Day: março 21, 2021

Vladimir Safatle: Este Governo tem que cair. Preservá-lo é ser cúmplice

Há um ano, movimentos exigiam impeachment de Bolsonaro, mas foram desqualificados pois era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia. O tempo passou e ficou claro que a verdadeira crise brasileira é o próprio presidente, que trabalha para aprofundá-la

Na última sexta feira, a imprensa noticiou que “um homem”, “um idoso” morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. O “homem” apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.

O “homem” em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: “um idoso”, “um homem”. Não teve direito à descrição de sua “luta pela vida”, nem da dor em “entes queridos”. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, “um homem” não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira com que se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.

Enquanto “um homem” morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio, ou “medidas duras” caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com “um homem”. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.

Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. Não por outra razão “genocídio” apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.

Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um Governo das Forças Armadas.

Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundá-la não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição. Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que “um homem” morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.

Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora veem à público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato “indesejável” através de um processo no qual se forjou até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem influenciando as eleições.

Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. Mesmo assim, setores que clamavam por “frentes amplas” nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.

A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. Há um setor da população brasileira, envolto em uma identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro. Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia.


Celso Lafer: As fronteiras e seu significado

Synesio Sampaio Goes Filho lança obra sobre ‘o estadista que desenhou o mapa do Brasil’

Fronteiras têm grande importância na vida internacional. Definem o espaço da competência jurídica e política própria dos Estados nacionais. Diferenciam o “externo” do “interno”, no âmbito do qual cabe a um Estado, por meio de suas instituições, a responsabilidade de deliberar sobre rumos de uma sociedade. Nessa esfera também se situa o desafio de se orientar no mundo, pois na realidade contemporânea as fronteiras são porosas.

Faço essas considerações para destacar que a definição das fronteiras com reconhecimento internacional é o que configura “o corpo da pátria”, para me valer do sugestivo título do livro de Demétrio Magnoli. Por isso, o primeiro item da pauta da política externa de um país é o de buscar configurar o “corpo da pátria”. Nesse item, a diplomacia brasileira teve sucesso exemplar em obra que teve início com o Tratado de Madri de 1750.

O Brasil é um país de dimensão continental, como a China, a Índia e a Rússia. Em contraste com esses e outros países grandes, médios e pequenos, não enfrenta contenciosos territoriais e suas tensões, presentes em tantas regiões do mundo. Não tem ambição de expansão territorial.

O Brasil, na lição de Rio Branco, é um país “que só ambiciona engrandecer-se pelas obras fecundas da paz, com seus próprios elementos, dentro das fronteiras em que fala a língua dos seus maiores e quer vir a ser forte, entre vizinhos grandes e fortes”. É de pertinente atualidade a afirmação de Rio Branco. Explicita uma pacífica dimensão de nossa inserção internacional.

Pela ação das bandeiras e das monções, a ocupação do território hoje brasileiro foi muito além dos limites previstos no Tratado de Tordesilhas, de 1494, pelo qual Portugal e Espanha buscaram dividir o que estava por se descobrir no “mar oceano”. Por isso, de fato e de direito, eram indefinidas as fronteiras entre os domínios da Espanha e de Portugal na América do Sul. Esses espaços passaram a ser estabelecidos pelo Tratado de Madri, que delineou a fisionomia do nosso país e é ponto de partida da grande obra da definição das fronteiras do Brasil.

O seu grande negociador foi o paulista Alexandre de Gusmão, nascido em Santos em 1695, considerado como o avô da diplomacia brasileira, pois com ele teve início a formação de um capital diplomático, que, a partir da herança portuguesa, vem favorecendo o nosso país.

Sobre Gusmão acaba de ser publicado iluminador livro de Synesio Sampaio Goes Filho: Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil.

Synesio, com a qualidade de escritor e a profundidade de consagrado estudioso das fronteiras do Brasil, logra transmitir ao leitor contemporâneo o significado do equilíbrio e da razoabilidade das teses defendidas por Gusmão, consagradas no Tratado de Madri. Desvenda ao mesmo tempo o perfil de uma personalidade de intrépido vigor intelectual.

O objetivo do tratado era “estreitar a cordial amizade” entre Portugal e Espanha, eliminando os embaraços das incertezas dos limites dos domínios das duas Coroas na América, para assim “manter os seus vassalos em paz e sossego”. Os critérios estabelecidos para a fixação dos limites foram os seguintes: 1) suas balizas devem ser as paragens mais conhecidas (“origem e curso dos rios e os montes mais notáveis”) para obstar disputas, valorizando assim fronteiras naturais, e 2) “cada parte há de ficar com o que atualmente possui” – é o que veio a ser a tese do uti possidetis –, “à exceção das mútuas cessões as quais se farão por conveniência comum e para que os confins fiquem, quanto possível, menos sujeitos a controvérsias” – o que levou à cessão para a Espanha da Colônia do Sacramento, origem do que veio a ser o Uruguai e a cessão para Portugal da área das missões, que vieram a configurar os contornos do Estado do Rio Grande do Sul.

As teses de Gusmão exigiam o conhecimento do Brasil da época, incluídas as incertezas amazônicas. Daí a importância dos mapas de que se valeu nas negociações. Essa é a sólida origem das bases de uma diplomacia do conhecimento que norteou as negociações do Brasil em matéria de fronteiras levadas a cabo pelo Império e completadas na República por Rio Branco, e que com seus desdobramentos esteve a serviço da construção do Brasil. Daí a relevância do livro de Synesio e sua dimensão de atualidade, pois dá destaque ao acervo de realizações da política externa brasileira e ao soft power do seu capital simbólico.

