se estivessem em risco de extinção, por isso o desespero dos jovens, muito jovens ativistas, liderados por Greta Thunberg. Por isso a adolescente se sentou sozinha diante do parlamento sueco, em 2018, e anunciou uma greve escolar pelo clima, porque de nada adiantaria frequentar a escola se não haveria futuro para a sua geração. Ela, que liderou o maior movimento climático da história, denunciou a inversão: diante de adultos negacionistas, com frequência seus próprios pais, os filhotes precisaram tomar conta do mundo. E estão tomando, apesar das imensas barreiras que encontram. Greta acaba, por exemplo, de denunciar o blá-blá-blá da Cúpula do Clima de Glasgow, que se encaminha para muitas promessas e pouca ação imediata. Nós, brasileiros, sabemos bem o que Bolsonaro faz com as promessas que não quer cumprir.
A realidade da Amazônia no Brasil mostra recorde de desmatamento e de fogos, fragilização da fiscalização, militarização dos órgãos de proteção, estímulo à invasão das terras indígenas e das unidades de proteção por garimpeiros, madeireiros e grileiros, e um amplo ataque por meio de projetos de lei no Congresso, tanto de autoria do Executivo, de Bolsonaro, quanto da bancada ruralista, que representa o agronegócio mais predatório. O crime está sendo legalizado no Congresso. Já na prática, no chão, o crime já foi legalizado. Quando os defensores da floresta precisam se refugiar para não serem assassinados, é isso que significa. São eles os que precisam fugir, muitas vezes das próprias forças de segurança do Estado, que estão em processo acelerado de miliciarização. Os criminosos não precisam fugir, pelo contrário. São apoiados pelo Governo. A inversão já aconteceu no chão da floresta amazônica, assim como já aconteceu em outros biomas, como o Cerrado.
Se o negacionismo sincero seguir ditando o comportamento da maioria da população, a Amazônia não virará uma savana, como é anunciado. Aliás, nossa riquíssima savana, o Cerrado, berço das águas, está também sendo destruído numa proporção e velocidades arrasadoras. E parte dessa destruição é justificada com a mentira de que o Cerrado é um bioma pobre e toda devastação seria, portanto, aceitável. O que a Amazônia vai, sim, virar é uma gigantesca fazenda de gado, uma gigantesca lavoura de soja, gigantescas crateras de mineração como a canadense Belo Sun quer fazer neste momento na Volta Grande do Xingu, gigantescos propinodutos como foi a hidrelétrica de Belo Monte e como possivelmente será a Ferrogrão, caso não seja barrada. A Amazônia virará ruínas, assim como nossa vida nesse planeta-casa.
Essa é a dinâmica da guerra que estamos vivendo, uma guerra entre uma minoria dominante e uma maioria espoliada. E, como sabemos, estamos perdendo essa guerra. Essa guerra nem é guerra, pela desproporção das forças entre os dois lados. É massacre. E, no chão da floresta, esse massacre é sangrento.
A imagem real, terrível, que literaliza o que estamos vivendo na Amazônia é a imagem da draga de garimpo, uma das dragas dos estimados 20.000 garimpeiros que invadiram a terra indígena Yanomami. A imagem da draga de garimpo engolindo dois meninos e em seguida os cuspindo. A máquina do capitalismo mais predatório cuspindo corpos de crianças indígenas. E, como este é um Governo perverso comandado por um perverso, esse crime aconteceu em 12 de outubro, data em que o Brasil comemora o Dia das Crianças. Como ficou claro, a comemoração se limita às crianças brancas.
Uma máquina cuspindo crianças mortas é a imagem da Amazônia no Brasil. Era antes de Bolsonaro, aumentou a velocidade e a proporção com ele e possivelmente seguirá mesmo sem ele.
