Day: março 15, 2021

Daniela Jacques: O “xeque mate” na educação foi dado. E agora?

A expressão “xeque mate”, usada para indicar o lance final de uma partida no jogo de xadrez, aplica-se bem para o atual modelo de educação. É o que apontam as últimas pesquisas realizadas em 2020. A UNICEF, apresentou o resultado de uma pesquisa online feita com 40 mil jovens em mais de 150 países, mostrando que aquela crença de que um diploma universitário garantiria a qualificação profissional e um emprego valorizado e bem remunerado não seria mais uma realidade percebida por estudantes, profissionais e executivos. A pesquisa apontou que muitos jovens sentem que o modelo educacional atual não os ajuda a desenvolver habilidades necessárias para conseguir um emprego. Da mesma forma, os programas de treinamento que lhes são oferecidos não correspondem às suas aspirações de carreira.

As principais habilidades que os jovens desejam adquirir para ajudá-los a conseguir emprego na próxima década são liderança (22%), seguida de pensamento analítico e inovação (19%) e processamento de informações e dados (16%) – UNICEF

Essa percepção também ocorre entre os CEOs globalmente (74%). Segundo uma pesquisa da PwC, eles se preocupam em desenvolver habilidades para que possam expandir seus negócios, e consideram que as pessoas que mais precisam de qualificação são aquelas que têm menor acesso às oportunidades.

Assim, enquanto a sociedade demanda por uma educação que garanta o aprendizado de habilidades profissionais desde a escola, a partir dos 11 anos no mundo, e no Brasil aos 14 anos, o sistema de educação se distancia das questões reais, complexas e práticas da sociedade, a partir de um ensino que privilegia a memorização, em vez de profundidade e compreensão.

Para um melhor entendimento, o Fórum Econômico Mundial mapeou quais são os desafios globais mais urgentes, e trouxe interconexões entre várias tendências, realçando conexões importantes e que continuarão a evoluir de formas imprevisíveis nos próximos anos.

Diante desse cenário, o nosso desafio é enorme: como construir um novo modelo de educação, em um ambiente de complexas e constantes mudanças, com profissões e demandas que ainda nem existem?

Center for Curriculum Redesign (CCR), órgão internacional e centro de pesquisas, reuniu grupos (organizações internacionais, jurisdições, instituições acadêmicas, corporações e organizações sem fins lucrativos) com diversos pontos de vista e tem se dedicado a identificar quais são os padrões educacionais para o século XXI, como por exemplo, o Projeto de Educação 2030, da OECD ( Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A partir de 32 estruturas, consideradas importantes no mundo inteiro, chegou a quatro dimensões de objetivos para a educação do século 21.

Conhecimento – A educação seguirá no aprendizado de matérias tradicionais e consideradas importantes. No entanto, não cabe mais reproduzir conhecimento, mas sim extrapolar o que se conhece, aplicando esse conhecimento em situações inseridas em uma realidade do mundo real.

Habilidades – É ensinar como se usa o conhecimento. Esta visão redefine a transferência do aprendizado para que as pessoas aprendam em situações novas no mundo real, desenvolvendo a criatividade, o pensamento crítico, a comunicação e a colaboração.

Caráter – Se refere à aquisição e ao fortalecimento de virtudes (qualidades) e valores (crenças e ideais) e à capacidade de se tomar decisões para que a vida seja mais equilibrada e a sociedade mais próspera.

Meta-aprendizado ou ‘aprender a aprender’ – Se refere aos processos internos pelos quais refletimos e adaptamos nosso aprendizado. Está na importância de desenvolvermos ao longo da vida habilidades e motivações, e no entendimento de que, quanto mais aprendemos, mais as concepções que temos do mundo ficam antiquadas. Para isso acontecer, é preciso que o estudo e o ensino sejam dinâmicos e permanentes (lifelong learning), sendo necessário a evolução do currículo estático e único, para um dinâmico que possa ser revisto e atualizado continuamente. Outro ponto é reservar partes do currículo para que possam ser personalizadas aos interesses e objetivos de crescimento pessoal de cada aluno.

Ao invés de se seguir um padrão único e inflexível, o que acaba limitando e desestimulando o indivíduo no próprio aprendizado e no desenvolvimento de sua criatividade, é importante respeitar as diferenças individuais no aprendizado. Isso é mostrado poeticamente na animação Cloudy”. O novo modelo de educação, independente de ser voltado para crianças, adultos ou executivos, deve trazer resultados práticos, como uma maior realização pessoal e profissional, propiciando maior capacidade de participação na sociedade, colaborando para um mundo mais sustentávelPara se adequar a esta realidade, o Fórum Econômico Mundial lançou a Plataforma Reskilling Revolution para ajudar a preparar 1 bilhão de pessoas a conseguir melhores empregos, educação e habilidades essenciais nos próximos 10 anos.

Mesmo diante de pesquisas que demonstram profissionais, estudantes e líderes insatisfeitos com a educação, por que é tão difícil mudar as metodologias, possibilitando melhorias individuais e sociais?

O artigo Cultural Innovation (Inovação Cultural) aponta que para ocorrer mudanças significativas é fundamental desconstruir certos valores culturais que predominam na educação. É importante entender de que forma as empresas, pessoas e mídia atuam, e quais são suas principais crenças, preferências e valores. Por isso, é importante pensar como um sociólogo, dando um passo para trás, identificando aquilo que seja óbvio. Para o autor, somente estes questionamentos abrem novas perspectivas para a inovação.

No livro Relativizando, Roberto Da Matta, propõe um excelente exercício para sairmos da nossa zona de conforto: “torne o familiar em estranho, e o estranho em familiar”. A partir deste pensamento, eu trago alguns autores consagrados que provocaram questionamentos e com isso, possíveis rachaduras no sistema cultural vigente:

 Será que a memorização de grande quantidade de conteúdo ainda é necessária nesta era em que podemos encontrar a resposta para tudo na internet?

 Uma universidade poderia admitir também pessoas com notas mais baixas nos testes e transformá-las em líderes (em vez de admitir apenas aquelas com as notas mais altas, a maioria oriunda de família de maior renda, que possivelmente poderiam torna-se líderes, independentemente dos quatro ou cinco anos de graduação?

Por que, embora os empregadores desejem candidatos com níveis altos de QE, resiliência, empatia e integridade, esses raramente são atributos que as universidades desenvolvem ou selecionam nas admissões?

Os questionamentos acima trazem um ponto importante: colocam o ser humano no centro, da mesma forma que a metodologia apresentada pelo Center for Curriculum Redesign (CCR). Só o ser humano tem capacidade em usar suas emoções para apaziguar conflitos, utilizar o pensamento crítico na tomada de decisões, ou a criatividade na busca de soluções, para um mundo melhor. São visões assim que fazem a diferença.

Como exemplos, cito a professora brasileira, Doani Emanuela Bertan, que é TOP 10 no ‘Global Teacher Prize 2020′, considerado o Nobel da educação. Ela ensina matemática, português, geografia e ciências em Português e em linguagem de Sinais (Libras), no canal de Youtube Sala8, tornando mais acessível o conhecimento a jovens surdos. Outro exemplo é o do professor indiano Ranjitsinh Disale, ganhador do Prêmio Professor Global, que tem contribuído paratransformar a vida de muitas jovens estudanteslivrando-as do casamento precoce, e para que se dediquem aos estudos na Índia. No mundo corporativo o livro 6D: as seis disciplinas que transformam educação em resultados para o negócioapresenta ações estratégicas que têm como objetivo tornar programas de treinamento corporativos mais efetivos e mensuráveis, eliminando obstáculos para que o aprendizado alcance seu pleno potencial e contribua de forma estratégica.

O mundo exige uma educação integrada com a sociedade e com o mercado de trabalho. Somente assim, teremos uma sociedade mais igualitária e próspera. O xeque-mate foi dado, e agora, como cidadãos, temos mais condições de exigir novos modelos de educação e de desenvolvimento como um direito para melhorias individuais e sociais.

Michael Fullan, especialista em reforma educacional, acredita que a ideia seja 25% e a implementação, 75% da solução. Por isso, é urgente colocar a mão na massa. Educadores, escolas públicas e privadas, empresas de treinamento, RH das empresas, corporações, institutos e startups, podem aplicar os resultados dessas pesquisas no mundo real. Testando, errando, avaliando e ajustando em parceria com a sociedade civil. O “xeque mate” na educação foi dado.


