Day: janeiro 21, 2021

RPD || André Amado: Os grandes escritores e o término de suas obras

André Amado analisa como os grandes autores garantem, por meio da técnica literária, o interesse do leitor até o fim das tramas de suas histórias

Se dependesse de consenso, obra alguma dos grandes escritores terminaria. Vejam só.

Com a autoridade de ter sido o autor de A Room With A View (1908) e Howards End (1910) e reconhecido como o decano dos críticos literários, E. M. Foster estimava que as histórias devessem ter começo, meio e fim. Ilustrava com As mil e uma noites, em que a narrativa seguia a cronologia de o jantar vir depois do almoço; a terça, depois da segunda; e a decadência, depois da morte.

Henry James (1843-1916) chamava o último capítulo de um livro de wind-up (arredondamento), quando se distribuíam prêmios, pensões, maridos, esposas, filhos, milhões, parágrafos acrescentados e comentários alegres. Já Italo Calvino (1923-85) dribla a ironia de James e distingue tipos diferentes de término das narrativas: quando o herói supera as adversidades, morre ou amadurece; e, no caso dos romances policiais, quando se descobre o culpado. De maneira geral, para Calvino, o final de um romance deveria ocorrer sempre que contribuísse para evitar a repetição, na mesma linha do que dissera Jane Austen (1775-1817): o romancista não tem como ocultar o momento em que a história acaba.

Outros escritores seriam até mais contundentes. Atribui-se a Flaubert (1821-80), por exemplo, a sentença de que é burrice querer concluir uma história. Para Ricardo Piglia (1941-2017), sem finitude não há verdade, declaração quase idêntica à de Stephen Koch (1968- ): se não houver final, não há história. Carlos Mastronardi (1901-76) arrematou: Não temos uma linguagem para os finais; talvez uma linguagem para os finais exija a total abolição das linguagens.

Alberto Manguel (1948- ) acrescenta um complicador. Resgata a Divina comédia para revelar o truque de Dante – o propósito da peregrinação é contar as aventuras. Vale dizer, a narrativa da viagem consiste em situar no final o começo. É o que também pensa Allan Poe. Em “Assassinatos na rua Morgue” (1841), o desfecho da história determina a ordem e a causalidade dos eventos narrados no começo. Trata-se da técnica do closure (fechamento), pela qual o escritor se fixa no desfecho e constrói a narrativa de trás para frente, buscando, assim, assegurar-se do controle completo do desenvolvimento da trama e da santidade do mistério, que só poderá ser revelado no último momento, tornando-se quase um personagem invisível da trama.

Tudo bem. Enfim o consenso parece formar-se: a retenção do segredo da história garante o interesse do leitor. Melhor técnica para o fechamento da obra, impossível. Só que Patricia Merivale e Susan Sweeny (1999) exploraram outras opções que batizaram de história metafísica de detetives, segundo a qual o objetivo da investigação não seria mais encontrar uma resposta clara para o enigma perfeito dado a priori, mas decifrar o sentido do próprio texto. Em “La muerte y la brújula”, Jorge Luiz Borges reforçaria a transgressão: desafia a estrutura da narrativa fechada, ao não resolver os mistérios e a suscitar outros mistérios igualmente impenetráveis.

Garcia-Roza (1936-2020) admirava Allan Poe e Borges e, por isso, convidou ambos para enriquecer sua visão da literatura. De um lado, recusou que o autor pudesse sozinho desfazer as intrigas e decodificar a trama das histórias. Para ele, existiriam tantos autores de uma obra quanto leitores. Daí não ser mais possível uma única interpretação. Ao leitor, a tarefa, portanto, de produzir sua própria interpretação. De outro, Garcia-Roza citava Poe (A essência de todo crime permanece oculta, “O homem da multidão”, 1940) para ressaltar o conceito de inescrutabilidade, significante que não permitia simplificação. Em uma palavra, mistérios podem ser explicados, mas a interpretação de um enigma requer nova interpretação e, assim, sucessivamente, sem fim. Não há, pois, solução para o enigma. Nunca.

Como todo escritor de gênio, Ian McEwan não chega a celebrar o consenso sobre o término de uma obra, mas, de alguma maneira, nos explica porque a alternativa é até mais convincente. Em Atonement (2001), Briony demora a vida toda para entender que não tem como chegar a final algum para a história que está contando, o que, por sua vez, acaba afetando a própria forma final da obra que o leitor tem em mãos, na qual ele tampouco encontra um fim satisfatório, bem fechado como aqueles das histórias fabulosas em que a Briony acreditava tão piamente, quando criança (Tatiana Souza, tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual da Paraíba).

Podem-se encerrar as provocações reunidas neste artigo com a reflexão de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual um livro sobre a literatura contemporânea não pode ter conclusão, porque o contemporâneo é o inacabado, o inconcluso. Pode-se, ainda, recorrer ao bruxo do Cosme Velho e reviver o final inesquecível de Memórias Póstumas: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online


RPD || Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues de Almeida: Os efeitos da política de “Deus acima de todos”

Discurso de ódio, numa interpretação bíblica supremacista, une grupos de perfil evangélico-pentecostal, tráfico e milícias em ataques aos direitos de grupos minoritários, como os afrorreligiosos, nas regiões metropolitanas das grandes cidades do país

As denúncias de violações de direitos envolvendo religiosos afro acompanham a expansão do neoconservadorismo de grupos de perfil evangélico-pentecostal. As perseguições se distinguem das de outros momentos históricos, pela Igreja Católica e/ou pelo Estado, porque hoje há formalmente mecanismos institucionais de garantia de direitos dos povos de terreiro.

