Day: maio 14, 2021
Fernando Gabeira: Anatomia da política de negação
Pode ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa visão do problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não aconteça, já é possível, pelo menos, escrever o argumento desse filme, abstraindo os lances e peripécias de um roteiro.
Na base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro.
Bolsonaro não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.
Sua tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para fundamentá-la era preciso buscar algo aparentemente científico. A tese da imunização de rebanho foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam de um modo ou de outro, pensava Bolsonaro, então que se contaminassem logo para voltarmos à normalidade.
Ele abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam pela hidroxicloroquina
Essa negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como apenas uma “gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19 não tinha importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas declarações mais claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar dinheiro com remédio a comprar vacinas.
Mais tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a Coronavac, e terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que usam a técnica de mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar jacaré, ou ver mulher de barba ou homem falando fino, tome a vacina.
Ao longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha sua frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.
Daí o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por que evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar essas opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de normalidade, é melhor todos se contaminarem rapidamente.
Olhando em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria da contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se contaminaram até abril.
A história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a fazer tudo para conquistar “essa liberdade”.
São duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se aglomerem, usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao trabalho, o fluxo pleno da economia.
Quando for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos Estados Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por uma essas decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria possível os especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter sido evitadas com as escolhas corretas.
Portanto, um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que articule esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário quantificar as suas consequências.
Nesse momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles que o acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de responder apenas por uma parte delas.
Quando a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil, segundo uma previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil pessoas. Quantas podem ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a carta e decapitar o mensageiro?
Ainda faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá em ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma represália chinesa às declarações de Bolsonaro?
A Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal, dependemos dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia dificilmente virá alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio Instituto Serum está sob forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de 1,5 bilhão de doses com a Europa. Vai estar sobrecarregada.
Nesse contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser chamada de extermínio de rebanho.
Isso coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os dados e determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência, a busca de algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho transcorre. E isso se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece ter sido, a batalha da hidroxicloroquina.
JORNALISTA
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anatomia-da-politica-de-negacao,70003714359
Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento do Brasil
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O ex-senador Cristovam Buarque afirma que as políticas econômicas do Brasil foram marcadas pelo que ele chama de “lacunas”, como a incapacidade de perceber que a pobreza, os limites ecológicos, o planejamento de curto prazo e a falta da “educação de base como vetor do progresso” entravam o desenvolvimento do país.
Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e ex-governador do Distrito Federal (DF), Cristovam diz, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que “o país trata a pobreza como assunto meramente social, uma questão de consciência ética para erradicá-la”.
Confira o vídeo!
https://www.facebook.com/fundacaoastrojildofap/videos/472230330529939/
“Não percebemos que o quadro de pobreza – pessoas sem saúde, sem saneamento, sem comida, sem educação – entrava no desenvolvimento. Tratamos de pobreza como se ela fosse solucionada pelo crescimento econômico, como agora estamos vendo que o fato de não termos superado a pobreza entrava em nosso desenvolvimento”, analisa.
Cristovam vai participar do primeiro debate da série de eventos on-line em pré-comemoração ao bicentenário da Independência, que será realizado, na sexta-feira (14/5), a partir das 16 horas, pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Folha da Manhã. Veja mais detalhes do webinar ao final desta reportagem.
Desenvolvimento sustentável
O ex-senador ressalta, ainda, que os limites ecológicos prejudicam o desenvolvimento nacional. Ele lembra que o Brasil iniciou o Proálcool, em 1975, em uma década na qual “deveria ter se pensado em desenvolvimento sustentável”. “Mas nossos economistas não pensaram nisso”, critica.
Depois de 17 anos, o país sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92, mas, segundo o ex-governador do DF, não aproveitou a chance de se tornar o líder do desenvolvimento sustentável. “Agora a gente está percebendo que vai ter que mudar a orientação do processo produtivo”, alerta.
“Os combustíveis fósseis vão ser proibidos em questão de tempo. O Brasil poderia ser pioneiro em automóveis elétricos, mas não trabalhamos nisso. Foi uma lacuna não ter percebido o desenvolvimento”, ressalta.
Na avaliação dele, a maior lacuna contrária ao desenvolvimento é a falta de percepção sobre “a educação de base como vetor do progresso”. “Tratamos educação como serviço social, assim como saneamento, coleta de lixo, habitação. Educação é mais do que um serviço, é um vetor. Por isso, uma criança fora da escola é vista como problema da família e dela própria, não do país’, lamenta.
Além disso, de acordo com Cristovam, a falta de planejamento a médio e longo prazos prejudicam o desenvolvimento do país. “Nunca se pensou na perspectiva de 30 a 50 anos, o que iria acontecer no futuro. Chineses e sul-coreanos pensam assim, e deram certo”, compara ele.
“Mordomias, desperdícios”
Ele também chama a atenção para o “esgotamento do estado” como entrave para o desenvolvimento. “Há esgotamento financeiro, já que não dá mais pra aumentar imposto, e moral, como a corrupção entranhada. Os planos de desenvolvimento, como eram chamados, cederam a mordomias, desperdícios, ineficiências, tudo isso foi tolerado e continua”, assevera.
O professor emérito da UnB também avalia que economistas foram responsáveis por dar legitimidade aos populistas, esquecendo todas essas lacunas. “Quem toma decisão são os políticos, mas quem pensa para os políticos são os economistas, os quais nem chamo de ideólogos, são teólogos dessa religião”, afirma.
Ele lembra, também, que, desde a Independência até 1942, o Brasil teve só uma moeda. “De 42 a 94, seis moedas diferentes, isso foi o resultado da inflação, produzida por alianças entre políticos populistas e economistas que não perceberam os limites fiscais. Os economistas chamam de gastos os investimentos em educação e saneamento, por exemplo”, critica.
Webinar | Bicentenário da Independência: a política econômica do desenvolvimento, de Vargas aos nossos dias
Data: 14/5/2021
Transmissão: a partir das 16h
Onde: Portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Fundação Astrojildo Pereira e Folha da Manhã
FAP cria grupos de trabalho para discutir temas relevantes para sociedade
FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia
Lição de 1964 marca luta do PCB por ampla frente democrática no país
Webinar da FAP discute desafios da sustentabilidade na Amazônia e no Brasil
Fonte:
RPD || Bazileu Margarido: Pagando pra ver!