Essa é a importância de nomear e conceituar o negacionismo sincero. Porque o negacionismo sincero faz com que as pessoas não reajam mais segundo seus instintos, não ajam mais segundo o senso comum mais básico. Nossa casa está em chamas, como diz Greta Thunberg. E o fato de crianças e adolescentes serem as pessoas mais responsáveis do planeta nesse momento já diz bastante sobre as gerações de adultos hoje em atividade. Pois então. Nossa casa está em chamas. O que você faz quando sua casa está em chamas? Senta e espera o fogo queimá-lo junto com a casa? Comenta com o familiar ou amigo ao lado como Bolsonaro é negacionista enquanto tenta identificar se o cheiro de queimado vem da torradeira do vizinho? Espera se sentir motivado pela esperança ou outro sentimento nobre para se levantar da poltrona e agir? Quem faz isso?
Nós, nós estamos fazendo. Os negacionistas sinceros estão fazendo isso. A maioria da população, em todas as áreas está fazendo isso. E então a casa-planeta segue queimando. Os mais frágeis morrem primeiro, já está acontecendo, mas os impactos chegarão a todos. Cada um que está aqui, lendo este texto, pode não conseguir ainda nomear, mas a corrosão que sente em sua vida, o chão desaparecendo debaixo dos pés, o mal-estar que se infiltra em sua insônia, tudo isso têm nome. Não há pílula para se livrar dele, a única chance é agir. Afinal, o que você faz quando a casa está em chamas? E, acredite, a casa está em chamas. A pandemia, resultado em grande parte da destruição sistemática da natureza, é uma amostra do desafio com o qual estamos lidando.
Neste momento, o planeta já aqueceu 1,1 graus Celsius, em nível global, desde a Revolução Industrial. Já não é mais necessário ler os relatórios científicos para perceber os efeitos. Basta olhar pela janela ou ler as manchetes dos jornais sobre temperaturas recordes, incêndios e inundações. China, a nova grande potência mundial, teve passageiros afogados no metrô. Barrar o superaquecimento em 1,5 graus Celsius tem sido a meta de todas as Cúpulas do Clima. É também agora, em Glasgow. Mas, sem negar a imensa importância das COPs, os fatos mostram que pouco se avança além de promessas e mais promessas. Em breve saberemos os resultados concretos da atual.
Se o superaquecimento chegar a 2 graus, os modelos científicos feitos por computador mostram que 420 milhões de pessoas a mais seriam expostas a ondas de calor extremas e o número de mortes relacionadas ao calor duplicariam. Meio grau a mais significa menos água, mais fome e mais pobreza. Com 2 graus, 18% das espécies de insetos, 16% das plantas e 8% dos vertebrados perderão seus habitats, o que significaria mais pressão sobre a produção de alimentos, a polinização e a qualidade da água. A Amazônia e outras florestas tropicais teriam menos chance de sobreviver. Os oceanos se tornariam mais ácidos, haveria esgotamento do oxigênio e mais zonas mortas, aumentando a pressão sobre a pesca e levando os corais à extinção. Haveria também dez vezes mais chance de verões árticos sem gelo e 2,5 milhões de quilômetros quadrados de permafrost poderiam derreter. No final do século, o nível do mar subiria pelo menos dez centímetros a mais do que vai acontecer caso o aquecimento estacione em 1,5 graus, deixando mais de 10 milhões de pessoas expostas à inundação.
Terrível, não? Sim. E fingir que não está acontecendo tornará tudo muito mais terrível, porque a verdade é que, com os atuais governantes, a serviço das grandes corporações, com os atuais governantes a serviço da minoria dominante global e da minoria dominante de cada país, será muito difícil parar em 2 graus. A não ser que os negacionistas sinceros deixem de ser sinceros e passem a lutar em todas as frentes.
A ONU já calculou que, neste momento, o planeta caminha para se tornar 2,7 graus mais quente. Com esse nível de aquecimento, a duração média das secas aumenta de dois meses, no caso de estacionar em 1,5 grau, para dez meses. O número de dias quentes dobrará e as temperaturas máximas ficarão em 40 graus. Mais meio grau de aquecimento global e não haverá mais verões com gelo no Ártico. O risco de ondas de calor marinhas, que podem devastar populações de peixes e crustáceos, será 41 vezes maior do que era na fase pré-industrial. A cada grau de aquecimento a mais, nosso planeta vai se tornando irreconhecível e nossa vida nele mais e mais hostil. Há modelagens prevendo o que vai acontecer até 6 graus de aquecimento, mas vou parar por aqui.