Valdir Oliveira: O tempo de Cazuza, a escolha de Sofia e a eleição de 2022

O ano era 1988 e o rock brasileiro apresentava mais uma antológica obra-prima de Cazuza. O tempo não para é um desabafo. Cazuza questionava a elite brasileira ao bradar “a tua piscina está cheia de ratos, tua ideia não corresponde aos fatos, o tempo não para”. O tempo cantado era a esperança de mudança para um mundo melhor.

O cansaço das apostas políticas frustrantes se traduz na descrença de dias melhores. Que visão teve Cazuza quando mostrou que sua geração, criada sob a opressão de uma ditadura, quando se libertou, não conseguiu se livrar das mazelas que tanto combateu. A decepção foi revelada com a música Ideologia, quando o compositor diz “o meu partido, é um coração partido”. A inspiração de Cazuza o fazia refletir sobre o paralelo entre um jovem criado numa repressão, com o anseio da liberdade, e um adulto frustrado com a liberdade mal aproveitada por uma abertura política contaminada por velhas práticas. O coração partido do poeta chorava no verso “e as ilusões estão todas perdidas, os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito”. É a presença do dilema em nossas vidas, o desafio das escolhas.

Esses dias assisti a um clássico, A Escolha de Sofia. Esse filme eternizou o livro de mesmo nome e faz uma viagem ao holocausto, ao campo de concentração de Auschwitz. Uma polaca, filha de um antissemita, é presa pelos nazistas e mandada ao campo de concentração com seus dois filhos, duas crianças. Com feições arianas e não sendo de uma família judia, Sofia tentou uma condição especial na chegada ao campo de concentração por achar que não se enquadrava no perfil de alvo do nazismo. Mas o sadismo de um oficial nazista impôs à ela uma escolha impossível. Escolher, dentre os dois filhos, qual viveria e qual morreria. Não escolhendo, ambos seriam mortos. A impossível escolha de Sofia.

Um conflito insanável para uma mãe. A vida é permeada de decisões difíceis. A inspiração do poeta Cazuza ensina que a vida, às vezes, toma decisões por cada um de nós, lembrado no verso “Já que eu não posso te levar, quero que você me leve”. A escolha entre caminhos. Não escolhido algum, a vida decidirá.

O ambiente político, nos últimos anos, tem sido contaminado pelo extremismo e pelo ódio. Estamos tomados pela teoria do pêndulo, onde a alternância do poder fica na mesmice, ou como cantou Cazuza “um museu de grandes novidades”. A não concordância com posições nos faz optar pelo extremo oposto, como se não pudesse existir o equilíbrio entre pensamentos e teses distintas. Se não existe uma verdade absoluta, o extremo jamais representará o melhor caminho. Não somos binários. As tradicionais peças do xadrez político nos remetem ao quente ou frio, sem que se possa optar pelo morno. O recado da população foi que mudar é preciso. Os movimentos políticos dos últimos dias colocaram o Brasil na gangorra onde o eleitor estará, novamente, em cima ou embaixo. O equilíbrio é importante para que as eleições de 2022, a festa da democracia, não nos imponham a escolha de Sofia.

O eleitor precisa se transformar no protagonista dessa festa. Caso contrário, será submetido ao interesse dos outros, sujeito a quem faz da política a defesa do interesse próprio. Como diz Cazuza “não me convidaram para essa festa pobre que os homens armaram para me convencer”. Se não tomar a iniciativa, o eleitor pagará a conta, mas não entrará na festa, como Cazuza desabafou na canção, “não me ofereceram nem um cigarro, fiquei na porta estacionando os carros”. Essa é a frustração por deixarmos que os outros decidam o nosso destino. O dilema entre o esperar e o fazer, entre o acomodar e o buscar. A escolha entre passar pela vida ou fazer dela a oportunidade de construir seus próprios sonhos.

Não esperar, não pedir, ir lá e fazer. Essa é a melhor tradução para a palavra mudar. Não é fácil sair da zona de conforto para enfrentar a incerteza de um mundo de injustiças e ingratidões. A definição entre o esperar ou mudar é o que pode evitar a escolha de Sofia. Participar da festa pode ser o caminho de quem não quer decidir entre extremos inconciliáveis. Afinal, já ficou provado que o menos ruim não resolve. O chamado da política consciente deve entrar no jogo de 2022 para que se evite a escolha impossível. O rock marcou as gerações com a irreverência de quem quer mudar, de quem não nasceu para esperar, mas para fazer. Sair da zona de conforto e assumir o protagonismo. A arte de Cazuza nos ensinou a não esperar pela felicidade, mas vivê-la diariamente, como no verso “pro dia nascer feliz, essa é a vida que eu quis”. E qual será a vida que fará cada um, e uma nação, feliz?

Valdir Oliveira é superintendente do Sebrae no DF


DW Brasil: Há 50 anos, morria o maior idealizador da escola pública brasileira

Para especialistas, legado de Anísio Teixeira ainda está presente na organização do ensino nacional. Seu nome batiza o instituto que aplica o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)

Em 11 de março de 1971, o educador, escritor e jurista Anísio Spínola Teixeira (1900-1971) iria almoçar com o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), no apartamento dele, em Botafogo, no Rio. Mas ele foi encontrado morto no fosso do elevador do prédio. Oficialmente, um acidente. Mas muitos acreditam que Teixeira tenha sido vítima da ditadura militar.

Ferrenho defensor da educação universal, laica e gratuita para todos, um dos mais notáveis signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, e um dos idealizadores da Universidade de Brasília (UnB) − da qual seria reitor e, com o golpe de 1964, aposentado compulsoriamente pelos militares − seus posicionamentos e pensamentos incomodavam o regime ditatorial.

Cinco décadas após sua misteriosa morte, especialistas concordam que seu legado ainda é visível na educação brasileira. Em sua tese de doutorado pela Unicamp, de 2018, a pedagoga Maria Cristiani Gonçalves Silva apontou Teixeira como "o maior idealizador e, portanto, a maior referência na luta por uma educação pública de qualidade, igualitária, laica, de dia inteiro, que vise a formação plena de nossas crianças e jovens".

"A ideia de uma escola pública, laica, gratuita e de qualidade para todos é talvez a mais lembrada, mas seu legado é ainda mais amplo. Não é possível discutir educação integral sem recorrer aos escritos de Anísio, que influenciaram as primeiras experiências no país", afirma o ex-secretário de Educação de São Paulo Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades e pesquisador da Universidade de Columbia e da Fundação Getúlio Vargas.

"A defesa de um fundo para o financiamento da educação pública livre da influência dos políticos de plantão, e o entendimento da docência como profissão também merecem lembrança. Anísio foi um intelectual que 'colocou a mão na massa', como secretário de Educação da Bahia, em funções no Ministério da Educação e como reitor da UnB, universidade da qual foi um dos idealizadores."

O linguista Vicente de Paula da Silva Martins, professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e que estudou o tema em seu mestrado, define como impressionante a "visão ampla de pedagogia" de Teixeira, para quem "a criança deveria ser estudada não apenas em seus aspectos físicos, mas também com relação à sua história, sua relação com o meio e suas origens".

"Muitos pesquisadores em educação mostram o valor da obra de Anísio Teixeira na concepção de educação integral com base no pragmatismo, na compreensão de que o homem se forma e desenvolve na ação", aponta ele.

Escola Nova
Nascido em Caetité, no interior da Bahia, filho de médico e líder político na cidade, Teixeira foi desde cedo incentivado pelo pai a ocupar postos públicos. Estudou em colégios jesuítas e graduou-se na instituição hoje chamada de Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois de formado, retornou à Bahia. Aos 24 anos, foi nomeado Inspetor Geral do Ensino, cargo hoje equivalente ao de um secretário estadual.

Teixeira viajou por diversos países europeus e foi aos Estados Unidos para conhecer experiências educacionais. "Foi assim que tomou conhecimento de um movimento muito importante iniciado no final do século 19, identificado por Escola Nova ou Escola Ativa", contextualiza o pedagogo Ítalo Curcio, coordenador do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Nos anos 1930, quando já era secretário de Educação do Rio de Janeiro, Teixeira tornou-se um dos 26 autores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O documento é considerado um marco inaugural da organização do ensino brasileiro, ao definir premissas que resultariam em um plano nacional de educação e princípios de gratuidade, universalidade, obrigatoriedade e laicidade.

"Além da apresentação de um novo modelo em nível de métodos e estratégias de ensino, destaca-se em Anísio Teixeira sua defesa pelo ensino público e laico, já comum e corrente na maioria das nações mais desenvolvidas", aponta Curcio.