É esse capital simbólico – que permite a adequada orientação no mundo – que a diplomacia do governo Bolsonaro se dedica cotidianamente a dilapidar. Ela alcança até o Tratado de Madri, pois foi a Fundação Alexandre de Gusmão do Itamaraty, na gestão Ernesto Araújo, que se recusou a patrocinar a publicação do livro, ora editado pela Record, por conta da mensagem do prefácio de Rubens Ricúpero, que, ao realçar os indiscutíveis méritos do trabalho de Synesio, insere-o no âmbito do profícuo papel da diplomacia brasileira nos destinos do Brasil.

*Professor Emérito da USP, foi ministro das Relações exteriores (1992 e 2001-2002)


Janio de Freitas: A pandemia não matou a doença do golpismo

Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça

ressurgimento de Lula da Silva, prestigiado até pela atenção da CNN americana, simultâneo a outros fatos de aguda influência, levam Bolsonaro ao estado de maior tensão e descontrole exibido até agora.Sua conversa com o ministro Luiz Fux e as palavras que a motivaram, centradas em referências dúbias a estado de sítio, tanto expuseram uma situação pessoal de desespero como o componente ameaçador desse desvairado por natureza. O pouco que Bolsonaro disse ao presidente do Supremo em sentido neutralizador conflita com a adversidade que cresce, rápida e envolvente, contra seu projeto.

Embora lerda como poucas, a investigação das tais "rachadinhas" de Flávio, além de outra vez autorizada, afinal vê surgir a do filho Carlos e encontra o nome Jair. O filho mais novo, ainda com os primeiros fios no rosto, inicia-se como investigado por tráfico de influência.

"Com crise econômica, o meu governo acaba" é a ideia que orienta Bolsonaro mesmo nos assuntos da pandemia. Nos quais não deu mais para manter a conduta de alienação e primarismo diante do agravamento brutal da crise pandêmica.

A reação de Bolsonaro foi a tontura do desesperado. Lula pega a bandeira da vacina, então é urgente pôr a vacina no lugar da cloroquina. Põe máscara. Tira máscara. Volta à cloroquina. Culpa os governadores. Mas o empurrado é Pazuello. Escreve carta solícita a Biden e recebe uma resposta de cobrança sobre meio ambiente. Volta à vacina. Falta vacina.

Se 300 mil mortes não importam a Bolsonaro, é esmagador o reconhecimento inevitável de que a vacina de João Doria veio a ser um pequeno salvamento e uma grande humilhação para o governo. E a economia decisiva? Inflação, necessário aumento dos juros, ameaça às exportações, fome, socorro em algum dinheirinho a 45 milhões e contra as contas governamentais.

Bolsonaro corre ao Supremo, com uma ação contra os governadores, pretendendo que sejam proibidos de impor confinamento e reduzir a atividade econômica ao essencial. Não sabe que o regime é federativo e isso o Supremo não teme confirmar.

"É estado de sítio. Se não conseguir isso [êxito no Supremo], vem medidas mais duras." Medidas duras contra governadores só podem ser intervenções. Não terá sido ocasional a presença da expressão estado de sítio antes da ameaça. Tudo no telefonema e no que foi dito depois reduz a uma ideia: golpe.Bolsonaro não se deu conta, no entanto, da variação já captada pelo Datafolha. Sua persistência contra a redução da atividade urbana não atende mais à maioria da sociedade. Sua demagogia perdeu-se nas UTIs. Apenas 30% dos pesquisados, nem um terço, recusam agora o isolamento, em favor da economia. E já 60% entendem que o confinamento é importante para repelir o vírus. O que é também repelir Bolsonaro.Volta-se ao risco maior: a pandemia não matou a doença do golpismo.

Tudo em casa

O corporativismo, conhecido nas ruas por cupinchismo, arma um lance espertinho para livrar-se de uma decisão entre duas possíveis: reconhecer que Sergio Moro levou à violação do processo eleitoral de 2018 pelo próprio Judiciário ou carregar, para sempre, o ônus de tribunal conivente com a violação, para salvar o que resta de Moro. Nessa armação, Kassio Nunes Marques faz sua verdadeira estreia no Supremo.

Os ministros Edson Fachin e Nunes Marques propõem que o plenário do Supremo examine primeiro a anulação das condenações de Lula. Se aprovada, seria cancelada a apreciação final, que deveria vir antes, sobre a imparcialidade ou parcialidade de Sergio Moro. Com essa inversão da agenda, Marques não precisaria dar o voto incômodo que protela. E Moro e suas ilegalidades, que Gilmar Mendes relatou, iriam para o beleléu. Com o necessário cinismo, a anulação das condenações seria dada como solução para o problema Moro. Complicado, mas esperteza óbvia não é esperta.

Ocorre, no entanto, que a ação à espera do voto de Nunes Marques é sobre a conduta de Sergio Moro como juiz, se cumpriu ou transgrediu as normas a que estava obrigado e agiu com ética judicial (a pessoal teve julgamento público). Disso a decisão de Fachin não trata, mas a moralidade judicial não pode dispensar.


Hélio Schwartsman: A tragédia poderia ter sido evitada

Sem citar Bolsonaro ou Covid, André Nemésio dispara um asteroide contra a política sanitária do atual governo

ficção científica tem uma legião de fãs dedicados. Não estou entre eles. Embora leia de tudo, eventualmente até ficção científica (e quase sempre com prazer), não sei de cor todos os títulos de Asimov, Bradbury e Clarke —e nem acho que tenha assistido a todos os episódios de “Jornada nas Estrelas”.