A Cúpula sobre o Clima, convocada pelo presidente Joe Biden, marcou o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris. No evento, os Estados Unidos apresentaram uma nova meta de redução de emissões de 50% a 52% de carbono até 2030 em comparação com 2005. O Japão e o Canadá também elevaram suas metas.
O discurso de Bolsonaro surpreendeu pela assertividade e radical mudança de tom, mesmo que a grande maioria de líderes e especialistas duvide das suas promessas. Dessa vez, não reclamou da brutacampanha de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal de que o Brasil seria vítima, “escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil“, nem colocou a culpa pelo recorde de queimadas no caboclo e no índio, como fez na última Assembleia Geral da ONU.
Ao contrário, o mandatário brasileiro reafirmou o compromisso brasileiro de reduzir em 37% a emissão de gases de efeito estufa até 2025 e 47% até 2030. Prometeu ainda “neutralidade climática” até 2050, antecipando em 10 anos a sinalização anterior. Isso significaria radical inflexão na política ambiental brasileira, até o momento marcada pelo conluio tácito com madeireiros e mineradores ilegais, perseguição a fiscais do Ibama que cumprem seu dever e desarticulação da capacidade de atuação dos órgãos ambientais.
Não tenho motivos para acreditar em mudanças substantivas nas posições do presidente Bolsonaro. Mesmo quando suas convicções se mostram evidentemente equivocadas, como o tratamento precoce da COVID e o desrespeito ao distanciamento social, ele dobra a aposta ainda que isso comprometa sua popularidade.
Por que Bolsonaro abriria mão de suas igualmente equivocadas convicções em relação à ocupação da Amazônia? Sua formação retrógrada, agarrada à visão militar da década de 70, mantem a concepção da Amazônia como um espaço a ser ocupado mesmo que de forma predatória, onde a floresta é um obstáculo para a exploração mineral e a expansão da pecuária extensiva. “Integrar para não entregar” era o lema dos governos militares para a Amazônia há 40 anos atrás, referindo-se aos interesses estrangeiros escusos que foram ressuscitados pelo presidente no discurso na Assembleia da ONU do ano passado.
Parece ter sentido a mudança no cenário internacional com a derrota de Trump, o que agrava o isolamento do Brasil nos fóruns multilaterais. Se for isso, essa adaptação ao novo cenário representa mudança estratégica de orientação de sua política ambiental ou apenas recuo circunstancial e momentâneo? Não tenho dúvidas em apostar na segunda hipótese.
Não posso desconsiderar o poder de atração de alguns bilhões de dólares, estratégia usada pelos Estados Unidos para deslocar a política ambiental brasileira para uma rota de maior responsabilidade com o desenvolvimento sustentável e com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e no Pantanal.
O Brasil foi para a Cúpula do Clima como um pedinte, com o “sinistro” do Meio Ambiente brasileiro usando a infeliz imagem de um cachorro abanando o rabo em frente a uma máquina de frango assado para convencer a equipe de negociação americana a nos doar um punhado de dólares.
Bolsonaro parece ter uma noção muito particular de cooperação internacional. Vejam o que vem acontecendo com o Fundo Amazônia, paralisado com um saldo em caixa de cerca de R$ 3 bilhões porque o governo considera que a Noruega e a Alemanha têm a obrigação de doar recursos sem que o Brasil tenha, em contrapartida, a obrigação de respeitar as regras de governança pactuadas e que possa fazer o que quiser com os recursos, sem apresentar os resultados que as partes interessadas esperam da cooperação.
As negociações de um eventual acordo entre Brasil e Estados Unidos voltado à proteção da Amazônia parecem estar trilhando o mesmo caminho, com a aparente expectativa brasileira de contar com a benevolência americana baseada em promessas vagas, feitas num discurso de conveniência.
Espero estar errado e que o discurso na Cúpula do Clima represente guinada na política ambiental brasileira. O presidente teria, finalmente, compreendido que o desenvolvimento sustentável e a economia de baixo carbono é um caminho sem volta e sem atalhos, e que o suposto direito de desmatar a Amazônia leva ao isolamento internacional, à perda de investimentos e ao aumento da pobreza?
Estou pagando pra ver…
*Bazileu Margarido é engenheiro de produção e mestre em economia. Foi presidente do Ibama (2007-2008), secretário de Fazenda de São Carlos-SP (2001-2002), chefe de gabinete da ministra de meio ambiente Marina Silva de 2003 a 2007 e atualmente é assessor econômico da liderança na Rede no Senado.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
RPD || Henrique Brandão: Conflitos étnicos e genocídio – As marcas da guerra da Bósnia
Quo Vadis, Aida foi o representante da Bósnia ao Oscar de melhor filme internacional. Dirigido por Jasmila Žbanić, conta a história do massacre de Srebrenica, cidade da Bósnia, em julho de 1995, durante a Guerra da Iugoslávia. O filme encontra-se disponível nas plataformas de streaming Now, Vivo Play, Sky Play, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube.
A Bósnia é uma das sete repúblicas que hoje compõem o território da antiga Iugoslávia, país que se autodissolveu em 2003. Surgida em 1918, criada pelo Tratado de Versalhes logo após o fim da Primeira Grande Guerra, a Iugoslávia teve vida curta: 74 anos. Situada nos Balcãs, no sudeste da Europa, a região sempre foi um caldeirão fervente de conflitos nacionalistas, religiosos e étnicos.
O líder da resistência (partisans) na Segunda Guerra Mundial, Josef Tito, foi quem conseguiu manter a unidade por mais tempo: de 1945, quando assume o governo e institui a República Socialista Federativa da Iugoslávia, até sua morte, em 1980. Uma frase dessa época define bem a complexidade da região e a forma como Tito exerceu o poder: “seis repúblicas, cinco etnias, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um partido”.
Após a morte de Tito, os nacionalismos e as rivalidades étnicas e religiosas afloraram. As repúblicas reivindicaram autonomia. O equilíbrio instável se rompeu, e o país explodiu em conflitos.