Mais tarde, na década de 1950, o educador passou a atuar pela organização do ensino superior brasileiro. "Estes trabalhos levaram à criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível de Pessoal de Nível Superior [Capes], no ano de 1952, da qual foi seu primeiro presidente", completa o pedagogo.

"O maior legado que vemos em Anísio Teixeira é o da perseverança e abnegação da defesa do ensino de qualidade, seja no âmbito público, seja no setor privado", diz Curcio. "Este legado fica claro em suas ações, em diferentes governos, independentemente de linhas ideológicas."

Para o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), Teixeira foi "o campeão na luta contra a educação como privilégio".

Lei de Diretrizes e Bases
Citada pela primeira vez na Constituição de 1934 − por influência de Teixeira − o Brasil só ganharia sua Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1961. Trata-se do conjunto de normas que regularizam a organização da educação brasileira, a partir dos princípios constitucionais. E o pensamento de Teixeira segue presente, inclusive na versão mais atual, sancionada em 1996 − redigida com grande participação do educador Darcy Ribeiro (1922-1997), que era próximo de Teixeira.

Martins acredita que, não fossem figuras como Teixeira, "dificilmente teríamos uma Lei de Diretrizes e Bases". Ele vê inspiração do ideário do educador em pontos como o artigo 3º da regulamentação, que determina igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, respeito à liberdade e apreço à tolerância, gratuidade do ensino público, garantia de padrão de qualidade, vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

"A ampliação das instituições públicas de nível superior, com qualidade compatível às similares internacionais, aprimoramento dos institutos de pesquisa, formação continuada dos professores e o acesso universal à educação básica, itens constantes nas metas do atual Plano Nacional de Educação, são realidades sonhadas e defendidas por Anísio Teixeira desde a década de 1920", avalia Curcio. "E que podem ser vistas hoje, mesmo que com muitas carências ainda."

Para o pedagogo, "pode-se dizer que Anísio Teixeira é o mentor da educação brasileira contemporânea, atuando não somente como planejador, mas também como organizador e inspirador de seus sucessores."

Manter o sonho vivo
"É inegável que a educação no Brasil teve grandes avanços nos últimos 40 anos: há mais crianças e adolescentes na escola, é possível medir a qualidade de ensino, os professores têm nível superior e os mecanismos de financiamento da educação pública estão bem assentados. Por outro lado, ainda estamos longe do sonho de garantir educação de qualidade para todos, as experiências de educação integral ainda são localizadas em escolas de elite ou algumas redes públicas e os profissionais de educação ainda se submetem a longas jornadas de trabalho em diversas escolas", comenta Schneider. "Manter o sonho de Anísio vivo é lutar por escola pública de qualidade para todos como pressuposto do funcionamento da democracia."

Teixeira deixou uma vasta obra. Entre seus livros mais importantes estão Educação é um direito, Educação não é privilégio e A educação e a crise brasileira.

"A maioria dos pressupostos defendidos por ele encontram muita ressonância na escola brasileira hoje", comenta Martins. "As condições de oferta do ensino público, é verdade, ainda deixam muito a desejar."

O educador empresta seu nome a diversas instituições de ensino do país. Autarquia do Ministério da Educação, responsável pela aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que ele presidiu nos anos 1950, também incorporou Anísio Teixeira ao seu nome oficial.


Igow Gielow: Pazuello resume o dano que aderir a Bolsonaro causou aos militares

Gestão desastrosa de general é símbolo da adesão das Forças ao governo Bolsonaro

A desastrosa gestão de Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde, ora encerrada, concentra todas as contradições da relação das Forças Armadas com o governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro.

General de intendência com três estrelas no ombro, topo de sua carreira, Pazuello gozava de ótima reputação entre seus pares.

Sua fama de coordenador logístico foi criada durante o exercício multinacional Amazonlog-17, em 2017, no qual foi simulado o atendimento humanitário a refugiados nas fronteiras amazônicas do Brasil com a Colômbia e com o Peru.

Ela acabou consolidada na prática, com a Operação Acolhida de refugiados da ditadura venezuelana em 2018, gerenciada por Pazuello.

Foi elogiado efusivamente pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, no seu polêmico livro-depoimento. Para ele, “sem falsa modéstia, [Pazuello] fez com que nos tornássemos referência mundial”.

Na Saúde após a não-passagem de Nelson Teich na esteira da implosão política de Luiz Henrique Mandetta, Pazuello comprovaria o adágio segundo o qual os militares “cumprem missão e resolvem problemas”.

A questão é que o problema estava acima das capacidades do general e a missão, explicitada quando ele baixou a cabeça a Bolsonaro e freou a compra de vacinas no ano passado, estava corrompida.

A adesão tardia à vacinação e ao distanciamento social e o entusiasmo pela coloroquina, por motivação política contra a Coronavac de João Doria ou simples cegueira epidemiológica, ajudaram o país a se tornar um celeiro de variantes mais mortíferas do Sars-CoV-2.

São ao menos dez processos sobre o manejo da pandemia, com a crise de Manaus como seu maior símbolo, que podem colocar Pazuello, e por extensão simbólica os militares, no banco dos réus.

Houve crises secundárias, como a maquiagem de números da Covid-19, a bizarra militarização de postos na Saúde e até a escolha de uma amiga para um cargo comissionado do ministério por Pazuello. Isso tudo temperado pelo tom autoritário em qualquer entrevista coletiva.

Generais da ativa, em campanha para tentar dissociar sua imagem daquela dos fardados no governo, perceberam que o fato de Pazuello não ter ido à reserva cobraria um preço ainda maior da corporação.

Houve todo tipo de pressão para que isso acontecesse, mas o fato é que o militar não só ficou na ativa, mas ainda operou uma tentativa de saída honrosa articulando uma inexistente promoção para a quarta estrela.

Ao fim, com 2.000 cadáveres sendo empilhados diariamente devido à pandemia no Brasil, Pazuello cedeu, assim como Bolsonaro —no caso, à pressão de seus novos amigos do centrão e à entrada avassaladora de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no jogo de 2022.

Para as Forças Armadas, Exército à frente, sobrou o ônus de imagem.

A ideia acalentada pelos militares que viram em Bolsonaro o caminho para a idealização de seu antipetismo e para a redenção final de imagem pela ditadura era a de que forneceriam quadros qualificados para um novo tipo de governo.

Enquanto suas capacidades estavam circunscritas à falta de articulação política ou às ideações paranoides da área de inteligência, o público não tinha muito o que dizer.

Quando a incapacidade ou, na visão de pessoas que o admiram, o respeito à hierarquia de Pazuello se impuseram e legaram o pior da crise ao país, a história é outra.

Pois a adesão a Bolsonaro, descrita de forma didática no livro de Villas Bôas, traz intrínseca uma armadilha: militares são seres que respeitam hierarquias.

Assim, declarações golpistas do hoje vice-presidente Hamilton Mourão foram punidas tanto no governo Dilma Rousseff (PT) quanto no de Michel Temer (MDB).

Quando vários oficiais-generais, da ativa e da reserva, migraram para o governo Bolsonaro, a identificação ficou patente.

A ameaça de crise institucional de 2020, quando Bolsonaro namorou hordas golpistas na rua, engolfou a cúpula militar, Ministério da Defesa incluso.

Como reação àquele momento crítico, houve um afastamento crescente da ativa, culminando numa fala do sucessor de Villas Bôas, Edson Leal Pujol, que parecia ter riscado uma linha divisória no chão.

Pazuello na Saúde apagou tal fronteira. Sua saída deverá facilitar o restabelecimento dela, mas o dano à imagem dos fardados vai demorar muito mais tempo para ser consertado.

Isso se deve às opções feitas sob a supervisão de Villas Bôas, outro ícone militar brasileiro. Essa autocrítica, feita apenas à boca miúda por alguns setores, ainda está para ser feita.


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro escolhe médico Marcelo Queiroga como ministro da Saúde

Médico, que entra no lugar do general Pazuello, será o quarto nome a assumir a pasta desde o início da pandemia

Marcelo de Moraes e Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Sob pressão para conter o avanço do novo coronavírus no País, o presidente Jair Bolsonaro decidiu nomear o médico Marcelo Queiroga para o Ministério da Saúde. O presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia vai substituir o general Eduardo Pazuello, demitido depois de acumular desgastes, como a demora para a compra de vacinas e falta de coordenação com Estados no combate à covid-19, e das quase 280 mil mortes causadas pela doença. Queiroga, que é pró-isolamento, será o quarto a assumir o comando da pasta desde o início da pandemia, há um ano.

