Day: abril 27, 2021

Pedro Fernando Nery: Lula x Bolsonaro - Um guia para não se perder em comparações enganosas

Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais

Já começam as comparações descabidas de indicadores dos governos Lula e Bolsonaro. As comparações enganosas entre candidatos que governaram em períodos diferentes são populares em anos eleitorais, com cada grupo de apoiadores usando da falácia que melhor lhe cabe. Nesta coluna proponho um guia para o leitor não se perder por aí.

Vários indicadores relevantes do Brasil são afetados por tendências de longo prazo. Assim, diferenças entre o governo A e o governo B podem ter menos a ver com qualidades ou defeitos dos governantes e mais com a mera passagem do tempo. Um tipo particularmente popular – e irritante – é a comparação nominal de preços. Ela não faz sentido porque há a tendência de preços crescerem no tempo, e a inflação impede que simplesmente se compare reais em um período com reais muitos anos depois.

Comecemos essa análise sem ajustar valores pela inflação, o que economistas chamariam de valores nominais. Esses valores serão maiores no governo Bolsonaro do que no governo Lula – como era no governo Lula em relação ao governo FHC (objeto preferido de comparação de petistas em eleições passadas). Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais.

Por exemplo, apoiadores de Lula vão gostar de difundir os dados sobre preços de gasolina ou gás, cesta básica ou carne. O tiro sai pela culatra para as variáveis em que valores maiores são positivos. Defensores de Bolsonaro poderão comparar os valores do salário mínimo e do Bolsa Família – nominalmente maiores, até porque foram reajustados para contemplar a inflação.

Mesmo quando se desconta o efeito da inflação, o que chamamos de valores reais, ainda há razão para desconfiança nas comparações. Há um progresso natural em várias políticas públicas, além de uma tendência de aumento do gasto público ao longo dos anos. Dessa forma, a campanha de Bolsonaro poderá apresentar um valor real maior para o salário mínimo (R$ 1.100 x R$ 900) ou para o Bolsa Família/auxílio.

O gasto público como um todo também é maior no governo Bolsonaro – seja em termos absolutos ou seja em relação ao PIB. Isso vale mesmo para antes da pandemia: em Lula em geral esteve abaixo de 17% do PIB, em Bolsonaro sempre acima de 19%. O gasto social (Seguridade) aumentou: R$ 960 bilhões em 2019 x R$ 670 bilhões em 2010. Ao contrário dos estereótipos, o governo Lula apresentava gasto total menor, a dívida era mais baixa e se produziam superávits primários (economia de impostos para abater a dívida). Mesmo antes da pandemia, a projeção era de déficits para todo o “austero” governo Bolsonaro.

Chegamos a um outro tipo de tendência: as demográficas. O envelhecimento da população, que aumenta o gasto com Previdência, explica parte da alta do gasto entre os governos Bolsonaro e Lula (ou entre Lula e FHC, ou até entre Temer e Dilma). A mudança do número de jovens tem impacto ainda no número de homicídios, com tendência de queda (44 mil em 2020, 50 mil em 2010).

Na demografia ainda se observou nesse ínterim o crescimento da população em idade ativa. Por conta dessa tendência, por enquanto ainda é normal haver cada vez mais pessoas trabalhando (população ocupada), o que permite a um governante dizer que criou X milhões de empregos em relação a um antecessor. É possível que, mesmo com a pandemia, ao fim do governo Bolsonaro haja mais empregos em relação ao governo Lula, inclusive com carteira assinada. O mesmo para o PIB, espécie de agregado de trabalhadores.

Há outros avanços na sociedade relacionados ao progresso da ciência e tecnologia, da queda da mortalidade infantil ao aumento de acesso à celular.

Como comparar então governos diferentes? A leitura pode ser melhor usando taxas (para a variação de uma variável, como o salário mínimo, ou para uma proporção, como o desemprego). Para parte do eleitorado taxas são menos interessantes, e é então improvável que campanhas abram mão dos paralelos menos sofisticados.

Nesse tipo de análise, economistas se preocupariam também com a influência de fatores externos (como os preços das commodities que exportamos ou os juros internacionais), que podem ajudar ou atrapalhar um governo e responder por muito do seu êxito ou fracasso (como uma correnteza para um remador).

Há assim, na academia, os estudos que tentam isolar dos resultados econômicos de um país diversas influências, na busca pelo “contrafactual” de um conjunto de políticas (para o responder o que teria acontecido se um governo agisse diferente). Um tipo de análise em voga é o chamado “controle sintético”, em que um país é comparado em um período com um grupo de países semelhantes, para conjecturar o que teria acontecido de qualquer jeito ou o que decorre das ações, por exemplo, da política econômica ou do negacionismo em uma pandemia.

Preços aumentam, nosso país envelheceu, a tecnologia progride. Boa sorte ao leitor: a temporada das comparações impertinentes está começando.

*DOUTOR EM ECONOMIA


Ricardo José de Azevedo Marinho: O sutil desprezo de Biden a Bolsonaro

Como se sabe, não há protocolos estabelecidos para reuniões ou conferências de Zoom, ou para cúpulas virtuais de chefes de Estado. Há meses atrás, elas praticamente não existiam. Nem é preciso dizer que houve encontros entre dois ou mais líderes em videoconferências, mas as cúpulas são outra coisa. São encontros onde os governantes de seus países podem se encontrar, ouvir uns aos outros, trocar declarações formais e manter diálogos informais.

Portanto, por si só, a forma como Bolsonaro participou da Cúpula do Clima convocada por Joe Biden, apesar de não ser grave, é no mínimo complicada. Se o presidente brasileiro decidiu que não estava interessado em ouvir as intervenções de seus colegas — com exceção talvez de Biden e quiçá Kamala Harris —, não há regra escrita ou não escrita que ele tenha violado. Claro: ele não foi muito cortês ou respeitoso com os outros vinte chefes de Estado ou de governo — além dos participantes não governamentais — que intervieram no debate. Mas talvez o presidente brasileiro não tenha entendido que deveria ouvir os outros se esperava que eles o ouvissem. Não se tratava de turnos de falas, mas sim de uma mesa redonda. É como se a cúpula tivesse sido presencial, Bolsonaro só esteve presente na sala para sua própria participação.

É verdade que, em outros debates que poderiam ser assemelhados a este — com dificuldades —, os primeiros líderes não se ouvem pessoalmente. É o que ocorre, em particular, no debate geral da Assembleia Geral da ONU no final de setembro de cada ano em Nova York. É bem sabido que, com exceção dos primeiros dez ou quinze oradores, na sequência não há sequer um chefe de Estado, nem mesmo chanceleres, no grande salão da Assembleia.

Tampouco é grave que Bolsonaro tenha feito um discurso totalmente oposto às balizas da nossa política externa, em uma palavra, pró-mercado. Ninguém mais espera muito dele; todos os seus colegas já sabem que o presidente brasileiro está focado nos assuntos internos, que só se interessava pela esfera internacional por ocasião de Trump. Dito de forma clara: não importa muito o que diz ou deixa de dizer.

Mas existe uma tradição nessas questões. O Brasil e os Estados Unidos frequentemente participam de várias cúpulas juntos, como a OEA e vários outras. Não me lembro de nenhuma em que o presidente dos Estados Unidos, principalmente se fosse o anfitrião, não tenha estado na sala quando o brasileiro falava. Minha memória pode falhar, mas pelos mais de quarenta anos em que tenho seguido esses tópicos — eu duvido.

Por isso é grave — agora é — que Biden não estivesse presente durante a intervenção de Bolsonaro. Todos os sábios que previram que não haveria consequências dos vários desprezos de Bolsonaro a Biden por ocasião da eleição norte-americana, por ser um profissional rodeado de profissionais, devem reconhecer que alguém assim não está ausente da “sala virtual” sem saber a quem não vai ouvir. Biden não estava, com pleno conhecimento de causa.

