Day: fevereiro 21, 2021

Eliane Brum: Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia

Ao autorizar Belo Monte a secar a Volta Grande do Xingu, o Ibama mudou de lado e assinou a permissão para um ecocídio na maior floresta tropical do mundo

A Amazônia é hoje a principal razão para o Brasil manter alguma relevância internacional. É da conservação da maior floresta tropical do planeta, o maior sumidouro terrestre de carbono do mundo, que dependem os principais acordos internacionais, como o maior de todos eles, o do Mercosul com a União Europeia. É também da sobrevivência da floresta que cada vez mais dependem a autorização e a aceitação dos produtos brasileiros nos mercados europeus e nos Estados Unidos de Joe Biden. Estratégica para controlar o superaquecimento global, a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno, como têm repetidamente alertado cientistas com reconhecimento global, como Carlos Nobre. No momento em que a floresta se converter numa savana, o Brasil será apenas um país com desigualdade abissal, racismo criminoso, miséria em expansão e um presidente que virou piada no mundo. Terá também cometido um suicídio econômico, ao matar a floresta que regula o clima que permite a agricultura, afetando toda a cadeia de produção de alimentos e alguns dos principais produtos de exportação.

Nesse contexto, e num momento de progressiva recessão, o que o Governo Bolsonaro fez, pressionado por setores da política e do mercado interessados em manter o controle do sistema elétrico e faturar com ele? Autorizou a Norte Energia SA, empresa concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a liberar um volume de água para a Volta Grande do Xingu que comprovadamente, tanto pelos estudos científicos quanto pela experiência prática, é insuficiente para manter a vida. O que está acontecendo agora, nesse momento, é o que o direito internacional chama de “ecocídio” e que consiste no extermínio de um ecossistema inteiro. O que mata a natureza, como a emergência climática e também as pandemias já provaram, mata também a possibilidade de sobrevivência da espécie humana.

A autorização para o ecocídio aconteceu em 8 de fevereiro e foi celebrada nas páginas de economia de alguns dos principais jornais do Brasil. Nenhum outro acontecimento é mais grave e nenhum é mais escandaloso, com possível exceção da escalada da covid-19 sem confinamento nem plano de vacinação responsável. Uma semana antes de autorizar Belo Monte a reduzir drasticamente a água para a Volta Grande do Xingu, o mesmo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a vazão proposta pela empresa para a Volta Grande do Xingu inaceitável por não haver estudos confiáveis capazes de comprovar a segurança socioambiental de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia.

Em linguagem dura, a área técnica do Ibama determinou que a Norte Energia S.A. refizesse os estudos e voltasse a apresentá-los: “Faltou dados de base para testes e comprovação dos resultados, faltou esclarecimento como fontes e origem de dados, faltou clareza na redação do texto, citações sem resultado e sem discussão. (...) A presente análise também discorda da suposta validação do modelo. (...) Essa análise NÃO considerou satisfatória as respostas dadas aos questionamentos 1,2 e 4. (...) Por fim, verificou-se conclusões baseada em especulações sobre garantia de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados dos estudos bióticos”.

Percebam que não são minhas as palavras, mas do próprio Ibama. Desde 2020, a Norte Energia luta na Justiça contra as decisões do órgão ambiental pela quantidade de água na Volta Grande. O parecer técnico citado tem a data de 1º de fevereiro de 2021 (leia na íntegra). Apenas uma semana mais tarde, em 8 de fevereiro, o diretor-presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, ignorou a avaliação técnica e autorizou a Norte Energia a liberar quase SETE VEZES MENOS a quantidade média de água que o Ibama havia determinado anteriormente como o mínimo essencial ―e quase NOVE VEZES MENOS a quantidade média de água da vazão natural do rio em fevereiro, época da cheia. A Norte Energia agora está oficialmente autorizada a liberar insuficientes 1.600 metros cúbicos de água por segundo, em vez dos 10.900 metros cúbicos por segundo determinados anteriormente pela área técnica do Ibama e dos 14.000 metros cúbicos por segundo da vazão natural média do Xingu nessa época do ano.

Para “compensar” a destruição da Volta Grande, a presidência do Ibama fez um “Termo de Compromisso Ambiental” com a Norte Energia, pelo qual a empresa “investe” 157,5 milhões de reais em ações de mitigação ao longo de três anos (leia na íntegra). Por exemplo: já que vão exterminar os peixes, que já não conseguem nem se alimentar nem se reproduzir, peixes que neste exato momento deveriam estar fazendo a piracema, mas em vez disso estão morrendo por falta de água, a empresa faz um projeto de reprodução de peixes em laboratório. É sério, não é piada. Antes fosse. Troca-se um pedaço da floresta por uma série de projetos artificiais que já se mostraram pouco viáveis nas compensações anteriores da Norte Energia que, na maioria das vezes, só enriquecem as empresas contratadas para executá-las.

Vale lembrar que a Norte Energia S.A. comprovadamente ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina ―e já opera desde 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015 sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. O que condicionava deixou de condicionar, num dos grandes escândalos de uma trajetória repleta deles.

As novas medidas supostamente compensatórias vão para essa conta de fiado que nenhum mercadinho de esquina aceitaria, mas o Governo brasileiro, sim. Inclusive porque quase metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje composta pelo Grupo Eletrobras, um grupo composto por estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef, o que significa que são fundos de previdência complementar dos funcionários da Petrobras e da Caixa Econômica Federal. Seria interessante saber o que os servidores pensam de sua previdência estar conectada com um desastre ecológico na Amazônia. A compensação, além de impossível na prática, é apenas uma promessa, já que o passivo da empresa é enorme, como provam mais de 20 ações do Ministério Público Federal (confira aqui).