Ao escolher o cardiologista, Bolsonaro segue uma indicação feita pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho mais velho, após a recusa da médica Ludhmila Hajjar, que era o nome preferido do Centrão e de ministros do Supremo Tribunal Federal, muitos dos quais foram seus pacientes.

Horas antes de o próprio presidente anunciar a troca no pior momento da pandemia, Pazuello fez um desabafo em entrevista virtual na sede da pasta. “Eu não vou pedir para ir embora. Não é da minha característica. Isso não é um jogo, uma brincadeira (para dizer) ‘quero ir embora’. Isso é sério, a pandemia, é o Ministério da Saúde”, disse o general, que havia assumido o cargo em maio do ano passado.

A grande dúvida, agora, é se Queiroga terá autonomia para gerenciar a ação do ministério no enfrentamento da pandemia ou se repetirá o comportamento de Pazuello, que obedeceu às ordens sem questionamento. Embora afirme que seus auxiliares têm liberdade, na área da Saúde o presidente tem atuado como se ele fosse o ministro. Os outros médicos que passaram pelo posto, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, deixaram o cargo justamente por não aceitarem a interferência de Bolsonaro. 

A escolha de Queiroga foi anunciada por Bolsonaro após os dois se reunirem no Palácio do Planalto. “Já o conhecia há alguns anos. Não é uma pessoa que tomei conhecimento há alguns dias. Tem tudo, ao meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento ao que Pazuello fez até hoje”, disse o presidente ao falar com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. “Paralelamente a tudo isso, o senhor Marcelo Queiroga, médico, também gestor, mas muito mais entendido na questão de saúde”, acrescentou. 

Queiroga foi o plano B de Bolsonaro. Só foi escolhido depois da desastrada operação feita para tentar convencer a médica Ludhmila Hajjar a aceitar o cargo. Chamada no domingo para conversar com o presidente no Palácio da Alvorada, a médica passou por uma espécie de sabatina de quase três horas comandada por Bolsonaro, pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e por Pazuello. O ministro já sabia que tinha sido rifado pelo presidente. 

Na conversa, Ludhmila passou por momentos constrangedores. Foi questionada sobre defesa de tratamento precoce, incluindo o uso de cloroquina, e ouviu críticas sobre o lockdown praticado pelos governadores. Discordou frontalmente da posição do presidente. Mas precisou falar até mesmo sobre sua posição em relação às armas, numa pergunta feita por Eduardo. 

Depois do segundo e rápido encontro que sacramentou a recusa, o governo não esperava que Ludhmila fosse à imprensa e contasse com riqueza de detalhes as razões da não aceitação do convite. A leitura dos aliados do presidente é de que a médica passou a ideia de que recusou o convite porque Bolsonaro seguia intransigente na defesa das suas práticas.

Ligações

O acerto com Queiroga foi mais fácil pela sua proximidade com o clã Bolsonaro. Ele é amigo de Flávio e já havia sido indicado para uma vaga de diretor na Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas a nomeação estava parada no Senado. Também fez parte da equipe de transição do governo após a eleição de Bolsonaro, em 2018.

Na prática, a escolha técnica que Bolsonaro fez para o Ministério da Saúde passa por laços familiares. Os três principais nomes cotados para o cargo integram a diretoria da SBC. E lá são colegas de diretoria de Hélio Roque Figueira, sogro de Flávio. Nessa espécie de “clube do coração”, Queiroga é o presidente da SBC, Ludhmila é coordenadora de Ciência, Tecnologia e Inovações e Figueira é coordenador de Assuntos Estratégicos. 

Mesmo elogiado pelo presidente na saída, Pazuello sabe que agora precisará lidar com as consequências de sua gestão. Suas ações são investigadas pelo Supremo Tribunal Federal, que apura seus atos e eventuais responsabilidades pela crise generalizada no sistema de saúde. Além disso, fora do ministério, o general perde o foro privilegiado e o caso vai para a primeira instância.

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Marcelo Godoy: Oposição compara Bolsonaro ao general argentino Leopoldo Galtieri

Entre colegas de Pazuello, saída do ministério seria alívio, mas críticos não acreditam que ela diminua o estrago feito pela pandemia

Caro leitor,

a crise sanitária, as críticas à gestão de Jair Bolsonaro do combate à covid-19 e a decisão do ministro Edson Fachin de anular as sentenças que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reacenderam em generais desvinculados de Jair Bolsonaro o receio do retorno da esquerda ao poder. Alguns procuram se afastar do estigma de terem apoiado um governo que a oposição ora compara ao de Chaves, o coronel que governou a Venezuela, ora ao de outro militar, o general Leopoldo Galtieri, da Argentina.

Jair Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro durante sua 'live' semanal nas redes sociais na quinta, dia 11 Foto: Reprodução/Facebook

O prócer do Exército argentino foi responsável por uma das maiores desmoralizações armadas do século passado: a derrota na Guerra da Malvinas. Esse desastre nacional retirou os militares da política do país, depois de a terem dominado por mais de 50 anos, de forma quase ininterrupta. Era 1982. Galtieri lançou mão de uma aposta: a invasão das Ilhas Falkland galvanizaria o país, unindo a nação vizinha em torno de seu governo. Não contava com a resposta britânica. Assim como os coronéis gregos não esperavam a reação turca quando, em 1974, resolveram se envolver na política cipriota.

Na análise dos descontentes com o governo, Bolsonaro e os generais que o apoiam criaram as condições para a crise quando trataram as decisões da Saúde como se nelas houvesse espaço para palpiteiros desinformados e inconsequentes. Nomearam um general amigo, paraquedista como Bolsonaro e tantos outros do Planalto, para cuidar do desafio. A manobra do grupo de amigos da Brigada Paraquedista parecia imaginar que o protagonismo de Eduardo Pazuello daria o crédito pela vitória sobre a pandemia a um general, inaugurando-lhe  – quem sabe? – um futuro político, como senador ou governador. 

Faltou combinar com o vírus. O Sars-Cov-2 não perdoou o descaso bolsonarista com a doença. Não são poucos os oficiais que se queixam do fato de que mantém em suas unidades protocolos rigorosos de segurança sanitária – ignorados no Planalto pelo presidente e seu entourage. Após um ano de pandemia, dificilmente, cada militar não conhece alguém – familiar ou não – que tenha sido atingido de forma grave pela doença.

Muitos tiveram colegas, amigos e familiares mortos; outros que sobreviveram ao coronavírus estão sequelados, com as perdas parciais da audição, do olfato ou do paladar, além do comprometimento da capacidade pulmonar e de locomoção. O coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, perdeu 70% da audição após passar 47 dias internado em razão da covid. Existe quem entrou em coma e dele não saiu até hoje. No Exército, entre os militares da ativa, o total de mortos é de cerca de 40. Mas quem suporta o maior peso da pandemia são os seus 77 mil homens da reserva.

Foi o caso do coronel Fanoel Santos, cavalariano da turma de 1981 da Academia Militar das Agulhas Negras. Ele é lembrado por seus ex-alunos do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), de São Paulo, como um instrutor  respeitado, duro, mas que estava sempre ao lado deles nos acampamentos e sabia o que estava fazendo. Com chuva ou frio, motivava a todos em suas “voltas pelo mundo”, da sede do CPOR à marginal do Tietê até retonar ao quartel, em Santana. “Ele era um cara que dava a cara a bater. Isso é uma tristeza para todos que o conheceram”, contou o jornalista Wilson Baldini Júnior, repórter do Estadão que teve Fanoel como seu instrutor em 1986. 

Fanoel lutava contra a covid-19 desde dezembro. Tinha 62 anos e apoiava Bolsonaro. A doença o levou há uma semana. Há mortos e feridos aos borbotões pelo País e um general na Saúde e um capitão no Planalto que não visitam os hospitais para agradecer aos médicos e levar conforto aos doentes. Até o general Patton – aquele que esbofeteou um soldado com shell shock e foi interpretado no cinema por George C. Scott – visitava enfermarias para honrar seus heróis. E quem enfrentou o vírus, como pedia o presidente? Que palavra receberam do presidente? Um ‘e daí’? Um ‘eu não sou coveiro’. Eles merecem indiferença? Um líder não pode fazer pouco da vida de seus compatriotas. 