A Guerra da Bósnia (1992-1995) é um desses conflitos. Foram anos de batalhas envolvendo os três grupos étnicos e religiosos da região: os sérvios, cristãos ortodoxos; os croatas, católicos romanos; e os bósnios, muçulmanos. Os três grupos se engalfinharam em um antagonismo sangrento, o mais prolongado e violento da Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
É de um episódio desta guerra que trata o filme: o massacre de Srebrenica, quando mais de 8.000 homens e jovens bósnios mulçumanos foram assassinados pelo autoproclamado Exército Sérvio da Bósnia, em clara ação de limpeza étnica.
O cinema sempre se interessou por genocídios. Em geral, os filmes abordam as histórias pelo lado militar, com violências explicitas, tiroteios, bombas e esguichos de sangue. Não é o que predomina no caso de Quo Vadis, Aida.
O mérito do filme é mostrar o conflito a partir dos dramas humanos e não das operações militares. Os refugiados, bósnios mulçumanos, e seus algozes, integrantes das milícias sérvias, militarmente mais poderosos, eram velhos conhecidos entre si, muitas vezes ex-vizinhos, habitantes do mesmo bairro. Como poder mediador, as forças da Organizações da Nações Unidas (ONU) se instalaram na região e decretaram Srebrenica “zona segura” dentro do conflito. Contudo, em uma atuação pusilânime e vergonhosa, acabaram concordando em entregar os refugiados aos “cuidados” dos sérvios. Morte anunciada.
Aida, a personagem do título, é uma professora bósnia de Srebrenica recrutada pelas forças pacificadoras da ONU para servir de intérprete entre os oficiais estrangeiros, as lideranças locais bósnias e o exército sérvio. Em meio à tensão crescente, Aida faz de tudo para salvar a vida dos dois filhos e do marido, chegando até a usar sua prerrogativa de ter livre trânsito entre as forças da ONU para tentar livrá-los das forças sérvias.
Além de Aida (magistralmente interpretada por Jasna Duricic), outro personagem que chama atenção é o histriônico general Rato Mladic (Boris Isaovic), comandante das forças sérvias. Sua chegada à base da ONU é acompanhada por um cinegrafista que registra todos os movimentos. Segundo a diretora e autora do roteiro, Jasmila Žbanić, era assim mesmo que as coisas aconteciam: “se procurar no YouTube [verá] que praticamente transcrevi aquilo. Mladic era uma espécie de diretor-ator. Em frente às câmeras era muito gentil com o povo”, afirmou à Folha de S. Paulo, em 22 de abril.
O massacre de Srebenica acabou sendo considerado como um genocídio por um Tribunal Internacional Penal, que condenou Mladic à prisão perpétua, em 2017. No entanto, o genocídio é negado por parte da direita nacionalista, que tem o atual prefeito de Srebenica, de origem sérvia, entre seus representantes. A propaganda negacionista visa, sobretudo, aos jovens, nascidos depois do conflito.
No epílogo do filme, Aida faz um retorno doloroso à cidade, anos após o término da guerra. Sua casa foi ocupada. Os restos mortais dos homens da família são encontrados em uma vala comum. Em um evento na escola em que dava aula, senta-se em um auditório lado a lado com os milicianos que tomaram parte no genocídio. O silêncio impera. Só as crianças cantam no palco. Na plateia, principalmente no rosto de Aida, as feridas são marcas profundas na alma. O massacre ainda pulsa, latente, na vida de cada um, como um espectro que paira no ar.
*Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
RPD || Benito Salomão: Pandemia e recuperação econômica – Um falso tradeoff
“Não há solução econômica, sem prévia solução sanitária”
(Benito Salomão, junho de 2020)
A sentença acima foi escrita em meu texto na Revista Política Democrática de junho de 2020, repetida em outro artigo de setembro do mesmo ano. No ano de 2020, o Brasil se colocou diante de um falso tradeoff (escolha), salvar vidas ou salvar a economia? Acabou não salvando nenhum, nem o outro e chegou em janeiro com uma taxa de 130 mortos por 100 mil habitantes (mais do que o dobro da média mundial, de 62 óbitos por 100 mil), somado a uma queda acumula do PIB de -4,1%. Queda esta que só não foi maior pela expansão sem precedentes da política macroeconômica, evidenciada na queda da taxa Selic de 4 pontos percentuais, e uma expansão do gasto público de 12 pontos percentuais do PIB.
Um ano se passou desde que o Coronavírus ganhou status de pandemia e exigiu enormes esforços dos governos nacionais para proteger suas populações, e já há dados suficientes para inferir algumas conclusões. Partindo de uma amostra para 60 países que já apresentaram dados do PIB em 2020, é possível identificar nitidamente a diferença de desempenho entre aqueles que optaram por adotar um enfrentamento sério e preventivo ao vírus vis à vis os que optaram por uma estratégia dúbia no enfrentamento à pandemia. O primeiro grupo (China, Vietnã, Nova Zelândia, Noruega, Finlândia, Nigéria, entre outros) viram seu PIB variando entre -2% e 2%. Muito acima, portanto, da mediana dos 60 países, uma retração de -4,1%. Desempenho também muito superior a países que negligenciaram a doença no início (Reino Unido, México, Itália, França e Espanha) e que apresentaram retrações do PIB entre -8% e -10%.
Os dados confirmam a teoria de que não se resolve a economia sem prévia solução do problema da saúde. E onde está o Brasil neste contexto? O país apresentou um mergulho do PIB de -4,1% em 2020, o maior da sua história e, paralelamente a isto, uma taxa de óbitos de 130 para cada 100 mil habitantes, o dobro da média mundial de 62 mortes por 100 mil, ao passo que países como Nova Zelândia, Coreia do Sul e Vietnã têm taxas próximas de 0 mortes por 100 mil. Há, portanto, clara correlação entre número baixo de mortes e o amortecimento dos impactos sobre a atividade.