Na prática, o presidente do Ibama autorizou que a empresa altere completamente o ciclo biológico da Volta Grande do Xingu, atingindo pelo menos dois povos indígenas, os Yudjá (também conhecidos como Juruna) e os Arara, o que é inconstitucional, assim como comunidades de ribeirinhos, de pescadores e de agricultores familiares. Autorizou também a degradação do Xingu, um dos maiores rios da Amazônia, além de toda a fauna e a flora da Volta Grande, uma das regiões mais extraordinárias da floresta, com algumas espécies endêmicas, como o acari zebra, o que significa que só existem naquele bioma e desaparecerão com ele. O presidente do principal órgão ambiental do Governo brasileiro autorizou uma empresa a controlar a água de um dos grandes tributários do Amazonas e destruir um pedaço da maior floresta tropical do mundo e engana a população afirmando que seria possível compensar a tragédia ecológica provocada. A floresta é um organismo integrado, complexo e interdependente, assim como o próprio planeta. O que acontece na Volta Grande do Xingu repercute em todo o sistema e vai acelerar a escalada da Amazônia rumo ao ponto de não retorno, no qual a floresta se converte numa savana.

O que aconteceu para que a área técnica do Ibama diga não e a área política diga sim? Pressão do que se chama setor elétrico e de seus agentes. E pressão com o apoio das editorias de economia de alguns dos grandes jornais do país ―sendo a principal exceção o repórter André Borges, de O Estado de S. Paulo, que tem feito uma cobertura irretocável. Desde janeiro há um cerco intenso sobre o Ibama e também sobre a opinião pública. As notas vazadas para a imprensa e, na maioria das vezes, reproduzidas sem crítica, anunciavam a ameaça de colapso do sistema elétrico do país caso o Ibama recusasse o volume de água demandado pela Norte Energia que, vale repetir, é comprovadamente incompatível com a manutenção do ecossistema da Volta Grande do Xingu.

Em 15 de dezembro, o Ministério de Minas e Energia já havia afirmado em ofício: “Conclui-se que as alterações no Hidrograma definido para a UHE Belo Monte, avaliadas pela ótica da geração de energia elétrica, se traduzem em relevantes impactos negativos ao setor elétrico brasileiro, com efeitos diversos, sistêmicos e coletivos, de planejamento, comerciais e operacionais, afetando, inclusive, a segurança energética”.

Em 27 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou um ofício ao Ibama, assinado pelo diretor-geral, André Pepitonne da Nóbrega, afirmando: “Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a 1,3 bilhão de reais para o consumidor final de energia elétrica”. O ofício (leia aqui) foi reproduzido como matéria por parte da imprensa sem mencionar o impacto socioambiental de uma vazão de água enormemente reduzida para a Volta Grande nem explicar como o diretor-geral da Aneel chegou a esse cálculo, para além da mera afirmação de que isso se deveria ao custo do “aumento da produção em usinas termelétricas”, mais caras e poluentes.

Em 28 de janeiro, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, enviou uma nota técnica ao Ibama, afirmando: “Em resumo, sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (Ministério de Minas e Energia), a manutenção pelo IBAMA do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”. (O grifo é por minha conta, leia aqui)

Percebam que tanto o Ministério da Economia como a Aneel usam a malandragem de uma ressalva: “sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto”, caso da Aneel, ou “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental”, caso do Ministério da Economia. Como é possível fazer uma análise, no ano de 2021, sem abarcar a questão ambiental, isso em qualquer região do globo, e ainda com mais ênfase, na Amazônia? Não é preciso ter curso rápido de economia para compreender que isso é ou má fé ou incompetência ou ambas. Meio ambiente não é um tema paralelo, mas a linha que atravessa todos os outros temas. Tratar o meio ambiente como tema tangencial é de uma ignorância imperdoável e inaceitável neste momento histórico. Meio ambiente é a nossa casa, essa que a juventude climática denuncia que está em chamas ―e está. E, graças ao Brasil governado por Bolsonaro, também literalmente.

Vale lembrar que o fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, excluiu a Eletrobras em 2020 devido às violações humanas e ambientais ocorridas na construção e operação de Belo Monte. “Risco inaceitável de que ela [Eletrobras] contribua para violações graves ou sistemáticas dos direitos humanos” foram as palavras usadas. Hoje, são os setores econômicos internacionais que mais pressionam pela conservação da Amazônia, não porque seus dirigentes repentinamente tenham se transformado em ecologistas, mas porque não são burros. E porque têm mais de dois neurônios são capazes de compreender que, sem a floresta não há futuro para a espécie e, portanto, também não haverá nem consumidores nem lucro. Se algum funcionário, mesmo de baixo escalão, fizesse qualquer análise de impacto sem “adentrar o tema ambiental” em qualquer organismo internacional ou em qualquer grande empresa com competividade hoje estaria demitido. O mesmo vale para jornalistas de economia. Aparentemente, os dirigentes brasileiros se formaram no século 20 e nunca mais leram nada. Ou, talvez, ficaram retidos ainda nos primeiros tempos da revolução industrial.

É também por violações ambientais, especialmente na Amazônia, que o acordo da União Europeia com o Mercosul naufraga nos parlamentos de países europeus. Nesta sexta-feira, por exemplo, o Fridays For Future, movimento liderado pela sueca Greta Thunberg, fará um tuitaço global pedindo que os parlamentos dos países europeus não ratifiquem o acordo da União Europeia com o Mercosul por causa da destruição da Amazônia. Duas de suas líderes vieram ao Brasil de barco à vela no final de 2019 para conhecer a floresta e conversar com lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas no evento Amazônia Centro do Mundo, que aconteceu na Terra do Meio e em Altamira, no Pará, com a presença de Raoni e Davi Kopenawa, entre outros intelectuais da floresta.