Apoiadores de Bolsonaro lotam ruas, festas e praias para depois encher hospitais. Ocupam os mesmos leitos que tratam de quem se contaminou no trabalho ou pelo contato familiar. Ao ver o presidente comparecer de máscara a uma reunião no Planalto, na quarta-feira, um general ouvido pela coluna comemorou. Pensou que, talvez, a novidade sinalizasse para uma Presidência que procuraria a moderação, a fim de recuperar apoios que ameaçam cair no colo de sua nêmesis, o petista Lula. Sua ilusão durou algumas horas. A reação de Eduardo Bolsonaro ao aconselhar um uso heterodoxo das máscaras desvelou outra vez a natureza do governo. É conhecido o brocardo: o fruto não cai longe da árvore. 

Se os militares sabem o que esperar de um governo Bolsonaro – aumentos salariais, verbas blindadas, diretorias de estatais e prestígio –, as incertezas sobre o seu futuro fazem com que se interessem sobre o que pensam as outras forças políticas que disputarão com o presidente a eleição de 2022. No PSDB, encontram a defesa da criação de uma Guarda Nacional, o que levaria ao afastamento das Forças Armadas de parte das operações de Garantia de Lei e Ordem. Fernando Henrique Cardoso também já deixou claro que considera um privilégio a manutenção da integralidade e da paridade nas aposentadorias.  

E o PT? Em artigo recente, o ex-deputado federal José Genoino afirmou que não “há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro”. Ele defendeu a introdução de uma regra de quarentena  para que militares possam ocupar cargos públicos – a medida seria extensiva a juízes e promotores. Ela impediria, por exemplo, não só que Pazuello fosse ministro ainda sendo general da ativa, mas o obrigaria a estar um certo tempo na reserva antes de ocupar a função. A medida encontra apoio de outros líderes do partido, como o ex-governador mineiro Fernando Pimentel

Não só. Genoino defende a adoção do modelo americano, com cada Força tendo um chefe de Estado-Maior subordinado ao ministro da Defesa, e a criação de uma Guarda Costeira e de uma polícia de fronteiras – como nos EUA –, para retirar as Forças Armadas das ações de Garantia de Lei e Ordem. Há ainda receios entre os petistas de que Bolsonaro se radicalize diante da perspectiva de derrota para um candidato do centro ou de esquerda em 2022. O próprio presidente reforça esse temor, como o leitor viu no editorial Nem o Diabo, publicado na edição de domingo do Estadão.

A crise na Saúde pode não ser suficiente para derrotar Bolsonaro. O desastre militar fez Galtieri perder o poder. Entregar a cabeça de Pazuello para se salvar do pesadelo que seu nome evoca não fará diferença para um presidente que não sabe a distinção entre comandar e governar. É verdade que a retirada do general da Saúde agradaria aos colegas que se incomodam com sua presença no ministério –há semanas já havia até no Planalto quem reconhecesse o erro do governo com as vacinas. Mas isso não encerra a novela, assim como o torpedeamento do cruzador Belgrano não concluiu o drama das Malvinas. 

É que Bolsonaro continuará à frente de um governo sem propor nada para deter o vírus que ameaça os brasileiros, além da vacinação atrasada. Resta saber se os generais vão acompanhar o presidente até o fim, apoiando tratamentos sem eficácia científica comprovada e o boicote ao distanciamento social e ao uso de máscaras. O erro nas vacinas causou demora na imunização, abrindo espaço para  milhares de novas mortes. Já são quase 300 mil. Não há ministro novo que possa remediá-las. O cardeal Richelieu dizia ser preciso ouvir muito e falar pouco para se agir bem no governo. Definitivamente, este não é o caso de Bolsonaro.

*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).


Pedro Doria: Caso da ex-futura ministra da Saúde mostra como opera a rede bolsonarista

O episódio que expôs a médica Ludhmila Hajjar à sede de sangue nas redes sociais de direita ilustra como o lado raiz do bolsonarismo opera. Após a onda de cancelamento digital a qual foi submetida, Hajjar vai informar ao presidente Jair Bolsonaro que não aceitará o convite que lhe foi feito para assumir o Ministério da Saúde, conta Lauro Jardim. Mas até esta sua decisão, vale retomar o que ocorreu.

A notícia de que o ministro Eduardo Pazuello estava de saída já circulava quando Hajjar chegou domingo a Brasília, no início da tarde, para se encontrar com o presidente no Palácio do Alvorada. Ela estava conversando com Bolsonaro quando o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, se manifestou publicamente no Twitter defendendo sua indicação para o cargo.

E foi durante a conversa, também, que, numa onda, começaram a pipocar, a partir de perfis bolsonaristas, imagens de Hajjar com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, o vídeo de uma live no Instagram em que ela conversava com a ex-presidente Dilma Rousseff, e o áudio, que tudo indica ser falso, no qual, ainda no início da pandemia, a médica teria chamado o presidente de “psicopata”.

Esta onda não acontece simultaneamente sem ser planejada. É preciso fazer a pesquisa das imagens, o que leva tempo e exige quantidade de pessoas dedicadas nos sites de busca. O áudio, que teria circulado por WhatsApp, é ainda mais difícil de ser localizado. E, se falso, como garante a médica, precisa ser fabricado. O nome da cardiologista, sugerido pelo Centrão como resposta do governo ao discurso pró-ciência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não podia ser recusado de bate-pronto. Era preciso criar uma situação que o tornasse inviável.

Foi o que as redes que o presidente controla fizeram. E fizeram num momento em que ela, reunida com o próprio Jair Bolsonaro, não poderia se defender.

O método de fritura agressiva tem consequências políticas que, com o desgaste do governo neste momento agudo da pandemia, se tornam maiores. O presidente da Câmara dos Deputados se expôs em defesa da cardiologista. Ali está um recado de como Bolsonaro deseja construir o relacionamento com o Centrão. Se não gostar de um dos nomes sugeridos, vai trabalhar para uma humilhação pública. Indicados pelo Centrão, em alguns casos, poderão ver a citação de seus nomes como um presente de gregos para troianos — não sinal de prestígio, mas uma maldição que pode lhes custar caro em suas carreiras.

Só que Bolsonaro precisa mais do Centrão do que o Centrão de Bolsonaro. O método é, politicamente, suicida.


Folha de S. Paulo: Evangélicos liderados por Malafaia vão a Bolsonaro para dar recado anti-Lula

A ideia dos líderes religiosos é oferecer apoio espiritual ao presidente em um período turbulento do país

Anna Virginia Balloussier, Folha de S. Paulo

Silas Malafaia checa o Grupo Aliança, que reúne no WhatsApp nomes conhecidos do pastorado nacional. É quinta (11), dia seguinte ao primeiro discurso que Lula (PT) deu após saber que, ao menos por ora, nenhum empecilho judicial o impede de concorrer à Presidência em 2022.

O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo tinha compartilhado um vídeo em que desanca a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular as condenações da Lava Jato contra o ex-presidente.

Estevam Hernandes, líder da Renascer em Cristo e idealizador da Marcha para Jesus, responde com emojis de aplausos, mesma reação de Abner Ferreira, à frente de uma das maiores alas da Assembleias de Deus, a Madureira, e Rina, apóstolo da Bola de Neve.

Malafaia tritura as chances de o petista se reaproximar de pastores que, como ele, foram aliados seus no passado. "Lula está ferrado com os evangélicos!"

Nesta segunda-feira (15), boa parte daquele grupo será recebida no Palácio do Planalto por Jair Bolsonaro: Malafaia, Estevam, Abner, Rene Terra Nova (pastor influente no Norte) e outros. A ideia, dizem, é oferecer apoio espiritual à mais alta autoridade política num período turbulento do país.

Também será uma amostra da resistência que Lula terá com líderes que, exceto um ou outro, alinharam-se em peso ao PT em eleições anteriores.

O mau humor aumentou com a fala do ex-presidente na quarta (10). Um trecho em particular foi mal digerido: "Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, muitas mortes. E que o papel das igrejas é ajudar para orientar as pessoas, não é vender grão de feijão ou fazer culto cheio de gente sem máscara, dizendo que tem o remédio pra sarar".

Desde o começo da pandemia, a maioria das denominações argumenta que templos, por ofertarem socorro espiritual em tempos difíceis, devem permanecer abertos, seguindo o protocolo sanitário.

"Lava a boca pra falar da igreja, cachaceiro!!!", publicou em suas redes sociais o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), integrante da tropa de choque de Malafaia no Legislativo. O post ecoou a irritação desses líderes com Lula, que em janeiro de 2020 orientou o PT a melhorar a comunicação com evangélicos.