É estranho que a ficção científica não goze de grande prestígio literário, já que o gênero convida os autores a trabalhar com ideias em estado puro. Ela não é limitada pela ditadura da realidade nem pelos acidentes da geografia espacial e do estado tecnológico em que calhamos de viver.

No fundo, a única restrição que a ficção científica impõe é a de não violar sistematicamente as leis da física, as quais deixam enorme latitude para a imaginação. É um gênero perfeito para a crítica social, pois permite apontar problemas desvinculando-os de paixões presentes.

Faço essas considerações a propósito de “Crônicas do Cretáceo”, livro de estreia de André Nemésio, biólogo com o qual troco e-mails já há vários anos. A história gira em torno do asteroide que caiu sobre o que é hoje a península de Yucatán, 66 milhões de anos atrás, provocando uma extinção em massa. A tragédia poderia ter sido evitada. Não avanço mais para não cometer um “spoiler” sideral.

Impressionou-me a quantidade de discussões científicas fascinantes que André conseguiu reunir num enredo que prende a atenção. Quão comum é a vida no Universo? E a vida inteligente? Dinossauros poderiam ter criado uma civilização? Ainda entram debates sobre epistemologia, feminismo e, principalmente, sobre os riscos de ignorar a ciência. Sem nem mencionar Bolsonaro ou Covid-19, André dispara um asteroide inteiro contra a mortífera política sanitária do atual governo.

Detalhe revelador do rigor científico com que o autor trata os temas abordados, “Crônicas...” é um livro de ficção com notas de rodapé e bibliografia.


Bruno Boghossian: Espera inútil por moderação garante impunidade a Bolsonaro

Negacionistas da delinquência presidencial, políticos e juízes aceitam radicalismo mortífero

No penúltimo domingo de maio, Jair Bolsonaro provocou aglomeração durante um protesto contra o Congresso e o STF. Na terça, Rodrigo Maia fez na Câmara um "convite à pacificação dos espíritos". Dois dias depois, o presidente foi à portaria do Palácio da Alvorada e, aos gritos, lançou sua infame advertência ao Supremo: "Acabou, porra!".

A eterna ilusão de que Bolsonaro se tornaria um governante moderado circula há dois anos em Brasília. Na pandemia, essa fantasia ainda engana autoridades que aguardam pacientemente uma mudança de comportamento na gestão da crise. Essa esperança inútil legou ao país a tragédia impulsionada pelo radicalismo mortífero do presidente.

Rodrigo Maia não foi um negacionista da delinquência bolsonarista, mas eles estão por aí. No fim de 2020, um dos principais líderes do centrão dizia que a imagem desastrosa do governo na pandemia era "má vontade da mídia" e que o presidente havia abandonado o extremismo. "Ele notou que aquilo era um erro", disse o senador Ciro Nogueira.

Esses sócios do governo também viram sinais positivos quando Bolsonaro passou a falar bem da vacina e decidiu trocar um ministro da Saúde incompetente. Pouco depois, o presidente mostrou que não mudaria as diretrizes da gestão, voltou a defender a cloroquina e acionou o STF contra governadores que tentam conter o colapso de seus hospitais.

Ainda há quem espere mudanças. No auge da crise, o presidente do Senado disse que é hora de "sentar à mesa" e pediu "a coordenação do presidente da República". O chefe da Câmara afirmou que é preciso "evitar essa agonia e esse vexame internacional". Os dois estão atrasados.

No STF, Luiz Fux telefonou para o Planalto ao saber que Bolsonaro havia citado um cenário de estado de sítio ao ameaçar uma “ação dura” contra governadores que implantaram medidas de restrição. O autor da bravata disse que aquilo não era verdade, e o ministro se deu por satisfeito. Bolsonaro sabe que os negacionistas vão deixar por isso mesmo.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro tem de renunciar a si mesmo ou ao governo

Presidente, centrão e amigos encenam a farsa da união nacional na semana que vem

Imagine-se que, na semana que vem, Jair Bolsonaro renuncie a si mesmo. Que abdique da alma monstruosa que reina sobre o país da morte.

Nesse universo paralelo, Bolsonaro acaba por se render na guerra civil que luta contra estados e cidades, contra a vida e a razão. Passa a apoiar o distanciamento social. No Ministério da Saúde, saem generais e coronéis brucutus, terraplanistas e negacionistas em geral. Entra gente capaz de organizar a distribuição de UTIs, remédios para intubações, oxigênio etc.

governo federal convoca um comitê de cientistas que coordenará pesquisadores dedicados a entender as novas variantes do vírus e outras virologias, infectologias e epidemiologias que permitam inventar estratégias capazes de conter a disseminação da doença. Outro grupo prepara o plano para cuidar dos sobreviventes com sequelas do coronavírus etc. O delírio é livre.

É tudo imaginável, claro.

Bolsonaro arranjou para a semana que vem uma reunião em que espera receber apoio da cúpula de Judiciário e Legislativo para criar um “gabinete de crise” da epidemia (vai ocupar a sala do gabinete do ódio?). Será uma farsa, faltando saber apenas o tamanho da presepada. Para que não o fosse, Bolsonaro teria de renunciar a si mesmo.

Bolsonaro quer ganhar tempo, assim como seus cúmplices no comando do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Fará a pose do governante, no que tem sido ainda mais diminuído por prefeitos, governadores e até por Lula da Silva, que não governa coisa alguma.