Não há nada mais imbricado com o tema ambiental hoje, num mundo em colapso climático, que a economia. Mas os dirigentes da área no Brasil acham perfeitamente normal fazer a análise de um fato que resultará em enorme impacto ambiental sem “adentrar na questão ambiental”. A pasta de Paulo Guedes também achou apropriado usar expressões típicas de governos autoritários, sempre sacadas do coldre quando é necessário apavorar a população: “riscos à ordem e à economia pública”.

Nenhuma análise pode ser levada a sério sem o custo socioambiental. O Brasil tem sido fortemente pressionado e vem perdendo investimentos e mercado para seus produtos por conta do aumento da destruição da Amazônia, mas abre 2021 decretando o fim de um pedaço da floresta. Ao contrário dos impactos da alegada redução da produção de energia por Belo Monte, os impactos socioambientais sobre a Volta Grande do Xingu são bem acompanhados e documentados pelos melhores cientistas há anos. Basta ler as pesquisas e documentos. No mais recente, datado de 28 de janeiro e apresentado ao Ministério Público Federal, alguns dos principais pesquisadores brasileiros afirmam (leia na íntegra):

“Considerando que as populações indígenas e ribeirinhas moradoras da Volta Grande do Xingu têm como fundamento de seu modo de vida a codependência com os processos ecossistêmicos da região, quaisquer alterações imponderadas, imprudentes e/ou precipitadas desses processos levam a cenários de fragilização desses povos num sentido amplo da expressão. Trata-se da imposição irreversível de perda da soberania alimentar das famílias locais que tende a ser agravada para as próximas gerações, de fragilização econômica associada à perda de biodiversidade vegetal e animal, além da perda de qualidade de vida e de saúde dessas e das próximas gerações”.

Desde antes de sua construção, especialistas no setor elétrico já denunciavam que Belo Monte serviria mais para produzir propina do que energia, já que o rio Xingu vive uma estação de seca por metade do ano. Mesmo assim, a obra foi construída: orçada em 19 bilhões de reais no leilão, em 2010, o custo hoje já ultrapassou os 40 bilhões de reais, a maior parte financiado por dinheiro público do BNDES. A corrupção foi finalmente exposta pela Operação Lava Jato, ao revelar propinas pagas pelas empreiteiras que construíram a obra ao PMDB e PT, partidos no poder durante a construção.

Grande parte dos alertas feitos pelo painel de especialistas que analisou o impacto do projeto de Belo Monte sobre o ecossistema antes mesmo do leilão da usina se confirmaram. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do Estadão, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, EL PAÍS e The Guardian já tinham revelado que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Além da inviabilidade técnica da usina, da corrupção e da destruição ambiental com efeitos em todo a região amazônica, a construção de Belo Monte foi determinante para converter Altamira, a principal cidade do Médio Xingu, na mais violenta da Amazônia. Em julho de 2019, a cidade foi também palco do segundo maior massacre carcerário da história do Brasil, com 62 mortos, a maioria decapitados ou queimados. Hoje, a cidade enfrenta, em plena pandemia, uma série de suicídios de crianças e adolescentes. A usina também foi determinante para tornar a região epicentro de desmatamento e de queimadas. Causou ainda grande impacto na saúde da população. O próprio Ministério da Saúde apontou o enorme aumento da desnutrição infantil de crianças indígenas durante a construção. Profissionais da saúde mental ligados à Universidade de São Paulo documentaram o impacto da expulsão do território produzida pela usina sobre a população ribeirinha no projeto Refugiados de Belo Monte. Obra totalmente paradoxal no cenário político do Brasil, a primeira turbina foi orgulhosamente inaugurada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a última orgulhosamente inaugurada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019.

O atual e avançado capítulo de destruição é o que a Norte Energia e parte do governo, do mercado e da imprensa chamam de “Hidrograma de Consenso”, um nome digno da distopia de George Orwell. Na nota técnica do início de fevereiro, o próprio Ibama diz que não há consenso algum. Nas palavras literais: “Consideradas as evidências documentais de que os cronogramas A e B [vazões alternadas] NÃO foram oriundos de discussões técnicas envolvendo o Ibama, mas de uma decisão unilateral por parte do empreendedor, esse parecer se restringe aos mesmos como HIDROGRAMAS DE TESTE, e não de consenso”. (A caixa alta é do Ibama, não minha).

O “teste” mostrou o que já era antecipado pelos cientistas, a incompatibilidade entre uma quantidade tão reduzida de água e a reprodução da vida. O juiz federal que deu decisão favorável ao Ibama em detrimento da Norte Energia, no ano passado, baseou sua sentença no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”. Assim, “impôs ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”. Como afirmou a área técnica do Ibama, a Norte Energia não conseguiu provar: “Esse parecer não considera adequada a abordagem dada pelo relatório técnico [da Norte Energia], sugerindo sua DEVOLUÇÃO e readequação”. (mais uma vez, a caixa alta é do Ibama, não minha).

E então veio a motosserra da área que se diz econômica, com a ameaça do colapso energético, do risco à segurança nacional e do enorme “ônus aos consumidores”. Na prática, o Governo Bolsonaro rifou a Volta Grande do Xingu por supostos 157,5 milhões de reais para uma usina que custou mais de 40 bilhões, cuja principal acionista é a Eletrobras. E qual é o plano para a Eletrobras? A privatização, no qual o enorme passivo ambiental e humano de Belo Monte, consolidada no cenário internacional como uma catástrofe ecológica na Amazônia, é um sério entrave, porque isso que se costuma chamar de “mercado” é ávido e inescrupuloso, mas não é burro. Quem ganha? Quem perde? Os interesses em torno de Belo Monte, desde antes do seu controverso leilão, têm se mostrado bem pouco republicanos.