"Quero até fazer discussão com eles. Quero mostrar quem foi o presidente que mais os tratou com respeito", afirmou à TV do Trabalhador. Na mesma entrevista, brincou que teria até "jeitão de ser pastor, tô de cabelo branco".

Esse canal, contudo, fechou. Ao menos por enquanto.

"A grande maioria dos que apoiaram Lula no passado sofreram grande decepção diante de tanta corrupção e também com as medidas ideológicas que vão contra os nossos princípios", diz o apóstolo Cesar Augusto, fundador da Igreja Fonte da Vida e parte da comitiva que estará com Bolsonaro —alguém que, em sua visão, "soube interpretar os anseios do cidadão comum brasileiro, de todos que valorizam a família, o patriotismo e a fé alheia".

A projeção dos votos evangélicos no segundo turno de 2006, quando Lula venceu Geraldo Alckmin (PSDB), ilustra como a predileção pelo petismo já imperou nesta parcela religiosa do eleitorado: seis em cada dez evangélicos optaram por reelegê-lo naquele ano.

A maré mudou em 2014. Aécio Neves (PSDB) obteve uma leve preferência do grupo contra Dilma (53% a 47%), segundo o Datafolha. O ponto de inflexão começava aí para engatar de vez na vitória de Bolsonaro, quando cerca de 70% dos evangélicos o preferiram a Fernando Haddad (PT).

"Pela primeira vez, quase 100% dos líderes cristãos importantes apoiaram um único candidato. Há uma pequena ala que, independentemente do cenário, estará alinhada aos pensamentos dos partidos de esquerda e consequentemente com Lula", diz Rina, da Bola de Neve.

"Os demais que apoiaram Lula antes não o fizeram por convicção política ou cumplicidade ideológica. Talvez por conveniência, talvez por ignorância."

Para ele, "o fenômeno que ocorre hoje surgiu do fato de estar muito claro e evidente, para esta mesma liderança, a abismal incompatibilidade entre a ideologia marxista e os princípios e valores cristãos".

Em 2018, um áudio de Rina circulou no WhatsApp como se fosse do padre Fábio de Mello. Dizia o pastor que, "quando vejo quem são os inimigos do Bolsonaro, eu falo 'eu tô escolhendo o cara certo para votar'".

À Folha Rina afirma que, desde o resgate das eleições diretas, o Brasil evangélico nunca contou "com um candidato realmente de direita". Até 2018.

pastor Samuel Câmara, também aguardado em Brasília, diz que ladeou com Lula até sua reeleição. Não mais. É mais flexível do que colegas sobre as chances do petista se reabilitar com a liderança evangélica: "Irreversível ou impossível, não. Difícil, sim".

Câmara é presidente da chamada Igreja Mãe das Assembleias de Deus no Brasil, a sede pioneira da denominação, fundada há 110 anos, em Belém (PA).

Questionado se vê alguma margem para conciliação com Lula, responde com um provérbio bíblico: "É mais difícil ganhar de novo a amizade de um amigo ofendido do que conquistar uma fortaleza".

Petistas reconhecem a robustez eleitoral dos evangélicos, mas se dividem sobre como agir. Por um lado, alguns lembram que a maioria desses líderes que hoje defenestram o partido já foram aliados, assim como se juntaram a todos os governos pós-redemocratização.

Ou seja, estariam onde o poder está. E não daria para abrir mão dos fiéis que os escutam —Malafaia sozinho acumula 7,5 milhões de seguidores nas três principais redes sociais no Brasil, não muito atrás dos 9 milhões que Lula soma.

Por outro lado, há quem analise que a ruptura com o PT foi violenta demais para fazer as pazes agora. "Chance zero", diz Marco Feliciano (Republicanos-SP), deputado com trânsito no gabinete presidencial.

Em 2010, ele exaltava Lula como "alguém que desperta a esperança no coração do povo". Hoje diz que não repetirá o erro. "Os evangélicos estarão com Bolsonaro, pois estamos certos de três coisas: a pauta de perversão dos costumes continuará paralisada, teremos um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal e a embaixada brasileira estará em Jerusalém."

As duas últimas são promessas feitas a evangélicos que ainda não se concretizaram ainda no governo atual. Já a agenda conservadora caminha a passos lentos no Congresso.

Feliciano encara como certa a polarização entre Lula e Bolsonaro em 2022. "Todas as demais candidaturas viraram pó, pois é impossível que os dois não estejam no segundo turno."

Malafaia vê o cenário com mais cautela: "[Sergio] Moro pode ser um nome a despontar . A política é muito dinâmica e dá muitas voltas", diz o pastor que, em 2002, chegou a aparecer na propaganda eleitoral de Lula.


Mônica Bergamo: Ludhmila diz a Bolsonaro que não aceita Ministério da Saúde

Ministros e parlamentares defendiam o nome dela, mas não houve consenso

A cardiologista Ludhmila Hajjar comunicou na manhã desta segunda (15) ao presidente Jair Bolsonaro que não aceita o convite dele para comandar o Ministério da Saúde.

Os outros nomes cotados para o cargo agora passam a ser os do cardiologista Marcelo Queiroga e o do deputado federal Luiz Antonio Teixeira Jr. (PP-RJ), o "Doutor Luizinho". Ele precise a comissão especial do Congresso que acompanha a Covid-19.

Ludhmila se reuniu no domingo (14) por quase três horas com o presidente. O atual comandante da pasta, Eduardo Pazuello, participou do encontro, em que a médica foi consultada se aceitaria suceder o general.

Depois que a coluna divulgou que os dois conversavam, Ludhmila passou a ser alvo de ataques ferozes de bolsonaristas no próprio domingo. Eles não concordam com o apoio dela a medidas de isolamento social, à vacinação em massa de brasileiros e à constatação de que até hoje nenhum estudo confirmou a eficácia de medicamentos como a cloroquina no tratamento da doença.

Foram divulgadas também declarações críticas dela à condução da epidemia no país e um vídeo de uma live que ela fez com a ex-presidente Dilma Rousseff, além de um suposto áudio em que a médica teria se referido a Bolsonaro como "psicopata". Ela nega a veracidade do áudio.

Bolsonaro, por sua vez, resiste a aderir a um discurso a favor do isolamento. E segue insistindo que o tratamento precoce funciona.

Ministros, auxiliares do presidente e políticos que defendiam a cardiologista no Ministério da Saúde tentaram reverter a situação nesta manhã. Em vão.

Havia uma crença de que ela acabaria aceitando o convite, por ter se entusiasmado, num primeiro momento, com a possibilidade de ir para o governo quando foi convidada para conversar com Bolsonaro.

Ela teria projetos e clareza do que acredita ser necessário fazer para frear a epidemia e evitar um colapso geral no Brasil. Os ministros acreditam que o sonho de ser ministra pode acabar pesando mais do que as divergências abissais que ela tem com o presidente em relação ao combate à Covid-19.

No diálogo de domingo, todos os temas da epidemia da Covid-19 foram tratados, especialmente a necessidade de apoio a medidas duras de isolamento social para frear a epidemia do novo coronavírus, a urgência da vacinação em massa da população brasileira e tratamentos precoces, defendidos por Bolsonaro mas ainda não confirmados por estudos científicos.

A médica tem sido uma defensora da necessidade de vacinação urgente, participou de estudos que desmentiram a eficácia de algumas drogas e apoia o isolamento social.

Não houve, no encontro, consenso sobre como o Ministério da Saúde poderia passar a tratar desses temas e gerir as políticas para o combate à Covid-19.

A conversa começou tranquila. Mas passou a ficar tensa na medida em que não se chegava a um consenso. E terminou de forma inconclusiva. Bolsonaro e Ludhmila ficaram de se encontrar novamente nesta segunda (15).

Bolsonaro segue inflexível em suas críticas a medidas de isolamento social. E não dá sinais de que vai arrefecer na defesa de tratamentos precoces.

A decisão da cardiologista de não aceitar o convite já foi comunicada por ela a políticos que a apoiam.

O nome dela era defendido de forma enfática pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, por outros parlamentares, por diversos ministros do governo Bolsonaro e por magistrados do STF (Supremo Tribunal Federal).

​Ludhmila é cardiologista e se especializou no tratamento da Covid-19.

Na unidade da rede Vila Nova Star em Brasília, ela estreitou relacionamento com dezenas de autoridades que se trataram da Covid-19.

A cardiologista atendeu, por exemplo, o próprio Pazuello quando ele foi infectado pelo novo coronavírus.