Tentará sufocar conversas sobre CPIs ou coisa pior. Quem sabe ocorresse uma estabilização do número de mortes até o fim do mês. Seria resultado do trabalho de governadores e prefeitos, mas Bolsonaro, como o grande parasita que é, sugaria o esforço alheio.

Com uma mão grande, Bolsonaro afana a faina dos outros. Com a mão pesada do ferrabrás, Bolsonaro de novo volta a fazer ameaças de golpe, como em meados do ano passado. Para sua massa, seria o líder contra o caos social que adviria das políticas de distanciamento social. Para começar, sugere um estado de sítio.

Pacheco e Lira também ganham tempo até que o diálogo com Bolsonaro pela união contra a epidemia acabe por se revelar a farsa que é —ou até que as pessoas comecem a agonizar sufocadas nas calçadas dos hospitais.

O objetivo comum é conter com custo baixo a ira crescente contra o genocida. O acordão Bolsonaro-centrão não se sustenta com fúria popular crescente. Os colaboracionistas do empresariado, assim como os cúmplices por omissão, esperam também essa água na fervura que começa.

Para que a farsa durasse pelo menos um ato, Bolsonaro teria de engolir por uns dias as imundícies que cospe sobre as políticas de distanciamento, violência agora acompanhada de ações do governo na Justiça contra estados que adotam lockdowns (fajutos, mas ok). Seria também o mínimo para não desmoralizar logo de cara o ministro da Saúde que nem assumiu, esse que anuncia que a ciência irá para o governo.

Quanto mais tempo levar a farsa, melhor para a sustentação do grande acordo de morte entre centrão, Bolsonaro e o grosso da elite econômica.

Em abril, começa a ser pago o auxílio emergencial. Há uma chance de estados e cidades conterem a explosão contínua de mortes na virada do mês, a tal estabilização do horror. Neste mundo sem Deus e em um país que aceita quase 3.000 mortes por dia, tudo é possível. O tombo da economia e os 100 mil cadáveres extras até o fim de abril já estão no preço da política e da elite.


Elio Gaspari: Jennifer Doudna, a Decodificadora

Livro é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza.

Está nas livrarias “A Decodificadora”, de Walter Isaacson (foto). Num tempo de Covid, Bolsonaro, cloroquina e “gripezinha”, é uma vacina para a alma. Conta a vida da cientista americana Jennifer Doudna, prêmio Nobel de Química do ano passado.

Quando parece que o mundo vai acabar, algo de bom acontece. Em junho de 1940, os alemães haviam entrado em Paris, mas a americana Sylvia Beach resolveu reabrir sua livraria Shakespeare & Co. Vendeu apenas um exemplar de “...E o Vento Levou”. Dias depois, Hitler visitou a cidade, mas alguém estava lendo uma boa história.

Jennifer Doudna pesquisou um método de edição de genomas chamado CRISPR. Em português, “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”. Felizmente, mesmo com um tema agreste, Isaacson é capaz de lidar com essas coisas de forma compreensível. Com sucesso, já contou a vida de Steve Jobs e Albert Einstein. Grosseiramente, o CRISPR é um método de “copia e cola” de sequências genéticas. Graças a ele, criaram-se vacinas contra a Covid em menos de um ano.

“A Decodificadora” é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza. Quando criança, no Havaí, ela viu o mistério das plantas “não me toques”, aquelas que abrem e fecham suas folhas ao passar dos dedos.

Num mundo em que um presidente de Harvard disse que mulheres não têm aptidão para a ciência, Doudna ralou, mas mostrou o tamanho da bobagem. (O economista Larry Summers perdeu o emprego.)

Isaacson publicou sua biografia de Steve Jobs quando todo mundo estava familiarizado com os computadores. “A Decodificadora” apareceu no meio de uma pandemia e explica o mundo das vacinas, mas ainda parece difícil entender um universo com DNA, RNA de interferência ou as bactérias que se defendem de vírus. Mesmo assim, algum esforço ajuda as pessoas a se proteger de algo pior: a superstição.

No dia 12 de março do ano passado, Jennifer Doudna ia buscar o filho num torneio de robótica, quando recebeu uma mensagem avisando que o evento havia sido cancelado e todos os jovens deviam voltar para casa. Era o lockdown.

Naquele mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro dizia, no Palácio da Alvorada:

— Eu acho... Eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.

Quando Bolsonaro expunha suas crenças, na Alemanha, o casal de médicos Ugur Sahin e Ozlem Türeci firmou uma parceria com a Pfizer para produzir uma vacina que transporta informações genéticas, o tal RNA Mensageiro. A dupla sabia que o Coronavírus resultaria em algo muito diferente das “outras gripes”. Sua vacina já foi aplicada em cerca de 20 milhões de pessoas. Em novembro, a empresa fundada pelos dois valia US$ 21 bilhões. Tornaram-se uma das famílias mais ricas do país e continuam no mesmo apartamento. O casal contará sua história num livro que sairá no fim do ano.

(O Ministério da Saúde brasileiro só comprou vacinas da Pfizer na semana passada.)

Boa ideia

Corre no Conselho da Justiça Federal do STJ uma ideia que parece boa, simples e barata. É a criação de Varas de Inquérito.

Sem precisar criar um só cargo, separam-se nas ações penais os juízes que cuidam de inquéritos e aqueles que prolatam sentenças. Na prática, se o Sergio Moro estivesse numa vara de inquérito, poderia fazer tudo o que fez, mas quando chegasse a hora da ação penal, o caso iria para outro juiz.

