Day: agosto 10, 2021

RPD || Reportagem Especial: Escândalos das vacinas deixam país mais fragilizado na pandemia

Investigação aponta que governo brasileiro abriu espaço para favorecer pessoas que não tinham vínculos com fabricantes dos imunizantes

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Denúncias de corrupção com pagamento de propina em paraíso fiscal e mais de 100 tentativas de negociação de vacinas da Pfizer ignoradas pelo governo brasileiro, escancaram um país fragilizado por uma série de escândalos em torno da imunização contra a Covid-19. A pressão para que o Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seja julgado por tribunais internacionais aumenta a crise política.

Na iminência de uma terceira onda da pandemia do coronavírus, o Brasil ainda vive os duros reflexos da falta de política pública nacional de saúde voltada ao enfrentamento da Covid-19 e das iniciativas tardias para o início da vacinação. Com pouco mais de 20% de toda a sua população imunizada, o país caminha para superar a marca de 600 mil mortos pela doença.

A investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid revela ao país dados de um cenário de horror. Ao todo, até o início deste mês, no Brasil, o número de vítimas da pandemia ainda era ao menos 12 vezes maior que o de vacinados, o que exemplifica as consequências de um país tomado por denúncias relacionadas às imunizações e governado por um presidente declaradamente negacionista.

O avanço das investigações da CPI segue rumo à confirmação da tese já levantada por alguns senadores: o governo federal abriu espaço para pessoas que não tinham vínculos com fabricantes das vacinas, enquanto dificultou o acesso ao Instituto Butantan, em São Paulo, e à multinacional Pfizer, sediada em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Senadores da oposição e da base governista questionam o porquê e como foi aberto o canal para que figuras como Luiz Paulo Dominguetti e Cristiano Carvalho, que se apresentaram como representantes da Davati Medical Supply, pudessem ter espaço entre os servidores do Ministério da Saúde.


À Folha de S. Paulo, Dominguetti disse ter recebido pedido de propina de Roberto Ferreira Dias, “no valor de US$1 por dose da vacina. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

“Não houve nenhuma facilidade para eles [para a Pfizer]. Houve uma facilidade para o Dominguetti, que o senhor Blanco nunca tinha visto. Houve uma facilidade de ir para um restaurante à noite e, no dia seguinte, foi aberto o Ministério da Saúde para ele", disse o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).

 Dominguetti denunciou à Folha de S. Paulo ter recebido pedido de propina do então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, em um jantar no Vasto Restaurante, no Brasília Shopping, na capital federal, no dia 25 de fevereiro.

A proposta, segundo ele, era de US$1 por dose da vacina AstraZeneca, em troca da assinatura de um contrato de venda de 400 milhões de doses do imunizante, o que geraria um montante ilícito de R$2 bilhões. Diante do escândalo, Dias foi exonerado.

O tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor de Roberto Ferreira Dias, que era diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, foi quem apresentou Dominguetti ao ex-diretor do Departamento de Logística da pasta.

"Nós estamos estarrecidos com a facilidade com que pessoas desqualificadas adentraram o ministério. Desqualificadas em todos os sentidos. E foram levadas por pessoas do ministério, não caíram do céu”, ressaltou Aziz, durante sessão da CPI.

Segundo Blanco, as conversas com Dominguetti tiveram início no dia 9 de fevereiro deste ano, com a oferta de 400 milhões de doses da vacina do laboratório britânico AstraZeneca.

Dominguetti, na ocasião, teria informado que tinha aproximação com o Ministério da Saúde, por meio do presidente da SENAH - Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários -, reverendo Amilton Gomes de Paula, mas que necessitaria da ajuda de Blanco para fechar as negociações.

De acordo com a investigação da CPI, Marcelo Blanco teria levado Dominguetti até Roberto Dias, para o encontro no restaurante do shopping, em Brasília, onde Dias teria feito um pedido de propina de US$1 por dose de vacina ao Dominguetti.

“Não foi um encontro casual, eu sabia que o Roberto Dias estava no Vasto. Posso ter sido inconveniente? Posso ter sido. Mas não vi mal nenhum”, afirmou Blanco à CPI. No entanto, ele disse que não presenciou nenhum pedido de propina.


Tenente-coronel Marcelo Blanco negou ter aberto o acesso de Dominguetti ao Dias. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Agenda oficial
“Ele, Dominguetti, pediu-me a possibilidade de ter uma agenda oficial. Quando tomei conhecimento que Roberto estaria no Vasto, sugeri a ele: ‘Eu te apresento, faça você o pedido da sua agenda’, e assim foi feito.” No dia seguinte, Dominguetti teria conseguido uma reunião oficial no Ministério da Saúde, com Roberto Dias.

 Dias, contudo, já não tinha, em 25 de fevereiro, qualquer autoridade sobre a aquisição de vacinas, o que já estava sob a responsabilidade de Elcio Franco, desde 29 de janeiro, data em que foi publicado o ofício com a mudança.

Blanco nega ter aberto acesso de Dominguetti ao diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. “Nunca ajudei na elaboração da documentação, simplesmente orientei [Dominguetti] a utilizar os meios estatais. Da mesma forma, nunca acompanhei representante de qualquer empresa”, afirmou o tenente-coronel na CPI.

Em 30 dias, o coronel e Dominguetti trocaram 108 ligações, sendo 64 de iniciativa do coronel Blanco, como informou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Segundo Blanco, todas as conversas se restringiram a tratar do mercado privado.

Na CPI, o reverendo Amilton Gomes de Paula afirmou ter conversado com Herman Cardenas, proprietário da Davati Medical Supply, sobre a proposta de 400 milhões de doses. Segundo ele, o empresário garantiu que tinha as doses. Em entrevista ao Fantástico, no entanto, Cárdenas, disse apenas que atuava como um facilitador e que não tinha as vacinas.
Em outra contradição, Dominghetti afirmou, em seu depoimento à CPI, que não tem nenhuma relação contratual com a Davati. “Havia um acordo de cavalheiros, até porque eu sou funcionário público e não posso assinar contrato”, afirmou o policial militar.

 O laboratório britânico AstraZeneca também informou que todas as negociações são feitas diretamente “por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, incluindo a da Covax Facility, não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado ou para governos municipais e estaduais no Brasil”.

Além disso, negou que tenha qualquer relação contratual com a empresa Davati Medical Supply, sediada no Texas. O único contrato da AstraZeneca firmado com o Brasil ocorreu por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos dias 8 e 9 de setembro de 2020.

 Aos senadores, ele identificou José Ricardo Santana, que também trabalhava no Departamento de Logística do Ministério da Saúde, como a quarta pessoa que estava no encontro do Vasto Restaurante, no Brasília Shopping, no dia 25 de fevereiro. Depois que deixou a pasta, Santana também se tornou empresário.


Amilton Gomes de Paula chora durante seu depoimento à CPI: Reverendo confirmou vínculo com Roberto Cohen, conforme revelou a Sportlight. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

 
Nome de Bolsonaro aparece como parceiro do reverendo Amilton

O Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aparece como diretor de uma entidade aberta equivalente à junta comercial da Flórida, junto com Roberto Cohen, citado na CPI como parceiro do reverendo Amilton Gomes de Paula, que confirmou o vínculo, conforme revelou a Sportlight.

A Missão Humanitária do Estado Maior das Forças Armadas foi registrada em Miami, em 30 de outubro de 2020, na pandemia. Como diretores, aparecem, no ato de abertura, Jair Bolsonaro (presidente da entidade), Hamilton Mourão (vice) e Roberto Cohen (secretário). Trata-se de “uma organização diplomática, humanitária, com missão de paz, militar, organização intergovernamental e nonprofit”. As entidades “nonprofit” são, em tese, sem fins lucrativos.

No último dia 15 de março, segundo a reportagem, uma atualização foi realizada na junta da Flórida. Permaneceram os nomes de Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e Roberto Cohen, que passou a constar como “tenente coronel capelão”.

Além disso, foram incluídos os nomes de Fernando Azevedo e Silva, então ainda Ministro da Defesa, e de Raul Botelho, que consta como Tenente-Brigadeiro do Ar e que, naquela ocasião, ocupava o cargo de Chefe do Estado-Maior do Conjunto das Forças Armadas do Ministério da Defesa, de onde foi exonerado no dia 20 de maio, indo para a reserva no dia 2 de junho último.

Durante a audiência da CPI, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) afirmou que a “Missão Humanitária do Estado Maior das Forças Armadas do Brasil” aparece citada nos documentos do reverendo Amilton.


Saiba mais sobre o autor

*Cleomar Almeida é graduado em Jornalismo. Produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.


RPD || Marcos Marrafon e Alexandre César: Foro de Curitiba e suspeição de Moro

Decisão do Supremo Tribunal Federal trouxe consequências danosas ao processo político eleitoral brasileiro, tanto na eleição de 2018 quanto para a de 2022, e à legitimidade do STF, enquanto guardião da Constituição Federal

Duas grandes polêmicas jurídicas tomaram conta dos debates nacionais recentemente. A primeira em torno da declaração de nulidade das ações penais que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba em que o ex-presidente Lula era réu.  A segunda, em relação à suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para julgá-lo. 

No mês de março de 2021, o ministro Luiz Edson Fachin, em sede de Embargos de Declaração no Habeas Corpus nº 193.726, por via de decisão monocrática, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processamento e julgamento das ações penais relativas ao tríplex em Guarujá/SP, ao sítio de Atibaia/SP, às doações ao Instituto Lula e à sede do Instituto Lula, determinando a remessa desses processos ao foro do Distrito Federal. Prevaleceu a tese que a 13ª Vara Federal de Curitiba seria competente apenas para o julgamento dos fatos relacionados à Petrobras. Tal entendimento foi confirmado pelo Plenário do STF, por 8 votos a 3.  

Nele, chamou a atenção o voto do ministro Alexandre de Moraes, ao reclamar que Curitiba se tornou "o juízo universal de combate à corrupção", porque o Ministério Público Federal incluía a Petrobras em citações em todas as denúncias para chamar a prevenção do foro.  

Entre os votos divergentes destaca-se o do ministro Marco Aurélio. O então decano ressaltou já ter sido, a questão da incompetência territorial, apreciada em diversas instâncias e demonstrou preocupação com o clamor popular em torno da matéria: "Se voltam à estaca zero, a perplexidade da população passa a ser enorme. E isso em ações que não tem o contraditório. O desgaste institucional do Judiciário é enorme, no que se mitiga, esvazia-se totalmente a segurança jurídica.". 

Ao anular as condenações, o ministro Fachin declarou, também, a perda do objeto do HC nº 164493, em que era discutida a suspeição do ex-juiz Moro. A Segunda Turma rejeitou essa tese da perda de objeto e declarou a suspeição do ex-juiz, o que foi confirmado pelo Plenário do STF, também por maioria.  

Em voto vencedor, o ministro Gilmar Mendes argumentou que a imparcialidade é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito e que, em violação a esse princípio, haveria graves demonstrações de que a atuação do ex-juiz Moro foi parcial, como por exemplo, a divulgação ilegal de áudios que prejudicaram a defesa, as arbitrárias quebras de sigilo telefônico, inclusive dos advogados, e as ações tomadas pelo ex-juiz para impedir a soltura do réu.  

As consequências jurídicas da declaração de nulidade e de suspeição são diferentes. No primeiro caso, a nulidade territorial implicaria na anulação dos atos decisórios, mas haveria a preservação de grande parte das provas produzidas, que poderiam ser aproveitadas pela vara competente. Também a nulidade estaria restrita aos casos em que não existisse relação com as investigações envolvendo a Petrobras.   

Já na declaração de suspeição, o vício da parcialidade contamina todo o processo, anulando os atos decisórios e viciando as provas produzidas, englobando, inclusive, a fase pré-processual. Ademais, sendo a suspeição relacionada à pessoa do juiz e não à incompetência territorial, a tendência é que haja extensão da suspeição em relação a outros processos em que o ex-presidente é réu.  

Em conclusão, é possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal acerta quando não relativiza a garantia constitucional do devido processo legal, valor inegociável e ínsito à ideia de Estado de Direito.  

No entanto, o desfecho revela falhas graves no sistema de justiça brasileiro em suas diversas instâncias, pois, desde o início, tais questões deveriam estar decididas de acordo com a Constituição Federal. Muito tempo se passou sem que o Poder Judiciário, inclusive o STF, tomasse a decisão correta, o que prejudica severamente a devida apuração das denúncias de corrupção, uma vez que haverá um reinício das investigações e de eventual processo.  

Além das sequelas processuais, a insegurança jurídica ocasionada pela oscilação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal trouxe consequências danosas ao processo político eleitoral brasileiro (tanto na eleição de 2018, quanto na de 2022) e à legitimidade do STF, enquanto guardião da Constituição Federal, alimentando uma crise que coloca em risco a democracia constitucional.  


Saiba mais sobre o autor

*Marco Marrafon é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

*Alexandre César Lucas é advogado e mestrando em Direito pela UERJ.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD || Ronaldo Vainfas: Judeus portugueses entre Amsterdã e Nova York

Livro de Lira Neto conta o êxodo dos judeus expulsos da Península Ibérica pela Santa Inquisição em busca de sua terra prometida até a controversa chegada deles às costas da terra que seria, um dia, Nova York

Lira Neto é escritor irreprochável, várias vezes premiado com o Jabuti, quase sempre dedicado a temas históricos. Biografias, como a trilogia sobre Vargas, exemplifica seus livros sobre nossa história com sucesso editorial indiscutível. Ele tem formação eclética: técnico em topografia, cursou filosofia, é jornalista e, sobretudo, escritor. 

Não é, no entanto, historiador de formação, mas não sou daqueles que só admite contribuições legítimas no campo da história se os autores possuem formação acadêmica na área. Essa é uma exigência comum no meio historiográfico atual, infelizmente, cada vez mais fechado em relação aos que não discutem teoria, preferindo contar histórias. Não no sentido ficcional, senão baseados em pesquisa exaustiva de fontes ou, ao menos, de bibliografia especializada. Basta citar Evaldo Cabral de Mello e Alberto da Costa e Silva, diplomatas de ofício e, esses, sim, com razão, reconhecidos no mundo historiográfico por seus estudos de excelência.  

E alguém diria que Sérgio Buarque de Holanda não é historiador de ofício porque é bacharel em Direito? Ora, não havia cursos universitários de História no início do século XX. Sérgio Buarque, depois catedrático de Civilização Brasileira na USP, em fins dos anos 1950, é considerado um dos principais historiadores brasileiros. Em resumo, a meu ver, a história sempre foi um campo de conhecimento aberto. Se o autor possui erudição bibliográfica, conhecimento de fontes e escrita palatável, agrega plenas condições para ser reconhecido como historiador. 

Lira Neto pode ser inserido nessa categoria de historiadores por vocação, independentemente de sua formação precípua. Em Arrancados da Terra, ele reconstrói a saga dos judeus portugueses fugidos da Inquisição e abrigados em Amsterdã, no início do século XVII, parte dos quais migrou para o Recife holandês e, mais tarde, com a expulsão dos flamengos, se deslocou para Nova Amsterdã, futura Nova York. Eis um processo complexo que o autor reconstrói com vivacidade e narrativa cativantes. O leitor do livro haverá de conhecer de perto o papel essencial dos judeus portugueses – sefarditas – na expansão comercial, na época moderna. Suas redes de comércio, suas sinagogas públicas ou clandestinas, seus personagens mais destacados, em especial no mundo atlântico. 

No entanto, falando agora como pesquisador da área, não encontrei, no livro, reflexão sobre quem eram os tais judeus portugueses, do ponto de vista histórico-antropológico, salvo breve menção ao conceito de “judeus novos” de Kaplan. Como se houvesse um essencialismo judaico. Uma identidade judaica multissecular. Na verdade, eles eram descendentes de cristãos-novos convertidos ao catolicismo por decreto de D. Manuel, no remoto ano de 1496. Separados, havia mais de um século, do judaísmo de seus ancestrais. Desconheciam o judaísmo, a rigor, com exceção de alguns ritos domésticos, a exemplo da guarda do sábado e tabus alimentares. Como afirmou certo especialista na história dos sefarditas da época, os judeus portugueses de Amsterdã jamais haviam conhecido uma comunidade judaica, “exceto aquela que eles haviam criado” – ou estavam criando. Viviam dilemas identitários dramáticos. Uma comunidade que desabou como castelo de cartas entre 1644, com a saída de Mauricio de Nassau, que os protegia no Recife, e a vitória luso-brasileira em 1654. 

Foram para Nova Amsterdã? Apenas 23 pessoas alcançaram o lugar, após vários percalços no Caribe. Mas há um mito de que os judeus portugueses fundaram a cidade que, no futuro, seria Nova York. Na legenda, que funciona como subtítulo do livro, diz-se que eles “fizeram Nova York”. Um exagero apelativo. O primeiro judeu a pôr os pés em Nova Amsterdã foi, até onde sei, Jacob Barsimson ou Jacob Bar Simson. Era o nome judaico de Benjamim Bueno de Mesquita mencionado pelo autor? Ou um judeu ashkenazi que mal falava português, como outros que viveram no Recife holandês? 

Esta saga é, não raro, um mito, entre outros construídos sobre período holandês no Brasil. Como o mito de que o Brasil seria um país melhor se fosse colonizado por eles, ideia desconstruída por Sérgio Buarque, desde Raízes (1936). Lira Neto endossou tais mitos? No conjunto não, pois é bem fundamentado, sobretudo na bibliografia especializada, tradicional e atual. Mas sua narrativa tende a celebrar a atuação dos judeus portugueses, sem a devida ênfase no fato de que muitos deles eram grandes traficantes de escravos da Guiné ou de Angola para o Recife, nos tempos de Nassau, associados à Companhia das Índias Ocidentais. 


Saiba mais sobre o autor

* Ronaldo Vainfas é doutor em História pela USP (1988), Professor Titular de História Moderna aposentado da UFF (desde 1993), Professor da Pós-Graduação da UERJ-FFP (desde 2016), Pesquisador I-A do CNPq (desde 1990), autor de vários livros e artigos sobre História Colonial, com destaque para Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD || Lilia Lustosa: Leni Riefenstahl, genial ou monstro?

Obra de Leni Riefenstahl, uma das mais controversas diretoras da história, é apropriada para refletirmos sobre até que ponto a excelência da arte (ou do esporte) pode se sobrepor aos direitos humanos fundamentais, avalia Lilia Lustosa, em seu artigo

Um dos registros cinematográficos esportivos de maior importância na história do cinema foi escrito, realizado e montado pela alemã Leni Riefenstahl, entre 1936 e 1938, época em que o Partido Nazista comandava a Alemanha. Trata-se de Olympia, documentário que registrou para a prosperidade os Jogos Olímpicos de Berlim, realizados em 1936, no neoclássico Estádio Olympia, construído especificamente para o evento. Um agigantado teatro greco-romano capaz de abrigar um público de até 100 mil espectadores. 

Encomendado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), mas financiado pelo Ministério da Propaganda de Goebbels e pelo próprio Partido Nazista de Hitler, que sonhava com um filme-vitrine para o regime nacional-socialista, Olympia foi e é, até hoje, um filme controverso, que entrou para a história como um dos melhores documentários de todos os tempos. Isso, porque o registro de Leni revolucionou a maneira de filmar práticas desportivas, seu modelo é usado e repetido, atualmente, mundo afora. Múltiplas câmeras para os saltos ornamentais (incluindo subaquáticas), valas cavadas na terra para colocar os olhos dos espectadores na altura das pernas dos competidores, câmera lenta para registrar com precisão cada parte do movimento, enquadramentos ousados e originais que mostraram, como nunca, os maiores atletas, daquele 1936, em ação.  

A diretora alemã comandou, com firmeza e talento, uma equipe de 23 cinegrafistas (todos homens), que tinham ordem para filmar todas as 129 modalidades presentes nos jogos, evitando, assim, perder qualquer possível quebra de recorde. Como resultado, 400 quilômetros de negativos e cerca de 250 horas de filme rodado, o que lhe rendeu dois anos de trabalho de edição e um documentário de quase 4 horas de duração, dividido em duas partes, para facilitar a exibição. Nem todas as imagens que o compõem foram, no entanto, registradas em tempo real. Leni, que tinha o culto à beleza como seu leitmotif, preocupava-se tanto com a estética de sua obra que regravava várias cenas posteriormente aos fatos, convocando os atletas para “atuarem” em seu documentário.  

Perfeccionista por natureza, Leni foi laureada pelo COI, em 1948, com uma medalha de ouro por seu Olympia. No entanto, a origem dos recursos utilizados e os propósitos de seus financiadores foram e continuam sendo questionados e condenados por diversos críticos de cinema e espectadores, em todo o mundo. Suas imagens ao lado do Führer e a própria admiração que ele nutria por ela nos levam a questionar até que ponto Leni compactuava com os ideais nazistas. Em seus depoimentos, porém, a cineasta sempre declarou estar ali apenas exercendo seu ofício, jamais tendo se filiado ao Partido de Hitler, afirmando, ainda, desconhecer as atrocidades impostas pelo regime. A seu favor, usava também o argumento de ter filmado a reação insatisfeita do Führer à vitória do afro-americano, Jesse Owens, e de não ter cortado nem essa nem outras cenas que desmistificavam a “superioridade da raça ariana”. Mas seria mesmo possível que ela ignorasse o que estava acontecendo em seu país? Ou será que simplesmente escolhia não enxergar a realidade, colocando sua arte em primeiro lugar, acima das vidas de tantas pessoas inocentes? 

Leni pode ter sido absolvida pelos diversos tribunais em que foi julgada, no entanto, a história parece jamais tê-la liberado. Sua carreira de cineasta encontrou ali, praticamente, um ponto final. Após deixar o campo de concentração francês, onde ficou por 4 anos, a cineasta nunca mais conseguiu financiamento para suas produções, partindo rumo ao continente africano, onde passou a fotografar a tribo Nuba, no Sudão.

Publicou dois livros que foram, por sua vez, massacrados por antropólogos, que a acusavam de reproduzir uma imagem estereotipada dos núbios, e pela crítica especializada, que insistia que sua estética permanecia “nazista”. Já no fim da vida, buscando afastar-se, ainda mais, dos olhos da civilização, a cineasta decidiu filmar embaixo d’água. Aprendeu a mergulhar aos 70 anos e realizou seu último filme longe de qualquer traço de humanidade. Impressões Subaquáticas (2002) foi lançado no dia em que completava 100 anos de vida. Naquela imensidão azul, Leni parece ter encontrado a paz. Será?  

Em tempos olímpicos, a história de Leni Riefenstahl me parece bastante apropriada para refletirmos sobre, até que ponto, a excelência da arte (ou do esporte) pode se sobrepor aos direitos humanos fundamentais. Seria possível (e justo) separar o artista (ou o atleta) do ser humano? A obra, da ideologia de quem o faz? A estética, da ética? 


Saiba mais sobre o autor

*Lilia Lustosa é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne e doutoranda nesta mesma instituição de ensino superior.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD || Mark S. Lanvegin: A visão de Washington

Brasil precisa envolver e “traduzir” os interesses voltados aos níveis locais e estaduais nos Estados Unidos, com uma estratégia política detalhada e relevante, se quiser jogar bola em Washington, acredita Mark S. Langevin 

A visão de Washington é delineada pelas bases estruturais assimétricas que desafiam as relações bilaterais no século XXI, apesar das inúmeras expressões de afinidade entre os dois povos e seus representantes cívicos e políticos. Muitos formuladores de política externa e estudiosos apontaram, com eloquência, a base estrutural das assimetrias geopolíticas que desafiam e, muitas vezes, prejudicam as relações bilaterais entre Brasília e Washington. Por exemplo, o debate atual sobre a aquisição da tecnologia de telecomunicações 5G, pelo Brasil, e a rivalidade estratégica entre a China e os EUA ressaltam as condições estruturais subjacentes que informam a visão de Washington sobre o Brasil.  

No entanto, poucos líderes em Brasília têm formulado uma estratégia política detalhada e relevante para identificar exatamente o que o Brasil precisa dos Estados Unidos e a melhor forma de alcançá-lo. Por exemplo, durante o caso contencioso do algodão com os EUA, o Brasil seguiu uma saída pelo Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, sem levar em consideração o fundamento político das políticas agrícolas dos EUA. Esta estratégia obteve sucesso incompleto. Contudo, a solução final para o caso foi alcançada quando a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) realizou uma série de reuniões com o National Cotton Council, entidade representativa dos produtores dos EUA, cultivando as condições políticas do acordo final, em outubro de 2014. O truque era entender a base local e estadual das políticas agrícolas das subvenções em questão e, então, agregar os interesses brasileiros a elas. O Brasil não pode mudar o modo de governar em Washington, ou Topeka ou Sacramento, mas precisa envolver e “traduzir” os interesses voltados aos níveis locais e estaduais, se quiser jogar bola em Washington. 

Seja buscado pelos liberais conservadores ou social-democratas, o bem-estar da maioria dos brasileiros depende da abordagem das relações bilaterais por meio da luta persistente de alcançar metas concretas que aumentem o acesso do Brasil aos fundos internacionais de investimento, mercados e tecnologia visando a geração de empregos e o aumento da produtividade pelo aumento da participação brasileira nas cadeias globais de manufaturados e serviços de alto valor. Esse trabalho, necessariamente, se cruza com Washington, mas não exclusivamente. 

A elite política dos EUA não pensa no Brasil como uma nação em desenvolvimento, mas um enorme mercado e concorrente ocasional. Para o governo do Presidente Joe Biden, a representação da elite política, liderada pelas grandes empresas de tecnologia da informação, está focada no campo da batalha da tecnológica avançada, de olho em como a inteligência artificial moldará o destino de nosso mundo e, certamente, o futuro dos EUA, e, consequentemente, o Brasil. Além disso, a maioria do Partido Democrata em Washington acredita, pela primeira vez, que o Brasil não é um ator responsável quando o assunto é mudança climática. Brasília está bem longe de Washington nesta conjuntura.  

Enquanto isso, o governo Bolsonaro está focado em fraudes eleitorais inexistentes, a Embaixada do Brasil, em Washington, está em queda livre há anos e a Coalizão das Indústrias do Brasil (BIC) está sem teto. Como o Brasil pode defender seus interesses e subir a escada do desenvolvimento econômico e social sem aprofundar seu engajamento com os interesses econômicos e as forças políticas de Los Angeles a Nova York?  

Ironicamente, o governo Biden, com seu embaixador especial para o clima, John Kerry, está trabalhando com os governos estaduais brasileiros para formar parcerias e encontrar soluções para proteger a Amazônia e promover o desenvolvimento sustentável. Certamente, esse esforço é visto em Washington como uma forma de aumentar a influência dos EUA sobre a governança global e avançar esquemas de desenvolvimento de baixo carbono, mas também pode ser uma lição para Brasília. 

O Brasil pode se beneficiar de uma estratégia bilateral que aumenta os pontos da cooperação econômica e social por meio de engajamentos em níveis locais e estaduais, deixando Washington para os coquetéis e as cerimônias de assinatura de acordos. O Brasil precisa se instalar em Pittsburgh e Indiana, se quiser eliminar as tarifas do aço. Para liberalizar o comércio bilateral, eliminar a necessidade de visto para viajar para os EUA, e chegar a um acordo tributário bilateral que funcione para famílias de classe média brasileiro-americanas com ativos modestos em Boston e Belo Horizonte. O governo brasileiro e a sociedade civil precisam mais do que consulados, devem exigir organizações, com escritórios e funcionários em Atlanta e San Francisco, trabalhando lado a lado com suas contrapartes estadunidenses. Brasília precisa ver os EUA, não do ponto de vista de Washington, mas dos cafés e estádios de beisebol de Houston e Seattle, para virar o jogo bilateral. Let’s play ball! 


Saiba mais sobre o autor

*Mark S. Langevin é PhD, Senior Fellow e professor da Schar School of Policy and Government, George Mason University. Assessor internacional de Horizon Client Access e diretor de BrazilWorks. Ele serviu como assessor internacional da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) de 2010 a 2018. Pesquisa e escreve extensamente sobre a formulação de política agrícola, energética e o comércio internacional do Brasil, bem como as relações entre Brasil e Estados Unidos. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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RPD || Alberto Aggio: Os desafios e os riscos da Constituinte chilena

Processo político e institucional no Chile pode ser considerado como o mais democrático e participativo de reconhecimento da soberania cidadã, em toda a história da América Latina, mas a refundação do Estado chileno pode ter complicações irreparáveis, avalia Alberto Aggio

Sob imensas expectativas, instalou-se, no início de julho, a “Convención Constituyente” que deverá elaborar a nova Constituição do Chile no prazo de nove meses, prorrogáveis por mais três, para, em seguida, ser levada a plebiscito. São expectativas compartilhadas dentro e fora do Chile, mas há sérios riscos de uma derrapagem que pode causar complicações irreparáveis. 

Nascida de protestos cívicos, cujo ápice foi a manifestação multitudinária de 18 de outubro de 2019, a Constituinte ganhou vida mediante um acordo firmado entre as principais forças políticas do país que reconheceram a legitimidade do que se passava nas ruas. Estabeleceu-se a realização de um plebiscito (realizado em 25 de outubro de 2020) que sancionou, tanto a vontade majoritária por uma nova Constituição, como a eleição específica e paritária de 155 constituintes, dentre eles 17 representantes dos “povos originários”, o que se concretizou nas eleições de 16 de maio deste ano. Estabeleceu-se, desde novembro de 2019, que 2/3 seria o critério para aprovação de todas as matérias constitucionais. 

Talvez não se conheça processo político e institucional mais democrático e participativo de reconhecimento da soberania cidadã, em toda a história da América Latina. Com a aprovação de 80% no plebiscito, feriu-se de morte a ordem institucional da Constituição de 1980, imposta pela ditadura de Augusto Pinochet e, ao mesmo tempo, abriu-se a senda da refundação do Estado chileno, expressa na instalação da Constituinte.  

Está em curso, portanto, a ultrapassagem da Constituição de 1980 que amordaçou a sociedade chilena e, também, a estratégia de “reformas” desta mesma Constituição implementada pelos diversos governos da Concertación, desde 1990, que, embora tenha feito avançar a democratização, não conseguiu adequar-se aos novos tempos, ampliando direitos ou reelaborando aqueles que foram perdidos, desde o golpe militar de 1973. 

Trata-se efetivamente de uma “experiência disruptiva”, mas não equivalente a uma “revolução”, em seu sentido convencional; nem mesmo equiparável à “Primavera Árabe”, iniciada na segunda década do século. O processo em curso no Chile visa, essencialmente, refundar o Estado, mas está institucionalizado, como ficou claro na instauração da Convención

Os termos da refundação aparecem claramente no discurso de Elisa Loncón[1], eleita como Presidente da Assembleia. Ela pediu um “esforço de unidade” para “transformar” o Chile, “ampliando a democracia”, tornando-o socialmente mais igualitário, sexualmente mais livre, economicamente mais justo, ecologicamente sustentável, e, por fim, um país “plurinacional e intercultural”. Um programa máximo, pensado a partir dos novos direitos e novas subjetividades que terá de interagir com dimensões externas à Constituinte, ou seja, com um governo impopular e um Congresso a ser renovado junto com a Presidência da República nas eleições do final do ano.  

Apelando para a soberania plena da Constituinte e levando em conta suas primeiras iniciativas, está claro que os “maximalistas” tentarão superar a imposição dos 2/3, violando o acordo originário. Como afirma o sociólogo Patricio Navia, parece claro que a maioria dos constituintes “está decidida a se livrar da camisa de força representada pelo acordo que sancionou o início do processo”[2]. Com a legitimidade lida em chave exaltada – como uma “tomada de poder” – e o enfraquecimento das demais instituições políticas, a direção da Constituinte convocou, inclusive, um debate sobre a libertação dos detidos nas manifestações de 2019, atuando fora de suas atribuições.  

Serão complexas também as relações da Constituinte com os candidatos à Presidência. Por um lado, as pautas da Constituinte podem ser “presidencializadas”; por outro, em campanha, os candidatos poderão se sentir condicionados aos encaminhamentos político-ideológicos da Constituinte; e se, por fim, o vencedor não for propriamente ao gosto da direção da Assembleia, pode-se supor que haverá alguma tentativa de diminuir poderes ao Executivo. Num contexto mais polarizado, poderá haver, inclusive, a tentação de se convocar novas eleições presidenciais. 

Em entrevista recente, o jornalista e escritor José Rodriguez Elizondo vê tudo isso com apreensão e adverte: “Quando uma sociedade começa a se odiar, deixa de ser viável” [3]. Para ele, o concurso do “centro político” poderia ser bastante saudável nesse processo legítimo de refundação do Estado chileno.  

[1] Elena Loncon tem 58 anos, foi eleita como representante mapuche, é formada pela Universidade de Santiago (USACH) e fez doutorado em Humanidades e Linguística na Universidade de Leiden, na Holanda. 

[2] Patricio Navia, “La poderosa Convención Constitucional” In Il Libero,  cf.  https://ellibero.cl/opinion/patricio-navia-la-poderosa-convencion-constitucional/ . 

[3] https://www.elmostrador.cl/cultura/2021/07/13/jose-rodriguez-elizondo-candidato-a-premio-nacional-de-humanidades-cuando-una-sociedad-empieza-a-odiarse-deja-de-ser-viable/ 


*Alberto Aggio é historiador, Professor Titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.

 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD || Ivan Alves Filho: Vieira, precursor de Freud?

Maior personalidade da cultura luso-brasileira de seu tempo, Padre Antônio Vieira também era surpreendente e atualíssimo, avalia Ivan Alves Filho, em seu artigo

 Durante as minhas andanças por Lisboa, Algés e Coimbra, quando recolhia material para escrever o livro Memorial dos Palmares, relativo à saga dos quilombolas refugiados na Serra da Barriga, ao longo do século XVII e primeiras décadas do século seguinte, não tive dificuldades em constatar ser quase uma obrigação pesquisar os escritos do Padre Antônio Vieira. Um dever de ofício. E por uma razão simples: o autor dos célebres Sermões era o ideólogo por excelência do colonialismo português, conforme definiu, certa feita, José Honório Rodrigues. Ou seja, Vieira era o principal Conselheiro do Rei, aquele que enxergava melhor os problemas - e detinha, por vezes, a fórmula de resolvê-los. Estrategista político de primeira linha, Antonio Vieira era ainda um catequista e um educador extraordinário. E, de quebra, escrevia admiravelmente bem. Foi, provavelmente, a maior personalidade da cultura luso-brasileira de seu tempo. 

Tive a felicidade, inclusive, de poder identificar um texto de Vieira, que dormitava como documento anônimo na Biblioteca da Ajuda (apesar do nome, um rico arquivo de manuscritos alojado no suntuoso Palácio da Ajuda, nas cercanias de Lisboa). Versando sobre o Quilombo dos Palmares e a chamada Guerra dos Bárbaros, no sertão nordestino, o documento fora visivelmente redigido por um eclesiástico. Tendo feito uma cópia, levei o texto para um especialista do Arquivo Histórico Ultramarino e, juntos, nós o comparamos a um outro documento original de Vieira existente na instituição. Uma comparação letra a letra, quase. Resultado: estávamos, mesmo, frente a um inédito do Padre Antônio Vieira. Sorte minha. 

Por que tudo isso me vem à memória? Pelo seguinte motivo: há poucos dias, ao ler algumas passagens de Vieira, fiz a descoberta de um autor inteiramente novo. Um Vieira surpreendente; atualíssimo também. Eis aqui um trecho, escrito há mais de três séculos: “Os sonhos são imagens da vida. Cada um sonha com o que vive. Os sonhos são uma pintura muda, em que a imaginação a portas fechadas e às escuras retrata a vida e a alma de cada um, com as cores das suas ações, dos seus propósitos e dos seus desejos”. 

Vieira, precursor de Freud? Quem sabe? É sempre bom lembrar que antes, muito antes da psicanálise, a religião já escarafunchava a alma humana e que o divã pode perfeitamente ser uma forma de confessionário na sociedade moderna. 

Resta saber o que o próprio Padre Vieira pensaria de tudo isso. E Freud também, naturalmente. 


Saiba mais sobre o autor

*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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RPD || Karin Kässmayer: O Brasil na contramão dos compromissos climáticos

País precisa vencer desafios como a superação do passivo do desmatamento e a apresentação de uma robusta e crível agenda de ação climática para integrar a nova economia global verde

A Conferência das Partes sobre Mudança do Clima, a COP26, que ocorreria em 2020, foi adiada em função da pandemia da Covid-19, e será sediada, em poucas semanas, na cidade de Glasgow, Escócia. Diante de recentes eventos climáticos extremos com impactos significativos – as chuvas torrenciais em países como Alemanha e China e o calor intenso no Canadá – cresce o interesse e a expectativa sobre a COP26 que deverá definir, de modo urgente, ações e regulamentação voltadas ao objetivo de descarbonizar a economia mundial e alcançar a meta de limitar o aquecimento global a 1,5C. 

Uma nova fase da política climática internacional foi inaugurada com a celebração do Acordo de Paris, em 2015, de cujas negociações o Brasil foi protagonista. Com o comprometimento de um agir cooperativo multilateral, os Países-Parte criaram metas próprias e medidas de adaptação e mitigação de emissões de gases de efeito estufa (GEE). As Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC), peças-chave do acordo, devem ser revistas a cada cinco anos, com metas cada vez mais ambiciosas.  

O Brasil liderou a diplomacia mundial e foi um ator de excelência nessa seara, tendo alcançado, internamente, resultados expressivos que culminaram com a redução do desmatamento em 83%, nos anos de 2004 a 2012, principalmente pela criação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM). Com a gestão presidencial atual, o desmatamento, que é o nosso Calcanhar de Aquiles das emissões, cresceu exponencialmente, até chegarmos à cifra de 10.851 kmem 2020. O PPCDAM foi extinto, e o país é palco de um cenário de descrença e críticas internacionais, em relação à política ambiental brasileira, com desgastes da sua imagem e um ponto de interrogação sobre seus propósitos quanto ao futuro de sua política climática.  

Espera-se, em Glasgow, que as nações apresentem metas nacionais mais ambiciosas para 2030. Segundo os cientistas, a implementação de medidas de mitigação e adaptação deve ser realizada de modo célere, ainda nesta década. Enquanto o Reino Unido foi o primeiro país a inserir em sua legislação o objetivo de descarbonizar a economia até 2050 (net zero carbon); a União Europeia lançou um pacote legislativo com o objetivo de reduzir as emissões de GEE, no continente, em 55% até 2030, em comparação com as de 1990, e medidas como o fim de veículos movidos a combustíveis fósseis e impostos sobre o querosene de aviação; e os EUA, com a guinada de sua política ambiental no Governo Biden, retomou seu protagonismo e liderança com a realização, em março, da Cúpula dos Líderes sobre o Climao que fez o Brasil?  

Nessa Cúpula, Jair Bolsonaro enviou uma carta a Biden com informações lacunosas, que não identifica quais são os programas e políticas públicas voltadas à proteção ambiental e à segurança climática. Como eliminar o desmatamento ilegal no Brasil até 2030? Qual é o projeto adotado para impulsionar a bioeconomia? Perguntas essas não respondidas pelo Governo. A nova NDC brasileira, apresentada pelo ex-ministro Salles, em vez de aumentar o percentual de redução de emissões, o manteve, baseado em uma atualização do inventário, caracterizando-se mais um retrocesso na desastrosa condução da pasta ministerial. 

A COP26, realizada em um momento em que surgem esperanças de uma retomada econômica com a vacinação, traz para si um feixe de questões decorrentes dos efeitos explícitos da pandemia do Coronavírus: o repensar do modelo de desenvolvimento, com mais inclusão, justiça social e redução de desigualdades e uma nova economia global verde que gere empregos sustentáveis. Os desafios permeiam, sobretudo, o engajamento contínuo do setor privado em reduzir as emissões e a regulamentação de dispositivos do Acordo de Paris, em especial aqueles relacionados ao seu art. 6º, que tratam do financiamento e do mercado de carbono. Vários países já planejam e executam uma retomada econômica verde, com financiamento, tecnologia e inovação para o desenvolvimento sustentável. No Brasil, setor empresarial, sociedade civil e comunidade científica debatem, incessantemente, sobre a necessária integração entre a agenda ambiental e climática e a econômica, em um horizonte com muitas oportunidades. 

Se muitos países apresentam compassos precisos em suas políticas de desenvolvimento rumo à transição energética e à neutralidade carbônica em 2050, no Brasil, os desafios são a superação do passivo do desmatamento e a apresentação de uma robusta e crível agenda de ação climática. O agir presente, que possa nos levar à superação dos riscos climáticos e à retomada da governança ambiental, entretanto, enfrenta crises: democrática, ambiental, econômica, social e de saúde, que só serão superadas com futuras eleições. ​ 


*Karin Kässmayer é Advogada e Consultora Legislativa do Senado Federal, com doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR e Doutorado Sanduíche na Universidade de Tübingen, Alemanha. É mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR e foi Professora Adjunta de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da UFPR, da PUCPR e da UNIFAE.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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RPD || Henrique Brandão: Artur Xexéo, um craque

Jornalista, escritor, dramaturgo, apresentador de TV, comentarista de rádio, tradutor. Xexéo foi bem em tudo o que fazia, mas foi como cronista que deixou sua marca registrada, escreve Henrique Brandão

No jargão futebolístico, quando se diz que um jogador “brinca nas onze” quer dizer que ele joga bem em qualquer posição. Poucos têm talento para se sobressair em várias funções. Não é para qualquer um: o cara tem que ser craque.  

Artur Xexéo era assim, um craque. Fazia bem tudo em que se metia. Jornalista de formação, foi também escritor, dramaturgo, apresentador de TV, comentarista de rádio, tradutor. Por onde esteve, deixou sua marca, virou referência. 

O jornalismo não foi sua primeira escolha, na hora de entrar para a faculdade. Como era bom em Matemática, Xexéo achou que daria um bom engenheiro. "Quando eu cheguei na Engenharia, levei um susto, porque não gostava de nada. Fiquei apavorado, era inteiramente entediante para mim aquilo", disse, em depoimento ao projeto Memória Globo. Para não desapontar os pais, seguiu na faculdade: foi fazer Jornalismo. O erro de cálculo do jovem bom em Matemática, revelou-se um acerto. Perdeu a Engenharia, mas ganhamos, todos, um brilhante jornalista. 

Xexéo começou a trabalhar na imprensa em 1975. Passou pelos principais jornais do Rio – “Jornal do Brasil” e “O Globo” –, onde foi colunista e editor, e pelas revistas “Veja” e “IstoÉ”. Além da imprensa escrita, Xexéo participou do programa Estúdio i, da Globo News, e foi comentarista da entrega do Oscar na TV Globo. No rádio, participou de programa semanal na CBN. 

Tinha vasta cultura cinematográfica e teatral. Em suas colunas, estava sempre comentando filmes e peças, e não apenas as estreias do circuito nacional. Viajava com frequência para Nova York ou Londres, cidades que conhecia como a palma da mão, onde acompanhava os lançamentos cinematográficos e as novidades da Broadway e do West End londrino.  

Sua paixão pelo teatro acabou por levá-lo a arriscar-se como dramaturgo. Sempre na linha dos musicais, escreveu “A Garota do Biquini Vermelho”, “Nós Sempre Teremos Paris”, “Cartola – O Mundo é um Moinho” e “Minha Vida Daria um Bolero”.  

Mas foi como cronista que Xexéo deixou sua marca registrada. O estilo coloquial o aproximava do leitor. A leveza do texto e o humor das sacadas transformavam as observações que fazia nas colunas, em animados papos nas esquinas, mesas de botequim, nas rodas de praia e nos almoços de família. 

Costumava dizer, com bom humor, que tinha “17 leitores”. Tinha muito mais, claro. Uma gigantesca legião de ávidos leitores acompanhava semanalmente suas crônicas. O concurso de “Mala do Ano”, por exemplo, criado por ele, mobilizava o Rio de Janeiro no fim de ano.  

E as intermináveis fitas banana, polêmicas que surgiam por uma referência de filme, música ou peça que ele citava em um artigo e os leitores contestavam? Passava semanas dialogando na coluna com seus seguidores, sempre acrescentando informações, de tal forma que, ao fim da discussão, estávamos todos “especialistas” no assunto. Criou também o troféu “Zum de Besouro”, uma referência à música Açaí, de Djavan, conferido a letras que considerava herméticas. 

Mesmo não sendo um apaixonado por futebol, cobriu quatro Copas do Mundo. Suas crônicas foram reunidas no livro “O Torcedor Acidental”, que aborda o mundo das Copas para além dos campos. Observando o dia a dia das cidades por onde passou a Seleção Canarinho, os costumes, a comida, o vestuário, a dificuldade com os idiomas, os personagens e as situações inusitadas com as quais se deparava – nada escapava ao olhar crítico do jornalista.  

Frank Sinatra, por exemplo, o abordou na sala VIP do estádio Rose Bowl, em Pasadena, na Califórnia, em 1994, para perguntar onde era o banheiro. “Logo ali”, respondeu o cronista, apontando para o banheiro químico. Em outra ocasião, recebeu luxuoso auxílio em uma esquina de São Francisco, quando teve dificuldades com a máquina de jornais automática que engolira sua moeda. Foi socorrido por Mel Brooks, que, após socos e pontapés, fez com que a geringonça expelisse um exemplar do “San Francisco Chronicle”. Essas e muitas outras histórias deliciosas revelam os bastidores de várias Copas do Mundo. 

Aos 69 anos, no dia 27 de junho, Xexéo sucumbiu a um linfoma descoberto duas semanas antes. Iniciou a quimioterapia, mas não resistiu ao tratamento. Teve uma parada cardíaca. O jornalismo perdeu um de seus melhores profissionais. Foi-se um craque.  


Saiba mais sobre o autor


*Henrique Brandão é jornalista e escritor.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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RPD || Sérgio C. Buarque: De soluços e incertezas

Agressões de Jair Bolsonaro às instituições democráticas e suas ameaças de ruptura institucional, bem como a delicada crise hídrica que o país atravessa, podem inibir a reanimação da economia brasileira

No primeiro semestre do ano, o Brasil registrou um crescimento econômico de 2,2%[1], pouco, diante da forte retração do ano passado, mas acima das expectativas pessimistas que temiam o impacto negativo da pandemia da Covid-19. Além da recuperação da economia mundial, com a expansão da demanda e dos preços de commodities, esse desempenho da economia contou com fatores internos, como a desvalorização cambial, estimulando as exportações da indústria, o reinício do auxílio emergencial e a adaptação de parte das empresas brasileiras à operação nas condições adversas da pandemia.   

Mas o que caracterizou este primeiro semestre do ano foi o arrefecimento das restrições econômicas e as medidas de isolamento social, mesmo no meio de uma nova onda de propagação do vírus e com lento avanço da vacinação. Parecia que todos os governantes tinham assumido a aposta perversa, do Presidente Jair Bolsonaro, de imunização de manada. A economia se movia, enquanto o vírus fazia mais vítimas. Nos primeiros meses do ano, houve aceleração do número de casos e do registro de vítimas da Covid-19, chegando à dramática média móvel diária de 3.124 mortos, na segunda semana de abril. No semestre, morreram mais de 320 mil brasileiros de Covid-19, quase 60% acima do total de vítimas registradas em todo o ano de 2020.  

Desde o final de abril, a mortalidade provocada pelo vírus vem declinando continuamente, provável resultado da regularização e ampliação da vacinação, com foco na população idosa e com morbidades. Mesmo assim, no final do semestre, a média móvel diária ainda alcançou inaceitáveis 1.303 vítimas, quando 88,7 milhões de brasileiros tinham recebido, ao menos, a primeira dose da vacina (cerca de 42% da população total). Em junho, a taxa de contaminação chegou ao nível mais baixo (0,88), acompanhada de um alívio na pressão sobre o sistema de saúde. 

Com o modesto crescimento da economia, no semestre, seguindo a uma retração de 4,1% do PIB-Produto Interno Bruto, no ano passado, o desemprego permanece muito alto, as famílias vulneráveis afundaram na pobreza, milhares de famílias enfrentando a fome, e as desigualdades sociais se acentuaram. De acordo com a FGV-Fundação Getúlio Vargas, o Índice de Gini estava em 0,642, no primeiro trimestre de 2020, subindo para 0,669, no final daquele ano e dando novo salto para chegar a 0,674, no primeiro trimestre deste ano. Além disso, a aceleração da taxa de inflação, no primeiro semestre, cerca de 8,35%, em doze meses, agrava a pobreza e não autoriza muito otimismo de crescimento, pelo que representa de instabilidade macroeconômica e aponta para provável elevação da taxa de juros.  

Considerando que se mantenha o ritmo atual de vacinação (pouco mais de um milhão de aplicações diárias), a contaminação e a taxa de mortalidade de brasileiros pela Covid-19 devem declinar rapidamente no semestre. Será possível, então, aliviar as restrições às atividades econômicas e às medidas de isolamento social, estimulando a reanimação da economia brasileira. Os especialistas e institutos apostam em um crescimento econômico em torno de 5%, em 2021 (Boletim Focus estima em 5,27%, e o IPEA, 4,8%). Embora a pandemia possa continuar atrapalhando a retomada mais forte da atividade econômica, o avanço da vacinação e o ambiente externo favorável podem confirmar essas expectativas de crescimento. Mesmo assim, nada significativo, considerando a queda de 4,1% do PIB registrada em 2020.  

Por outro lado, algumas grandes pedras no caminho podem atrapalhar a esperada reanimação econômica, mesmo que se confirmem a aceleração da vacinação e o controle da pandemia. Os soluços políticos do Presidente Jair Bolsonaro, suas agressões às instituições democráticas e suas ameaças de ruptura institucional provocam grave instabilidade e incerteza política e econômica. O descontrole verbal e as movimentações golpistas do presidente crescem na medida em que aumenta sua rejeição nas pesquisas e surgem acusações sérias de prevaricação, crime de responsabilidade e denúncias de corrupção, na Comissão Parlamentar de Inquérito. Como resposta, Bolsonaro conspira nos quartéis e se agarra com o Centrão, retirando a fantasia de inimigo da “velha política” para vestir um salva-vidas político que evitaria um processo de impeachment.  

Não bastasse a instabilidade política, o Brasil está atravessando delicada crise hídrica que ameaça a reanimação da economia pela incerteza da oferta de energia elétrica e pela elevação das tarifas (provocada pela ativação das usinas termelétricas), com novo impulso inflacionário. O Boletim Focus sinaliza para uma taxa de inflação de 6,31%, em 2021, superando, em muito, o centro da meta (3,75%) e mesmo o teto de 5,25%. O risco de apagão e racionamento tem sido descartado, mas o próprio Operador Nacional do Sistema Elétrico anunciou a possibilidade real de esgotamento de praticamente todos os recursos energéticos até novembro.  

Tudo indica, portanto, que mesmo submergindo da pandemia e da retração econômica, no segundo semestre, não faltarão conflitos políticos e incertezas econômicas para inibir o crescimento da economia brasileira no restante deste ano.  

[1] Crescimento de 1,2% no primeiro trimestre (Banco Central) e estimativa de 0,1% para o segundo trimestre (IPEA) 


Saiba mais sobre o autor

*Sérgio C. Buarque é economista com mestrado em Sociologia, professor da Universidade de Pernambuco (UPE), consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? e membro do Movimento Ética e Democracia.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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O Estado de S. Paulo: Entenda a Operação Formosa

Inédito, evento desta vez vai incluir militares das três Forças no dia em que Câmara vota PEC do voto impresso

Felipe Frazão, Marcelo Godoy e Roberto Godoy, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro acompanha da rampa do Palácio do Planalto, na manhã desta terça-feira, 10, o desfile de um comboio de veículos militares blindados que vai passar pelos arredores do Congresso Nacionalno dia em que a Câmara dos Deputados incluiu na pauta de votação a PEC do voto impresso. O evento inédito faz parte da Operação Formosa, da Marinha, que acontece todos os anos, desde 1988, mas que desta vez vai incluir homens do Exército e da Aeronáutica. Será a primeira vez que os blindados vindos do Rio passarão por Brasília e serão recebido por um presidente da República.

O principal objetivo da operação Formosa é treinar militares da Força de Fuzileiros da Esquadra, sediada no Rio. Apesar da pandemia, a operação será maior do que nos anos anteriores. Em 2019, foram 1,9 mil militares, em 2018, 1,6 mil. Em 2020, porém, apenas 500 militares participaram.

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O custo total da operação não foi informado pela Defesa, tampouco pela Marinha. Há despesas diversas, como pagamento de diárias, alimentação, deslocamento de equipamentos e construção de estruturas de apoio ao treinamento. O adestramento ocorre no Campo de Instrução de Formosa, em Goiás. A área de cerrado pertence ao Exército e é cedida à Marinha por ser a única do País em que é possível realizar esse treinamento com uso de munição real.

O treinamento reunirá pela primeira vez militares das três forças. Serão 100 do Exército, que já participou antes da operação, e 30 da Aeronáutica. Os fuzileiros fazem simulações de guerra, com aviões, paraquedistas, helicópteros, blindados, anfíbios, bateria antiaérea, detonação de explosivos, descontaminação por agentes químicos, nucleares, biológicos e bacteriológicos. Também treinam salvamentos.

No passado, militares de Forças Armadas estrangeiras já participaram como dos Estados Unidos, Portugal, Paraguai, Equador, Chile, Namíbia e Uruguai.

Por causa do tamanho do efetivo empregado e da quantidade e variedade de equipamentos testados – serão cerca de 150 – os preparativos levam cerca de dois meses, com deslocamento do Rio, a 1,4 mil quilômetros.

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Fonte: O Estado de S. Paulo
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Luiz Carlos Azedo: Tanqueata na Esplanada

A solenidade militar corrobora supostas ameaças feitas por Braga Netto, de não se realizarem as eleições caso o voto impresso não seja aprovado

A Câmara deve votar, hoje, o relatório do deputado Raul Henry (MDB-PE) que rejeita a proposta de emenda à Constituição (PEC) 135/2019, que propõe a adoção do voto impresso, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF). Estima-se que a proposta tenha mais de 320 votos contrários, contra menos de 100 a favor, quando precisaria de, no mínimo, 308 votos para ser aprovada. Caso se confirme o placar, será uma derrota acachapante do presidente Jair Bolsonaro, expondo seu isolamento político e a fragilidade da base parlamentar bolsonarista. Trocando em miúdos, o voto impresso só contaria com o apoio dos deputados de extrema-direita. A votação será a constatação de que o governo Bolsonaro não tem como sobreviver sem o apoio do Centrão, que ficará com a faca e o queijo na mão na Esplanada.

Esse será o resultado, também, de um gesto equivocado de Bolsonaro, com apoio do ministro da Defesa, general Braga Netto, empenhado em constranger os comandantes militares a fazerem demonstrações de alinhamento político com o presidente da República. Nesta manhã, está programada uma cerimônia militar na Praça dos Três Poderes, na qual o presidente da República será convidado a participar de exercícios militares da Marinha no campo de manobras da Operação Formosa (GO), a cerca de 50 quilômetros de Brasília. Tanques, carros anfíbios, lançadores de foguetes e obuseiros da Marinha, que estão sendo deslocados do Rio de janeiro para Goiás, desfilarão pela Esplanada dos Ministérios e estacionarão defronte ao Palácio do Planalto, ou seja, na Praças dos Três Poderes, ao lado do Congresso e em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para gregos e baianos, soa como uma intimidação.

Entretanto, trata-se de um exercício realizado periodicamente, para adestramento dos fuzileiros navais da Esquadra, que simulam operações de combate com emprego de munição real e apoio do Exército e da Aeronáutica. Desta vez, porém, o deslocamento dos veículos e da tropas do Rio de Janeiro para Goiás foi. transformado numa espécie de “tanqueata”, para demonstração de apoio político aos propósitos golpistas do presidente da República, justo no dia em que a Câmara deve rejeitar a proposta de voto impresso. Bolsonaro não faz outra coisa que não seja pôr em suspeita a lisura das eleições com urna eletrônica. Tenta intimidar o Congresso, para restabelecer o voto impresso, com a ameaça de não permitir a realização das eleições. Consegue ofuscar até as propostas do próprio governo que visam criar uma agenda positiva.

A solenidade militar corrobora supostas ameaças feitas por Braga Netto, de não se realizarem as eleições caso o voto impresso não seja aprovado; na real, é mais um constrangimento para as Forças Armadas, indispondo-as com o Congresso, numa hora em que já se discute limitar a presença de militares da ativa na administração pública. A repercussão no Congresso é péssima; na sociedade, também, porque nos remete às quarteladas do século passado.

Ordem unida
Também nos lembra uma velha piada dos estertores do Estado Novo, logo após a volta da Força Expedicionária Brasileira (FEB) dos campos de batalha da Itália, onde lutaram contra o Exército alemão. O general Góes Monteiro, chefe militar da Revolução de 1930 e ministro da Guerra no Estado Novo, às vésperas de destituir Getúlio Vargas, era um dos alvos preferidos da oposição. Fora simpatizante do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), no período em que Vargas vacilava entre se aliar ao nazifascismo ou entrar na II Guerra Mundial ao lado dos Estados Unidos e do Reino Unido. Em visita à Alemanha, Monteiro ficou impressionado com a disciplina das Wehrmacht, ao ver um sargento alemão se atirar da janela do terceiro andar, após receber ordens expressas de seu comandante, estatelando-se no pátio do quartel. No Japão, se impressionou mais ainda, ao visitar um porta-aviões e assistir uma cerimônia de seppuku, suicídio ritual na qual um camicase dedicou a vida ao Imperador e à vitória do Japão.

Ao voltar para o Brasil, Góes Monteiro não teve dúvidas. Madrugou no Palácio do Catete, sede do governo, no antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro), e mandou tocar a alvorada às 5h. A Guarda Presidencial saiu dos alojamentos assustada, sem entender o que estava acontecendo, com os dragões desalinhados, rabo de cavalo do capacete para a frente, coturnos desamarrados, túnicas fora da calça, remelas nos olhos… O general aproximou-se do sargento Tião, velho conhecido, que liderava o pelotão. Em alto e bom som, deu a voz de comando: “Dragões, sentido!” A tropa se endireitou. “Esquerda, volver!”. A tropa perfilou. “Apresentar armas!”. Tião ficou cara a cara com o general, com quem tinha até certa intimidade, e sentiu o bafo carregado de uísque. Não se conteve: “Senhor, bêbado a uma hora dessa?”.

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