De novo. Se sua casa está queimando, o que você faz, nem que faça em nome de seus filhos e netos, que já nasceram num planeta pior e serão adultos num planeta muito pior? Você age. Não sozinho, porque sozinho ninguém faz nada. Sozinho só contamos como um —e o um não conta. É exatamente o que o capitalismo fez de nós ao exaltar o indivíduo em detrimento do coletivo. É hora de criar comunidade com quem está próximo, buscar outros aliados, descobrir o que pode fazer a partir daquilo que é seu ofício na vida, conversar com todos com quem puder, chamar à ação. E quem devemos escutar, além dos cientistas realmente comprometidos?
Siga seus instintos. Eles nos fizeram sobreviver como espécie quando era muito difícil sobreviver. Se sua casa está em chamas, a quem você vai pedir orientação, com quem vai lutar lado a lado para apagar o fogo? Vai chamar os incendiários, aqueles que botaram fogo na casa? Certeza que não. Mas é deles que os negacionistas sinceros estão esperando providências, por incrível que possa soar. Esperar solução de quem colocou fogo na casa-planeta significa negar os mais básicos instintos de sobrevivência. Como é que a maioria chega ao ponto de fazê-lo é algo que vamos precisar compreender muito melhor. Você, é óbvio, vai escutar, buscar orientação e se aliar com aqueles que construíram parte da casa e vivem nessa casa-planeta há milênios sem destruí-la. No Brasil, os povos originários, os chamados indígenas, e as comunidades tradicionais da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal, de outros biomas.
Não enfrentaremos a ameaça de autoextinção sem habitarmos uma outra linguagem. A solução não virá daqueles que tratam rio, floresta, montanha como recursos, mas daqueles que tratam o rio como avô, as árvores como irmãs, a montanha como mãe. Não porque são naïf ou “primitivos”, mas porque sabem que a vida no planeta é um intercâmbio constante e não hierárquico entre seres humanos e não humanos, visíveis e invisíveis.
Há, porém, mais um problema imediato. São as pessoas que convivem com a natureza sem destruí-la, porque são também natureza, que estão sendo assassinadas na linha de frente. Seu extermínio foi decretado exatamente porque são a barreira física, corporal para o avanço da destruição cometida no chão da floresta e de outros biomas pelos ruralistas e pela base de Bolsonaro: grileiros, madeireiros, donos de garimpos, mineradoras transnacionais, empreiteiros de grandes obras. Estão sendo assassinadas ou obrigadas a buscar refúgio com suas famílias nesse exato momento. Precisam de todo o nosso apoio.
O impeachment de Bolsonaro, por uma série de razões já analisadas em artigos anteriores, está cada vez mais distante. A minoria que nos controla, em diferentes áreas, acredita que ainda pode lucrar com Bolsonaro. E, como já está mais do que provado, também acha que os outros —nós— podem morrer. Nossas vidas valem pouco para essa gente. A vida dos brancos de classe média um pouco mais, a dos pretos e indígenas nada. Derrotar Bolsonaro em 2022, o que pode acontecer, mas está longe de ser uma certeza, também não é suficiente. Ruralistas e outros predadores estavam no Governo antes de Bolsonaro e seguirão depois dele no cardápio atual de opções. Ricardo Salles, o antiministro do Meio Ambiente, foi substituído por outro que executa a mesma política, apenas com menos pirotecnia, para atender às necessidades do momento. É tudo truque. Tereza Cristina, a musa do veneno, segue firme no Ministério da Agricultura fazendo a política ruralista, a política das grandes corporações, que é a política de base. Outras Terezas Cristinas virão, tenham certeza, independentemente de quem assumir em 2023.