Segundo consta, quando Bolsonaro se conectou à transmissão Biden já não estava mais presente na reunião. O presidente democrata deixou seu lugar após ouvir o representante da ONU e os chefes de estado de China, Índia, Reino Unido, Japão, Canadá, Bangladesh, Alemanha, França, Rússia, Coreia do Sul, Indonésia, África do Sul, Itália e Ilhas Marshall. Biden saiu pouco antes de ouvir Alberto Fernández, da Argentina, o primeiro presidente ibero-americano a falar na cúpula.

Existem níveis entre os países. Pelo menos para os Estados Unidos, o Brasil pertencia ao nível do grupo descrito. Agora ele está na companhia do Argentina, do México e das outras “repúblicas irmãs”. Como Barack Obama sempre disse, as eleições têm consequências; decisões de política externa também.

*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi


Nexo: Desigualdade de gênero e raça - O perfil da pobreza na crise

Estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP calcula os efeitos da pandemia sobre os diferentes recortes da população brasileira

Marcelo Roubicek, Nexo

A pandemia do novo coronavírus derrubou a economia brasileira, assim como de outros países. Para dezenas de milhões de brasileiros, a recessão trazida pela crise sanitária significou a perda de boa parte das fontes de renda.

Em março de 2020, o Congresso Nacional articulou o auxílio emergencial, principal política pública adotada durante a pandemia. O auxílio alcançou diretamente quase 68 milhões de beneficiários, e foi pago em nove parcelas: cinco de R$ 600 entre abril e agosto, e quatro de R$ 300 entre setembro e dezembro. O programa foi encerrado na virada do ano.

O auxílio em seu valor mais alto (R$ 600) teve como efeito a diminuição temporária da pobreza a níveis historicamente baixos no Brasil. No entanto, a diminuição e subsequente encerramento do benefício reverteram esse processo – o Brasil voltou a registrar aumentos no nível de pobreza.

61,1 milhões - é o número estimado de pessoas em situação de pobreza no Brasil em 2021, já considerando o novo auxílio emergencial

Em 2021, em meio ao pior momento da pandemia, Congresso e governo negociaram a reedição do auxílio. O novo benefício tem alcance e valores reduzidos. A estimativa é de que serão 45,8 milhões de beneficiários diretos, que receberão pagamentos diretos entre R$ 150 e R$ 375. As parcelas começaram a ser transferidas no início de abril.

Mesmo com o novo auxílio, os dados apontam para um aumento da pobreza e da extrema pobreza no Brasil em relação ao cenário pré-pandêmico. É o que mostra o gráfico abaixo.

TRAJETÓRIA DA POBREZA

População na pobreza e na extrema pobreza no Brasil. Caiu em julho de 2020, mas desde então está subindo novamente, refletindo as diminuições do auxílio emergencial

Um estudo publicado pelo Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP) na quinta-feira (22) calculou como essa pobreza se manifesta nos diferentes grupos de gênero e raça no país.

Metodologia do estudo

O estudo usa como base microdados dados da Pnad Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – e da Pnad Covid – edição da mesma pesquisa feita em 2020 especialmente para medir impactos da pandemia.

Para o período pré-pandemia, foram considerados os dados de 2019. Em 2020, há dois recortes: de julho, quando o auxílio emergencial era pago em R$ 600, e outubro, quando o benefício já havia sido reduzido pela metade. Os números de 2021 foram calculados com base em simulações construídas sobre os números do novo auxílio.

Os critérios adotados para identificar pobreza e extrema pobreza foram os mesmos usados pelo Banco Mundial. Nesses parâmetros, US$ 5,50 e US$ 1,90 diários representam as linhas da pobreza da extrema pobreza, respectivamente. Ajustando para o câmbio e para o nível de preços no Brasil, o estudo calcula que as linhas de pobreza e extrema pobreza ficaram respectivamente em R$436 e R$151 mensais em 2020, e em R$469 e R$162 mensais em 2021.

A pobreza por gênero e raça no Brasil

O estudo mostra que, após as duas reduções do auxílio emergencial, o aumento da pobreza e da extrema pobreza no Brasil reproduziu as desigualdades raciais e de gênero que já existiam antes da pandemia.

POBREZA NA PANDEMIA

Taxa de pobreza no Brasil em 2020-21, por grupo. Mulheres e homens negros muito acima da população branca

Antes da pandemia, 33% das mulheres negras estavam abaixo da linha da pobreza. Em 2021, mesmo com auxílio, essa taxa está mais alta, em 38%. A proporção de homens negros abaixo da linha de pobreza fica ligeiramente abaixo desse patamar.

Já entre a população branca, a taxa de pobreza subiu de 15% antes da pandemia para 19% em 2021. Os níveis de pobreza são semelhantes entre homens e mulheres brancas.

Já a extrema pobreza, que atingia 9,2% das mulheres negras em 2019, subiu a 12,3% dessa população, segundo os cálculos do estudo do Made-USP. Para homens brancos, essa taxa foi de 3,4% para 5,5% nesse mesmo intervalo.

EXTREMA POBREZA NA PANDEMIA

Taxa de extrema pobreza no Brasil em 2020-21, por grupo. Novamente mulheres e homens negros em patamar mais alto que os brancos

Os questionamentos ao novo auxílio

O estudo traz também recomendações de política pública. A principal delas é a extensão do auxílio emergencial até o final da pandemia – os pagamentos estão previstos somente até julho de 2021.

A pesquisa calcula que, sem auxílio emergencial, a taxa de pobreza no Brasil em 2021 iria de 28,9% (já com auxílio) para 31,4%. Já a taxa de extrema pobreza iria de 9,1% a 10,7%. Ou seja, a manutenção do auxílio até o fim da crise sanitária evitaria que a pobreza e extrema pobreza, que já estão em patamares altos, escalassem ainda mais.

Outros estudos publicados sobre o auxílio emergencial em 2021 argumentam que o valor das novas parcelas é insuficiente para dar conta das necessidades da população de baixa renda no pior momento da crise. Mesmo com ajustes ao nível de preços de cada estado brasileiro, o valor médio do benefício – R$ 250 por mês – não é suficiente para cobrir as necessidades básicas da população mais vulnerável.

As desigualdades no mercado de trabalho

O estudo do Made-USP retrata como o aumento da pobreza no Brasil reflete as desigualdades de gênero e raça no país. Um olhar para os dados do IBGE para o mercado de trabalho revela algo similar.

O desemprego está em patamares historicamente altos no Brasil, mas atinge mais a população preta e parda que a população branca – o que reproduz desigualdades anteriores à pandemia. No final de 2019, a taxa de desemprego entre pessoas brancas era de 8,7%; um ano depois, de 11,5%. Já entre a população preta, o desemprego era de 13,5% nos últimos meses de 2019; no final de 2020, era de 17,2%.

DESIGUALDADE RACIAL

Taxa de desemprego por cor ou raça no Brasil, por trimestre. População preta e parda sistematicamente acima da população branca

Pelo critério de gênero, a distância histórica do desemprego entre homens e mulheres também se manteve forte na pandemia. Entre o fim de 2019 e o fim de 2020, o desemprego entre mulheres foi de 13,1% a 16,4%. Para os homens, o movimento nesse mesmo período foi de 9,2% a 11,9%.

DESIGUALDADE DE GÊNERO

Taxa de desemprego por sexo no Brasil, por trimestre. Mulheres sistematicamente acima dos homens

Os dados do IBGE e os cálculos do estudo do Made-USP revelam como os efeitos da pandemia reforçaram desigualdades de gênero e raça no Brasil.


Ancelmo Gois: 'Os racismos brasileiros são perversos', diz o historiador Alberto da Costa e Silva

Dia 12 de maio, agora, o historiador Alberto da Costa e Silva completará 90 anos. Vai comemorar lançando, mais uma vez, um livro sobre sua paixão: a África. A “A África e os africanos na história e nos mitos”, pela Nova Fronteira, inclui Mansa Musa, rei do Mali, que em pleno século XIV acreditava que o Atlântico tinha outra margem, o Brasil.