Aceitando por um momento, apenas como exercício mental, que os interesses são pelo bem público, que existe uma preocupação genuína com a questão energética e que os dirigentes podem provar aquilo que afirmam: colapso energético, ameaça à segurança nacional, 1,3 bilhão de ônus para os consumidores etc. Aceitando, apenas hipoteticamente, que essas afirmações estariam corretas e foram proferias de boa fé, o que temos do outro lado? O colapso já em curso de uma região de 130 quilômetros de floresta tropical habitada por povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, além de espécies de fauna e flora ainda não totalmente conhecidas, em um dos rios mais biodiversos do mundo. E isso num momento em que as principais autoridades do mundo, em todas as áreas, afirmam que a crise climática é o maior desafio da trajetória humana e que, para enfrentá-la, a Amazônia é estratégica. Este colapso, por sua vez, está totalmente documentado pelos cientistas mais respeitados para quem quiser se informar e estudar.

Aceitando ainda, apenas hipoteticamente, que a redução da produção de Belo Monte significaria um risco real de colapso energético, é importante assinalar que isso tornaria o planejamento brasileiro para o setor um arcaísmo incompatível com o atual momento global. Enquanto outros países, com muito menos potencial que o Brasil, têm feito enormes investimentos em energia solar e eólicas, o Brasil destrói a floresta e planeja destruir ainda mais, como já mostrou ao anunciar recentemente a retomada dos projetos hidrelétricos na Amazônia. Nenhum profissional sério hoje considera hidrelétrica na Amazônia “energia limpa”. Essa visão já foi totalmente superada pelas evidências bem documentadas da realidade e da ciência.

Aceitando apenas hipoteticamente que as duas premissas (e não apenas uma) são verdadeiras ―a do colapso ecológico, amplamente documentado, e a do colapso energético, essa apenas na boca de algumas autoridades do atual governo e suas visões ultrapassadas―, não seria sensato seguir o princípio básico da precaução? Algo dessa magnitude e impacto na maior floresta tropical do mundo não deveria ser ao menos amplamente discutido e com toda a sociedade? É assim, numa canetada, que o Governo de Bolsonaro condena um pedaço da Amazônia?

Destruir a floresta é destruir os padrões de chuva e do clima. É destruir a produção de alimentos, a renda dos agricultores e a competitividade e aceitação dos produtos brasileiros no mercado internacional. É impactar as condições de vida dos moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro. É atingir o futuro de todos os habitantes do planeta. É disso que se trata. E, como o Governo é o agente da destruição, resta a nós impedir que mais um crime, esse de enormes proporções, aconteça. Ou a sociedade brasileira e global se mobiliza ou o ecocídio será consumado. Se a Volta Grande do Xingu morrer, estaremos dando mais um passo rumo ao nosso próprio suicídio como espécie.


Nesta quarta-feira, 17 de fevereiro, o guerreiro indígena Aruká Juma morreu de covid-19. Ele era o último homem dos Juma, povo amazônico exterminado ao longo das últimas décadas por sucessivos ataques genocidas. O risco da pandemia para um povo de recente contato era conhecido e a construção de uma barreira sanitária foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal. O Governo de Jair Bolsonaro não a fez. E o último Juma morreu. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no início do século 20 o povo Juma contava com 15.000 pessoas. Em 2002, estavam reduzidos a cinco ―um, dois, três, quatro, cinco. Hoje, não resta nenhum homem. O Governo Bolsonaro terminou de extinguir um povo e acaba de determinar a morte da Volta Grande do Xingu. Se seguirmos calados, é melhor sepultar logo isso que chamamos de Brasil. Numa vala comum, já que estão faltando covas nos cemitérios para tantos mortos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Sérgio Augusto: Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea

Gangues pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Salvador Allende

A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem. 

As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.

Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.

Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.

Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.

Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário. 

O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.

A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA  e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.

A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”. 

Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois. 

Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica. 

OK, mas por que o Chile, por que Pinochet? 

Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago. 

A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.


José Roberto Mendonça de Barros: Teremos novo superciclo de commodities?

Mesmo com as vacinas, mundo continuará bem complicado

Nas últimas semanas, vários artigos começaram a discutir a possibilidade de estarmos entrando num ciclo de alta de preços de commodities, semelhante àquele ocorrido no início deste século. Razões para essa hipótese não faltam: em relação a março do ano passado, quando boa parte do mundo parou por conta da pandemia, os preços em dólar do minério de ferro estavam 90% mais elevados, os do aço, 118%, os da soja, 54%, e os do milho, 60%.

Os defensores dessa tese aliam três grupos de observações. 

Na última década, os preços das mercadorias foram relativamente baixos, fazendo com que os investimentos em nova capacidade produtiva fossem se reduzindo. Assim, em muitos casos não há folga disponível na oferta e, dado o fato de que novos projetos levam bastante tempo para se completar, teríamos uma situação na qual há uma baixa elasticidade de resposta da produção frente a um aumento da demanda no curto prazo.

O segundo ponto destacado nessas análises projeta uma forte elevação da procura por esses bens nos próximos meses, uma vez que o avanço da vacinação em massa nos países ricos do hemisfério norte deve liberar o relacionamento social ao longo do segundo semestre. Neste momento, a vontade reprimida de consumir, os recursos poupados durante o distanciamento social e a continuidade das políticas expansionistas alavancarão uma rápida expansão dos mercados. Isso se somará ao crescimento que já ocorre na China e em outros países asiáticos. 