Temos que abandonar o negacionismo sincero já. Porque, em grande medida, estamos sozinhos diante da ameaça de extinção. Não há tempo. A luta pela sobrevivência é agora. Ailton Krenak, um dos principais intelectuais indígenas do nosso tempo, fala sobre adiar o fim do mundo. Não sei se dá tempo de adiar o fim do mundo. O que sei é que não podemos esperar saber para lutar. Temos que lutar já, mesmo sem esperança, mesmo sem garantias. É hora de lutar pela vida. Se esperarmos por aqueles que nos controlam, mais do que nos governam, a casa inteira virará cinzas. Temos que lutar já, pelo menos para não sermos obrigados a baixar a cabeça diante das futuras gerações, a quem legaremos um planeta em ruínas.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles Brasil, construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago) e Banzeiro òkòtó, uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-11-10/o-negacionismo-sincero-pode-nos-levar-a-extincao.html
Jamil Chade: Mundo à espera de que o Brasil cumpra promessas da COP26
País endossou compromissos que os líderes mundiais agora esperam ver concretizados. Sem eles, acordos, como Mercosul UE, ficam estacionados
Jamil Chade / El País
Num dos longos saguões do centro onde ocorria a Conferência da ONU para Mudança Climáticas, em Glasgow, os seguranças do secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, abriam espaço entre dezenas de delegados para que o chefe do organismo internacional passasse com seu cortejo. Mas quando o português viu a reportagem do EL PAÍS, ele reduziu o passo, permitiu a aproximação e perguntou ao pé do ouvido: “e o Brasil, está se comportando?”.
A dúvida, porém, não era apenas do comando da ONU. Ao longo das últimas duas semanas, delegações estrangeiras, ministros e negociadores tinham a mesma reação diante do posicionamento do Brasil nas negociações climáticas: até que ponto os anúncios eram sinceros e representavam uma mudança na postura do governo? A suspeita que pairava não era por acaso. Voluntárias, sem obrigações legais e sem forma de fiscalização, as iniciativas que foram apoiadas pelo Brasil preveem acabar com o desmatamento ilegal e reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Politicamente, elas têm um peso significativo.
Entre os especialistas estrangeiros e representantes de governos, todos sabiam que os anúncios do governo não implicavam em nenhuma exigência imediata ao país. Nada muda a partir da próxima segunda-feira. De fato, os cálculos do Climate Action Tracker revelaram que as promessas estavam longe de serem ambiciosas. A entidade qualificou o anúncio brasileiro de “altamente insuficiente” no esforço internacional para limitar o aquecimento do planeta a 1,5 grau Celsius e colocou o país no grupo mais irresponsável, em sua avaliação.MAIS INFORMAÇÕESBrasil eleva metas ambientais na COP26, mas não convence
Mas o cálculo do governo foi outro: fazer os anúncios custaria pouco. Afinal, qualquer medida só teria de começar a ser implementada nos próximos anos. Mas, em contraposição, ficar de fora ampliaria a situação de pária. A estratégia funcionou para desmobilizar a pressão por alguns dias, na esperança de que o confete que foi jogado ao ar fosse suficiente para criar uma cortina de fumaça até o final da COP26.
Enquanto os anúncios faziam seus efeitos visuais, diplomatas brasileiros corriam de um lado ao outro pelos corredores da COP26 costurando acordos, blindando posições do Brasil e desarmando a bomba que poderia transformar o país no principal vilão de um eventual fracasso em Glasgow. O Brasil, assim, abriu mão de sua posição histórica em crédito de carbono e conseguiu chegar a uma equação considerada “equilibrada”. O país insistia em que os créditos do Protocolo de Kyoto continuassem a ser contabilizados no mercado. Mas países ricos exigiram o novo sistema criado em Paris, em 2015, fosse o único.
Nada disso era suficiente para que o país reconquistasse sua posição de ator central das negociações climáticas. Negociadores estrangeiros explicaram que a recuperação desse status dependerá, no fundo, de que o governo prove que existe um plano consistente para as promessas que apresentou. “Não é uma questão de confiança”, disse o enviado americano para o Clima, John Kerry, ao ser questionado se acreditava em Bolsonaro. Para ele, o Brasil terá de adotar “medidas concretas” se quiser voltar a ganhar espaço internacional. Franz Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia, repetiu a mesma constatação. Para ele, os anúncios eram “passos importantes”. Mas questionado se era suficiente, ele hesitou: “Veremos”.