Essa mudança pode ser feita sem grandes sobressaltos e sem novas despesas. Tem a vantagem de impedir o surgimento de novas repúblicas de Curitiba ou, pelo menos, tornar mais difícil o seu aparecimento.

Santos Cruz

Para quem sonha com a possibilidade de trazer o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz para uma disputa eleitoral, vale a pena lembrar que lhe foi oferecida a candidatura a prefeito do Rio, e ele recusou.

General em armação política é coisa que não acaba bem. O vice-presidente Hamilton Mourão não é metade do que lhe disseram que seria.

Há cerca de meio século, um pedaço da oposição transformou o general Euler Bentes Monteiro em candidato na eleição (indireta) de 1978.

Euler era um oficial de vitrine, rigoroso, cordial e bom administrador. Perdeu, foi para seu sítio e morreu em 2002. A oposição que havia cortejado estava no poder e mal se lembrou dele. Seu obituário foi noticiado abaixo do registro da morte da inesquecível porta-bandeira Mocinha, da Mangueira.

Bolsonaro x Lula

Quando Jair Bolsonaro disse, com toda naturalidade, que Lula ficará inelegível, mostrou que acredita num salto triplo carpado, partindo das virtudes contorcionistas do ministro Nunes Marques.

Se ele pular logo, ficará feio. Se demorar, poderá ser tarde.

Datafolha no Planalto

Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.

Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.

Com 79% dos entrevistados achando que a peste esta fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.

Bolsonaro e o sítio

Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.

No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá, e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.

Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é.

No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.

As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.

Em 1981, procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.

Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.

Isolamento social

Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.

Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.

Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos 15 já foram embora.


Míriam Leitão: A palavra que habita em nós

Genocídio. Por que a palavra ficou tão presente na vida brasileira? Porque ela é usada quando um povo está morrendo. Nós estamos morrendo. Todas as outras palavras parecem pálidas. Prisioneiros de uma armadilha institucional e trágica, os brasileiros morrem diariamente aos milhares. Os remédios usados no tratamento extremo, a intubação, estão acabando, e o país está numa macabra contagem regressiva de quantos dias durarão os estoques. O que acontecerá se os medicamentos acabarem antes de serem repostos? Seremos intubados sem sedativos ou sufocaremos? Nós não estamos apenas morrendo. Caminhamos para morrer em maior número e de maneira mais cruel. Que nome deve ser usado? Genocídio.

A palavra habita nossas mentes porque estamos vendo os fatos, temos consciência do destino. Objetivamente, é a única que temos para descrever os eventos deste tempo. Quem se ofende com ela, se fosse pessoa com sentimentos humanos, teria reagido para evitar a tragédia. Nós sabemos sinceramente que nada podemos esperar de quem empurrou o país para este momento de barbárie.

A armadilha em que estamos é que não há remédio institucional fácil, e suficientemente rápido, para neutralizarmos o agente de nossa própria morte. Não temos legítima defesa. Os democratas respeitam as regras do jogo constitucional. O constituinte não pensou que haveria um tempo assim tão perigoso em que o governante atentaria contra a vida coletiva. Na Constituição está escrito que a saúde é um direito do povo e um dever do Estado. Esse é o primeiro princípio, de uma infinidade de outros, que está sendo quebrado.

O presidente da República convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal para participar de um comitê de combate à pandemia. Estranho, porque ele nunca combateu a pandemia. Ao mesmo tempo, ingressou no Supremo contra três governos estaduais que tomaram medidas para reduzir a circulação de pessoas e, portanto, do vírus. O ministro Luiz Fux perguntou aos colegas se devia ir e recebeu a aprovação. Fux vai para um “diálogo institucional”, mas já avisou que não participará de uma comissão formal. Não existe meia entrada nessa reunião. Jair Bolsonaro está em litígio com os governadores. Se o STF vai julgar essas ações não pode participar de diálogo algum. É uma armadilha. Mais uma.

O que mais ele terá que fazer? Quantas mortes serão suficientes? Quanto fel ele ainda terá que destilar? Até quando os poderes da República vão acreditar que estão diante de um governo normal, com o qual se pode ter diálogo?

Desde o início desta pandemia o presidente da República escolheu seu lado. Não é o da vida. Diariamente ele maquina o mal. Ficou contra cada medida que poderia evitar mortes. Seu governo se nega a fazer a coordenação que, numa federação centralizada como a nossa, cabe à União. Ele não apenas se omite, ele age. Bolsonaro sabota a ação do aparato de Estado que o país construiu. O Ministério da Saúde é uma sombra do que foi, do que poderia ter sido nesta crise. A demolição institucional continua sendo executada com crueldade.

O presidente é pessoa de extrema perversidade. Mas um perverso com método. Ele apostou, desde o início, que a melhor forma de se salvar é defender que a economia deve continuar funcionando. Calculou que a imunidade coletiva chegaria e nesse momento ele diria que estava certo desde o início. Então a raiva da população ferida poderia ser dirigida contra os outros. Que outros? Todos. Governadores, prefeitos, ministros do Supremo, adversários políticos, jornalistas. Qual a variável de ajuste dessa equação? Os mortos. Podem ser quantos forem até que se atinja a imunidade coletiva que, na sua visão, viria da contaminação em massa. Bolsonaro certa vez comparou o coronavírus à chuva. “Ela vai molhar 70% de vocês”. Bolsonaro está errado desde o início. A ciência nos ensina que diante deste vírus mutante e mortal a imunidade coletiva só virá com a vacinação em massa.