Aqui, na semana em que foi condenado o policial branco que matou George Floyd, o grande historiador aborda o racismo nos EUA e no Brasil:

“Os racismos brasileiros não possuem as mesmas formas que os dos norte-americanos. Pode-se escrever um livro grosso, para mostrar as diferenças. Mas os racismos brasileiros são perversos, ainda quando dissimulados ou indesejados. Ouçamos o que dizem os negros, e até mesmo os poucos que consentimos serem bem sucedidos na vida. Uma das diferenças é definir quem é negro. No Brasil, é predominante uma questão de aparência; nos EUA, de ascendência.

Faz algum tempo, um importante político brasileiro, um daqueles de quem temos saudade, me dizia, a propósito, o seguinte: ‘Eu sempre fui considerado branco, e tratado como tal; meu irmão, que é escuro, sempre foi tido por negro. Somos ambos mulatos, com o mesmo pai e a mesma mãe’. Outro exemplo: um artista norte-americano que viveu alguns anos no Brasil, enviava os seus trabalhos semanalmente para os Estados Unidos e de lá recebia o pagamento em dólares.

Perguntei-lhe certo dia, numa roda de amigos, por que estava vivendo no Brasil. E ele respondeu prontamente: ‘Porque nos EUA sou negro, e no Brasil, sou branco, e é enorme a diferença. Aprendemos a ser racistas quando crianças. A escola fortalece (ou até bem pouco fortalecia), ao fazer um retrato negativo do africano, de sua arte e de sua história e do papel fundamental dos africanos na formação do Brasil’’’.


El País: 100 dias de Biden, uma profunda mudança de rumo nos Estados Unidos

O presidente norte-americano pisou no acelerador em questões relevantes como a vacinação maciça, a volta ao multilateralismo, a modernização do país e o novo rumo nas políticas sociais. Seu grande desafio continua sendo a imigração

ANTONIA LABORDE, YOLANDA MONGE, MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO e LUIS PABLO BEAUREGARD, El País

Apenas 100 dias de Joe Biden na Casa Branca bastaram para comprovar a profunda guinada nos Estados Unidos. O presidente da grande potência quis deixar claro desde o início a diferença abissal em relação ao seu antecessor, Donald Trump. No aspecto econômico; em política externa; nos assuntos sociais e nas políticas migratórias ―embora neste caso tenha tido que recuar de suas ambiciosas promessas. Também, ou talvez acima de tudo, pela forma como encarou a pandemia: os Estados Unidos colocaram a vacinação maciça como a principal meta da sua agenda nos seus 100 dias primeiros como presidente. E cumpriu com sobras.

Com Biden, EUA adotou vacinação em massa contra a Covid-19. Foto: Alex Wong/Getty Images

Uma vacinação maciça

Desde o primeiro dia, tudo precisava estar condicionado a frear a pandemia e suas consequências. Para reativar a economia, em queda livre e com os piores índices desde a Grande Depressão da década de 1930, era preciso a todo custo frear os contágios e mortes. A poucos dias de completar, nesta quinta-feira, uma centena de jornadas no comando de um país que havia fracassado na contenção do vírus e soma atualmente mais de 570.000 mortes, o presidente dos Estados Unidos anunciou que já foram administradas 200 milhões de doses de vacinas contra a covid-19. Neste momento, 27% da população está completamente vacinada, o que se traduz em algo mais de 90 milhões de pessoas (de uma população total próxima de 330 milhões).  

Biden superou seus objetivos em relação à vacinação, pois nenhum dos prazos anunciados foi descumprido. Logo que assumiu, o mandatário disse que haveria 100 milhões de pessoas vacinadas em seus primeiros 100 dias na Casa Branca, e esse marco se deu no 58º dia de mandato. “Quando cheguei ao poder, apenas 8% da população estava vacinada”, disse o presidente ao informar na quarta-feira, 21 de abril, que 200 milhões de pessoas já haviam sido inoculadas. Era o 93º dia de sua presidência, e Biden observava que mais de 50% dos moradores adultos dos Estados Unidos tinham recebido pelo menos a primeira dose de alguma das três vacinas disponíveis no país. No começo deste mês, a Casa Branca comunicava que a partir do dia 19 abriria a vacinação a todos os adultos do país, o que, novamente, representava uma antecipação de duas semanas sobre o prazo de 1º de maio anunciado anteriormente por sua Administração. Ainda assim, e, apesar da boa notícia, o mandatário quis apelar à prudência ao declarar que os Estados Unidos continuam “numa carreira de vida ou morte contra o vírus”.

A última medida do mandatário para estimular a população a se vacinar foi um crédito fiscal para cobrir gastos com horas não trabalhadas por causa da vacinação dos funcionários de empresas com até 500 assalariados. “Nenhum trabalhador dos Estados Unidos deveria perder um só dólar do seu salário para ter tempo de se vacinar ou se recuperar da doença”, afirmou Biden. Como o democrata conseguiu essas cifras? Recorrendo, segundo suas palavras, a uma tática de colaboração entre empresas semelhante à que se viveu “na II Guerra Mundial”, comparou Biden. Porém, a ideia de ressuscitar uma lei de períodos bélicos para frear os contágios e mortes por covid-19 não surgiu com Biden. O ex-presidente Donald Trump conseguiu fabricar os primeiros lotes de vacinas com a ajuda da Lei de Defesa da Produção, uma norma que datava da Guerra da Coreia (1950) e que confere ao presidente dos Estados Unidos o poder de obrigar as empresas a aceitarem e priorizarem contratos necessários para preservar a segurança nacional.

A pandemia levou o Governo Trump a invocá-la, tanto para acelerar a produção de máscaras como para poder depois assegurar certos suprimentos para a produção da vacina. A receita do sucesso de Biden foi que o presidente reforçou as ajudas aos Estados, multiplicou os centros de vacinação federais e apostou numa rede de farmácias de proximidade. Essa foi uma das chaves do triunfo: que as vacinas estejam disponíveis em muitos lugares, seja um campo de beisebol ou em grandes descampados onde não é preciso nem descer do carro para receber a injeção. A produção e a distribuição foram decisivas e são as responsáveis, em grande medida, por esses resultados. Algo que o Governo Trump não conseguiu, por ter deixado o plano a cargo de cada Estado. Biden, ao contrário, assumiu as rédeas a partir de Washington para garantir que a vacinação fosse realmente maciça e se centrou na compra de suficientes doses não só para centros de atendimento médico, os primeiros a receberem as vacinas, mas também para que chegassem o quanto antes a toda a população, nos lugares menos esperados e sem parar por causa de feriados. “Se fizermos isto juntos, até 4 de julho é possível que você, sua família e amigos possam se reunir no quintal ou no bairro para organizar um almoço ou um churrasco e comemorar o Dia da Independência.” Esse é o objetivo máximo de Biden.

Ambição para superar a pandemia e modernizar o país

A ambição dos planos de estímulo e reconstrução, sem precedentes desde o New Deal de Franklin Roosevelt, definiu o programa econômico de Joe Biden nos primeiros 100 dias de seu mandato, mas seus objetivos vão além. É o que demonstra sua proposta de reforma fiscal, para exigir uma prestação de contas de multinacionais ―incluídas as grandes tecnológicas―, que durante anos esquivaram o pagamento de impostos federais e para obter financiamento para seus programas. Depois de sua declaração de intenções ―o plano de resgate da pandemia, de 1,9 trilhão de dólares (equivalente ao PIB do Brasil), aprovado pelo Congresso em março―, a Administração democrata se dispõe a modernizar os EUA mediante um colossal plano de infraestruturas, com investimentos de dois trilhões de dólares em oito anos para gerar milhões de empregos. A reforma fiscal será, se aprovada no Congresso, o instrumento para isso. O objetivo maior da sua política é combater pela raiz males como a pobreza infantil e, acima de tudo, uma desigualdade social sistêmica; os dois planos (o resgate e o programa de infraestrutura) incluem numerosas iniciativas a esse respeito. A principal diferença entre ambos está no financiamento: o primeiro fica a cargo do orçamento federal, o que aumentará o endividamento; o segundo depende dos contribuintes.