Tratou também o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, o ministro Fábio Faria, das Comunicações, o ministro Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça), o ministro Dias Toffoli quando presidia o Supremo, e também os ex-presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre.

Caso Ludhmila tivesse aceitado o cargo, reforçaria o discurso da necessidade de vacinação em massa no Brasil. E deixaria em segundo plano qualquer tipo de propaganda de tratamento precoce da doença —​até hoje, nenhuma medicação testada contra a Covid-19 e acessível ao grande público teve resultados efetivos confirmados por estudos definitivos.

Os ataques de bolsonaristas à cardiologista no domingo (14) irritaram ministros e autoridades que apoiam o presidente. Eles acreditavam que a médica poderia imprimir um novo tom e reverter o desgaste do governo, mal avaliado na condução da epidemia.

Ludhmila é graduada em medicina pela Universidade de Brasília (Unb), doutora em Ciências-Anestesiologia, professora associada de cardiologia da Faculdade de Medicina da USP e já coordenou a UTI cardiológica de diversos hospitais de ponta do país.

Outros nomes estão no páreo para o cargo, como o do cardiologista Marcelo Queiroga, que também foi chamado para conversar. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).

O deputado federal Luiz Antonio Teixeira Jr. (PP-RJ), que é conhecido como "Dr. Luizinho", também é lembrado e tem chance de ser escolhido por Bolsonaro.

Ele é aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Preside a Comissão Especial da Covid-19 no parlamento e assumiu nesta semana a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara.

Ele é médico e foi secretário da Saúde do Rio de Janeiro.

Marcelo Queiroga é formado pela Universidade Federal da Paraíba e fez residência médica no Hospital Adventista Silvestre, do Rio de Janeiro, além de treinamento em Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista na Beneficência Portuguesa, em SP.

Sempre teve atuação intensa em entidades representativas dos médicos, como a Associação Médica Brasileira (AMB) e na Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI), que também presidiu.


Oliver Stuenkel: Brasil fora da nova construção da ordem global pós-coronavírus

Visto como ameaça tanto no âmbito ambiental quanto no da saúde global, o país vive colapso inédito da sua reputação e influência

Cada geração vivencia momentos históricos que transformam a política global, fechando uma era ou abrindo um novo ciclo geopolítico. Eventos como o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os atentados do 11 de setembro, a entrada da China na OMC e a crise financeira global de 2008 rearranjaram o tabuleiro global, tanto dando mais espaço a países que conseguiram, por inteligência estratégica ou mera sorte, se adaptar melhor à nova realidade, quanto reduzindo a influência daqueles que não souberam aproveitar o novo contexto. Em momentos nos quais o mundo está em transição, países com lideranças bem-preparadas podem aproveitar para galgar posições, enquanto outros correm o risco de perder relevância.

Com a pandemia do novo coronavírus não será diferente, e já se percebe que alguns países mostram-se mais ágeis e resilientes no combate à covid-19 do que outros. Enquanto Tailândia, Vietnã e Nova Zelândia conseguiram evitar elevadas taxas de infecção, outros, como China e Rússia, estão aumentando sua influência global por meio da “diplomacia da vacina”, oferecendo doses a países em desenvolvimento mesmo antes de completar a vacinação de suas próprias populações.

O Brasil, pelo que tudo indica, é um dos grandes perdedores geopolíticos do momento atual: não apenas saiu da lista das 10 maiores economias do mundo durante a pandemia, mas também vive um colapso inédito de sua imagem diante da estratégia negacionista de seu presidente, abalando a confiabilidade que o país tinha entre seus tradicionais aliados. A reputação brasileira de país com um dos maiores e melhores sistemas públicos de saúde no mundo em desenvolvimento, arduamente construída ao longo de anos, se desfez, ofuscada por um presidente que ocupa regularmente manchetes dos maiores jornais do planeta por seus ataques contra a ciência.

Ainda é cedo para se ter uma noção clara de todas as consequências geopolíticas da pandemia, mas algumas tendências já se destacam. Três questões merecem atenção.

Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a saúde global se consolidará como um tema-chave no âmbito multilateral, seja pelo fortalecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), seja pela criação de uma estrutura nova para monitorar o surgimento de futuras pandemias e o desenvolvimento e a distribuição de outras vacinas. Além de se buscar prevenir e combater o surgimento de um novo vírus, cresce a preocupação com as chamadas superbactérias, que resistem a antibióticos e poderiam, segundo estudo encomendado há alguns anos pelo governo britânico, matar milhões de pessoas e “levar a medicina à era das trevas”, como disse Jim O’Neill, coordenador da pesquisa e criador do termo BRICS. Tanto os principais fornecedores de vacinas quanto países que responderam melhor a pandemia devem liderar esse debate. O Brasil, que é visto como uma ameaça global e um possível celeiro de variantes por não controlar a transmissão do vírus, dificilmente terá voz.

Em segundo lugar, uma das tendências mais transformadoras da política global nos próximos anos será a influência do enfrentamento da mudança do clima na política externa das grandes potências —inclusive da China. O atual debate sobre o ecocídio ser ou não considerado um crime internacional, como é o caso do genocídio, é apenas o princípio de uma transformação que mudará a maneira como países pensam seus interesses nacionais e as principais ameaças que enfrentam. Enquanto lideranças políticas brasileiras e das Forças Armadas do Brasil se destacam pelo negacionismo, as Forças Armadas de outros países discutem o tema de maneira frequente há anos —inclusive porque o desmatamento pode aumentar o risco do surgimento de novas pandemias. Da mesma forma que no debate sobre saúde global, o Brasil corre o risco de ser visto como ameaça pela comunidade internacional, reduzindo a possibilidade de tornar-se interlocutor qualificado, consolidando, assim, seu papel de pária.

A terceira grande tendência política no mundo pós-covid-19 será a chegada da chamada guerra tecnológica —a competição tecnológica global entre EUA e China, que se tornou mais visível no Brasil depois de o Governo Bolsonaro sofrer pressão dos EUA para excluir a empresa chinesa Huawei entre as opções de fornecedores na construção da rede 5G. A pressão norte-americana foi seguida de alertas de Pequim, para a qual tal posição seria interpretada como um ato hostil ao governo chinês. Gerenciada de maneira perspicaz, a crescente atuação chinesa na América Latina poderia ajudar o Brasil na gestão da relação com os EUA e vice-versa. Afinal, sempre convém ter alternativas. Porém, como as tensões entre Pequim e Washington no âmbito tecnológico podem levar à criação de duas esferas tecnológicas, uma liderada pelos EUA e outra pela China, manter relações amistosas demandará sofisticação diplomática por parte do Brasil. O Governo Bolsonaro, no entanto, escolheu o pior dos mundos: depois de Bolsonaro se posicionar publicamente a favor dos EUA, viu-se obrigado a permitir, de última hora, a participação da Huawei na corrida pela rede 5G quando aumentou a pressão pública por ganhar acesso a vacinas chinesas contra a covid-19. Tanto em Washington quanto em Pequim, observadores ficaram com a impressão de que a atuação externa do governo Bolsonaro não se baseia em um planejamento estratégico, mas é curto-prazista e imprevisível. O presidente conseguiu a proeza de ter saído do episódio com a relação abalada tanto com Washington quanto com Pequim.

Em meio a essas transformações que moldarão os fundamentos da era pós-pandemia, está nascendo uma ordem global diferente, produto de decisões das principais lideranças da atualidade. Enquanto os EUA pagavam um preço desproporcional por ter uma liderança incapaz de gerenciar a pandemia até recentemente, a atual administração já está conseguindo conter os danos, implementando um dos melhores programas de vacinação do mundo. No caso brasileiro, a troca do atual presidente em 2022 seria o primeiro passo para começar a controlar o prejuízo e reverter o colapso inédito da reputação e influência brasileira no mundo.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Monica de Bolle: Os desafios do Brasil aquém e além da pandemia

Ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas

Os desafios a que me refiro no título deste artigo não são nem os da saúde pública, que são imensos, nem os econômicos, também enormes. Em momento sombrio da história brasileira, dou um passo para trás em um esforço para perceber mais claramente os desafios que a sociedade brasileira já havia criado para si com a eleição de Bolsonaro em 2018 e que foram agravados pela pandemia. Podemos dividir o país em dois campos, como é mais habitual: de um lado, figuram os bolsonaristas; de outro os que a elem se opõem. Mas vale tentar ir além do binarismo, para contemplar nuances que já eram visíveis em 2018 e ficaram mais explícitas no decorrer do último ano.