O presidente adotou conscientemente o caminho de nos levar para esta exposição máxima ao vírus porque desta forma se chegaria, na cabeça dele, ao fim da pandemia. O caminho está errado sob todos os pontos de vista: médico, científico, humano. Ele está nos levando para a morte. Qual é a palavra exata? Genocídio.


Eliane Cantanhêde: Guerra insana

A união nacional contra a pandemia só funciona com uma premissa: isolar Bolsonaro

O Brasil exige união de forças contra o coronavírus, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha na direção oposta, pela desunião e o caos. Enquanto instituições, Estados e Municípios buscam a iniciativa privada e articulam uma frente para salvar vidas e garantir atendimento e humanidade aos pacientes, o presidente da República insiste na sua guerrinha pessoal, insana e cheia de ameaças autoritárias contra governadores e isolamento social. 

Na quinta-feira à noite, o presidente da Câmara, Arthur Lira, foi à residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ali ao lado da sua, para discutir a extrema gravidade da situação e formas de reagir, abrindo portas com empresas, fábricas e laboratórios, para suprir o que já começa a faltar: leitos, oxigênio, medicamentos para intubação e, sim, vacinas, vacinas, vacinas. 

Na sexta, às 8h em ponto, o general Luís Eduardo Ramos, secretário de Governo da Presidência, chegou à casa de Pacheco com o mesmo objetivo, tentando viabilizar uma reunião na próxima terça com os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do Supremo, o procurador-geral da República e um representante dos governadores de cada região do País.

E o que anda fazendo Bolsonaro? Trabalhando a favor da pandemia! É um aliado incondicional do coronavírus, faça chuva ou faça sol, morram 30 ou 300 mil, o que deixa, inclusive, uma dúvida: que papel terá na terça? O que dirá? Que compromissos assumirá?

Como Bolsonaro não é um interlocutor minimamente apto na pandemia e ninguém se dirige ao Planalto para tratar de providências, os poderes e entes federativos se acertam e tomam decisões. Rodrigo Pacheco também se reuniu com o quase futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e mandou ofício ao quase ex Eduardo Pazzuelo sobre cronogramas de vacinas – atrasados, confusos e de baixa credibilidade.

E o senador pediu à sua correspondente nos EUA, Kamala Harris (que acumula a vice com a presidência do Senado), um “gesto de solidariedade” para negociar as doses excedentes de vacinas com o Brasil e, assim, atacar a pandemia no seu atual epicentro e aumentar a segurança nos países das Américas. São bons argumentos.

Enquanto os Poderes se mexiam, Bolsonaro anunciava uma ação contra o toque de recolher no DF, Bahia e Rio Grande do Sul, para conter a circulação de pessoas e do vírus assassino. Se o Supremo acatar a ação, ele estará liberado para abrir uma guerra mortal aos governadores e às medidas de combate à pandemia. Mas o Supremo não vai acatar. 

Ato contínuo, o presidente disse a apoiadores que “o caos vem aí” e “vai chegar o momento de tomar uma ação dura”. Luiz Fux, que preside a Corte, telefonou para ele. Não há indicação de estado de sítio e governadores têm autonomia para decretar toque de recolher, previsto na lei sobre a pandemia. Bolsonaro erra, confunde, ameaça e o ministro da Justiça, André Mendonça, usa a Lei de Segurança Nacional contra quem usa o termo “genocida” e critica o presidente. 

Cidadãos pregarem um cartaz em Palmas (TO) dizendo que Bolsonaro “não vale um pequi roído” é muito diferente de um deputado ameaçar “dar uma surra” num ministro do Supremo. Uma coisa é liberdade de expressão e crítica, como cartazes contra Bolsonaro e balões de Lula presidiário. Outra é o crime de ameaçar bater em ministros, invadir suas casas e jogar fogos de artifício sobre o Supremo. 

Assim como o vírus, o presidente está fora de controle, sempre testando os limites da democracia. Não vê o que todos vêem: o colapso da saúde e as mortes. Mas vê o que ninguém vê: insurreição popular e quebra-quebra, mantendo seus delírios sobre golpes e arroubos autoritários. Uma união nacional contra o vírus depende de uma premissa: isolar Bolsonaro. 


Carlos Melo: Eleição não tem ponto sem nó

Política é um jogo de barganhas; à sociedade cabe torcer e zelar para que as negociações coincidam com interesses coletivos

sistema eleitoral brasileiro implica um emaranhado de interesses, com afiado senso de oportunidade. Política é um jogo de barganhas; à sociedade cabe torcer e zelar para que as negociações coincidam com interesses coletivos. Nesse contexto, o eleitor compõe sua chapa conforme suas preferências, influenciado por pressões locais. Faz as combinações que bem entende. Os agentes se ajustam em torno disso.

Na confluência dos interesses nacionais e locais, as trocas independem de alinhamentos em relação ao governo federal de ocasião. Candidatos a presidente carecem de palanques locais: gente que os espere nos aeroportos, agitando bandeiras, e recursos de toda ordem. Buscam tanto quanto possível as mais fortes lideranças, operacionalmente capazes. 