Ao lado disso, mudanças induzidas e reforçadas pelo período de pandemia levarão a um maior consumo de certos materiais, especialmente metais.

Falo aqui de digitalização, de energia renovável, de carros elétricos e baterias, e do processo de descarbonização em grandes complexos industriais. 

Em outras palavras, a pressão de demanda seguiria forte. 

O terceiro fator relevante neste processo resulta da gigantesca liquidez internacional, que está levando a uma explosão de compra de certos ativos que representem esses setores: mercados futuros, ações e bônus. Em vários casos, existem posições vendidas que podem gerar, frente a uma elevação da demanda, uma situação de short squeeze, nos moldes do que ocorreu recentemente com a ação da GameStop.

Ativos financeiros representando os segmentos de commodities podem subir muito, completando o caso a favor de um novo ciclo. 

Temos aqui uma disputa entre uma recuperação cíclica e a consolidação de uma nova tendência.

Vale dizer que o exposto até aqui já nos diz que os preços de todas as mercadorias continuarão fortes neste ano. Alimentos, metais e petróleo continuarão trazendo para os países produtores, como o Brasil, o pacote completo: ganho de renda (termos de troca), fartura de divisas, tensões nas cadeias produtivas e pressões inflacionárias. 

E o que se pode dizer das tendências para os próximos anos? 

Como o espaço é muito pequeno, aqui vai apenas um breve resumo.

Petróleo: os preços estão subindo apenas porque Opep e Rússia conseguiram organizar a substancial redução na produção. Existe, pois, capacidade ociosa no sistema. Entretanto, fatores de curto prazo, como a atual tempestade no Texas e os movimentos do mercado financeiro, poderão elevar os preços acima de US$ 70. Por outro lado, elevações de produção em outros países, como o Brasil, o crescimento da energia solar e da eólica, a entrada de veículos elétricos e a maior eficiência no sistema produtivo não parecem sustentar uma tendência mais persistente de alta de preços. 

Alimentos: a situação estatística dos mercados de grãos e proteínas está bastante apertada, tendo como pano de fundo a crise na produção de suínos na China. Eventuais problemas climáticos terão um efeito amplificado sobre os preços. Entretanto, boa parte do mundo sairá mais pobre da pandemia e a oferta agrícola tende a ser razoavelmente elástica num prazo de dois anos à frente. Como no caso do petróleo, teremos problemas garantidos no curto prazo, mas tenho dificuldades de ver um boom de preços consistente a médio prazo. 

Minérios e metais: talvez seja o caso mais consistente. Pacotes de investimento em infraestrutura, como o do Presidente Biden, e novos equipamentos e tecnologias farão a demanda crescer significativamente. O longo tempo de maturação de novos projetos também contribuirá para tornar o equilíbrio mais distante.

Mesmo com as vacinas, o mundo continuará bem complicado.

*Economista e sócio da MB Associados


Vinicius Torres Freire: Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.

Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.

O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.

Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.

Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.

Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).

Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.

Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.

A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?

Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.

Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?

Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?


Míriam Leitão: Risco ao capital e à democracia

A Petrobras está sob intervenção de militares. O presidente da empresa e do conselho são um general e um almirante, o ministro da área, um almirante. A empresa perdeu R$ 50 bilhões de valor, no pregão de sexta-feira e no after market, e a governança foi violentada. Jair Bolsonaro alimentou a especulação, anunciou a mudança pelo Facebook e o fato relevante veio só depois. O general Joaquim Silva Luna foi um dos redatores da nota de ameaça ao Supremo em 2018. O ministro da Economia, Paulo Guedes, virou um fantasma dentro do governo.

Acionistas podem entrar na Justiça porque tiveram prejuízo por ato temerário do acionista controlador. Várias regras das empresas de capital aberto e do estatuto da Petrobras foram feridas por Bolsonaro. O golpe foi executado em detalhes. Ao anunciar que indicava Silva Luna também para ser um dos membros do Conselho de Administração, o governo convocou uma Assembleia Geral Extraordinária. A Lei das S/A de 2001, artigo 141, parágrafo terceiro, diz que sempre que houver a destituição de um membro do conselho todos os outros estão destituídos. Assim, o governo preparou o bote. Se houvesse resistência ao nome do general Luna, entre os seus representantes no Conselho de Administração, todos os nomes restantes seriam trocados. À noite, o governo informou que os reconduzia. Contudo, ficou sobre eles a espada.

Bolsonaro fez atos explícitos de populismo fiscal e de intervencionismo. Numa penada, aumentou em quase R$ 5 bilhões as despesas públicas, eliminando impostos sobre combustíveis fósseis, quando a equipe tenta cortar R$ 10 bilhões de um orçamento exaurido e ainda não aprovado. Paulo Guedes terá que fazer mais um truque ilusionista para fingir que cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal. A pandemia exigiu gastos extras e suspendeu limites legais, mas o presidente tem cometido crime de responsabilidade fiscal e não é por aumentar gastos na saúde. Ele ignora a tragédia sanitária que atinge o país. A gestão de Bolsonaro elevou o número de mortes do Brasil.

Os tumultos criados pelo presidente e seus histriônicos radicais feriram a economia e a política. Por eles, o país desperdiçou mais uma semana que deveria ter sido dedicada à luta por saúde, auxílio aos mais pobres e reajuste das contas públicas. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que falou em dar uma surra nos ministros do Supremo, “até o gato miar”, está fora do jogo. A Câmara aprovou o ato do STF de prendê-lo. Ele provavelmente será cassado.