Há os bolsonaristas. Eles possuem uma linguagem própria, e este elemento merece atenção porque o bolsonarismo se define menos por uma ideologia do que por estratégias de comunicação que ou apresentam a violência ou repõem a sua potencialidade. Não menos importante, o bolsonarismo é antipluralista. É antipluralista em relação à vida social, como fica claro quando contemplamos a sua relação com minorias; na política, como podemos ver, sugere a ilegitimidade de seus adversários, desde a sua perspectiva; nos valores, o que notamos quando atentamos para os seus operadores (”cidadão de bem”, “humanos direitos”, “a família brasileira”) e no plano das ideias. Falas bolsonaristas, como são as do presidente, deixam ver práticas patriarcais longamente constituídas. Para ilustrar com uma manifestação recente: contestando medidas que governadores tentam implementar, o presidente afirmou em uma mídia social que “atividade social é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão dentro de casa”. O viés do bolsonarismo também é nitidamente colonialista, como se nota em sua relação com povos indígenas, com esboços de defesa ou justificação do desmatamento em nome do “desenvolvimento”.

Se o bolsonarismo é antipluralista, o antibolsonarismo seria pluralista. compreende o antirracismo, o feminismo e sua luta mais que secular no Brasil pelos direitos das mulheres, a igualdade de todos os seres independentemente de gênero ou orientação sexual, o rechaço à desigualdade e a contestação de uma democracia universal na forma, mas restrita na vida, em que negros e pobres são tratados como não-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe. O pluralismo percebe o traço autoritário na operação de uma lógica absolutista e que instrumentaliza a razão em causa própria. A razão assim instrumentalizada é cerceada. Ser pluralista, ao contrário, é manter-se aberto aos conflitos trazidos pela abertura ao real e os questionamentos dos pressupostos que a realidade suscita. O pluralismo supõe uma abertura que é antagônica a tudo o que é estático.

O antagonismo do pluralismo ao que é estático ficou em evidência maior na pandemia, um evento cujo ineditismo não permite que permaneçamos apegados a conhecimentos estabelecidos e formas de ordenar o mundo informadas por experiências passadas. A pandemia fez ver. Fez ver o tamanho da desigualdade, a inadequação da política econômica, o desconhecimento científico da população, o sofrimento, a vida e a morte. Esses aspectos da realidade brasileira ficaram tão visíveis, tão despidos de construções e fantasias, que o inaceitável ―para o campo pluralista― passou a ser permitir que o mundo não fosse visto por determinados grupos da sociedade.

Mas, nas fraturas da sociedade brasileira, há ainda outro grupo: aquele formado por pessoas que se declaram antibolsonaristas, mas, ao encontro com o real, não resistem a se agarrar a um conhecimento estabelecido, mantendo intactos os seus pressupostos, sem reexaminá-los. É o que chamo, hoje, de relação absolutista com a racionalidade, que faz certa razão aparecer como antipluralista. Esses atores políticos percebem a importância das causas do pluralismo e as abraçam. Porém, o antipluralismo embutido na forma como entendem a relação de especialistas com o público torna algumas de suas práticas compatíveis com o bolsonarismo. Sendo preciso dar-lhes um nome, proponho chamá-los de “anti-anti”.

Eles estão presentes na economia, mas não só: os antibolsonaristas e antipluralistas aparecem à luz do público, eventualmente. São pessoas bem intencionadas, de diferentes gerações, que defendem causas a meu ver justas, tais como a renda básica, a redução da pobreza e das desigualdades, mas que ao mesmo tempo não se dão conta de que defendê-las pode implicar abrir mão de certas crenças e pressupostos. Na economia, o pressuposto mais hostil a dúvidas, e proveniente do conhecimento estabelecido a partir de experiências passadas, é o de que a responsabilidade fiscal é um valor inegociável, ainda que a realidade o exija, em uma crise humanitária e com um governo que atua por ação e omissão para deixar morrer e fazer morrer. No mundo dos anti-anti, a defesa da igualdade de acesso e o inevitável choque com aquilo que consideram fiscalmente responsável estão em planos distintos, correm em paralelo. Mas a realidade não permite que se opere em planos paralelos. Ao contrário, ela coloca esses planos em rota de colisão: ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas.

Evidente na economia, tal absolutismo é difuso. No jornalismo opinativo ―nos editoriais ou nas colunas de opinião― a construção de um mundo que não tem relação com a realidade está igualmente presente. Constroem-se argumentos para sustentar essa ou aquela tese com base em uma dissociação da realidade. Temas que tentam reconstituir uma realidade que deixou de ser com a pandemia dão a tônica à representatividade dos veículos de comunicação. Aceita-se de bom grado o absolutismo econômico, científico, ou seja lá qual for, ainda que se manifeste uma opinião contra o Governo, contra o presidente da República. A imprensa que se permite tratar o mundo real com demasiada maleabilidade, ou negligenciá-lo, para habitar esse outro construído valida o bolsonarismo sem querer fazê-lo: é anti-anti pelo que deixa ver, pelo que faz não ver.

Está posta, assim, a tragédia do Brasil atual: atores importantes da sociedade não enxergam, em suas construções e atitudes, pontes para a perpetuação do antipluralismo bolsonarista. Esses grupos preferem desqualificar aqueles que estão com os pés na realidade, tentando dar conta de um mundo repleto de fraturas, de descontinuidades, que requer novas ideias e o livre pensar, ou o que Hannah Arendt chamou de pensar sem corrimão. Preferem tudo isso a enxergar insuficiências e inadequações do conhecimento que nos foi legado. No limite, e nós nos encontramos em alguns limites, tornam-se facilitadores, conscientes ou desavisados, da franca decadência moral que marca um país que se recusa a chorar pelos seus mortos, seus doentes, seus destituídos.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


O Estado de S. Paulo: Médica Ludhmila Hajjar diz a aliados que deve recusar convite para assumir Ministério da Saúde

Cardiologista tem visão oposta à de Bolsonaro sobre a resposta à covid-19; presidente defende medicamentos sem eficácia, como a cloroquina

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A cardiologista Ludhmila Hajjar não deve se tornar a quarta chefe do Ministério da Saúde em plena pandemia. Após reunião com o presidente Jair Bolsonaro, na tarde de domingo, 14, a médica informou a autoridades próximas que acompanham as tratativas que deve recusar um convite para o cargo de ministra.

Na reunião, segundo estes interlocutores, ficou claro que Bolsonaro e Hajjar têm visões opostas sobre a resposta à covid-19. O presidente é um defensor de medicamentos sem eficácia, como a cloroquina, tratamento que a médica critica abertamente. Para aceitar o cargo, ela também tinha a intenção de montar uma equipe própria na pasta, mas o presidente mantém controle sobre as ações da saúde na pandemia.

As conversas sobre a substituição do atual ministro, Eduardo Pazuello, ganharam força no fim de semana. Hajjar recebeu apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e de outras autoridades do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Auxiliares do presidente viram a nomeação da cardiologista como uma chance de mudar a narrativa sobre a pandemia. O governo está sob pressão pela alta de mortes, explosão de internações e atrasos na campanha de vacinação.

Ainda são cotados para o cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), aliado de Lira, e o médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). A leitura de uma autoridade que acompanha as discussões é que ambos devem receber apoio do Congresso e de auxiliares do presidente, mas podem parar no filtro de Bolsonaro ao cargo, pois também têm opiniões distintas às do mandatário sobre o combate à pandemia.

A saída de Pazuello da Saúde foi um dos pontos tratados em reunião de Bolsonaro com o próprio general, além dos ministros Braga Neto, da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Fernando Azevedo, da Defesa, no sábado, 13.

Para além da pressão do Congresso, a inviabilidade de Pazuello no cargo passa, ainda, pelas investigações do Supremo Tribunal Federal, que apura seus atos e eventuais responsabilidades pela crise generalizada no sistema de saúde. Ao deixar de ser ministro, Pazuello perde, inclusive, o foro privilegiado e o caso deverá ser encaminhado para a primeira instância da Justiça Federal.

Oficialmente, o governo deve alegar que Pazuello está cansado e que pediu para ser substituído. Em nota no fim da tarde de ontem, porém, o general disse que segue ministro e que não está “doente”: “Não estou doente, não entreguei o meu cargo e o presidente não o pediu, mas o entregarei assim que o presidente solicitar. Sigo como ministro da Saúde no combate ao coronavírus e salvando mais vidas”.