Mediante a projetada reforma fiscal, que pretende elevar o imposto empresarial de 21% para 28%, o presidente não só aspira a arrecadar 2,5 trilhões de dólares nos próximos 15 anos para financiar seu exaustivo programa de reconstrução; ele quer mudar as regras do jogo. Esse propósito precisará ser visto com o Congresso, e não só os republicanos. “Os [democratas] moderados propõem uma menor elevação do imposto empresarial, para 25%”, aponta Jack Janasiewicz, da administradora de recursos Natixis.

Quando chegou à Casa Branca, ainda não se via a luz ao final do túnel da pandemia. Por isso, como prometeu em campanha, a primeira medida foi o plano de 1,9 trilhão de dólares como injeção econômica direta, a metade em forma de cheques em dinheiro para famílias e negócios afetados pela emergência, e o resto para ampliar a cobertura dos desempregados. O plano incluía uma verba de 400 bilhões (2,19 trilhões de reais) para incentivar a vacinação. A julgar pelos resultados (25% da população está imunizada), o objetivo se cumpriu. Pelo caminho da tramitação parlamentar ficou, entretanto, a promessa eleitoral de aumentar o salário mínimo federal para 15 dólares por hora.

O plano de infraestrutura aspira a reforçar o país frente ao avanço da mudança climática; de fato, a proposta do primeiro orçamento federal da Administração democrata prioriza a luta contra o aquecimento global. “Biden está preparando uma ordem executiva para insistir com as agências federais para que tomem medidas de combate aos riscos financeiros relacionados ao clima, incluindo medidas que poderiam impor uma nova regulação às empresas”, antecipa Janasiewicz. O principal temor é um repique da inflação, que, até agora, graças à intervenção do Federal Reserve (banco central), ficou sob controle. “O déficit subirá para 3,5 trilhões de dólares, uma cifra recorde, e esperamos que o crescimento do PIB possa superar 7% neste ano [6,5%, segundo o Fed]; isto só aconteceu três vezes nos últimos 70 anos. Agora cresceram as probabilidades de um período de inflação acima da meta do banco central”, apontavam recentemente em nota Libby Cantrill e Tiffany Wilding, da firma de investimentos Pimco, ressalvando que “a probabilidade de um processo inflacionário similar ao ocorrido na década de 1970 continua sendo relativamente baixa”.

Joe Biden e o presidente chinês Xi Jinping: aposta no multilateralismo. Foto: Lintao Zhang/Getty Images

Reabertura ao mundo, com a China na mira

A reabertura dos EUA ao mundo após quatro anos de isolamento percorreu várias estações nestes 100 primeiros dias do mandato de Joe Biden, com uma clara aposta no multilateralismo. As sanções à Rússia por sua ingerência eleitoral e um ataque cibernético maciço; a retirada definitiva das tropas do Afeganistão e o diálogo para reavivar o pacto nuclear com o Irã, que os EUA abandonaram em 2018, marcaram este período de graça, tanto como o fiasco da primeira reunião bilateral com a China. Além disso, Biden procurou na recente cúpula climática internacional recuperar a liderança para os EUA com um ambicioso plano de redução de emissões. Trata-se de uma guinada importante na política adotada pelo país nos últimos anos e implicará uma profunda transformação econômica desta potência.

Rússia, Afeganistão e Irã monopolizam os holofotes, enquanto a forja de velhas e novas alianças para rebater a pujança chinesa é a parte menos visível do iceberg diplomático. O fato de Yoshihide Suga, primeiro-ministro do Japão, ter protagonizado na semana passada a primeira visita oficial a Biden na Casa Branca indica qual é o objetivo primordial da sua política externa: frear a China e todos os seus desafios, tanto dentro do seu território (a repressão da minoria muçulmana aos uigures em Xinjiang) como no mar do Sul da China ou em seu apoio ao regime nuclear da Coreia do Norte, para não falar de suas ingerências em Hong Kong, Taiwan e Tibete. A primeira viagem oficial dos secretários de Estado e Defesa foi ao Japão, Coreia do Sul ―dois países onde os EUA mantêm tropas― e Índia, outro aliado crucial para domar a voracidade estratégica chinesa.

Apesar de ter devolvido a diplomacia ao cenário internacional, Biden não se privou de dar alguns murros na mesa, como ao anunciar as sanções mais duras contra o Kremlin desde a presidência de Barack Obama, fechando o parênteses de suposta cumplicidade ou negligência por parte de Trump, e a denúncia da implicação do poderoso príncipe herdeiro saudita, Mohamed bin Salman, no assassinato do jornalista crítico Jamal Khashoggi. Este último foi um movimento decepcionante para quem esperava medidas mais duras, inclusive sanções, mas soou como um aviso a um aliado tradicional, vital no equilíbrio regional do Oriente Médio. Apontar o dedo para o herdeiro foi a segunda advertência a Riad depois da retirada do apoio ao regime saudita na guerra do Iêmen, que o presidente democrata qualificou de “catástrofe humanitária e estratégica”.

A sombra da síndrome do Vietnã é alongada, e Biden começou seu mandato pondo limites a guerras sem fim como a do Iêmen, a da Síria ―parte do legado de Barack Obama― e a mais prolongada de todas, a do Afeganistão, quando se aproxima o vigésimo aniversário dos atentados do 11 de Setembro, origem da chamada “guerra ao terrorismo” declarada por George W. Bush. A permanência das tropas norte-americanas no país do Oriente Médio tinha chegado anos atrás a um beco sem saída, que as ações letais do Talibã e a dificuldade de levar adiante o diálogo com Cabul só contribuem para ressaltar. Sair do atoleiro afegão é um alívio para um país que continua recebendo corpos de soldados em sacos plásticos.

Apesar do que prometeu em campanha, Biden não retirará as tropas da Europa, e menos ainda em pleno reaquecimento da tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Biden paralisou a retirada militar da Alemanha anunciada por Trump e vigia qualquer movimento no flanco oriental europeu, que representaria uma ameaça tanto para seus efetivos como para a linha de defesa da OTAN. A nova Guerra Fria com Moscou dominará as relações euro-atlânticas, junto com a declaração de boas intenções à União Europeia, pendente de se concretizar. Em outra mudança na política externa, o democrata reconheceu pela primeira vez neste sábado como “genocídio” a matança de armênios por parte do império turco, uma declaração que eleva a tensão com a Turquia, país que também é sócio da aliança atlântica.

Com exceção do México e do chamado Triângulo Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala), para frear a saída de imigrantes irregulares, Biden não prestou atenção à América Latina.

Reviravolta nas políticas sociais

Antes de completar uma semana na Casa Branca, Joe Biden assinou uma ordem que proíbe a expulsão de qualquer membro do Exército por causa da sua identidade de gênero, levantando o veto imposto pelo ex-presidente Trump às pessoas transgênero. O decreto estabelece também que os departamentos de Defesa e de Segurança Nacional devem revisar os históricos de serviço dos militares que foram demitidos ou que tiveram sua reincorporação vetada por este motivo. O democrata se tornou o primeiro presidente a comemorar o Dia da Visibilidade das Pessoas Transgênero, celebrado desde 2009. O mandatário está pressionando para que o Senado aprove a Lei de Igualdade, que modifica a Lei de Direitos Civis de 1964 para incluir a proteção contra discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, junto com os casos motivados por raça, religião, sexo e origem nacional. Essas proteções se estenderiam a questões de emprego, moradia, educação, solicitação de crédito, entre outras áreas em que o coletivo costuma sofrer discriminações.