Silveira ameaçou o Supremo. Bolsonaro, também. Silveira defendeu o AI-5. Bolsonaro, também. Silveira é truculento e ameaça os adversários de eliminação física. Bolsonaro, também. Silveira praticou crimes na internet. Bolsonaro, também. Silveira foi preso. Bolsonaro governa o país. Do posto, conspira contra a democracia, a economia e a saúde dos brasileiros. Na sexta-feira, ele, de chapéu de couro, fazia demagogias no Nordeste. No sábado, numa escola militar, falou uma frase dúbia sobre o regime democrático.

A Petrobras será presidida pelo general Silva Luna, o Conselho pelo Almirante Leal Ferreira e o ministro da área é o almirante Bento Albuquerque. Eles agora farão juras à economia de mercado e à governança da empresa. Será mentira. Alguns do mercado vão fingir acreditar. Há muita liquidez na economia global procurando ativos.

No Alto Comando do Exército, em 2018, quando o general Villas Bôas postou as mensagens para intimidar o Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, estavam o general Eduardo Ramos, o general Braga Netto, o general Fernando Azevedo e Silva. O próprio Villas Bôas, mesmo no momento final de uma doença degenerativa, ajudou a História ao informar que os integrantes do Alto Comando foram ouvidos. O general Silva Luna era ministro da Defesa e também soube. Perguntei ao atual ministro da Defesa, Azevedo e Silva, através da sua assessoria, se ele havia visto a nota. “O ministro não vai comentar. O conteúdo do livro cabe ao seu autor”, respondeu o Ministério.

A governança da Petrobras foi atacada por Bolsonaro para impor o controle de preços. Nem isso contentará os caminhoneiros. Bolsonaro é inimigo do liberalismo econômico e derrubou o valor da ação da Petrobras. Mas isso se recupera no futuro. O bem mais caro que Bolsonaro ameaça é a democracia. O país sabe o alto preço que pagou por ela.


Janio de Freitas: A Folha merece corrigir seu caminho

Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 anos do jornal

Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.

Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.

O oposto do que Otavio desejava, vim a saber não muito depois. O convite foi um equívoco. De Otavio nunca ouvi uma referência positiva a artigo meu. A rigor, ouvi dois elogios: um, ao artigo “Cuba ida e volta”, quando me disse sentir-se em culpa por me haver retido no trabalho estiolante da coluna; outro, no artigo sobre a Grécia do mar Egeu, onde me emocionara muito. Um elogio para cada 20 anos é ao menos uma média original.

Quando Frias pai quis me passar para um espaço próprio e fixo, seis dias na semana, relutei muito comigo mesmo. Fui vencido por outro equívoco. Ano a ano, o canto alto e junto à dobra da página 5 recebeu e entregou um assunto exclusivo, em geral relevante e um tanto atrevido. O ponto final de uma coluna sinalizava o início do trabalho para a seguinte, ou as seguintes. Uma insensatez. Que pressenti, porém não aliviei, como é mais comum, pelo orgulhoso fascínio desta profissão imprópria para os países de falso “em desenvolvimento”.

Frias pai é merecedor de um reconhecimento ainda não feito pelo jornalismo. Nem mesmo na Folha. A extensão peculiar da liberdade informativa, base da identidade que o jornal veio a formar, só foi possibilitada por um fator contrário à pressão tradicional do poder econômico para conter o jornalismo entre limites estreitos. Tem um nome: é o fator Octavio Frias de Oliveira.

O jornal já se tornara o polo da rejeição pública à ditadura, com a campanha das Diretas Já induzida por Otavio. No regime civil, manteve a posição privilegiada com o jornalismo crítico aos problemas governamentais da abertura. E “esse movimento [do jornal] veio acompanhado do exercício do jornalismo investigativo”, como disse a O Globo, sobre o centenário da Folha, o presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech. “A Folha não inventou o jornalismo investigativo, mas a denúncia da fraude na licitação da ferrovia Norte-Sul (...), em 1987, foi um divisor de águas.”

Deu-se uma corrida obcecada às revelações do jornalismo investigativo. O que só foi possível porque Frias acionou uma capacidade extraordinária de reduzir ressentimentos e obter o convencimento dos atingidos, nos interesses e no prestígio, pelas revelações da Folha. Aos atos traumáticos do jornalismo, foi comum seguir-se imediata operação de Frias, regada a simpatia natural e completada com a oferta de espaço à resposta do atingido —argumento definitivo da inexistência de qualquer propósito que não o jornalismo democrático. A Folha compunha uma identidade única.

Os olhares de mútuo entendimento entre mim e a Folha macularam-se no governo Fernando Henrique. Desde a campanha eleitoral, toda a “mídia” serviu a ele, não só ao Plano Real e sua eficácia anti-inflacionária. O senso crítico e a responsabilidade social e institucional reprimiram-se. Houve muita ilegalidade e muita imoralidade, mas o comprometimento político e partidário contrapôs-se, com mais força, à crítica necessária e ao jornalismo investigativo.

O governo Fernando Henrique foi um período tão nefasto para a “mídia” —não considerado o aspecto financeiro, de grandes benefícios— que essa influência vigora até hoje. Mostrou-se em todas as campanhas eleitorais desde aqueles anos 1990. Fez o grande espetáculo da barragem protetora às violências judiciais e políticas da Lava Jato de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Mostra-se na complacência com a corrupção dos Aécios do PSDB. Já se entorta para a eleição presidencial de 2022.

Das crônicas de fundo político, o anteparo da Folha me levou a uma coluna de informações quentes e buriladas. Daí, isolado, passei à reação ao deletério fernandismo-peessedebismo. Por fim, terceirizado, a expor percepções perdidas ou relegadas no afundamento do país em crise total e mortal.