Candidatos regionais são suscetíveis a ondas de opinião pública – Plano Real, em 1994; antipetismo, de 2018. Buscam embalo em candidaturas com maiores perspectivas de decolar, em nível nacional. Em 2018, em razão do antipetismo, Jair Bolsonaro decolou e viveu o ápice de uma carreira apagada. Em São Paulo, João Doria não hesitou em assumir o “Bolsodoria” e Márcio França esconjurou o PT, aliado tradicional do seu PSB. O cálculo é objetivo e oportunista. O “depois” fica para depois. 

Há, portanto, um sofisticado jogo de conciliação de interesses. Engenharia política para profissionais conhecedores da peculiaridade de cada Estado e sensíveis ao momento político. Resulta disso a pérola de pragmatismo colhida pela reportagem do Estadão: “de São Paulo para ‘baixo’ o PL vai com Bolsonaro; de São Paulo ‘para cima’, com Lula”. É apenas um exemplo. 

Esse ecletismo é facilmente compreendido: dados da pesquisa do Ipec sobre potencial de votos dos candidatos Lula e Bolsonaro (publicada recentemente pelo Estadão) apontam que, no Nordeste, 55% dos consultados afirmam votar em Lula, com certeza; 19% o fariam relação a Bolsonaro. Já no Sul, 32% votariam com certeza em Bolsonaro e 26% em Lula. Ideologias às favas; eleição não tem ponto sem nó.

*Cientista político. Professor do Insper


O Estado de S. Paulo: Em vez de ‘frentes amplas’, alianças locais moldam articulações para eleições de 2022

Proposta de possíveis presidenciáveis de formar grandes coalizões para a disputa com Bolsonaro esbarram no pragmatismo das negociações partidárias em nível estadual

Pedro Venceslau, O Estado de S. Paulo

Enquanto presidenciáveis falam em formar alianças amplas para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro na eleição de 2022, líderes políticos fazem contas pragmáticas sobre os interesses partidários regionais, que serão determinantes no plano nacional. Agremiações assediadas do centro à esquerda por quem busca apoio na disputa ao Palácio do Planalto têm projetos estaduais prioritários. Os casos mais emblemáticos são o PSB, o DEM e o PSD

O PSB avalia lançar um “outsider” à Presidência enquanto mantém conversas com o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seus direitos políticos restabelecidos. A decisão final, entretanto, vai passar por um acordo em Pernambuco, hoje a principal base da legenda, que governa o Estado e a prefeitura do Recife. 

O sociólogo Juliano Domingues, professor de Ciência Política da Universidade Católica de Pernambuco, prevê que o ex-prefeito do Recife Geraldo Júlio (PSB) será o candidato natural ao governo na sucessão de Paulo Câmara (PSB), seja alinhado com o PDT ou com o PT. “O fator decisivo será a variável ‘Lula elegível’”, disse o professor. “Não por acaso, surgiram notícias de uma possível reaproximação entre PSB e PT logo após a decisão de Fachin sobre os processos de Lula”, acrescentou, referindo-se ao ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, que anulou as condenações do petista na Lava Jato e o reabilitou a disputar eleições. “Caso se confirme essa reaproximação, ela representaria uma potencial ‘traição’ ao projeto de Ciro e enfraqueceria uma liderança emergente do PT, a deputada Marília Arraes (PE), que se desfiliou do PSB justamente por discordar do comando do partido, ainda na época de Eduardo Campos.” 

Atualmente, o PSB está alinhado com o PDT em 13 Estados, segundo o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi. “As alianças regionais criam o ambiente”, disse o dirigente. “Se você está junto com outro partido em dez estados, a (direção) nacional precisa observar essa realidade. Caso contrário, existiria, na prática, uma aliança nacional e outra regional, o que cria dificuldade.” 

Já o presidente do PSB, Carlos Siqueira, avaliou que todo problema nacional tem um pé no local. “É natural que as coisas se influenciem, mas o PSB vai apoiar aquele que se apresentar como a pessoa mais capaz de agregar forças políticas para vencer Bolsonaro e fazer um governo de união nacional. Não descartamos apoiar ninguém.” 

Bahia

O DEM mantinha relação estreita com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mas se afastou do tucano após a bancada do partido na Câmara se aproximar de Bolsonaro. A legenda também conversa com o PDT, mas o fator decisivo será o tabuleiro eleitoral na Bahia. Presidente do DEM, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto planeja disputar o governo, e seu provável adversário será o senador Jaques Wagner (PT). 

“A troca de apoio mútuo entre um Estado e outro aparece no plano horizontal, mas não necessariamente em função vertical. Ou seja: aliança nacional determinando a aliança estadual. Se dá um cruzamento. A lógica é não perder para o atraso. As alianças são para não perder os Estados para a concepção do atraso”, disse o governador da Bahia, Rui Costa (PT). 

A avaliação de deputados e quadros do DEM é de que Neto não tem outra opção a não ser posicionar-se no polo oposto ao de Lula em uma eventual polarização. Costa, por sua vez, governa com uma ampla aliança que vai do PP ao PSB, passando por Podemos, PSD e PL. 

Minas Gerais

No caso do PSD, o discurso do presidente da sigla, Gilberto Kassab, é o de que o partido terá candidato à Presidência em 2022. Foi o que ele reafirmou ao Estadão. Nos bastidores, porém, a avaliação é de que as costuras em torno da candidatura ao governo mineiro do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), vão influenciar um eventual acordo nacional. Como o PSD tem vocação governista nos Estados, Kassab terá de ouvir os caciques regionais antes de tomar uma decisão. 