Os republicanos se opõem, entre outras razões, por medo de que isso obrigue pessoas religiosas a tomarem decisões que contrariem suas crenças, como a contratação em escolas privadas de pessoas cuja conduta viole seus princípios de fé. Para que o projeto se transforme em lei, deve obter 60 votos no Senado, que está dividido em metades iguais (50/50). Quanto ao direito ao aborto, a Administração de Biden também trabalha para reverter as decisões de seu antecessor. O democrata já revogou a medida que proibia ONGs e prestadores de serviços de saúde no exterior de utilizarem recursos do Governo norte-americano para prestar assessoria sobre aborto. Trump também proibiu que clínicas de planejamento familiar financiadas com recursos federais encaminhem suas pacientes para clínicas de aborto e cortou o orçamento destes centros, que atendem a mulheres de baixa renda. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) elaborou uma proposta para revogar esta última medida, que está em fase de discussão pública.

Em outra frente relevante, a agenda contra o racismo, Biden assinou quatro ordens executivas. Uma delas obriga o Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano a tomar as medidas necessárias para “reparar as políticas federais racialmente discriminatórias que contribuíram para a desigualdade da riqueza durante gerações”. Outro decreto elimina os contratos do Departamento de Justiça com as prisões privadas. Os Estados Unidos são o país com maior população carcerária do mundo, composta desproporcionalmente por negros e latinos. As duas ordens restantes procuram combater a xenofobia contra os norte-americanos de ascendência asiática e aumentar a soberania das tribos nativas americanas.

Embora esteja em fase preliminar, o Governo democrata também quer reformar as normas sobre o assédio sexual em escolas. Biden assinou uma ordem executiva para que o Departamento de Educação revise as regras estabelecidas pelo Governo Trump, redefinindo o assédio sexual como uma gama limitada de ações “severas, generalizadas e objetivamente ofensivas”. O democrata afirmou que o Departamento de Educação deve “considerar suspender, revisar ou rescindir” qualquer política que não proteja os estudantes. Esse órgão prevê ―ainda sem data― convocar uma audiência pública para que estudantes, pais e profissionais da educação deem suas ideias antes que a Administração divulgue sua proposta sobre como colégios e universidades que recebem recursos públicos devem responder às acusações de agressão e assédio sexual.

Biden, além disso, criou o Conselho de Políticas de Gênero da Casa Branca, um organismo que coordenará os esforços do Governo para promover a equidade e igualdade de gênero mediante políticas e programas de combate aos preconceitos e à discriminação, e aumentar a segurança e as oportunidades econômicas. Também proporcionará recomendações legislativas e de política ao mandatário.

Desafio migratório

imigração é, junto com a crise do coronavírus, um dos principais problemas deste começo de Governo Biden. Os especialistas consultados para esta reportagem concordam que o Governo democrata estabeleceu a direção correta neste tema, mas as mudanças para desmontar o perverso sistema herdado de Donald Trump não chegaram com a velocidade esperada. O modelo migratório da nova era é um assunto pendente e, como muito do legado trumpista, terá sua sorte decidida num Congresso dividido e polarizado. “Esta direção é apenas parte de uma visão que está em construção. A Administração encara opções muito difíceis, e resta ver quais caminhos pode tomar no clima político atual”, afirma Hiroshi Motomura, acadêmico da Escola de Direito de Universidade de Califórnia em Los Angeles (UCLA).

Biden desenhou o perfil de sua reforma imaginada com uma série de ações nas primeiras horas de seu mandato. Prometeu regularizar 11 milhões de imigrantes irregulares, revogou o veto de viagens a alguns países muçulmanos e recriou os programas que garantem proteção a mais de um milhão de pessoas entre os jovens que chegaram aos EUA na infância (os chamados dreamers) e os migrantes provenientes de países afetados pela mudança climática e a pobreza, incluindo cidadãos venezuelanos. Também pôs fim à desumana política de separação de famílias e de expulsão de menores migrantes.

Câmara de Representantes, de maioria democrata, aprovou o plano de Biden. O Senado o tem em suas mãos, e seu aval é mais complexo. “Necessita 60 votos, e tem 50. Estamos esperando que passe, mas será preciso convencer 10 republicanos, e não será simples”, considera a advogada Alma Rosa Nieto, integrante da Associação de Advogados de Imigração. “Ainda estamos lutando com um partido republicano pró-Trump com muitos legisladores anti-imigrantes”, afirma. O senador Lindsey Graham, muito influente entre os republicanos, disse em março que não apoiará reforma migratória alguma “enquanto a fronteira [com o México] não estiver controlada”. É apenas um exemplo do duro pedágio que aguarda a Administração democrata, à espera também de que a Câmara Alta aprove uma série de nomeações que renovarão a cúpula de Segurança Doméstica e da vigilância de fronteiras com perfis progressistas de ativistas e policiais.

Washington nega que a atual situação configure uma crise. Os agentes da patrulha fronteiriça detiveram em março 172.331 migrantes. É um aumento de mais de 100.000 detenções desde janeiro, e o maior registrado desde março de 2001. Este aumento de entradas causa tensão em várias regiões fronteiriças. Bruno Lozano, prefeito de Del Río (Texas), uma cidade que viveu a chegada da onda, enviou em fevereiro passado um SOS a Biden. “Não temos recursos para acomodar estes migrantes em nossa comunidade”, disse o democrata, conhecido por ser o prefeito mais jovem (e abertamente gay) na história desta localidade de 35.000 habitantes. A mensagem se tornou viral e foi amplamente repercutida pelos setores mais conservadores, interessados em manter a ideia de que a fronteira está fora de controle.

Os analistas põem em perspectiva essas históricas cifras. “É falso dizer que as fronteiras estão abertas”, afirma Aaron Reichlin-Melnick, do Conselho Americano da Imigração. “Nos últimos três meses, quase 70% das pessoas que entraram foram expulsas rapidamente graças a uma norma implementada no ano passado por Trump durante a pandemia e que Biden manteve. Menos famílias estão sendo autorizadas a ficar em 2021 do que em 2019 com a Administração Trump”, acrescenta. Os adultos sozinhos continuam sendo o grupo mais numeroso de migrantes, embora o fenômeno dos menores desacompanhados tenha voltado a crescer até níveis inéditos. Em março foram 18.000, um número que superlotou os albergues do Governo, cuja manutenção custa pelo menos 60 milhões de dólares (328,6 milhões de reais) por semana ao Departamento de Saúde e Serviços Sociais.

Biden também manteve do Governo anterior o teto de 15.000 refugiados anuais autorizados a entrar nos Estados Unidos. A decisão causou alvoroço entre as bases democratas, que consideram rompida uma promessa de campanha de elevar os acolhidos a mais de 60.000. A polêmica forçou o Executivo a recuar. Deve anunciar medidas definitivas em maio, mas muitos concordam que foi uma oportunidade perdida para estabelecer um antes e um depois em relação a Trump, uma era que não acaba de desaparecer por completo.


Alon Feuerwerker: Índia

A Índia virou o centro das preocupações globais sobre a pandemia da Covid-19, com a forte aceleração de casos (leia). A curva da média móvel de mortes também sobe, mas numa velocidade por enquanto menor. De todo modo, a combinação entre superpopulação e baixo grau de disciplina social diante do risco sanitário comprova-se um cenário complicado. E trágico.

Países com grandes populações, ou mesmo com populações menores mas com elevada densidade demográfica, são naturalmente zonas de risco amplificado em epidemias. É neles que se mostra mais aguda a necessidade de as pessoas seguirem as indispensáveis regras de distanciamento social. Até porque normas mais radicais de isolamento são limitadas no tempo.

Na Índia, como no Brasil e outros lugares fortemente afetados por novas cepas mais contagiosas do SARS-CoV-2, nota se uma curva ascendente bem mais íngreme do que na primeira onda. Resta saber se os dados vão confirmar uma descida também tão aguda. É o que parece estar acontecendo no Brasil (leia), ainda que numa etapa embrionária.