O desempenho do Brasil é ainda pior ao se considerar a expansão fiscal patrocinada pelo governo no exercício de 2020. Ao todo, o pacote fiscal brasileiro para o enfrentamento da COVID-19 teve magnitude de 12% do PIB, algo muito semelhante à Turquia, que gastou 12,8%, mas teve taxa de mortos de 40 para cada 100 mil habitantes e um crescimento econômico de 2% em 2020. O pacote fiscal brasileiro foi o dobro do governo de Israel que gastou 6,1% do PIB e quase o triplo da Noruega (4,3% do PIB). Em outras palavras, o Brasil gastou, mas não gastou com efetividade, negligenciou a compra de vacinas e suavizou pouco o ciclo econômico.
Tirando os olhos do retrovisor e traçando diagnósticos para 2021, em meio a uma segunda onda que se abateu com intensidade, já se fala na possibilidade de uma terceira onda igualmente agressiva e o surgimento de novas cepas. Os países estão-se movimentando para ampliar a oferta das vacinas a tempo suficiente para evitar uma terceira onda, e o Brasil mais uma vez deixa a desejar. O país vacinou, até o presente momento, cerca de 8% da sua população com as 2 doses, desempenho muito pior do que países muito mais pobres como Sérvia (16,8%), Marrocos (11,1%), Turquia (9,2%), Estônia (8,3%), entre outros. Em meu artigo “Riscos para 2021” de fevereiro deste ano, argumentei que a letargia na vacinação da população pode se tornar um risco para o desempenho econômico deste ano. Menos de 90 dias se passaram, e as evidências apontam na direção de uma nova recessão nos dois primeiros trimestres deste ano.
Toda a tempestade envolvendo a proliferação da pandemia, favorecendo o surgimento de novas cepas, o atraso proposital na vacinação, estagnação da economia, tende a agravar-se com a elevação da inflação e dos juros, com a saturação da dívida pública no horizonte futuro e com um possível efeito de histerese da economia brasileira, isto é, quando a queda econômica que deveria ser cíclica, altera a tendência de longo prazo e o país passa a apresentar um péssimo desempenho econômico de forma permanente. É preciso evitar esta tempestade!
* Benito Salomão é economista e mestre e doutorando em Economia pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
RPD || Lilia Lustosa: Nomadland – Crônica de um prêmio anunciado
Quando o envelope com o nome do ganhador do Oscar de melhor filme foi aberto na histórica Union Station de Los Angeles, ninguém ficou surpreso ao ver ali impresso o título Nomadland. Afinal, desde que a temporada de festivais e premiações começou – Veneza, Globo de Ouro, BAFTA, PGA Awards… – só dá ele!
O curioso é que não estamos falando aqui de nenhuma superprodução de 200 milhões de dólares, como foi o caso de Tenet (2020). Nomadland, baseado no livro homônimo de Jessica Bruder e adaptado por Chloé Zhao, custou 5 milhões, não tem efeitos especiais e conta uma história simples por meio de uma narrativa linear, com jeitão mais de documentário do que daquelas ficções estrambólicas que costumam levar as mais prestigiosas estatuetas.
O que faz então de Nomadland uma quase unanimidade em meio a tantos críticos de diferentes nacionalidades e backgrounds?
Vamos lá.
Talvez um primeiro fator a considerar seja o de que 2020 foi um ano de poucas superproduções em função das restrições impostas pela pandemia. Os grandes estúdios preferiram guardar seus maiores trunfos comerciais – os blockbusters – para quando as coisas melhorarem e as pessoas puderem voltar às salas de cinema. Com isso, abriu-se espaço para produções menores, que em geral ficam relegadas aos festivais ou às salas de cinema de arte.
Um segundo ponto que podemos levantar é o fato de Nomadland ser um filme introspectivo, que trata de questões existenciais, com reflexões que vêm ocupando as mentes de quase todos nestes loucos tempos pandêmicos. Quem não parou para repensar a vida durante os mil confinamentos a que fomos submetidos? Quem não se questionou sobre o que de fato importa? O filme de Zhao, embora rodado em grande parte no exterior, em meio a desertos, montanhas e oceanos, é também um roadmovie interior, uma viagem pelos sentimentos de pessoas que escolheram ou foram obrigadas a puxar a âncora e partir rumo a uma vida de incertezas, descobertas, simplicidade e autoconhecimento.
Isso nos leva a um terceiro ponto, que é a mescla de realidade e ficção a partir da qual o filme é construído. Com exceção de Fern – interpretada magistralmente por Francis McDormand (agora detentora de três Oscars) –, e de mais um ou dois personagens, o que vemos ali são histórias reais de não-atores que interpretam suas próprias vidas. Claro que há um roteiro, uma organização e mesmo uma encenação por parte de todos os que compõem a trupe de Nomadland. Mas as histórias e sofrimentos apresentados na tela são genuínos, o que gera grande empatia na plateia, que se sente mais próxima das sensações ali compartilhadas e instigada a refletir sobre suas próprias questões. É quase uma sessão de terapia!
Finalmente, vale ressaltar que, em um ano em que tanto se fala de igualdade de gênero e que tanto se tenta combater a violência contra a mulher – e mais recentemente contra os asiáticos –, o fato de a diretora, roteirista, montadora e coprodutora do filme ser mulher e asiática tem também seu peso. Não que isso diminua o mérito de Nomadland, muito menos o dos louros recebidos até aqui. Mas não podemos ignorar que os prêmios se têm tornado cada vez mais políticos, já não mais bastando apresentar novidades tecnológicas ou temas originais. É preciso defender uma causa, ter um propósito, contribuir de alguma maneira com o bem-estar da humanidade. O que não está de todo errado! E o filme de Zhao, apesar de não focar no político, tem a crise econômica norte-americana de 2008 como ponto de partida e a questão do trabalho (ou da falta dele) como locomotiva da história.
Quem não está gostando nada dessas mudanças nas premiações são os fãs do glamour e do cinema de entretenimento. Alegam que os filmes já não mais divertem, uma vez que preferem apontar o dedo, fazendo-nos sentir culpados pelas atrocidades de todo o mundo. Pode ser. Mas, como afirmava o historiador Marc Ferro, que nos deixou há pouco, os filmes são também um testemunho singular de seu tempo e mostram um lado que nem sempre queremos ver. São permeados de lapsus que nos escapam a olho nu, mas que jamais se escondem das lentes das câmeras, que, como espelhos, revelam o funcionamento real das nossas sociedades.