A lógica local prevalece nos partidos do Centrão. Um deputado do PL ouvido pela reportagem disse que a palavra final é sempre de Valdemar Costa Neto, que comanda a sigla. O dirigente vai consultar todos os Estados e avaliar qual estratégia tem maior potencial de ampliar a bancada. Ainda de acordo com esse mesmo deputado, “de São Paulo ‘para baixo’, o PL é Bolsonaro; ‘para cima’, é Lula”. 

No Rio, a construção de uma aliança em torno do deputado Marcelo Freixo para disputar o governo fluminense terá peso nas negociações entre PSOL e PT para apoiar Lula em 2022. Petistas admitem apoiar o deputado. Em outra frente, o deputado Rodrigo Maia (DEM) deve se filiar ao MDB e assumir o controle da sigla no Estado. Se isso se confirmar, Maia ganhará uma cadeira ao lado de Renan Calheiros, Jader Barbalho, José Sarney e Baleia Rossi no colegiado de líderes que comanda o MDB de fato. 


Lourival Santanna: O magnetismo político que torna um país refém de seu líder

Os mais suscetíveis são os que foram menos expostos ao pensamento racional

Brasil vive a maior tragédia de sua história. A epidemia do coronavírus é um desafio de gestão, mas adquiriu tamanha dimensão no Brasil por causa da estratégia de poder do presidente. Jair Bolsonaro está aplicando no Brasil técnicas testadas por Donald Trump nos Estados Unidos. Essa abordagem encontra no Brasil condições ainda mais favoráveis do que nos EUA.

O objetivo é capturar a adesão de um contingente suficiente da população para tornar o país refém de seu líder. Não é preciso que seja a maioria, como não foi nos EUA e não é no Brasil. O mais importante é a intensidade da adesão, o grau de fidelidade.

Como o restante da população está desmobilizado e aturdido, essa minoria se torna dominante pela coesão e lealdade ao líder.

Não é uma lealdade construída sobre fatos nem sobre raciocínios lógicos, mas sobre a emoção. Para entender o cimento que une o líder e os seguidores, é preciso fazer uma analogia com a religião. Não é escolha racional. É fé. Tanto assim que parte desse contingente associa o líder a sua igreja. Outra parte segue apenas o líder político, o que torna sua fé ainda mais intensa, já que sua demanda pelo sagrado está centrada exclusivamente nele.

Da mesma maneira como a fé religiosa, a crença num líder político também se constrói com convicções que não podem ser comprovadas empiricamente. O benefício é intangível. Nas religiões, os fiéis são instados a realizar sacrifícios para provar sua fé. Essa é a chave que desconecta o seguidor da realidade material, e o eleva a uma experiência sobrenatural. Daí a necessidade de desprezar a gestão, a ciência, a estatística, o jornalismo e qualquer atividade ancorada no empírico. 

Outra analogia é com a linguagem dos sonhos. Quando sonhamos, nossas experiências do dia anterior são armazenadas em nossa memória. Enquanto assiste a esse fluxo cerebral, o inconsciente reorganiza as imagens que representam essas experiências de acordo com as emoções que elas provocam.

Os sonhos usam representações de coisas reais. Mas elas aparecem associadas de forma muito diferente da realidade. Coisas separadas no tempo e no espaço na nossa experiência real se juntam nos nossos sonhos, e adquirem significado totalmente diferente. Por serem representações do real, acreditamos na trama que estamos sonhando.

Pela história desfila uma longa linhagem de governantes que inspiraram esse fervor messiânico, do imperador romano Júlio César à dinastia Kim na Coreia do Norte, passando por Adolf Hitler, Benito Mussolini, Juan Domingo Perón, Getúlio Vargas, Fidel Castro, Hailé Selassié, Idi Amin Dada e tantos outros.

As narrativas desses líderes coletam experiências reais e as reordenam de uma nova forma, para dar aparência de lógica e legitimidade a suas posições. Seus seguidores não despertam do sonho. Passam a interpretar o mundo segundo o pensamento mágico, em que o desejo se sobrepõe à realidade, e a interpretação passa a criar o fato. 

É um giro copernicano ao contrário. É como voltar a acreditar que o Sol gira em torno da Terra (ou que ela é plana). A partir dessa inversão fundamental na ordem entre realidade e emoção, o indivíduo ingressa em um mundo paralelo.

É uma revolução. No campo político, líder e seguidor estabelecem relação direta, sem a mediação de partidos, leis, parlamento, sistema judiciário ou qualquer referência externa. É uma identificação: líder e seguidor se tornam, no plano afetivo, a mesma pessoa.

A coesão é alimentada cotidianamente por parábolas que provocam medo e raiva nos seguidores. São teorias conspiratórias que provam que o líder é um salvador ameaçado por forças malignas, externas ao seu culto.

As pessoas mais suscetíveis ao magnetismo dessa liderança são as que foram menos expostas, de forma sistemática, organizada e atraente, ao pensamento racional. Noutras palavras, as menos educadas (e não necessariamente mais pobres). Essa não é uma regra absoluta, mas estatisticamente muito consistente.

É por isso que no Brasil essa abordagem do poder tende a ter mais tração do que nos Estados Unidos, onde a penetração e a qualidade do ensino são muito maiores. Além disso, a elite americana é muito mais bem preparada do que a brasileira, e as instituições, mais sólidas.

É preciso entender tudo isso para esboçar uma resposta eficaz a esse desafio, e ao menos gerenciar o seu enorme dano. Grande parte da elite brasileira acreditou que ficaria protegida do efeito destrutivo da precariedade da educação no País. Foi preciso uma pandemia para escancarar a incongruência desse projeto.