Dias antes, num texto publicado nas páginas oficiais da UE, o chefe da diplomacia do bloco, Josep Borrell, deixou claro que cobrou do governo não apenas promessas, mas ações. “Salientei a importância de que estes compromissos sejam plenamente implementados no terreno”, disse. “Vários interlocutores não governamentais enfatizaram as dificuldades que poderiam surgir nesta área, particularmente na questão do desmatamento ilegal, devido à falta de recursos e a interesses profundos que se opõem a ações para combatê-lo eficazmente”, alertou. Ele admitiu que existe um espaço para que os novos compromissos ambientais do governo brasileiro ajudem a fazer avançar a ratificação do acordo comercial entre Mercosul e Europa. Mas colocou um condicionante. Isso só seria possível “se realmente forem seguidos”.
Enquanto as dúvidas prevaleciam, o governo brasileiro optou por se manter atrás de um pavilhão bancado pelo agronegócio em Glasgow e no qual a palavra ‘desmatamento não era pronunciada. Ali, em seminários que apenas alimentavam o próprio bolsonarismo, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, insistia que estava apresentando o “Brasil real”. Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente no Brasil, ironizava. “Era o Brasil geneticamente modificado”, disse.
Em Glasgow, a sociedade civil brasileira não fez parte da delegação oficial, ocupada integralmente por empresários e ruralistas. Leite sequer atendeu a um pedido das entidades e ambientalistas para visitar o local criado pelas ONGs brasileiras na COP26. Mas não se pode enganar todo mundo o tempo todo. Um choque de realidade apareceu quando, no último dia, dados do desmatamento foram revelados e revelaram o pior índice para o mês de outubro em toda a série histórica, que começou em 2016.
Leite, porém, se recusou a explicar os números e, numa constrangedora caminhada de cinco minutos pela COP26, se manteve em um silêncio ensurdecedor enquanto era bombardeado por perguntas sobre o desmatamento recorde. Enquanto ele fugia de uma resposta, Espen Barth Eide, ministro do Meio Ambiente da Noruega, não hesitou em constatar a gravidade daquela informação. Dono do maior fundo soberano do mundo e o principal financiador do Fundo Amazônia, o governo da Noruega afirmou estar preocupado com os recentes números de desmatamento no Brasil. “É algo sobre o qual precisamos refletir certamente”, disse. “Estou muito preocupado com o desmatamento que já existe”, afirmou.
Para ele, os novos números brasileiros devem ser uma “lembrança” de como é importante a questão do compromisso de governos em reduzir o desmatamento. Eide afirma que países que não seguirem esse caminho terão sua credibilidade minada. Assim, no último dia da COP26 e apesar de todos os esforços para achar que enganava o mundo, a máscara do bolsonarismo caiu. E o Brasil real reapareceu, melancolicamente.
RPD || André Amado: Despedidas. Sempre para melhor
A Revista Política Democrática Online (RPD), publicação da Fundação Astrojildo Pereira, passa a ser veiculada em novo formato a partir de dezembro
André Amado / Diretor da Revista Política Democrática Online
Chegou a hora de mudar. Foram mais de três anos, 37 entrevistas, o mesmo número de editoriais, reportagens, charges do JCesar e centenas de artigos. A Revista Política Democrática Online (RPD) passou a ser minha vida. Trabalhava em montar uma edição já de olho na seguinte. E isso sem ser jornalista, como se jornalista fosse uma profissão, e não – bem mais do que isso – uma disposição de desafiar a realidade, a que virou passado e a que se pretende futuro, como se estivéssemos no meio de uma partida de tênis, a cabeça girando da esquerda para a direita, à cata de respostas a perguntas que sequer foram formuladas.
Aprendi a ir atrás das ideias dos outros, do que viam, de como viam o mundo florir ou murchar. Não importava meu ponto de vista, não era o que me cobravam, eu não fazia parte desse diálogo. A notícia, a interpretação dos outros e a reflexão sobre seus principais desdobramentos eram as pautas. Lembrou Flaubert quando comparava o escritor a Deus: está em todos os lugares, mas não pode ser notado. Assim me sentia no timão da RPD.