Que chegue logo o dia em que os filmes possam voltar a ser felizes e despreocupados! As causas? Ah, essas não podem ser deixadas de lado! Porque cinema é arte, mas arte também é política. Que o diga Nomadland e o belo discurso de Chloé Zhao no Oscar, que, com seus cabelos trançados e a cara lavada, fez-nos enxergar o que de fato é luxo nessa vida.
*Lilia Lustosa é formada em publicidade, especialista em marketing, mestre em história e estética do cinema pela Universidade de Lausanne e doutoranda nesta mesma instituição de ensino superior.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
RPD || Ivan Alves Filho: 13 de Maio, um ponto de convergência
Como única revolução social brasileira até o momento, ao consagrar juridicamente uma mudança que já vinha se operando no modo de produção, o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional. A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório. E ocorreu um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos XIX e XX. Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão.
Mas se a Abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital.
Lá atrás, ou seja, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já nos advertira para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro. Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão. Se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar.
Outro ponto que me parece fundamental tem que ver com uma certa incompreensão do caráter das transformações sociais entre nós. Ainda que tivesse combinado diferentes formas de luta, que iam dos embates armados dos quilombolas às manifestações na imprensa e no próprio Parlamento, prevaleceria a saída institucional. A Abolição, nunca é demais lembrar, foi uma luta nacional, de negros e brancos. Nem o Estado tinha força suficiente para barrar as mudanças nem a sociedade civil conseguia alterar tudo de chofre ou colocar o Estado abaixo. Daí a via negociada. Nem revolução nem conciliação: negociação.
Eis o que nos desnorteia um pouco. A isso vem se somar outra particularidade do processo histórico brasileiro: a escravidão teve por aqui um conteúdo étnico, o que já não ocorria na escravidão antiga. Durma-se com um barulho desses.
Por outro lado, talvez caiba recordar a lição dada pelo samba de enredo da Vila Isabel, em 1888: é preciso um certo “jogo de cintura…(para fazer) valer seus ideais”. Dir-se-ia que a Abolição entendeu essa nossa particularidade, logrando convergir todas as lutas para o campo institucional.
*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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RPD || Orlando Thomé Cordeiro: Não temos tempo a perder!
No mês passado, ultrapassamos o número de 400 mil mortes na pandemia. Desse total, mais da metade foi no primeiro quadrimestre de 2021. Uma tragédia que, certamente, poderia ser minimizada não fora a combinação de negacionismo e incompetência do governo Bolsonaro.
Também em abril, dia 27, tivemos a instalação da CPI no Senado com a participação de 18 parlamentares, sendo 11 titulares e 7 suplentes. Apesar de todas as tentativas o governo federal, a presidência e a relatoria ficaram com o grupo formado pela oposição que promete trabalhar com a faca nos dentes.
Já no dia 30 foram divulgados os dados do desemprego para o trimestre encerrado em fevereiro: 14,4%. Isso significa que 14,4 milhões de pessoas estão na fila por um trabalho no país, o maior contingente desde 2012, início da série histórica.
No mesmo mês, após muitas idas e vindas, o orçamento anual foi sancionado com muitas restrições e incertezas quanto à sua aplicação. Não está claro, por exemplo, como o governo fará para liberar as emendas parlamentares sem desrespeitar o teto de gastos.
Para ampliar as preocupações do presidente, desde dezembro de 2020 as pesquisas passaram a apontar aumento significativo nos índices de desaprovação do presidente e de seu governo. Adicionalmente, a volta do ex-presidente Lula à disputa eleitoral reaqueceu a polarização entre os dois que vêm liderando as intenções de voto para 2022.
Diante desses fatos, tenho lido e ouvido diversas análises feitas por especialistas de ótima reputação dando como certo que, nessa batida, Bolsonaro estará fora do segundo turno. Bem, considero enorme equívoco e permito-me afirmar que, até o momento, a tendência é ele estar presente naquela fase da disputa em 2022. Apresento a seguir algumas razões para minha assertiva.
Iniciada em 2008, na campanha de Obama à presidência dos EUA, as redes sociais passaram a fazer parte do debate político e das contendas eleitorais. Desde então, sua influência na formação de grupos e definição de voto vem crescendo vertiginosamente a ponto de muita gente, inclusive eu mesmo, ter-se surpreendido com seu papel em 2018.
Nesse território, Bolsonaro continua a reinar quase absoluto, mantendo parcela de 16% a 18% de apoiadores fiéis. Some-se a esse nicho algo em torno de 14% que, mesmo tendo críticas ou algum grau de arrependimento, não têm demonstrado disposição para mudar seu voto em 2022, principalmente diante da candidatura petista.
Outro fator tem a ver com a economia. Se 2021 tende a ser marcado por muitas dificuldades, a expectativa para o próximo ano é que haja razoável retomada propiciada, em grande parte, pelo provável crescimento no número de pessoas vacinadas até dezembro, podendo abranger toda população a partir de 30 anos de idade.
Em relação ao orçamento, segundo o economista Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, Bolsonaro terá espaço de R$ 111 bilhões para ampliar as despesas em 2022, tendendo a ser o ano mais tranquilo para o presidente cumprir o teto de gastos, regra que atrela o crescimento das despesas à inflação. Desse total, o governo deverá contar com cerca de R$ 40 bilhões para gastar livremente, justamente em ano eleitoral.
É evidente que Bolsonaro não joga sozinho nesse campo, e a oposição não petista, mesmo não tendo encontrado ainda o melhor caminho para derrotá-lo, tem procurado se mexer. Uma coisa é certa, porém: uma dispersão de candidaturas provocará a repetição do que aconteceu em 2018. É possível evitar isso?
Cristalino está que a polarização representada pelas candidaturas de Lula e Bolsonaro só interessa a eles. Afinal, trata-se de um processo de retroalimentação. Não tem, no entanto, efeito prático algum criticar tal polarização sem apresentar alternativa capaz de atrair aquela parcela do eleitorado que prefere não votar em nenhum dos dois.