Quarenta anos que sinto sem divisões anuais, volume uniforme de tempo, nada que desejasse reviver. Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 da Folha: logo aos primeiros textos, tratar o assunto militares como qualquer outro, contra o velho tabu; aproveitar os desequilíbrios de Gilmar Mendes e invadir a intocabilidade do Supremo, com mais um tabu que caía; e revelar, com a Norte-Sul e muitas outra fraudes desvendadas e anuladas, a corrupção que é a alma do “desenvolvimento” no Brasil.

A imprensa está em crise, mundo afora. A Folha merece corrigir seu caminho para vencer mais essa pressão.


Ruy Castro: O porquê de tanta macheza

Bolsonaro não pode mais deixar o poder, daí as armas, a blindagem e os jagunços, dentro ou fora da lei

Sem essa de maricas no seu quintal. Jair Bolsonaro gosta de se cercar de rapazes fortes, marombados. Daniel de Tal, ex-PM e YouTuber federal, é um deles. Há dias, para impressionar Bolsonaro, o bofe gravou um vídeo pregando o fechamento da democracia e ameaçando bater com um gato morto nos 11 senhores do STF, que, juntos, passam de 700 anos de idade. Outro favorito de Bolsonaro era o também ex-PM e também he-man Adriano Nóbrega. Mas a vida dá voltas. Daniel tornou-se um estorvo para Bolsonaro e foi jogado ao mar. E, por motivo de força maior, em 2020, na Bahia, Adriano foi convencido a ir para o céu.

Por sorte, abundam reposições. Bolsonaro, como se sabe, prestigia qualquer formatura de PMs e bombeiros. Não apenas se sente bem entre aqueles coletes e coturnos, como admira a constância com que as duas corporações suprem a milícia —três forças com que um dia precisará contar numa eventualidade. Para se garantir e não correr riscos, Bolsonaro igualmente não perde as formaturas de cadetes, certo de que os jovens oficiais lhe serão mais eficientes do que os generais puídos e babões que hoje o avalizam.

Completando seu fascínio pelos homens de ação, Bolsonaro tenta a todo custo “flexibilizar” os decretos que restringem armas de fogo. Por ele, qualquer bonitão capaz de aguentar no braço o tranco de um fuzil ao disparar deve ter o direito de portar esse fuzil e usá-lo contra os inimigos da pátria, como os globalistas, constitucionalistas, jornalistas e outros comunistas que ameaçarem sua perpetuação no poder.

Sim, porque esse é o objetivo de tanta macheza. Bolsonaro já foi alertado de que não pode mais deixar o poder. Precisa dele —blindando-se, armando-se, cercando-se de jagunços, dentro ou fora da lei— para não ser levado ao banco dos réus.

Do qual, se se sentar, pode nunca mais se levantar. Só a contagem de seus crimes levará décadas.


Hélio Schwartsman: A fé na ciência

A ciência é como a democracia e o melhor que temos para produzir conclusões provisórias que dependem mais da realidade do que dos desejos

Precisamos nos guiar pela ciência. Estou entre os primeiros a subscrever essa ideia, mas é preciso cuidado para não estabelecer com a ciência uma relação tão dogmática quanto a que se tem com as religiões.

Para início de conversa, a ciência quase nunca oferece certezas. Ela trabalha mais é com probabilidades, e todas as conclusões que ela permite devem ser tratadas como verdades provisórias. E é preciso enfatizar o “provisórias”.

Todas as teorias científicas produzidas até aqui se mostraram erradas, como é o caso da teoria médica dos humores, de Hipócrates e Galeno, ou gravemente incompletas, como a física newtoniana. Não temos nenhuma razão para acreditar que as teorias correntes, que ainda não fomos capazes de avaliar com precisão, experimentarão um destino muito diferente.

Um observador sensato deveria trabalhar com a perspectiva de que tudo o que a ciência considera conhecimento certo hoje não o será amanhã. E isso pensando só em termos de teorias. Se formos às pesquisas acadêmicas propriamente ditas, o arroz com feijão da ciência, o panorama é até pior.

Por uma série de problemas, que vão da metodologia à estrutura das carreiras e das publicações, boa parte das conclusões de trabalhos científicos que são feitos atualmente está errada. Nas contas de John Ioannidis (Stanford), a maioria das pesquisas em medicina não merece crédito. Para Jeffrey Leek (Universidade de Washington), os erros alcançam só 14% dos estudos. Os números melhoram na física, mas pioram nas ciências sociais e na psicologia.

Se as coisas são tão precárias, por que seguir a ciência? Creio que a ciência é um pouco como a democracia. É um sistema confuso, cheio de ruídos e distante de qualquer ideal. Ainda assim, é o melhor sistema que temos, se não para encontrar verdades, para produzir conclusões provisórias que dependem mais da realidade do que de nossos desejos. Não é pouco.


Bruno Boghossian: Ministros querem evitar que processo de Silveira saia do STF em caso de cassação ou renúncia

Integrantes do tribunal acreditam que deputado tem menos chances de ser condenado se ação mudar de instância

Mesmo com a prisão mantida pela Câmara, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ainda tem chances de escapar de uma punição definitiva. Ministros do STF lembram que, se o parlamentar for cassado ou renunciar ao mandato, o processo contra ele pode ser remetido a um tribunal de primeira instância.

No Supremo, o ambiente é evidentemente desfavorável ao deputado, como mostrou a sessão da última quarta (17). Até o decano Marco Aurélio Mello, famoso por ficar isolado nas votações, aderiu à maioria e ressaltou que “ninguém coloca em dúvida a periculosidade do preso”. É praticamente certo, portanto, que o tribunal deve tornar Silveira réu.

Ainda assim, o processo pode sair das mãos do STF. As regras do foro especial determinam que uma ação muda de instância se um político perde o cargo antes da conclusão da fase de depoimentos. Em caso de renúncia ou de cassação do mandato por seus colegas da Câmara, ele pode responder em Petrópolis (RJ) pelas ameaças ao Supremo.