A Índia é terceiro país que mais vacinou até o momento, em números absolutos. São quase 140 milhões de doses aplicadas. Mas menos de 2% da população já receberam a segunda dose e podem considerar-se definitivamente vacinados. O que apenas reforça a precaução a se manter até que a cobertura vacinal seja suficientemente ampla para proporcional um grau razoável de segurança.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Malu Gaspar: Toffoli manda Bolsonaro, Pacheco e Lira se explicarem sobre emendas "cheque em branco"

O ministro do Supremo Tribunal Federal José Dias Toffoli deu 10 dias a Jair Bolsonaro e os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, para enviar explicações sobre a ampliação de uma nova modalidade de desembolso das emendas parlamentares, as chamadas transferências especiais.

Os três foram notificados na última sexta-feira, como consequência de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Novo e que foi distribuída para Toffoli. O Novo é crítico do instrumento de repasse. Jair Bolsonaro não era citado inicialmente na ação, mas Toffoli decidiu incluí-lo.

As transferências especiais foram criadas em 2019 pelo Congresso. São chamadas de "cheque em branco" porque, ao contrário do que acontece com os recursos enviados para estados e municípios por meio de emendas regulares, no caso delas não é preciso dizer em quê os recursos serão aplicados nem prestar contas aos órgãos federais de controle de seu uso.

 Basta o parlamentar indicar o nome da cidade que deve receber o dinheiro, e os recursos caem direto na conta da prefeitura, que também não precisa dizer o que fará com ele.

Criadas no final de 2019 com o propósito de facilitar o repasse da verba federal, em geral lento e burocrático, as transferências na prática criaram uma exceção à regra, adotada em toda a administração pública, pela qual o dinheiro para obras ou programas custeados com dinheiro da União é repassado a estados e prefeituras pelos ministérios ligados à aplicação das verbas e seu uso é fiscalizado pela Caixa.

 Elas foram estabelecidas por uma emenda constitucional que permitiu aos parlamentares repassar até metade de sua cota de emendas individuais por depósito direto. Em 2021, isso representará cerca de R$ 8 milhões por parlamentar. 

Conforme mostrou a coluna, essa verba ajudou a irrigar prefeituras comandadas por parentes de deputados no ano passado e contribuiu para a sua reeleição. Dos cinco municípios que mais receberam transferências especiais em 2020, em três o dinheiro foi repassado por um parlamentar que é parente do gestor local. Todos foram reeleitos.

Embora o mecanismo tenha sido criticado desde o início por órgãos de controle federais, por reduzir a possibilidade de fiscalização, no Orçamento de 2021, o relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias, Irajá Abreu (PSD-TO) decidiu estender, por conta própria, o uso do "cheque em branco" para as emendas coletivas de bancada, envolvendo uma fatia bem maior dos repasses federais: R$ 7,3 bilhões neste ano.

Pela regra, as emendas de bancada servem para custear projetos  maiores e são decididas de maneira coletiva entre os parlamentares de cada unidade federativa. Ao aplicar a elas o mesmo tratamento das emendas individuais, corre-se o risco de ampliar o uso de verba para atender a interesses paroquiais dos parlamentares em seus redutos eleitorais e deixar à míngua projetos mais relevantes. 

O texto de Irajá Abreu foi vetado por Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelos congressistas no meio da votação do Orçamento de 2021, em 17 de março.

Para não atrasar ainda mais o Orçamento, que só acabou sendo votado no fim daquele mês, os líderes do governo no Congresso firmaram um acordo com parlamentares para que deixassem a conversão das emendas de bancada em transferências especiais para depois da sanção do texto orçamentário, o que ocorreu na semana passada.

Na ação impetrada no Supremo, o Partido Novo pede a revogação do "cheque em branco". O partido alega que a ampliação do uso das transferências promovida por Irajá Abreu é inconstitucional pois trata as emendas individuais e as de bancada, diferenciadas na lei, de maneira uniforme.

Os advogados do partido pedem ainda que a decisão seja proferida liminarmente, ou seja, rapidamente, uma vez que a aplicação das transferências especiais nas emendas de bancada está valendo e pode ser feita a qualquer momento. Somando-se o valor já autorizado a ser desembolsado neste ano em transferências especiais ao volume que desejam os parlamentares, o valor total do "cheque em branco" pode chegar a R$ 9,3 bilhões neste ano.

“Trata-se, portanto, de caso de extrema urgência, a fim de evitar a reorientação das emendas parlamentares de bancada rumo a um tipo de execução que não tem base constitucional”, afirma o Novo, em sua petição.

Após o prazo de 10 dias para esclarecimentos, Toffoli quer ouvir também a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da União antes de proferir sua decisão.


Foto: Beto Barata\PR

Bela Megale: 'Gabinete do Ódio' da Presidência será alvo de convocação da CPI da Covid

Funcionários do Palácio do Planalto que integram o chamado “gabinete do ódio” serão alvos de um pedido de convocação da CPI da Covid, instaurada nesta terça-feira no Senado. O PT vai solicitar a convocação dos assessores da presidência da República Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Salles Gomes e Mateus Matos Diniz. O trio bolsonarista é apontado como responsável por ataques a adversários do presidente nas redes sociais.

Uma das frentes articuladas pela oposição mira o uso de redes sociais para disseminar fake news que boicotam medidas sanitárias, como uso de máscara, além de ataques a autoridades que decretaram medidas de isolamento social, como governadores e prefeitos. Para isso, os senadores trabalham em um pedido de compartilhamento de dados da CPMI das fake news com a investigação da Covid.

A ideia é saber se houve dinheiro público e até de privado de apoiadores do presidente na disseminação de ataques e notícias falsas relacionadas à pandemia. A avaliação da oposição é que, ao unir a negligência do governo federal sobre a pandemia e o uso de fake news, Bolsonaro terá que lidar com os temas mais espinhosos de sua gestão.

– Se o presidente da CPI da Covid requisitar algum material, não há problema nenhum. O que for pedido sobre fake news relacionadas às vacinas, Covid-19, estamos dispostos a compartilhar – disse o senador Angelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPMI das fake news.

Os senadores também pretendem explorar investimentos do governo federal em campanhas como “O Brasil não pode parar”, que pregava contra o isolamento social e acabou proibida pela Justiça, a ações de marketing com influenciadores digitais defendendo o tratamento precoce, ou seja, o uso de remédios sem eficácia para tratar a Covid-19.


Pedro Cafardo: O culto à cloroquina e ao teto sacrossanto

Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, Brasil se vê envolto na discussão sobre limites fiscais rígidos demais

Uma frase banal - fazer do limão uma limonada - move quem está pensando na economia da era pós-covid. Ainda que as aflições com o desastre humanitário global em andamento desencorajem esse olhar economicista, muitos países já puseram o tema em discussão e tomam medidas olhando para o futuro imediato.

Quem prestou atenção nos discursos da Cúpula do Clima da semana passada viu o “caminho das pedras” da nova economia. A ideia geral é que o principal mecanismo para criar empregos após a pandemia serão os investimentos na economia verde.

O presidente dos EUA, Joe Biden, está presenteando os americanos com um programa econômico que vai muito além do auxílio emergencial. Já aprovou um pacote de estímulos fiscais de US$ 1,9 trilhão e propõe investimentos de longo prazo de até US$ 3 trilhões. Esta segunda parte é a limonada, porque aproveita a crise para sugerir uma grande transformação estrutural da economia americana, ao mesmo tempo em que promete reduzir as emissões de gases-estufa em 52% até 2030. Pode parecer estranho, mas a infraestrutura americana está velha e precisa ser renovada. Não há no país, por exemplo, ferrovias de alta velocidade, coisa comum na Europa. As novas linhas de trens devem substituir transporte aéreo, altamente poluidor.

Então Biden quer renovar a infraestrutura do país e, ao mesmo tempo, descarbonizar a economia, que é para onde vai a fronteira tecnológica em função do aquecimento global. Além disso, ele promete investir em educação e saúde pública com recursos obtidos pela maior taxação dos ricos americanos.