É imprescindível que o chamado Polo Democrático construa uma agenda mínima, olhando para frente, para o futuro. Deixar claro quais os pontos básicos que uma candidatura desse campo tem a oferecer para a população. Em complemento, há que se produzir a narrativa adequada para que as ideias-força sejam comunicadas de maneira a emocionar, engajar e mobilizar.
São condições necessárias, mas insuficientes. Agenda e narrativa mobilizadoras necessitam de um nome que as represente. Precisa ter cara! Ser percebida pelo eleitorado como competitiva para conseguir chegar ao segundo turno e derrotar qualquer um dos dois atuais favoritos. É uma decisão pra já! Como disse o poeta, não temos tempo a perder.
* Orlando Thomé Cordeiro é consultor em estratégia.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Martin Cezar Feijó: Camarada Jorge, o vencedor do BBB22
Se em 2022, o Big Brother Brasil – famoso reality show da Rede Globo de Televisão – fosse realizado por ocasião do centenário do PCB, com a participação somente de militantes vivos nos sucedâneos da histórica agremiação, criada no mesmo ano que a Semana de Arte Moderna e eclosão da revolta tenentista, seguramente o Camarada Jorge teria o mesmo desempenho da nordestina de Campina Grande, PB, Juliette Freire (algum parentesco com Roberto?) teve no BBB21, com merecida vitória por sua graça, resiliência e empatia.
Sobre o arquétipo do Camarada Jorge já escreveu o poeta Bertolt Brecht: “Há homens que lutam um dia e são bons, há muitos que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida, e estes são imprescindíveis”.
Mas de quem se fala aqui? Do Camarada Jorge, que nem existe mais, mas também não deixou de existir. Está vivo. Bem vivo. E responde por seu próprio nome, não precisando mais se esconder através de um codinome.
“Almeida é ainda hoje um aprendiz de radicalidade democrática, como todos nós que viemos da formação mais tradicional e clássica da esquerda brasileira, aquela que, para se declarar pertinência ou relação bastava dizer: ‘ele ou ela é do Partido, eu sou do Partido’ “
Mas quem é, ou foi, Camarada Jorge?
Foi um militante que aderiu ao partido em plena juventude de estudante em Fortaleza, CE, no início dos anos 1960. Seu nome verdadeiro é Francisco Inácio Almeida. Mas, quem é Almeida? Quem é Chico? Quem é Inácio? Quem é Zéthithi? Quem foi Camarada Jorge?
Foi para responder a esta pergunta que o carioca Ivan Alves Filho e o baiano George Gurgel de Oliveira resolveram mobilizar vários intelectuais do Brasil todo para homenagear Almeida, para um livro por ocasião de seus 80 anos (Abaré Editorial, Brasília, 2020) com o título Almeida – Um Combatente da Democracia. Com a cumplicidade decisiva de Tereza Vitale, companheira de uma vida de Almeida.
A vida de Almeida se confunde com a história no sentido que o poeta Ferreira Gullar definiu o PCB, por ocasião de seus 60 anos em 1982, a pedido do dirigente Giocondo Dias:
Eles eram poucos.
E nem puderam cantar muito alto a Internacional.
Naquela casa de Niterói em 1922.
Mas cantaram e fundaram o partido.
Eles eram apenas nove, o jornalista Astrogildo, o contador Cordeiro, o gráfico Pimenta, o sapateiro José Elias, o vassoureiro Luís Peres, os alfaiates Cendon e Barboza, os ferroviário Hermogênio.
E ainda o barbeiro Nequete, que citava Lênin a três por dois.
Em todo o país eles eram mais de setenta.
Sabiam pouco de marxismo, mas tinham sede de justiça e estavam dispostos a lutar por ela.
Faz sessenta anos que isto aconteceu, o PCB não se tornou o maior partido do ocidente, nem mesmo do Brasil.
Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele.
Ou estará mentindo.
Quem é Almeida?
Francisco Inácio Almeida nasceu em um dia 16 de novembro de 1939, em Batiruté, interior do Ceará. Ingressou no PCB por ocasião da revolução cubana de 1958. Foi para São Paulo, por estar sendo visado pela polícia política, tendo participado do Congresso promovido pela União Nacional de Estudantes (1968), onde foi preso juntamente com todos os participantes. Após a prisão, não teve jeito, saiu do país com destino a Moscou, onde se tornou secretário político de Luís Carlos Prestes.
“Almeidinha”, como é conhecido cordialmente por muitos que conviveram com ele, como Arlindo Fernandes de Oliveira, que assim o definiu: (pág.27). “Almeida é ainda hoje um aprendiz de radicalidade democrática, como todos nós que viemos da formação mais tradicional e clássica da esquerda brasileira, aquela que, para se declarar pertinência ou relação bastava dizer: “ele ou ela é do Partido, “eu sou do Partido” (pág. 27).
Principal mentor da Fundação Astrojildo Pereira, e do lançamento da Revista Política Democrática, antes impressa, hoje também digital, espaço de reflexões e ensaios. É de Sérgio Augusto de Moraes a definição de um verdadeiro democrata: “A sua paciência diante de opiniões divergentes (inclusive as mais estapafúrdias) é, por si só, uma mostra de seu espírito público e democrático.” (pág.128)
Quer mais? Leia o livro! Almeida não só merece esta singela homenagem promovida por intelectuais que admiram sua capacidade e tranquilidade em lidar com tantas vaidades, sempre a favor de uma causa que se tornou cada vez mais radical, uma democracia profunda na qual o povo seja não apenas voz e voto, mas realmente protagonista de uma história.
*Martin Cezar Feijó é doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). É autor, entre outros, de O que é política cultural (1983), Formação política de Astrojildo Pereira (1985) e 1932: a guerra civil paulista (1998, este em parceria com Noé Gertel).Historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Rogério Baptistini: O populismo e a demagogia amplificam a tragédia brasileira
No mês de abril, o Brasil atingiu a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid-19. O número de vítimas do coronavírus certamente é ainda maior, dado que desde o início da crise sanitária há relatos de subnotificação e, inclusive, pouco interesse do governo federal no acompanhamento e controle dos casos. Mas o que incomoda é o alheamento do presidente e de seus auxiliares em relação ao sofrimento dos concidadãos. É como se não tivessem responsabilidades para com o povo, o elemento pessoal do Estado. E aqui, o paradoxo de nossa situação.