Alguns ministros consideram improvável que Silveira seja condenado em sua cidade natal. Um dos juízes federais que atuam no município já citou Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo radical, ao rejeitar uma denúncia de estupro contra um militar da ditadura. Ele escreveu que direitos humanos não devem ser “meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.

Ainda que a Câmara prefira não cassar Silveira, o deputado pode renunciar para encontrar um terreno mais confortável. De quebra, ele escaparia de se tornar inelegível e poderia disputar eleições em 2022.

Integrantes do Supremo querem parar o chamado “elevador processual”. Um dos ministros defende uma questão de ordem para que o processo continue no tribunal em caso de cassação ou renúncia, sob o argumento de que não é possível escolher o órgão julgador. O próprio STF manteve essa brecha no confuso processo que atropelou a lei e mudou à força as regras do foro especial.


Elio Gaspari: Daniel Silveira errou o tiro

Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção

Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.

Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.

Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)

Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.

A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.

Villas Bôas também esperou três anos

O general da reserva Eduardo Villas Bôas ironizou o arroubo do ministro Edson Fachin, que considerou “gravíssima” sua revelação dos bastidores da preparação do famoso tuíte de 2018. Nele, o então comandante do Exército prensou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de Lula.

Villas Bôas foi breve: “Três anos depois”.

Na mosca. Fachin demorou para ficar indignado, e não foi por falta de exemplo, porque o ministro Celso de Mello repudiou o tuíte no dia seguinte.

“Três anos” também foi o tempo que Villas Bôas demorou para contar como produziu o texto, colocado na sua conta pessoal do aplicativo. Com uma diferença: Fachin demorou, mas pôs a cara na vitrine; Villas Bôas terceirizou parte da iniciativa.

Nas suas palavras:

“O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte — dia da expedição—, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente.”

O general fez dois tuítes, somando 75 palavras. Se elas tomaram todas as horas do expediente, cada uma foi medida. A certa altura, Villas Bôas assegurou que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Deu no que deu.

Em outros tuítes, Villas Bôas havia louvado o “soldado Luciano Huck” e uma apresentação de Sabrina Sato na Academia das Agulhas Negras. Noutra ocasião, defendeu o desempenho da atriz Regina Duarte, então secretária de Cultura, numa entrevista, por sua “grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, confiança, doçura, (e) autoconfiança.”

Ao revelar detalhes da edição do tuíte, Villas Bôas compartilhou sua gênese. Chefe militar pode ouvir seus comandados por respeito e até mesmo por cortesia, mas não revela isso três anos depois.

Imaginar comandantes como Leônidas Pires Gonçalves ou Orlando Geisel contando que suas palavras foram submetidas e discutidas com subordinados equivale a imaginá-los de boné num show do cantor Belo na Maré.

Nunca é demais lembrar o papelzinho que o general Dwight Eisenhower guardou no bolso em 1944, durante o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, caso a operação fracassasse:

“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

Deu tudo certo, e em 1953 ele se tornou presidente dos Estados Unidos.

Nunes Marques

Na noite de quarta-feira, os ministros do Supremo achavam que no dia seguinte a Corte sustentaria a decisão de Alexandre de Moraes por 10x1.

Ficaria vencido o ministro Nunes Marques. Feitas as contas do outro lado, entendeu-se que esse resultado seria pior. E assim chegou-se à unanimidade.

Ricardo Boechat

Completaram-se dois anos da morte do jornalista Ricardo Boechat, e o laboratório Libb, que o havia contratado para uma palestra em Campinas, interrompeu as negociações amigáveis para custear a continuidade do tratamento médico de uma das filhas que deixou, estimado em R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais. Enquanto viveu, Ricardo Boechat arcou com essa despesa.

Boechat morreu quando caiu o helicóptero que o trazia de volta a São Paulo, depois de uma palestra no Libb, em Campinas.

Contratualmente, o transporte de Boechat era de responsabilidade do Libb. A aeronave estava bichada, e a empresa contratada não tinha autorização para fazer esse tipo de serviço.

Depois de quatro meses de negociações amigáveis, o laboratório Libb resolveu judicializar a questão. Ele é o oitavo maior do mercado, com o slogan “empresa inspirada pela vida”.

Numa conta de padaria, uma decisão de primeiro grau poderá demorar mais de um ano. Com recursos, pode-se ir a cinco anos.

Turismo irresponsável

Disposto a mostrar que não é um “maricas”, Jair Bolsonaro passou o carnaval na praia, festejando curiosos, sempre sem máscara.

Seu governo lançou a campanha “Turismo Responsável”, criando um selo para agências de serviços e empresas.

Quem vê os vídeos da propaganda do selo pode pensar que está na Nova Zelândia. Lá, sob o comando da primeira-ministra Jacinda Ardern, morreram 26 pessoas, cinco para cada milhão de habitantes. Na terra das palmeiras, onde canta o capitão, morreram mil para cada milhão de brasileiros.

Perseverança

Depois de cinco meses de viagem, o robô Perseverance pousou em Marte.

Completaram-se 14 meses do dia em que o repórter Aguirre Talento revelou a existência de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)que torraria R$ 3 bilhões na compra de equipamentos eletrônicos para escolas públicas. Os 244 alunos de um colégio mineiro receberiam 30.030 laptops.

Ainda não se sabe quem botou esse jabuti na burocracia do FNDE.

A perseverança da Nasa é coisa de principiantes.


Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Velhas novidades

O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.

O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.

Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.


Merval Pereira: Preparando o futuro

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e  regulamentações com o mesmo objetivo,  ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.