O plano Biden, pela sua enorme dimensão, provoca controvérsias. As declarações que mais preocuparam foram as do ex-secretário do Tesouro Larry Summers, por ser um economista de centro-esquerda, que teoricamente deveria apoiar o investimento público. Summers acha que o pacote fiscal, grande demais, pode gerar inflação de demanda, alta de juros e recessão.

Com ou sem polêmica, o fato é que os americanos já planejam a economia do pós-covid e pouco se lixam com o aumento dos gastos. Europeus vão pelo mesmo caminho. Na França, o ministro das Finanças, Bruno Le Maire, mandou às favas o neoliberalismo e disse que vai proteger a economia francesa “a qualquer custo”. Prometeu investir para garantir soberania e domínio de tecnologias que “moldam o futuro” do país. Vai proteger as empresas com taxações e novos financiamentos. A ideia é “reinventar o modelo econômico do país” com base na inovação e na indústria livre de carbono.

Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, aqui o governo ainda aposta na cloroquina, provocando gargalhadas no exterior. Promessas, como as feitas na Cúpula do Clima, soam falsas. O comando econômico só pensa em conter gasto público. A discussão da política macroeconômica se limita ao teto de gastos, jabuticaba pouco razoável num momento em que mundo decidiu aplicar recursos para combater a doença e renovar a economia nos novos parâmetros.

Nem no incentivo ao carro elétrico, óbvia tendência mundial, estamos pensando ainda, como mostrou Marli Olmos no Valor de ontem. Não se trata de defender a ideia de que o bom para os EUA ou para a Europa é bom para o Brasil. Trata-se de seguir o rumo da economia mundial ou de ficar sentado na sarjeta, chorando e esperando pelos milagres da cloroquina ou do teto de gastos.

José Luis Oreiro, professor da UNB, que acaba de lançar o livro “Macroeconomia da Estagnação Brasileira” em parceria com Luiz Fernando de Paula, anda enfurecido com o que chama de “fé no teto sacrossanto”, que só existe no Brasil com esse rigor, incluído na Constituição e com poucas regras de saída. “Se preservar o teto, a economia cresce; se violar, não cresce”, esse é o dogma. “Por que?”, pergunta.

Em tempo: na opinião de Oreiro, Summers está equivocado e “Biden deve ficar para a história como o novo Roosevelt”.

Pontes abertas

Mudando de assunto, mas nem tanto, os quadrinhos acima, uma velha metáfora comum nas paredes de barbearias dos anos 1960, representam bem o que vêm fazendo as duas forças políticas progressistas do país há quase três décadas. Nunca saíram do primeiro quadrinho e foi preciso aparecer um radical totalitário para desconfiarem que estão no mesmo lado. Ameaçam agora passar para o segundo quadrinho.

As propostas das duas não são conflitantes. Quando governaram, controlaram inflação, buscaram crescimento, reduziram analfabetismo e mortalidade infantil, tiveram a responsabilidade fiscal possível e melhoraram a distribuição de renda. Seria utopia pensar numa aliança progressista entre elas? As pontes estão abertas. Mas será preciso superar ambições pessoais de poder em ambos os lados e alguém tomar a iniciativa de atravessar as pontes. As propostas podem ser mescladas para salvar um país entregue a quem não faz planejamento econômico, ignora a ciência e o desafio ambiental, descuida da educação e da saúde e promove discórdias.

Se não se unirem, as duas forças serão condenadas pela história. Pode dar com os burros n’água a ideia de deixar a centro-esquerda de fora e formar um bloco puro-centro, que é móvel, infiel e fragmentado, como mostrou pesquisa publicada sexta-feira pelo Valor. Também não há como isolar de um acordo a centro-direita, porque a esquerda não forma maioria. Não seria melhor escantear os extremistas, parar, negociar e decidir se vão comer juntos primeiro as mortadelas da esquerda ou as coxinhas da direita?


Andrea Jubé: 'Quantos poderiam ser salvos?'

Atraso nas vacinas foi deliberado, diz governador de Alagoas

O governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), recorreu a uma metáfora futebolística, tão comum na política, para explicar por que a falta de uma coordenação nacional no combate ao coronavírus contribuiu para o recrudescimento da pandemia no Brasil.

“O Ministério da Saúde é fundamental nesse processo, e em meio à crise, tivemos quatro ministros. Imagina a Seleção Brasileira, às vésperas da Copa do Mundo, trocando de técnico quatro vezes, cada um com um time de diferente, um lateral esquerda, outro de direita. Certamente isso dificulta a organização do time”.

O mandatário é filho do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ontem teve a nomeação para o cargo de relator da CPI da pandemia impedida por uma liminar da Justiça Federal do Distrito Federal. Nas redes sociais, o senador classificou a decisão como “interferência indevida”, acusou o governo Jair Bolsonaro de orquestrá-la, anunciou que vai recorrer, e provocou: “Por que tanto medo?”

Para Renan Filho, contar com Renan Calheiros na relatoria da CPI não deveria inspirar medo, mas, sim, confiança pela sua experiência política e disposição para conciliação. “Não se encontra no Senado tanta gente com a capacidade dele, experiente, calmo, sereno. O senador Renan é equilibrado e no papel de relator, só vai ajudar”.

O governador acrescenta que o senador seria incapaz de qualquer injustiça na condução dos trabalhos “porque já foi injustiçado, e sabe o que isso significa”. Uma alusão às denúncias contra o senador no âmbito da Lava-Jato. Renan ainda responde a oito processos no Supremo Tribunal Federal, mas dos 17 originais, nove já foram enviados ao arquivo.

Na última semana, Renan Filho recebeu um telefonema do presidente Jair Bolsonaro, que tem o alagoano como único interlocutor entre os governadores do Nordeste. Na conversa, Bolsonaro reafirmou ao governador que o momento é inoportuno para a CPI.

O governador não discordou do presidente naquele momento, porque seria uma descortesia em pleno telefonema com o chefe do Executivo. Ontem, entretanto, Renan Filho disse à coluna que tem outra opinião: “Quem decide o momento ideal para uma CPI é o Congresso Nacional”.

Renan Filho acredita que Bolsonaro lhe telefonou para fazer “um gesto na direção do diálogo”, já que o senador Renan havia sido indicado para relatar a CPI. O governador lembrou que, em entrevistas recentes, Renan Calheiros disse que, como relator, conversaria com todos, “especialmente com o presidente, se ele desejar”.

Até ontem, havia ambiente para o diálogo, mas a ofensiva judicial da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), aliada de primeira hora do Palácio do Planalto, e que obteve a liminar barrando Renan, tumultuou o jogo. Se a decisão for revogada, Renan assumirá o posto pintado para a guerra, um figurino que ainda não havia exibido.

No fim de semana, Renan foi ao Twitter declarar-se suspeito em relação a qualquer investigação sobre o governo de Alagoas que surgir na CPI. Uma reação à campanha deflagrada nas redes sociais pelos bolsonaristas, que impulsionaram a hashtag #Renansuspeito, já que o relator da CPI é pai de um governador, e os governadores serão investigados quanto à gestão dos recursos federais para o enfrentamento da pandemia.

Renan Filho diz que não teme essa investigação porque Alagoas tem bom desempenho na pandemia. É o terceiro Estado com menos mortes por grupo de 100 mil habitantes, e não foi investigado pela Polícia Federal.

Para conter a covid-19, ele associou medidas de distanciamento social e de restrição de circulação, à ampliação da rede hospitalar. Relata que acelerou a conclusão de quatro hospitais, ao mesmo tempo em que contou com o apoio da Federação das Indústrias e da Associação Comercial em comerciais para a televisão nas medidas restritivas. Está em vigor o toque de recolher a partir das 21 horas, e dias pontuais para o fechamento dos shoppings. A lotação das UTIs está em 76%.

“Por essas ações a rede não colapsou até agora. É possível construir um discurso integrado, mas houve no Brasil uma intenção de dividir o país”.

Renan Filho invoca o infográfico elaborado na semana passada pelo site “Poder360”, que comparou unidades federativas a países. Nesse comparativo, o Distrito Federal e sete Estados brasileiros estariam entre os 10 países com mais vítimas da covid-19. Amazonas, com 2.903 mortes por milhão, desponta acima da República Tcheca, líder do ranking mundial. Alagoas estaria empatado com a Bahia, em 32º lugar, com 1.186 mortes por um milhão de habitantes.

Renan Filho defende que a CPI faça esse modelo de cálculo. “Quantas vidas teriam sido salvas se as medidas corretas de enfrentamento à pandemia fossem tomadas no momento adequado? Essa história também precisa ser contada”, conclamou.

Ele admite que não será possível um cálculo direto ou objetivo, “mas obviamente dará para demonstrar que algumas regiões têm resultados melhores do que outras, e podemos olhar o que levou a isso, podemos fazer discussão com especialistas”, sugeriu.

Num momento em que o Brasil ainda vivencia um platô de 3 mil mortes diárias, o governador considerou “muito grave” a nova revisão do cronograma de imunização, e vê um atraso intencional na busca de imunizantes.

“Nós nos atrasamos deliberadamente na aquisição de vacinas. Em determinado momento, o Brasil era contra a compra de vacinas, e isso se verbalizou por meio de várias autoridades. E não temos um cronograma de vacinação, ele é alterado a cada semana, quinzena ou mês, e é sempre para postergar, nunca para antecipar”.

Renan Filho lembra que defendeu a urgência de uma coordenação nacional de combate à pandemia, com a integração de esforços entre as três unidades da federação na reunião de governadores, ministros e chefes das Casas Legislativas no Palácio da Alvorada há um mês. “Governo federal e Congresso concordam com essa falta de coordenação, por isso criaram o comitê [nacional de combate à pandemia], mas de lá pra cá, não teve ação nenhuma”.


Cristina Serra: O 'cara da casa de vidro'

Esclarecer as conexões entre Adriano da Nóbrega e Bolsonaro é prioridade

O repórter Sérgio Ramalho, do site The Intercept, teve acesso a um relatório do Ministério Público do Rio de Janeiro com o resumo dos grampos telefônicos de comparsas de Adriano da Nóbrega. Como se sabe, Adriano era o chefe da milícia Escritório do Crime e foi morto em uma operação policial, na Bahia, que mais parece queima de arquivo. As conversas indicam conexões muito mais profundas entre o ex-policial militar e Bolsonaro do que se sabia até então.

Após a morte de Adriano, seus cúmplices teriam procurado um homem, mencionado nos grampos como o "cara da casa de vidro". Fontes do MP-RJ ouvidas pelo site dizem tratar-se de Bolsonaro, e a "casa de vidro" seria uma referência à fachada envidraçada do Palácio da Alvorada. O homem também aparece no relatório como "Jair" e "HNI (PRESIDENTE)". HNI é a sigla para Homem Não Identificado.

As conversas começaram na data da morte de Adriano e foram interrompidas dias depois, quando surgiram as supostas menções a Bolsonaro. O Ministério Público estadual não tem poder para investigar o presidente, e um caso como esse teria que ser encaminhado à Procuradoria-Geral da República.

Adriano da Nóbrega seria peça chave para o esclarecimento de crimes que, de alguma forma, embaralham no mesmo enredo a milícia que chefiava, alguns de seus parentes, o amigo de longa data Fabrício Queiroz e o clã presidencial. Todos juntos e misturados no esquema das rachadinhas.

Esclarecer essas conexões deveria ser prioridade absoluta de investigadores, imprensa, autoridades e instituições no Brasil. Porém, as investigações que envolvem o sobrenome Bolsonaro parecem contaminadas pela lentidão e por generosa condescendência em instâncias do aparelho estatal. Não por acaso, Bolsonaro sente-se à vontade para debochar dos 400 mil mortos pela pandemia usando a expressão "CPF cancelado", a gíria miliciana para pessoas assassinadas.


Eliane Cantanhêde: Na CPI, guerra é guerra

Bolsonaro quer impor roteiro, desqualificar Calheiros e dar Pazuello aos leões, mas os fatos o condenam

Com a instalação da CPI da Covid, começa hoje uma nova fase do governo Jair Bolsonaro, que, além de já estar em campanha eleitoral antecipada para 2022, vai estar muito ocupado em tentar explicar o inexplicável numa tragédia histórica que já levou 390 mil vidas no Brasil. Bolsonaro vai passar a ter oposição real e muita visibilidade negativa.

A CPI é como o coronavírus: desconhecida, altamente contagiosa e potencialmente letal. Se Bolsonaro reagir a ela com o negacionismo com que trata o próprio vírus, ficará em maus lençóis. Mas, se ele é incompetente como presidente, é esperto como candidato e na relação com o Centrão. Suas três prioridades: impor o roteiro da CPI, desqualificar o senador Renan Calheiros como relator e manter controle sobre o general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.

Quanto ao roteiro, o Planalto fez 23 perguntas a ministros sobre os erros mais gritantes, mas tem muito mais. Exemplos: por que tratar a pandemia até hoje como “gripezinha”? E por que Bolsonaro jogou no lixo documentos do Exército e da Abin sobre isolamento? Nenhum ministro tem resposta para isso, assim como ninguém sabe que tipo de motivações, ou interesses, estão por trás da posição sobre isolamento, máscaras e vacinas – e sem pôr nada no lugar, além de cloroquina...

Atacar Calheiros é fácil, pelos processos no Supremo e por ser pai do governador de Alagoas, Renan Filho, como acatou ontem a Justiça Federal no DF. Mas Renan pode ser tudo, menos bobo. É experiente, tem liderança e, depois de tanto tempo recolhido, sabe bem o que o esperava e espera ao voltar aos holofotes.

Quanto a Pazuello, ele é um risco para Bolsonaro. Como ministro, já se atrapalhava todo com jornalistas, mentindo, apresentando previsões irreais de vacinas, tirando onda de irritado. Já imaginaram numa CPI com raposas, maioria oposicionista, montanhas de erros e nenhuma defesa?

Até na véspera da CPI, Pazuello e o sucessor, Marcelo Queiroga, continuaram errando. Um ex-ministro da Saúde passeando sem máscara num shopping logo de Manaus? E o atual tentando culpar o Butantan por falta de segundas doses? De Pazuello não se espera muito e o próprio Exército não sabe o que fazer com ele. Mas Queiroga? Está mal informado, ou entrou na dança política?

Ontem, Queiroga jogou para governadores, Butantan e Coronavac a culpa por muitos brasileiros, sabe-se lá quantos, não conseguirem tomar a segunda dose. Se há vacinas, o Brasil deve à Coronavac. E por que não há segunda dose? Porque, em 21 de março, dois dias antes da nomeação de Queiroga, o Ministério da Saúde liberou Estados e municípios a gastarem todo o estoque na primeira. É mais uma irresponsabilidade criminosa, até porque as previsões de doses nunca foram confiáveis. O ministro não sabia?

Foi também o Ministério da Saúde quem confiscou toda a produção nacional do kit intubação, mas, quando os insumos e medicamentos começaram a faltar e o governo de São Paulo mandou nove ofícios pedindo envio urgente de kits, o que Queiroga respondeu? Mandou os “Estados ricos” comprarem seus próprios kits. Comprar onde, se todo o estoque foi requisitado pelo governo federal?

A estratégia do governo é jogar Pazuello aos leões e deixar os demais ministros na fila da jaula, inclusive Paulo Guedes e o ex-chanceler Ernesto Araújo. Todos, porém, só cumpriram ordens. Um manda, os outros obedecem. O presidente Jair Bolsonaro é o grande responsável, cometeu os grandes erros, é o grande alvo. A intensa articulação do Planalto para esvaziar a CPI, atacar Calheiros e usar Pazuello de escudo esbarra numa antiga verdade: contra fatos, não há argumentos. Nem articulação que dê jeito.