Bolsonaro chegou ao governo como expressão do populismo, um fenômeno tão antigo quanto a própria democracia. Neste, confluem um líder e um povo mobilizado por um discurso que divide a sociedade política entre um nós e um eles, geralmente uma elite corrupta. A própria condição de mito, atribuída ao ex-deputado do baixíssimo clero reforça a percepção do que seria uma condição atávica de nossa evolução política. Acompanhando Ernst Cassirer, o mito, no populismo, personifica a vontade coletiva e se impõe à Constituição e às próprias instituições. “O que fica é apenas o poder e a autoridade mística do líder e a sua vontade suprema é a lei”. (2003, p. 325)
O passado, como ensinava o historiador Mac Bloch (1886-1944), não é objeto de ciência, mas ilumina o presente. E quando olhamos para trás, verificamos que a absolutização dos conflitos na história brasileira degenerou sempre em regressão na cultura democrática, em que pese o salto para a frente da aceleração econômica e a incorporação dos “de baixo” pela via dos direitos sociais. Estas, as camadas sociais inferiores, são o elemento central da lógica populista, manipuladas conforme a conjuntura, num dualismo de aceitação ou rejeição: mortadelas contra coxinhas, patriotas contra comunistas, cristãos contra destruidores da família.
Pilar do Estado moderno, a noção de povo deriva diretamente do populus romano. Ali, ao lado das famílias presentes no Senado, que representavam o núcleo originário da República, este participava das decisões sobre o destino comum, constituindo o elemento democrático e plural – a civilitas – do conjunto de cidadãos que fundava o corpo social – a civitas. A lei seria a expressão de sua responsabilidade política, traço de urbanidade e o próprio contrato que os uniria. Contraditoriamente, foi o apoio popular ao Principado e, depois, ao Dominado, que encolheu o papel político do povo romano (COLLIVA, 1991), culminando no ocaso de uma civilização e nas trevas do medievo.
Verdadeira presença ausente na democracia, o povo não é uma nulidade. Apesar de não constituir uma massa compacta, ele existe e padece as consequências do populismo. O descaso para com as leis, a corrupção da República e a demagogia como uma perversão que acomete os governos democráticos representam a catástrofe para os populares; o apocalipse medido em mortes e desesperança. E novo alimento para o irracionalismo, para as soluções que apresentam a vida como uma luta inconteste entre o Bem e o Mal. A economia contra a saúde; o mercado contra o Estado; o deus dos fundamentalistas contra o demônio.
No momento mesmo da invenção da política como esfera autônoma, na antiguidade clássica, Platão alertava para os perigos que a manipulação do demos poderia gerar pela ação de demagogos. O risco da implantação da tirania, quando da exploração dos ressentimentos populares por um perverso e o desejo irracional de castigar o levavam a descrer do governo democrático. A agonia do momento presente representa o ápice da demagogia entre nós.
É a atuação do povo como bloco que alimenta o populismo e faz da demagogia uma perversão. Tanto um como outra estiveram em germe, desde a redemocratização, na atividade de líderes e partidos, culminando no autocanibalismo do que se apresentava como o “novíssimo” na política brasileira, “diferente de tudo o que está aí”. A transformação do espaço público como espaço de luta pelo exclusivismo, no qual todo o adversário passou a ser visto como inimigo a ser derrotado trouxe uma vitória de Pirro para os adeptos do conflito, com consequências irreparáveis para uma geração de brasileiros, e a política sendo desviada para a margem dos canais institucionais pacientemente construídos.
Aos democratas, resta lutar nas trincheiras da razão e não ceder aos apelos do dualismo populista que insiste na exploração do desespero popular. A hora é de reconstrução da cultura pública essencial ao exercício da cidadania informada, ativa e plural, capaz pactuar em favor da democracia como caminho para o futuro.
*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Ciência Política da Unesp/FCL-CAr.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Paulo Baía: O beijo na lona
O boxe é um esporte de combate onde o pugilista utiliza os punhos para desferir os golpes. Quando o adversário é jogado na lona, acontece o nocaute. Os golpes permitidos são no rosto e abdômen. Golpe abaixo da cintura é chamado de golpe baixo, eliminando o lutador. Um golpe do queixo para cima pode ir direto até o tronco cerebral, levando o lutador ao chão. Existe o cruzado, mais conhecido como direto no Brasil. O segredo está no balanço do tronco e dos punhos para atingir o oponente, numa dança que avança milimetricamente por golpes, traçando uma estratégia a partir dos pontos fracos do adversário. O importante é fazer com que o adversário caia e beije a lona.
A CPI da Covid certamente terá comportamento similar a uma luta de boxe. Os pugilistas entram em cena e querem impor suas narrativas. A disputa ocorre entre governistas e oposição no ringue, procurando retirar das investigações ações que demonstrem os crimes cometidos pelo governo Jair Bolsonaro frente à maior crise sanitária dos últimos cem anos.
Em tempos de globalização, um vírus surgido numa cidade da China através de um animal silvestre se espalhou pelo mundo rapidamente, causando grande número de mortes, colapsando diversos sistemas de saúde, desde os países ricos até os periféricos. Se a realidade é dolorosa pela contaminação do vírus em si e seus desdobramentos, aumenta-se exponencialmente a crise sanitária com um governo negacionista, incapaz de aceitar a ciência, com o desmonte das principais instituições de pesquisa. Não só ignorando a realidade pandêmica, mas também construindo discursos paralelos, causando conflitos entre o executivo, governadores e prefeitos. O caos foi instalado, e a maior parte da população se vê perdida entre falas contrárias e carregadas pelo confronto para dissimular a inoperância das políticas públicas sanitárias.
Não há dúvida dos crimes de responsabilidade cometidos por Jair Bolsonaro e seu governo: negligência do governo na compra de vacinas ao acreditar que o Brasil seria um mercado natural pela quantidade de cidadãos, criando a falsa ideia da mão invisível que tudo regula, esquecendo que numa pandemia mundial todos desejam comprar vacinas para atender suas populações; minimização da gravidade da pandemia; a posição contrária à adoção de medidas restritivas como o afastamento do convívio social; promoção do chamado kit de tratamento precoce sem comprovação científica; e o processo de militarização do Ministério da Saúde, destruindo diversas políticas já em funcionamento para o enfrentamento da doença e dificultando o acesso aos insumos pelos estados e municípios.
Então, o ringue se abre, e entra em cena o Senador Renan Calheiros, um velho político experiente do MDB que passa a ser o relator da CPI, aquele que vai coordenar e encaminhar todas as fases de investigação, como os depoimentos dos ex-ministros da saúde e a busca de ofícios – entre outros documentos – para a requisição de vacinas, de insumos e de atendimento aos municípios com o material necessário para a contenção da pandemia. E o SUS, que sempre atuou em sua excelência atendendo todos os municípios do país, também colapsou com a intervenção do general Pazuello, que desmontou o trabalho para atender as exigências do presidente, em briga com os governadores, pensando apenas na reeleição.
O papel de Jair Bolsonaro é o da destruição, de desmontar as políticas públicas que funcionam bem para implementar um governo que até hoje não sabemos a que veio. O pêndulo ora segue para o ultraliberalismo de Paulo Guedes, quando deseja vender as estatais, diminuir o auxílio emergencial, fazer corte de gastos em cima do congelamento dos salários, reformas que até hoje não saíram do papel; e, em outro momento, persegue o nacionalismo estatizante e corporativista, onde os lobbies buscam ter suas demandas atendidas. Mas no meio do caminho existe uma luta de boxe em que uma das partes pode vencer por nocaute, atingindo em cheio o queixo do adversário, fazendo-o beijar a lona como o principal responsável pelas 400 mil mortes do país, pelo descontrole da pandemia que cria variantes do vírus, sendo portanto enquadrado em crime praticado contra a humanidade por negligência, incompetência, desmandos autoritários, negação da ciência, acarretando diversas mortes, numa grande desorganização nacional, onde não existe comando, apenas golpes baixos que o tornam um franco candidato à eliminação pelo jogo sujo e ilícito.
*Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
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RPD || Sergio Besserman: Censo 2021 – Vamos perder mais dinheiro do que será economizado agora
O governo federal anunciou que o Censo 2021, que estava previsto para 2020, será novamente suspenso; desta vez, por falta de recursos no orçamento deste ano. Não há prazo para um novo levantamento. Os prejuízos para implementação de políticas públicas são incalculáveis, especialmente para a população mais pobre.
De certo modo, o Brasil já vive sob apagão estatístico há bastante tempo. A Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas recomenda o censo decenal, de preferência, nos anos de final zero. O objetivo é comparar todos os censos entre si. Países que têm registros administrativos ruins, segundo a ONU, devem realizar, como melhor prática estatística, um minicenso entre os dois censos decenais.
No Brasil, chamávamos de “contagem populacional”, mas o levantamento também fazia outras perguntas. Por razões de economia fiscal, não fazemos esse censo intermediário desde os anos 90. Os registros administrativos brasileiros são ruins. No governo federal, há alguns um pouco melhores, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e dados relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mas a maior parte é inexistente ou ruim. Nos estados e municípios, a mesma coisa.
Nós vivemos no século da informação e do conhecimento. Ter dados sólidos sobre a real situação dos brasileiros é importante para a implementação de políticas públicas eficazes. O Brasil é um país dinâmico, muda muito, especialmente desde a última década. Perceba-se que 10 anos já é um tempo bastante longo. Áreas fundamentais, como transporte urbano, saúde, educação, segurança pública, sofrem com o atraso no Censo Demográfico por mais de uma década. Prejudica, inclusive, todas as outras pesquisas, pois diversos institutos do setor público e privado utilizam esses dados. Todas as pesquisas perdem em qualidade em razão da ausência de informação censitária atualizada.
Outro ponto a se destacar é que a grande maioria dos municípios depende de Estados e do governo federal para fechar as contas. Esta suspensão afeta diretamente a população mais pobre. Para 80% dos municípios do Brasil, a principal fonte de receita é o Fundo de Participação (FPM). O critério utilizado para a distribuição desses recursos é a população. Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz uma estimativa da população nacional, por Estados e municípios. Com esse longo espaçamento no tempo, aos poucos, o fundo de participação vai deixando de cumprir um dos objetivos, que é justamente combater a desigualdade. As estimativas não conseguem capturar situações de mudanças dinâmicas em diversos municípios.
Com os dados do censo, teríamos a oportunidade de mapear informações sobre a miséria e a extrema pobreza. Esse, talvez, seja o impacto mais danoso do ponto de vista social. Não teremos as informações e o conhecimento necessário para fazer esse trabalho tão indispensável de reconstrução econômica, social e política do Brasil, que será preciso a sociedade conseguir após 2022.
Destaco, ainda, que a principal conquista histórica do Censo Demográfico foi a consolidação do IBGE como órgão de Estado. Ele foi uma grande conquista democrática. Atravessou ditaduras, sempre mantendo sua característica de órgão de Estado, sem jamais ter sofrido qualquer tipo de intervenção, e sendo, principalmente, reconhecido quanto ao princípio do sigilo das informações obtidas.
Entendo que a decisão de adiar o censo sem sequer anunciar, imediatamente, quando ele seria realizado, foi pautada pelo negacionismo do atual governo, seu desprezo pela informação e pelo conhecimento. Vamos perder muito mais dinheiro com esse adiamento do que aquilo o que será economizado. E quem mais vai perder é o povo pobre.
Muitos países, como Canadá e Estados Unidos, aplicam o Censo a distância – seja pela internet ou mesmo pelos correios. A combinação do censo presencial com melhorias nas informações de registros administrativos e a conexão desses tipos de metodologias remotas deve ser prioridade, e o IBGE está trilhando esse caminho com excelência, como sempre. Afinal, a tecnologia existe e pode muito bem ser integrada com o trabalho dos recenseadores, que serão sempre importantíssimos em um país tão desigual e de proporções continentais como o Brasil.
*Sergio Besserman é economista, é professor do Departamento de Economia da PUC e coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil. Ex-diretor do BNDES, ex-presidente do IBGE, do Instituto Pereira Passos, e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.