Ao participar de uma entrevista, conferir a sequência de uma reportagem, revisar a redação dos artigos, de procedência e motivações plurais, fascinava-me a sensação de que, estaria, quando muito, sendo o intermediário do que, uma vez publicado, haveria de enriquecer, indignar, fazer sorrir um leitor em geral, tão voraz, como impaciente, tão criativo como intolerante, militante e apolítico, um intelectual sem condescendência com verdades prontas, clichês e proselitismo, um guerreiro das trincheiras da cidadania, e não me refiro ao partido que financia a Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que, por sua vez, patrocina a RPD.
O curioso foi que somente nos últimos dias na direção da Revista me inteirei da definição do sentido de missão da FAP: promover o sentido de reflexão crítica da sociedade de maneira a construir referências teóricas e culturais relevantes para a defesa, a consolidação e a reforma do Estado de Democrático de Direito. Digo curioso, porque segui à letra esse desiderato por mero instinto, acrescentando, apenas, como contribuição pessoal, que as matérias da RPD seriam sempre mais confiáveis e legítimas se, mesmo refletindo as tendências e preferências de seus autores, optassem por explorar a força e o valor das ideias, ao arrepio de filiações político-partidárias.
Conheci gente fantástica dentro e fora da FAP. Penso ser hoje amigo de pessoas cuja existência só me era indicada pela assinatura de textos jornalísticos ou acadêmicos, ou pela figura simpática na tela de televisão. Cresci muito nesses últimos três anos, sinto-me mais bem equipado para decifrar os enigmas da vida contemporânea. Agradeço a todos e a cada um de vocês que me ajudaram nessa bela jornada. Espero que o novo formato da Revista seja de seu agrado. Seria uma de minhas recompensas. Obrigado.
Saiba mais sobre o autor
André Amado é diretor da Revista Política Democrática Online (2018-2021)
Autores - Edição 37 (Novembro/2021)
Bernard Appy é o entrevistado especial da Revista Política Democrática Edição 37. É diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), uma organização voltada a análises econômicas que buscam a melhora na gestão pública, além disto Bernard é o mentor da proposta de reforma tributária que está em transitou no congresso em 2019. Appy ficou em evidência nas eleições presidências de 2018, quando se tornou referência de diversos candidatos à presidência no modelo de pensar novas alternativas de pensar a aplicação do imposto de renda.
Caetano Araújo é um dos entrevistadores do economista Bernard Appy. É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
André Amado é um dos entrevistadores do economista Bernard Appy. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Ele também é o autor do artigo Despedidas. Sempre para melhor, sobre as mudanças da Revista Política Democrática Online
Cleomar Almeida é autor da Reportagem Especial Afeto e cuidado aumentam diversidade de configurações de famílias. É graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
JCaesar é o autor da charge da Revista Política Democrática Online. É o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.
Jornalista e escritor, Henrique Brandão é autor do artigo Uma história de amor e resilência.
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e Professora de Finanças Públicas da FGV-SP. É autor do artigo Inadiável necessidade de revisão do teto.
Lilia Lustosa
Autora do artigo Remakes, reboots, spin-offs… Faltam ideias?, é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.
José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq e Lider do Grupo de Pesquisa "Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento", cadastrado no CNPq. É autor do livro "Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva Keynesiana", LTC: Rio de Janeiro (2016).
Fábio Fonseca Figueiredo é autor do artigo Cidades sustentáveis, a cidade para as pessoas. É professor do Departamento de Políticas Públicas e pesquisador do grupo de pesquisa SEMAPA (Socioeconomia do Meio Ambiente e Política Ambiental) da UFRN.
Autor do artigo Da pandemia se sai pela esquerda?, Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018. A tradução do artigo é de Alberto Aggio.
Vicente Costa Pithon é autor do artigo A promessa do clube-empresa. É consultor legislativo do Senado, mestre em Direito pela UnB e especialista em Direito Desportivo.
Autor do artigo Outros olhos para um comunista brasileiro – A biografia de Lindolfo Hill, Ricardo Marinho é professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional.