Day: julho 23, 2021
Crise hídrica amplia desafios da gestão de recursos naturais
Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo de Miranda Pinto explica desafios e oportunidades do Plano Nacional de Recursos Hídricos
A crise hídrica, que atinge alguns dos principais reservatórios do país, preocupa ambientalistas e diversos setores da economia. A ameaça no fornecimento de energia no Brasil e os impactos ambientais da transposição do Rio São Francisco são assuntos que ganham cada vez mais destaque no debate público.
Para analisar o Plano Nacional de Recursos Hídricos para o período de 2022 a 2040, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira entrevista Anivaldo de Miranda Pinto, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e membro titular do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH).
Ouça o podcast!
Temas como governança hídrica e as estratégias para minimizar os riscos de futuros colapsos fazem parte do programa. O episódio conta com áudios do canal do Youtube Engenharia 360, canção Riacho do Navio, de Luiz Gonzaga, TV BrasilGov, Jornal da Record News, Últimos Acontecimentos HOJE, Programa Travessia e TV Cultura.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
Fome mata mais que covid, aponta reportagem da RPD Online
Reportagem especial da revista mensal da FAP cita dados de estudo da Oxfam divulgado neste mês
A fome, no país e no restante do mundo, pode matar 11 pessoas a cada minuto, até o final deste ano, no planeta, caso nada seja feito, segundo relatório da organização internacional Oxfam, publicado na reportagem especial da revista mensal Política Democrática online de julho (33ª edição).
Veja a versão flip da 33ª edição da revista Política Democrática online (julho/2021)
Para exemplificar o drama, a reportagem mostra a vida de pessoas como a idosa Maria Amélia da Conceição de Fátima, de 72 anos, e sua família, que vivem entre catadores de lixo no Setor de Clubes Sul, na capital federal, e comumente se alimentam de restos e migalhas. A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no portal da entidade.
O Brasil está entre os focos emergentes da fome, ao lado da Índia e da África do Sul, conforme lembra a reportagem, baseada no estudo. A taxa de mortalidade de quem não tem o que comer é maior que a da Covid-19, que é de sete pessoas por minuto.
Desde o início da pandemia, as mortes por Covid-19, no país, ficaram em terceiro lugar no mundo, enquanto o percentual de brasileiros em extrema pobreza quase triplicou – de 4,5% para 12,8%, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A reportagem também cita dados da pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), segundo a qual, no final de 2020, mais da metade da população – 116 milhões de pessoas – enfrentava algum nível de insegurança alimentar, das quais quase 20 milhões passavam fome.
A publicação da FAP cita, ainda, o dado de que, no ano passado, 11% das famílias chefiadas por mulheres conviviam com a fome, enquanto mais de 10% das famílias negras enfrentavam o problema, em comparação com mais de 7% das famílias brancas.
Confira todos os autores da 33ª edição da revista Política Democrática Online
Na revista Política Democrática online de julho, os internautas também podem conferir entrevista exclusiva com a jurista Eliana Calmon. Também há artigos sobre políticas nacional e externa, economia, meio ambiente e cinema.
Além do diretor-geral da FAP, Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista.
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Toque de retirada
Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão da vulnerabilidade a que está exposta a condução da política econômica
Salta aos olhos a escalada de dificuldades que vêm sendo enfrentadas pela condução da política econômica nos últimos meses, em decorrência da perda de ascendência do governo sobre o Congresso. Basta ter em conta episódios recentes mais marcantes para discernir os contornos de um processo, cada vez mais claro, de avanço do Centrão sobre a condução da política econômica.
Não é que o governo tenha perdido o controle do Congresso para a oposição. Longe disso. O que se observa é algo bem distinto. Fragilizado como está, o governo perdeu ascendência sobre o bloco parlamentar que supostamente lhe dá apoio. Matérias de seu interesse acabam, sim, sendo aprovadas pelo Congresso. Mas sempre à moda do Centrão. O governo já não tem como impedir que sejam brutalmente desfiguradas.
É o que fica claro quando se tem em conta os episódios do orçamento secreto, da pilhagem da privatização da Eletrobrás e, agora, da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com amplo espaço para reedição do orçamento secreto, em 2022, e triplicação do financiamento público de partidos políticos nas eleições do ano que vem.
Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão dessa vulnerabilidade tão séria a que está claramente exposta a condução da política econômica. E, dessa perspectiva, é fácil perceber quão temerária foi a decisão do governo de enviar ao Congresso, justo agora, um projeto tão complexo de reforma da tributação direta no País.
Mesmo que se tratasse de projeto cuidadosamente concebido e bem articulado, sobre o qual o governo tivesse inabalável convicção, ainda teria sido decisão imprudente, tendo em conta o alto risco de que, nas atuais circunstâncias, as medidas propostas acabassem desfiguradas no Congresso. Tendo em vista, contudo, que não se trata em absoluto de um projeto bem concebido e que, sobre ele, nem mesmo o Ministério da Economia se mostra convicto, a decisão já não pode ser considerada meramente imprudente. Só pode ser percebida como deplorável temeridade.
Constatados os furos, as inconsistências e as desarticulações do projeto, o que agora se vê é o complexo sistema de tributação de renda pessoal, lucros e aplicações financeiras no País sendo drasticamente reconcebido pelo Centrão, ao sabor de uma pororoca de lobbies de todo tipo. No Congresso, brinca-se com dispositivos e parâmetros tributários com a mesma leveza com que uma criança encaixa peças de um jogo de armar, ao acaso, sem maiores preocupações com o que está sendo montado. Não é excesso de pessimismo temer que disso dificilmente sairá um sistema de tributação direta melhor do que o que hoje se tem.
Vendo-se agora relegado a mero coadjuvante na tramitação da reforma no Congresso, o ministro da Economia tem razões de sobra para estar alarmado com o desfecho que poderão ter as negociações no Legislativo quando, afinal, o projeto for votado em plenário, na Câmara e no Senado.
Tudo indica que o presidente, devidamente alertado, já compartilha dessa apreensão. Há poucos dias, Bolsonaro achou oportuno esclarecer que, a seu ver: “Houve um exagero por parte da Economia na reforma tributária, já está sendo acertado com o relator. Realmente, a Receita, no meu entender, como é muito conservadora, foi com muita sede ao pote”. E acrescentou: “Mesmo sendo projeto meu, se passar no Congresso e chegar para mim aumentando a carga tributária, eu veto” (O Globo e Estadão, 21/7).
A ameaça de veto é uma solução descabida. Mas ainda há tempo de evitar o pior. Não é a primeira vez que o governo constata que submeteu ao Congresso um projeto equivocado e impensado. Quando isso ocorre, a solução natural é a simples retirada do projeto. É inegável que há muito o que aprimorar na legislação de Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas. Mas, nas atuais circunstâncias, o que de melhor o governo poderia fazer é retirar o projeto do Congresso e deixar a reforma que faria sentido para momento mais oportuno. Se o Centrão consentir, é claro.
*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
Um Brasil sem futuro
Falta um ano para as eleições presidenciais, e só tem turbulência em volta. Mas, entre disparates golpistas, a Arena renascendo e os generais aloprados, temos outro problema grave. No longo prazo, talvez mais grave. Quem frequenta o circuito dos encontros com pré-candidatos, lê atento os jornais e conversa com políticos de todos os partidos logo percebe o tamanho. Quase nenhum dos principais líderes políticos vive no século XXI. Constroem suas ideologias, à direita ou à esquerda, sobre os alicerces de uma realidade que não mais existe. E isso quer dizer que, como está, não importa que grupo suceda a Bolsonaro. Governará o país sem um diagnóstico da transformação em curso.
Há exceções. Alguns deputados federais e mesmo senadores, um ou outro dirigente partidário, mesmo técnicos e acadêmicos que dão apoio às candidaturas. Mas são exceções e, quase sempre, gente com influência menor nos altos-comandos das legendas.
Isso não tem rigorosamente nada a ver com idade. Joe Biden é um político do tempo da Guerra Fria que já se candidatara à Presidência quando a internet apareceu, já concorrera duas vezes à Casa Branca quando se falou a sério de mudanças climáticas e, quase octogenário, redirecionou o Estado a toda no sentido da era em que vivemos.
Sua visão de EUA se traduz em dois pilares. Uma sociedade e uma economia que sejam digitais e verdes. As frentes para tocar esse projeto, no entanto, são muitas. Uma é dar infraestrutura ao país para que possa crescer nesse caminho. Isso quer dizer redes físicas de banda larga por toda parte. Também quer dizer subsídios, investimentos e incentivos para a conversão de antigos e criação de novos negócios. Mas também é um cuidado pesado com retreinamento de mão de obra. E, principalmente, a compreensão de que, se a operário basta o ensino médio, no século XXI um percentual maior da população precisa ter formação superior. Este é um século em que o PIB está relacionado ao número de cérebros bem-educados. País que não dá universidade a muita gente é país pobre.
Outra perna do trabalho é enfrentar os monopólios do Vale do Silício. Há motivos pontuais — a pandemia de desinformação, que abala democracias e faz morrer gente. Mas, no médio e longo prazos, é mais que isso. Com talentos e recursos financeiros concentrados em poucos grupos fortes demais, como é a natureza dos monopólios, a criação trava, o mercado congela, a inovação desaparece.
Operários em fábricas não voltarão mais. Toda a classe em cima da qual Karl Marx ergueu sua leitura de uma revolução futura deixará de existir. Afinal, “quarta era industrial” é metáfora, não descrição. A Era Industrial acabou. Assim como o tempo do combustível fóssil está terminando — sim, ele resistirá ainda um quê a mais, só que não muito. Bata na porta de uma petroleira, e a moça da recepção logo corrigirá: “Não, aqui somos uma empresa de energia”.
Isso não quer dizer que não exista mais necessidade de esquerda. O digital criou um tipo de precarização de serviços, com Ubers e Rappis, que precisa ser resolvido. Tampouco aponta para a extinção da direita — empresários precisam de mais apoio do que nunca para fazer a transição digital. É um processo complexo, difícil, inevitável — que, no Brasil, não está sendo feito em inúmeros setores. Isso torna o país ainda menos competitivo.
A conta da incompetência de todos os governos passados com educação chegou. Precisaremos resolver a educação pública de qualidade com urgência. Isso e um projeto econômico verde para a Amazônia são as prioridades do próximo Planalto. Só que formar daqui a 20 anos não bastará. Os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski vêm defendendo um programa de importação de cérebros. Estão certos, e é inevitável.
É o básico para qualquer governo pós-pesadelo.
Recibo de estelionato
A ida de Ciro Nogueira para a Casa Civil muda o desenho dos negócios em Brasília. Até aqui, o Centrão se limitava a fazer escambo: alugava apoio parlamentar e sacava sua parte em cargos e benesses. Agora o bloco vai trocar o balcão pela gerência da loja. Passará a mandar sem intermediários.
O chefão do PP se reaproximou do poder em junho de 2020, quando Jair Bolsonaro começou a sentir o cheiro do impeachment. Para socorrê-lo, Nogueira exigiu o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A autarquia cuida de temas que não costumam emocionar os políticos, como a aquisição de livros didáticos e a organização do transporte escolar. Seu segredo está no orçamento, que ultrapassa os R$ 50 bilhões anuais.
Em fevereiro deste ano, Bolsonaro ajudou outro pepista, Arthur Lira, a se eleger presidente da Câmara. A ascensão do deputado aumentou o poder de barganha do Centrão. O grupo capturou o Ministério da Cidadania, abocanhou a Secretaria de Governo e agora assume a Casa Civil, coração da máquina federal.
No presidencialismo brasileiro, o chefe da Casa Civil acumula poderes próximos aos de um premiê. Coordena os ministérios, comanda investimentos em infraestrutura e filtra o que sai no Diário Oficial. É o cargo dos sonhos para quem gosta de políticas públicas e para quem busca outros tipos de recompensa do poder.
Para acomodar Nogueira, o capitão chutou mais um general: Luiz Eduardo Ramos será rebaixado a secretário-geral da Presidência. O militar se disse “atropelado por um trem”, mas não demorou a recuperar os sentidos. Horas depois da demissão, sorria ao lado do chefe num estádio de futebol.
O novo ministro é um bolsonarista tardio. Há três anos e meio, descrevia o capitão como “um fascista”. Seu modelo de estadista era Lula, “o melhor presidente da história deste país”. A seu favor, ele não é o único a mudar repentinamente de opinião.
Na campanha, Bolsonaro prometeu combater a “velha política” e definiu o Centrão como “a nata do que há de pior no Brasil”. Ontem ele escancarou que o personagem vendido em 2018 era pura ficção. “Eu sou do Centrão”, disse. “Eu nasci de lá.” Ao autografar a nomeação de Nogueira, o presidente assinará mais um recibo de estelionato eleitoral.
O preço e a saúde da democracia brasileira
O Centrão carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar o dinheiro público
Quando o Congresso aprovou uma verba de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral, muitos, como eu, protestaram. É o preço da democracia, falou-se em defesa do assalto ao Tesouro. De fato, as eleições têm um preço para todos, sobretudo depois que se decidiu transitar do financiamento privado para o público. Precisava ser um preço tão alto?
A ideia na transição era a de que os gastos excessivos, as campanhas rocambolescas dariam lugar a um processo de debates, e com custos mais modestos. Reconheço que a expressão custos mais modestos tem um valor subjetivo. No entanto, outro argumento se impõe: já que são gastos públicos, devem ser orçados com transparência.
Não foi o que aconteceu. A transparência desejada deu lugar a uma opacidade calculada. O fundo eleitoral deveria ser votado em destaque separado.
Nessa hipótese, os defensores da proposta deveriam explicar o sentido daquela soma de R$ 5,7 milhões. Por que esta soma e não outra, que cálculos os levaram a concluir por um volume de recursos quase três vezes superior ao que foi votado no passado recente?
Adianta pouco pessoas que conhecem a complexidade e os mistérios da política dizerem pura e simplesmente: o volume é esse e pronto, um custo democrático. O que se espera é uma discussão transparente e realista sobre os custos eleitorais, até porque podem ser feitos ainda num contexto de pandemia. Caem as internações, mas a variante delta avança no Brasil e já é a segunda encontrada entre as novas contaminações.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumentou numa entrevista que os gastos eram apenas um quarto dos custos totais das eleições. Mais uma razão para nos inquietarmos: se isso é verdadeiro, as eleições no Brasil custarão R$ 24 bilhões. As de 2018 teriam custado R$ 21,8 bilhões e não estávamos devastados pela pandemia. Não estou acrescentado a esse custo os R$ 2 bilhões necessários para implantar o voto impresso, uma bandeira de Bolsonaro que já está desbotando na Câmara, embora tenha sua votação apenas adiada.
Há algum tempo os especialistas consideram as eleições brasileiras as mais caras do mundo. Em 2006, o brasilianista David Samuels comparou as eleições brasileiras e americanas: as nossas custaram entre US$ 3,5 bilhões e US$ 4,5 bilhões, ante US$ 3 bilhões nos EUA. Os cálculos de Samuels não incluem o chamado horário eleitoral gratuito, que tem esse nome para atenuar seu impacto nas contas, mas representa custo real para o País.
O ato de orçar as eleições brasileiras não envolve, pois, apenas uma parte do preço da democracia, mas também uma porção considerável de sua saúde, expressa em legitimidade.
Dominado pelo Centrão, o Congresso sente-se forte ante um presidente acossado por mais de uma centena de pedidos de impeachment. E carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar dinheiro público.
Esse movimento perdulário não se esgota no fundo eleitoral. O próprio Estado denunciou uma espécie de orçamento secreto, em que as emendas parlamentares são destinadas sem transparência.
Esse processo foi introduzido por meio de um artifício que intitularam “emendas do relator”. Só neste ano Arthur Lira deverá dispor de R$ 11 bilhões para destinar a deputados e partidos fiéis, dentro dessa rubrica.
O chamado preço da democracia brasileira está influenciando a sua saúde. Todos os ressentimentos que já existem sobre a atuação do Congresso acabam ganhando dimensão maior quando se acrescentam essas variáveis financeiras.
Por essas razões foi necessário protestar contra o fundo eleitoral. Bolsonaro não pode simplesmente vetá-lo. Será necessário buscar uma saída conciliatória, pois não podemos voltar subitamente ao financiamento privado.
Aliás, a situação de Bolsonaro é muito cômoda. Ele é candidato e seus gastos de campanha até o momento não são computados como tal. Eles são bancados pelo governo federal, que financia seus deslocamentos no Brasil para passear de motocicleta e fazer discursos eleitorais, às vezes disfarçados, às vezes não. Os custos da campanha já em curso não se esgotam aí. Seu passeio no Rio custou ao Estado R$ 645 mil na montagem do esquema de segurança. Em São Paulo, esse custo praticamente dobrou e foi a R$ 1,2 milhão.
Bolsonaro venceu as eleições em 2018 surfando a onda da luta contra a corrupção e o desprezo do sistema político pelas preocupações das pessoas comuns. Alguns analistas acham que Bolsonaro venceu por causa de um moralismo primário dos eleitores e de alguns formadores de opinião. Essa acusação de moralismo se volta agora contra quem protesta pelo alto custo do fundo eleitoral. No entanto, nosso protesto pode resultar em economia concreta para os cofres públicos, sem prejuízo da disputa eleitoral.
Esses R$ 5,7 milhões serão de alguma forma reduzidos.
A análise do moralismo é precária se não leva em conta o fato de que o sistema político continua de costas para a sociedade e prepara reformas ainda mais escabrosas que o valor do fundo eleitoral.
O grande perigo para a democracia acontece quando o povo se volta contra ela. É o aprendizado que o processo de redemocratização tem de fazer, para evitar que aventuras autoritárias se tornem viáveis de novo.
Acervo Capixaba exibe obra de Orlando Bomfim Netto
Entre as possibilidades de trabalho curricular a partir dos filmes podem ser exploradas a cultura popular, pesquisa etnográfica, patrimônio histórico, educação ambiental
O projeto “Acervo Capixaba – Orlando Bomfim Netto”, coordenado por Marcos Valério Guimarães, restaurou, digitalizou e difunde parte da obra de um dos mais importantes documentaristas brasileiros. Orlando Bomfim Netto foi o primeiro cineasta a registrar sistematicamente, a partir da década de 1970, aspectos da cultura do Espírito Santo em documentários que se tornaram peças importantes do patrimônio histórico e da cinematografia capixabas.
O projeto Acervo Capixaba digitalizou e restaurou as cópias de sete filmes, em 35mm e 16mm, produzindo novas cópias de exibição em formato digital, novas cópias de preservação do material escaneado em 4K e a reunidos diversos materiais relativos aos filmes, como fotografias, cartazes, críticas e reportagens publicadas à época.
Integram o projeto os filmes “Itaúnas, Desastre Ecológico” (1979, cor, 8′); “Tutti, Tutti, Buona Gente, propriamente buona” (1975, cor, 26′); “Mestre Pedro de Aurora, prá ficar menos custoso” (1978, cor, 10′); “Ticumbi – Canto para a liberdade” (1978, cor, 20′); “Augusto Ruschi Guainunbi” (1979, cor, 10′); “Dos Reis Magos aos Tupiniquim” (1985, cor, 10′), produzidos no Espírito Santo, e também a produção carioca “O Bondinho de Santa Tereza” (1977, cor, 28′).
O projeto “Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto” foi patrocinado pelo Fundo de Cultura do Estado do Espírito Santo (Funcultura). Acervo Capixaba é um selo da Pique-Bandeira Filmes para o relançamento de obras cinematográficas capixabas digitalizadas.
Produtora:
Pique-Bandeira Filmes
Idealização e Coordenação do Projeto:
Marcos Valério Guimarães
Produção Executiva:
Vitor Graize
Produção:
Igor Pontini, Vitor Graize
Digitalização e Remasterização:
Afinal Filmes
Fotos Divulgação:
Bianca Sperandio
Como contrapartida social da Lei Aldir Blanc, os filmes estão disponibilizados por meio de link gratuitamente
Acervo no link (playlist): https://www.youtube.com/playlist?list=PLPRi2drgWDaebzPTslRcWusrtC_qeqJnJ
VÍDEOS – ACERVO CAPIXABA ORLANDO BOMFIM NETTO
O Brasil e a AL 200 anos após a independência da Espanha e Portugal
A Mesa redonda online promovida pela APURAPERU, no último dia 10 de julho, culminou em um processo de discussão, que se iniciou nas duas mesas anteriores dos dias 26 de junho e 3 de julho passado e que possibilitou um panorama da realidade histórica e atual da América Latina, particularmente do Peru, México, Panamá e Brasil.
O que avançamos como República, nos últimos 200 anos, nos diversos países do continente depois da libertação colonial?
Quais os desafios históricos e atuais dos países latino-americanos frente à pandemia e aos cenários possíveis pós pandemia?
Foram estas as questões discutidas e avaliadas nessas mesas redondas acima mencionadas e que estão disponíveis em https://www.facebook.com/apuraperu/videos.
O texto a seguir apresentado na última mesa redonda do dia 10 de julho passado destaca a realidade brasileira em perspectiva, considerando os desafios a serem enfrentados pelo Brasil no caminho da sustentabilidade política, econômica, social e ambiental.
Os desafios da sustentabilidade
A ampliação da consciência ambiental aos níveis global, continental e nacional é uma necessidade para a construção de uma nova perspectiva de sociedade que se quer sustentável. Os problemas econômicos, sociais e ambientais globais, continentais e nacionais continuam como desafios políticos a serem superados para a construção de uma perspectiva sustentável para a América Latina e o Brasil.
A busca de alternativas para superar esta realidade coloca a necessidade de construção de uma nova agenda para as questões de sustentabilidade mundial, continental e nacional, há muito discutida nos fóruns globais (AGENDA 21, ONU, ECO 92).
A construção política, econômica, social e ambiental de uma sociedade futura sustentável é um desafio permanente de toda a sociedade latino-americana. Alguns valores devem sustentar esta nova construção societária, entre outros a compreensão da democracia como um valor permanentecriador das condições de governança global, continental e nacional; a necessidade da paz mundial e do diálogo entre os povos, particularmente latino-americanos, como o caminho de superação desta sociedade histórica, construída desde a colonização e atualmente insustentável.
Nessa perspectiva, a equidade na distribuição das riquezas produzidas por quem trabalha preservando os valores ambientais, culturais e espirituais das sociedades latino-americanas é o caminho a ser perseguido com a participação ativa da cidadania, dos governos nacionais, das organizações, a exemplo da ONU, OEA e outras multilaterais que funcionariam como alicerces dessas políticas públicas que se desejam e podem ser discutidas e construídas a nível nacional, latino-americano e global.
A realidade brasileira
A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, de 1º de maio de 1500, quando aqui chegaram os colonizadores portugueses, é o primeiro manifesto das potencialidades e riquezas naturais brasileiras:
“Nela, até agora, não podemos saber o que faz ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem como vimos. Mas, uma terra em si é muito boa de ares, fria e temperada, como você. Águas são muitas e infindas. De tal forma e graciosa que, querendo aproveitar, dê-lhe uma mensagem para o bem das Águas que ela temia”.
Tal processo de colonização e a realidade brasileira atual impõem a necessidade de novas relações entre a sociedade e a natureza no Brasil.
Portanto, o Brasil, com seus conflitos e contradições, é parte do processo de desenvolvimento do capitalismo na América Latina e no mundo inteiro, fruto das relações dos diversos atores que determinam o funcionamento da sociedade brasileira atual, assim como a construção de novas relações a serem estabelecidas com a América Latina e a nível mundial.
Desde as expedições colonizadoras (a primeira chegou ao Brasil em 1530, comandada por Martim Afonso de Souza), a economia brasileira continua sendo exportadora de recursos naturais para atender ao mercado mundial.
Os desafios históricos continuam atuais na perspectiva de construção da sustentabilidade brasileira: a preservação do território, das riquezas naturais, em particular da biodiversidade, elemento estratégico para o futuro do país e da América Latina, principalmente em relação à floresta amazônica, mata atlântica, cerrados, caatinga, água, riqueza mineral e o aproveitamento do potencial de energia solar e eólica.
A questão da sustentabilidade no Brasil é parte integrante de nosso processo histórico, cultural, econômico e social. Sua síntese está refletida na própria Constituição brasileira, aprovada em 1988, que possui um capítulo (o VI) dedicado ao Meio Ambiente que, em seu artigo 225, dispõe:
“Toda pessoa tem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem comum das pessoas e essencial para uma boa qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à comunidade o dever da sua defesa e preservação para as gerações presentes e futuras”.
Esta visão de totalidade, de compreender a construção das políticas públicas como relação entre o Estado e a Sociedade em geral está incorporada no Capítulo VI da atual Carta Magna, no que se refere à política ambiental, superando dialeticamente as visões anteriores de tratamento da questão ambiental no Brasil.
As políticas fundamentais para a construção da sustentabilidade no Brasil devem ser integradas e pactuadas entre os diferentes atores políticos, econômicos e sociais, no âmbito do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil brasileiros.
O desafio da sustentabilidade no Brasil é a necessidade de construção de uma sociedade com mais democracia, ampliando os espaços de participação e de decisão da cidadania, com uma economia preocupada com a inclusão social e a preservação da biodiversidade, realizando reformas políticas e econômicas necessárias e ainda não realizadas pela sociedade brasileira.
No Brasil, parte considerável da população não tem seus direitos constitucionais atendidos como educação, saúde, moradia, segurança pública e trabalho, fundamentais para a vida. A perspectiva sustentável deve ser trabalhada com base na biodiversidade, território, riquezas minerais, água, energia solar e eólica disponíveis no território brasileiro.
Os limites impostos à economia baseada no carbono colocam o Brasil em situação de destaque em relação à sua matriz energética, com vantagens comparativas na perspectiva de uma nova economia, de baixo carbono, sustentável.
Nos últimos 25 anos de redemocratização da sociedade, o Brasil se desenvolveu em termos de inclusão social e redução das desigualdades. Mas, ainda somos uma das sociedades mais desiguais do mundo, infelizmente, uma das primeiras em concentração de riqueza em todo o planeta. A parcela da população, inserida no mercado nos últimos anos, não foi incorporada à cidadania efetiva, não alcançando os direitos expressos na Constituição brasileira, a saber: trabalho, moradia, saúde, educação e mobilidade.
A construção da sustentabilidade no Brasil implica em uma mudança radical na nossa matriz de transportes. A transição para uma nova matriz de transporte, com prioridade para a ferrovia e a hidrovia substituindo o rodoviário, para o coletivo substituindo o individual, são desafios que continuam atuais em nossa sociedade.
Em relação à questão urbana, os problemas sociais se acumulam nessas áreas de grande concentração populacional. As cidades concentram população e desigualdades. A reforma urbana se coloca como uma das questões estratégicas dessa perspectiva que se pretende sustentável para o Brasil.
A propriedade da terra, a reorganização do espaço urbano, o sistema de transportes, segurança, habitação, saúde, educação e a reestruturação dos serviços públicos são questões fundamentais a serem consideradas. O fortalecimento das políticas municipais e regionais, por meio do incentivo à participação do cidadão na formulação das políticas públicas e na gestão, será decisivo neste caminho rumo à sustentabilidade em nosso país.
Neste cenário, a centralidade de uma política pública de educação, ciência, tecnologia e inovação se coloca no caminho de uma maior integração com a indústria, agricultura e pecuária para aumentar a produtividade e enfrentar as desigualdades sociais e os desafios econômicos e ambientais da sociedade brasileira.
É importante ainda avaliar como a questão da sustentabilidade está sendo formulada e incorporada nas políticas públicas no Brasil pelos diferentes atores políticos e sociais, seus respectivos instrumentos e condições de implementação, nível de transversalidade e participação efetiva da sociedade. Bem como a continuidade e aprofundamento das políticas de combate às desigualdades de gênero e etnia, como estruturantes nesta perspectiva sustentável a ser construída no Brasil.
Uma reforma política continua na ordem do dia para a ampliação e consolidação da democracia brasileira. Condicionar a reforma política à necessidade de maior participação da sociedade civil e da cidadania como instrumentos de superação da difícil realidade política, econômica e social vivida hoje no Brasil superando o Governo Bolsonaro que demonstrou e demonstra a sua incapacidade de governar o País. Aumentam as crises econômica, social e ambiental brasileiras, em plena pandemia.
Por fim, compreender e trabalhar as questões da sustentabilidade como parte da história da humanidade em suas relações com a natureza, permitindo transcender os problemas da sociedade atual, no Brasil e na América Latina, buscando soluções e, sobretudo, que as diferenças e os reais interesses entre os diversos atores sociais em questão sejam identificados, criando as bases de novas relações políticas, econômicas e sociais para a sociedade futura que se deseja sustentável.
Seremos capazes?
*Professor Doutor da Universidade Federal da Bahia-Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade (geogurgel1@gmail.com)
A invisibilidade do racismo nos dados da Covid-19
“O não preenchimento do campo “raça/cor da pele” relacionado às internações afeta gravemente, por exemplo, a comparação da letalidade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas”, escrevem Edna Maria de Araújo, docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Ana Paula Nunes, professora de epidemiologia e bioestatística da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e Vitor Nisida, urbanista e pesquisador do Instituto Pólis, em artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, 20-07-2021 e reproduzido por Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, 20-07-2021.
Confira o artigo:
As respostas às desigualdades em saúde só podem ser adequadas quando a produção de dados é completa e dialoga com a realidade que visam transformar. Nesse sentido, não é possível planejar intervenções visando diminuir as iniquidades raciais sem conhecer sua verdadeira extensão.
Para isso, é fundamental organizar informações oficiais desagregadas por raça/cor da pele. É de interesse público, portanto, conhecer e reivindicar a qualidade dos dados sobre saúde quanto ao preenchimento do campo “raça/cor da pele” nos sistemas de informação oficiais.
Com o intuito de elaborar um diagnóstico sobre o impacto da pandemia de Covid-19 nas populações em situação de vulnerabilidade, sobretudo na população negra, o GT Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e o Instituto Pólis vêm investigando a qualidade dessas informações nesses sistemas.
Dados do DataSUS relacionados à Covid registrados no SIVEP Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica), no SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), no SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações) e no eSUS Notifica (que monitora casos suspeitos de Covid19) foram selecionados e sistematizados para analisar a qualidade do preenchimento do campo “raça/cor da pele” ao longo da pandemia. Preocupa que alguns sistemas ainda não apresentem o preenchimento desse campo em nível satisfatório
O SIVEP Gripe, que trata das internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), incluindo a Covid, apresenta uma notificação do quesito “raça/cor da pele” em 80% das internações no Brasil. O preenchimento ideal seria de, ao menos, 90%.
Além disso, a variação entre as Unidades da Federação é grande e prejudica algumas análises. Enquanto SC, RR e TO preenchem acima de 95%, CE e RJ notificaram a “raça/cor da pele” em apenas 67% das internações. No DF, o dado foi preenchido somente em 53% dos casos.
O SIM, por outro lado, se destaca por apresentar taxas de notificação adequadas. Quase 97% dos óbitos nacionais por Covid registrados no sistema tiveram o campo raça/cor da pele preenchido. AL e ES são exceções, com preenchimento em apenas 77% e 84% dos óbitos, respectivamente.
O SI-PNI, que trata dos dados de vacinação contra Covid, tem uma taxa nacional de preenchimento do campo “raça/cor da pele” de 74%, percentual muito aquém do necessário para garantir um monitoramento apropriado do processo de imunização.
Além de insuficiente, o padrão de registro varia entre as unidades: TO tem o melhor preenchimento do campo, com 90%, e o DF tem o pior, com apenas 56,5%. A diferença não se resume às Unidades da Federação.
Um estudo feito no Município de São Paulo mostra que a notificação deste dado também é heterogênea na cidade. Bairros mais ricos e com população proporcionalmente mais branca registram o dado “raça/cor da pele” de apenas 7% da sua população vacinada.
É como se “branca” não fosse “raça/cor da pele”, já que em outras áreas da cidade, proporcionalmente mais negras, a mesma taxa de preenchimento chega a quase 81%.
Quanto às informações de casos suspeitos de Covid, cabe destacar que o e-SUS Notifica não disponibiliza o dado “raça/cor da pele” no DataSUS, embora este campo seja de preenchimento obrigatório na ficha de notificação.
Por um lado, é importante reconhecer que os dados de mortalidade apresentam notificação adequada, quanto ao campo “raça/cor da pele” –só dois estados registraram um preenchimento abaixo do ideal. Entretanto, em muitas Unidades da Federação, o preenchimento dos bancos sobre internações e sobre a vacinação esteve muito aquém do desejável.
O não preenchimento do campo “raça/cor da pele” relacionado às internações afeta gravemente, por exemplo, a comparação da letalidade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas. A situação é mais preocupante quanto aos dados sobre infecção de Covid, já que o preenchimento deste campo nos registros de casos suspeitos não pode ser analisado, dada a sua completa ausência nas bases nacionais de acesso público.
Apesar do quesito “raça/cor da pele” ser obrigatório e considerado como indicativo de qualidade nos sistemas de informação do SUS desde 2017, por meio de portaria do Ministério da Saúde e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), portanto, quando o preenchimento de fato deste campo é analisado nos sistemas de informação oficiais, os números mostram que ainda é necessário avançar muito para que cheguemos ao adequado monitoramento das iniquidades raciais de saúde, dentro e fora da pandemia.
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Carta Capital: ‘Quartinho de empregada é indicador de que a escravidão continua’, diz Laurentino
Para o autor da trilogia ‘Escravidão’, o Brasil não enfrentou e nem resolveu o legado desse período
Alissom Matos, Carta Capital
Às vésperas do lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão, Laurentino Gomes vê o Brasil distante de ser uma democracia racial. “O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos”, diz. “Nunca chegamos e estamos muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos.”
O livro concentra-se no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no País. Gomes classifica o período como o ápice do comércio de seres humanos no continente americano. “Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do País.”
O autor faz paralelos entre esse período e o Brasil contemporâneo. “Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.” No lançamento do primeiro volume, em 2019, ganhava os jornais o caso do garoto chicoteado por seguranças de um supermercado da periferia paulistana. A finalização deste segundo ocorreu em meio à morte da jovem Kathlen Romeu, grávida, durante uma operação policial no Rio.
Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes.
Em conversa com CartaCapital, Gomes defende que o Brasil passe agora por essa “segunda abolição “. “O famoso quartinho de empregada é um indicador de que a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciária.
A pedido do autor, a entrevista foi feita por e-mail. Confira os destaques a seguir.
Carta Capital: Da herança escravocrata, o que ficou de mais trágico para o Brasil?
LG: A violência e os abusos decorrentes do preconceito racial se repetem com frequência assustadora. Quando lancei o primeiro volume da trilogia, em setembro de 2019, por exemplo, o noticiário era dominado por um episódio grotesco, em que um garoto negro acusado de furtar uma barra de chocolate tinha sido surrado com chicote nas dependências de um supermercado.
Chicotear pessoas negras foi uma das grandes especialidades do Brasil escravista ao longo de mais de 350 anos. Havia manuais que detalhavam como essa punição deveria ser aplicada, de preferência em público, para servir de exemplo aos demais cativos, e em doses bem medidas, para não incapacitar o escravo para o trabalho.
Agora, passados dois anos, no lançamento do segundo volume, outro escândalo estava na pauta dos brasileiros: a história de uma mulher jovem, designer e modelo, grávida de quatro meses, morta por uma bala “perdida”, dispara a esmo em um confronto entre a política e o crime organizada na guerra civil em andamento no Rio de Janeiro. Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.
Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista do que uma concessão
O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes. Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos.
Estatisticamente, a pobreza no Brasil é sinônimo de negritude. No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças.
CC: Você disse, certa vez, que a escravidão é uma tragédia ainda em andamento.
LG: A escravidão acabou oficialmente no Brasil com a Lei Áurea, mas os seus efeitos persistem ainda hoje. Portanto, está longe de ser apenas um assunto museu ou livro de história, algo congelado e acabado no passado. É uma realidade presente assustadora no Brasil deste início de século XXI.
Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez.
A segunda abolição preconizada por Nabuco, Rebouças e Gama é um dos desafios a ser enfrentado por esta e pelas próximas gerações de brasileiros. O famoso quartinho de empregada é um indicador de a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas, que inclui o preconceito racial e regime de trabalho que, em muitos aspectos, se assemelham ao das antigas senzalas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciárias em muito se assemelham hoje aos porões dos navios negreiros de antigamente.
CC: A escravidão ajuda a explicar a desigualdade regional brasileira?
LG: A escravidão explica quase todas as desigualdades brasileiras. A prosperidade das regiões sul e sudeste foi construída, em grande parte, pela chegada de imigrantes estrangeiros, europeus e católicos em sua maioria, a partir da segunda metade do século XIX. Era parte do projeto de branqueamento da população discutido e implementado durante o Segundo Reinado. Na época, se dizia que o sangue africano havia “corrompido” a índole brasileira e que seria necessário oxigenar a demografia nacional pelo estímulo à imigração europeia, branca e católica. O governo subsidiava passagens, alojamentos e outros benefícios para os recém-chegados. Meus bisavós italianos chegaram ao Brasil, em 1895, nessa condição.
Em outras regiões do Brasil, como o Norte e o Nordeste, a imigração foi inexpressiva. Salvador é hoje a maior cidade negra do mundo fora da África. Ali, as desigualdades são assustadoras. Ao olhar o passado, conseguimos ter uma compreensão melhor do presente. Isso inclui, além das desigualdades sociais e regionais, a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influência, o contrabando e a sonegação de impostos, o toma-lá-dá-cá que tanto caracteriza as relações de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. Tudo isso era muito forte já na época do Brasil colonial e escravista. Por isso, decidi fazer um capítulo à parte sobre esse tema.
O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide. Seu funcionamento dependia de suborno, extorsão, malversação dos recursos públicos, contrabando, sonegação de impostos, clientelismo e nepotismo, entre outras contravenções. Como explico na abertura desse capítulo, obviamente havia gente honesta no Brasil colonial. Mas o exemplo que chegava de cima não contribuía para fixar essa imagem. Dois importantes governadores de Minas Gerais na fase inicial da corrida do ouro e dos diamantes voltaram para Lisboa muito mais ricos do que permitiam seus rendimentos. As artimanhas dos traficantes de escravos para burlar o fisco e as leis eram inúmeras e uma mais criativa do que a outra. O desvio de ouro, pedras preciosas e outras riquezas dominavam boa parte do comércio colonial.
CC: O Brasil foi tratado, por muito tempo, como uma “democracia racial “. Nós já estivemos perto disso?
LG: Nunca chegamos e estamos ainda muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos. Incapaz de enfrentar o legado da escravidão, o Brasil sempre procurou disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos. A escravidão é, por natureza, um processo violento, repleto de dor e sofrimento, uma experiência que se perpetua ainda hoje na forma de racismo, pobreza e desigualdade social. A vida no cativeiro no Brasil foi tão cruel e violenta como em qualquer outro território escravista da América. A quebra da identidade e dos direitos dos escravizados era toda baseada na violência. Na África e na chegada às Américas, as pessoas eram capturadas, estocadas, marcadas a ferro quente e leiloadas como se fossem mercadorias.
Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os escravizados não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante
Sua nova existência dependeria por completo do poder do seu dono. O simbolismo dessa nova identidade estaria nos rituais que em geral acompanhavam os processos de escravização, como marcas feitas a ferro quente no corpo do cativo, o uso de colares e pulseiras metálicas indicando quem eram seus donos, o batismo em nova religião, o aprendizado de uma nova língua e de uma nova maneira de se vestir e se comportar e, por fim, a atribuição de um novo nome.
Nas ilhas do Caribe, os ingleses diziam que esse era o momento de “temperar” [ seasoning , em inglês] o cativo, ou seja, mostrar a ele quem, de fato, mandava, quem era o dono e senhor do seu destino. Isso envolvia uma série de torturas, físicas e psicológicas, até que o escravo se “colocasse em seu lugar” – ou seja, o mesmo ocupado por animais domésticos e de trabalho. Segundo o padre jesuíta Manuel Ribeiro da Rocha, que foi missionário na Bahia em meados do século 18, durante essa etapa, muitos senhores de engenho do Recôncavo Baiano tinham o hábito deliberado de surrar os cativos. Era a primeira providência que tomavam depois da compra dos africanos.
CC: Há quem atribua essa ideia a obras como “Casa Grande & Senzala “, que contribuiu para a formação intelectual de muitas gerações.
LG: Gilberto Freyre ajudou a forjar a ideia de uma escravidão patriarcal no Brasil, na qual o negro aparece como alguém passivo e apático, bem adaptado ao mundo dos brancos e vivendo sob as ordens da casa senhorial, incapaz de reagir, protestar ou se rebelar. A tão falada democracia racial seria resultado desse sistema peculiar do escravismo brasileiro. Essa visão, felizmente, está superada. Novos estudos apontam os escravos como agentes de seu próprio destino, negociando espaços dentro da sociedade escravista, organizando irmandades religiosas, formando um sistema complexo de apadrinhamento, parentesco e alianças que muitas vezes incluíam participar de milícias ou bandos armados para defender os interesses do senhor contra os de um vizinho ou fazendeiro rival.
O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide
Pequenas faltas, fugas rápidas, corpo mole no trabalho, malfeito ou inacabado, fingir não dominar a língua ou as ordens, eram todas formas de resistência que não necessariamente incluíam o enfrentamento direto, como observou a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado. Os escravos lutavam por coisas concretas, como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos. O que nem sempre implicava em fugir, se rebelar ou pegar em armas. Ainda assim, eram atos de resistência.
CC: A solução para o País se tornar, de fato, uma democracia racial passa pelo quê?
LG: A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. O Brasil, maior território escravista do hemisfério ocidental até meados do século XIX, nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. É uma prova do processo de apagamento da memória africana.
Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. O Brasil abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Abandonou também a própria memória da escravidão. Temos de enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrente do racismo no Brasil. Também por isso eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes.
CC: No primeiro livro, o senhor compara a escravidão no Brasil e nos EUA e diz que aqui se alforriava mais e a expectativa de vida dos escravos era menor. Por quê?
LG: Alguns fenômenos diferenciam o escravismo brasileiro. Um deles diz respeito ao nascimento de uma escravidão urbana, de serviços, de características muito diferentes daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar que ainda predominavam na região nordeste, nas ilhas do Caribe ou no sul dos Estados Unidos.
A escravidão urbana deu maior mobilidade aos escravos e gerou uma nova cultura afro-brasileira com profundas influências em todos os aspectos da vida colonial, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos. O trabalho escravo foi responsável pelo surgimento de dezenas de novas vilas e cidades no interior do Brasil. Arquitetos, mestres de obra, pintores, escultores e compositores negros ou mestiços, escravos e libertos, caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, construíram palácios e igrejas barrocas que ainda hoje deslumbram turistas e estudiosos do mundo inteiro em visita às cidades históricas mineiras.
Outro fenômeno característico da escravidão brasileira foram processos de alforria. Em Minas Gerais, o aumento da população negra e mestiça livre foi particularmente acelerado. A alta taxa de alforria é um traço que diferenciou o escravismo brasileiro de todos os demais no continente americano. Havia mais possibilidades de um escravo alcançar a liberdade no Brasil do que no sul dos Estados Unidos ou nas colônias europeias do Caribe.
Essas diferenças levaram muitos estudiosos a defender a ideia de uma escravidão mais branda, paternalista e relaxada no Brasil, que, por sua vez, teria resultado em um País com menos barreiras raciais, particularmente quando comparado aos Estados Unidos. É uma visão equivocada. Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência como em qualquer outro território escravista. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista dos escravos do que uma concessão dos escravizadores.
Os documentos revelam que o sistema sempre cobrava um alto preço pela liberdade. Para comprá-la, literalmente a dinheiro, era necessário trabalhar muitas horas para acumular poupança, contar com a solidariedade de padrinhos, parentes e amigos ou de instituições de apoio mútuo, como as irmandades religiosas. Às vezes, o valor cobrado pela alforria era muito superior ao que os donos tinham pago pelos cativos. Entre as condições impostas, estava continuar a prestar serviços no cativeiro enquanto o senhor ou a senhora fosse vivo.
CC: No segundo livro, o senhor se concentra entre 1700 e 1800, auge do tráfico negreiro no Atlântico. Por quê?
LG: O século XVIII representa o auge da escravidão e do comércio de seres humanos no continente americano, em particular no Brasil. Num intervalo de apenas cem anos, cerca de seis milhões de homens e mulheres ficaram arrancados de suas raízes africanas, marcados a ferro quente e transportados para o Novo Mundo acorrentados no porão dos navios negreiros. O Brasil sozinho recebeu dois milhões, um terço do total. O motor do escravismo nesse século foi a descoberta de ouro e diamantes no Brasil e a disseminação, em outras regiões da América, das lavouras de monocultura, como a do açúcar, do tabaco, do arroz e do algodão, todos de uso intensivo de mão-de-obra cativa.
Por volta de 1750, negros escravizados eram vistos numa sucessão ininterrupta de colônias europeias que se desdobravam do Canadá até o sul da Argentina e do Chile atuais. A desproporção entre brancos e negros era enorme. Na região do Caribe, ocupada por franceses, ingleses, holandeses, espanhóis e dinamarqueses, os negros constituíam mais de 90% da população. Naquela época, Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante.
Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais, especialmente nos três principais portos de entrada dos navios negreiros – Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes.
Ao término desse metódico ritual, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo e o vigor físico dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário. O cultivo de grandes lavouras e a busca por novas riquezas no Brasil e no restante da América produziu uma inflação nos preços dos africanos escravizados. A procura por mão-de-obra cativa disparou. Nada menos do que 85% das 35.000 viagens de navios negreiros para a América documentadas pelo banco de dados slavegoyages.org aconteceram depois de 1.700.
Na África, o impacto do tráfico negreiro foi enorme. A demanda cada vez maior por cativos e os preços crescentes pagos por eles desorganizou a economia do continente. Antigas atividades produtivas, como tecelagem, metalurgia, agricultura e pecuária, foram deixadas de lado sob a pressão do comércio escravista. Em lugar delas, instaurou-se um aumento crescente nas taxas de violência. Aliada aos traficantes, uma nova elite militar africana surgiu à frente de Estados predatórios que, apoiados com armas e recursos europeus, nasceram e se firmaram com o propósito de lucrar com a guerra contra seus vizinhos, vendidos como prisioneiros para capitães de navios negreiros.
CC: Qual Brasil o leitor encontrará neste segundo volume?
LG: Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Comprar e vender gente era um fato trivial da vida cotidiana, praticado por todos os brasileiros, sem questionamentos. Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos. Pessoas cativas almejavam a alforria, o que nem sempre era sinônimo de abolicionismo. Uma vez conquistada a liberdade legal, inúmeros ex-escravos se tornaram também donos de escravos. A banalidade da escravidão me levou a fazer a introdução do livro descrevendo um objeto hoje existente no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte. É uma balança de pesar de escravos, usada para definir o valor de seres humanos antes de leilões de praça pública, da mesma forma como, na época, se usavam balanças para pesar bois, porcos, galinhos, queijos, sacos de farinha de trigo, de feijão e de arroz.
Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. Como explico na abertura de um dos capítulos desse volume da trilogia, os traços estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e costumes; na luta do dia-a-dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem e na arquitetura, cifradas na forma de símbolos e desenhos gravados nas paredes e fachadas das casas e casarões, nos altares e pinturas das igrejas, nos terreiros de umbanda e candomblé.
Começaram ou se consolidaram no século XVIII alguns fenômenos que marcariam profundamente a face do escravismo brasileiro. A escravidão urbana, de serviços, diferente daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar na região Nordeste, deu maior mobilidade aos cativos, acelerou os processos de alforria, ofereceu oportunidades às mulheres e gerou uma nova cultura em que hábitos de origem africana se misturaram a outros, de raiz europeia ou indígena. Isso incluiu a disseminação de festas, danças, rituais, irmandades e práticas religiosas que ainda hoje estão presentes no Brasil.
CC: De tudo apurado, o que mais te impactou?
LC: Eu me surpreendi muito ao constatar o quanto as contribuições africanas foram cruciais para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais no final do século XVII. Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está numa passagem do livro Cultura e Opulência do Brasil pelas suas drogas e minas, do padre jesuíta André João Antonil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século XVIII. Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da história do Brasil.
O tráfico negreiro era menos aleatório e irracional do que se imagina. Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os africanos escravizados que chegavam à América não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante, selvagem, bárbara, despreparada para os desafios impostos pelas diferentes atividades econômicas desenvolvidas pelos europeus no Novo Mundo. Novos estudos têm demonstrado o oposto disso. Os africanos escravizados não eram apenas commodities , mercadorias como outras quaisquer, cujo valor e preço dependessem somente do vigor físico ou da força dos músculos definidos pelo sexo, pela idade e pelas condições de saúde. Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, os navios negreiros transportavam em seus porões conhecimentos e habilidades tecnológicas da África que seriam cruciais na ocupação europeia do continente americano. Uma dessas tecnologias era justamente a mineração de ouro e diamantes em Minas Gerais.
Outra surpresa durante as pesquisas está relacionada ao papel das mulheres no Brasil colonial. Mulheres negras foram protagonistas de inúmeras histórias de resiliência e superação que mudaram a paisagem escravista brasileira. Nessa condição agiram ativamente não apenas para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, mas também para transformar a sociedade em que viviam. Ocuparam cargos importantes na direção de irmandades religiosas, fundaram terreiros de candomblé, se elegeram “rainhas” de comunidade negras, lideraram quilombos, administraram fazendas, participaram da mineração de ouro e diamante. O estudo do papel da mulher no Brasil escravista é um dos temas mais fascinantes na disciplina de história. As mulheres desempenharam um papel fundamental na construção da sociedade negra e mestiça do Brasil, embora isso nem sempre seja devidamente reconhecido nos livros didáticos.
CC: E o terceiro volume, quando sai?
LG: O terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e ao seu legado atualmente. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrade e Silva.
O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de Treze de Maio de 1888. Mas não enfrentou nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século XIX. Há um projeto de Brasil que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.