Uma das razões é a interpretação da liberdade religiosa, prevista em lei, a partir de uma matriz evangélica que se afirma vítima de perseguição, ao mesmo tempo em que constrói uma agenda política de “direita cristã”, inspirada no modelo estadunidense, com forte presença na formulação de políticas públicas, a partir dos anos 1980. Isto se identifica já nos debates para a Constituição Federal de 88, quando a bancada evangélica despontou com perfil “conservador” e “tradicionalista”, difundindo discursos que, em nome de Jesus, atacavam direitos de grupos minoritários. Este modelo se opõe ao defendido pelos afrorreligiosos, que têm lutado pela garantia da liberdade de crença, sujeita a limitações, porque não se pode impedir o exercício de outros direitos fundamentais.[1]

A chamada “nova onda conservadora” tem afetado o desenvolvimento de uma política democrática na manifestação plural das diferenças no espaço público, revelando nuances de políticas “cristofascistas”[2], que lidam de forma binária com os povos tradicionais - associados às práticas maléficas, num ideário inspirado na supremacia branca estadunidense.

Se até 2000 eram comuns conflitos entre afrorreligiosos e evangélicos em relações de proximidade (vizinhos, parentes, etc.), há décadas as agressões envolvem também traficantes e/ou milicianos, seguidores de igrejas pentecostais. O fenômeno deixou de ser mera conversão de “bandidos” e tornou-se uma disputa por outros fronts – econômicos e político-eleitorais – que misturam imperativos teológicos e doutrinários com projeto político de nação. Nos Estados Unidos, as consequências dessa direita cristã se veem na política externa internacional e nas ações voltadas ao meio ambiente e direitos humanos.[3] No caso brasileiro, além desses efeitos é preciso destacar a emergência de outra dimensão – o papel dessas igrejas na interação de grupos paramilitares (tráfico e milícias), para consolidação de um “domínio armado”[4], que tem resultado em ataques e expulsão de terreiros e na unificação de áreas nas regiões metropolitanas das grandes cidades sob um mesmo comando, como é o caso do “Complexo de Israel”, favelas da zona norte do Rio, que sob a bandeira de Israel, são geridas pelo tráfico e milícia juntos. Tudo isso é fundamentado por discursos de ódio que possibilitam a consolidação e visibilidade dessas ações extremistas, numa interpretação bíblica supremacista. As consequências diretas desses conflitos são o agravamento de preconceitos em relação às moralidades, aos saberes e práticas dos afrodescendentes e dos indígenas, bem como na produção de uma nova forma de colonização política, discursiva e territorial.

Consideramos que esse processo de radicalização do ideal supremacista branco, baseado no tripé fenótipo-origem-religião[5], presentes no imaginário nacional desde o século XIX, foi atualizado e produz novas narrativas de inferiorização. A emergência da política nacional do “Deus acima de todos”, adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, é, portanto, a expressão de um projeto de poder que associa o expansionismo ao racismo ao tratar as minorias como símbolos do “atraso”, ao mesmo tempo que reinventam povos eleitos e ressuscitam a teoria do branqueamento no país.

A afirmação do vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), um homem heteroidentificado como “pardo”, de que o Brasil herdou a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos africanos, é um exemplo de como essa política recusa a alteridade, em nome de Jesus, e mistura os discursos nacionalista e supremacista, com a defesa de uma ordem imposta pela força. A “ilusão brasileira da brancura”[6] está a serviço da invisibilidade das práticas institucionais genocidas que seguem agindo, a despeito das salvaguardas legais, num projeto de extinção de todos que não se representem como “brancos”. Assim, o ideal supremacista no Brasil está a serviço da manutenção dos privilégios da aristocracia, que não se prende ao fenótipo, mas a uma ideologia de “mérito” que o mito da democracia racial criou e que a teologia da prosperidade glorifica – a branquitude como hegemonia segue como a representação social consagrada no Brasil.

*Professora de Antropologia da UFF; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)

** Bolsista de Pós-Doutorado da FAPERJ; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)

[1] MIRANDA, A.M. 2020. “Terreiro politics” against religious racismo and “christofascist” politics. Vibrant, 17: 1-20.

[2] O termo classifica políticas públicas e sociais que, em nome do cristianismo, excluem os grupos minoritários. In HEYWARD, I. C. Saving Jesus from Those who are Right: Rethinking what it Means to be Christian. Minneapolis: Fortress Press, 1999.

[3] RESENDE, E. S. 2010. “A Direita Cristã e a política externa norteamericana: a construção discursiva da aliança entre Estados Unidos e Israel com base na ideologia evangélico-protestante”. Carta Internacional, 5 (1): 3-20.

[4] MIRANDA, A.M.; MUNIZ, J.O. 2018. “Dominio armado: el poder territorial de las facciones, los comandos y las milicias en Río de Janeiro”. Revista Voces En El Fenix, 68: 44 - 49.

[5] ALMEIDA, R. R. “A luta por um modo de vida: as narrativas e estratégias dos membros”, Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2019.

[6] CÂNDIDO, A. 2002. Racismo: crime ontológico [Entrevista]. Ethnos Brasil, I (1): 21- 28.


RPD || Autores - Edição 27

André Amado
Embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online

Marcos Nobre
Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp, presidente do Cebrap e co-diretor do Mecila. Entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de
Bolsonaro contra a democracia (2020).

Rosiane Rodrigues de Almeida
Bolsista de Pós-doutorado INCT-INEAC- FAPERJ. Doutora e Mestra em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT/NEAC). Graduada em Comunicação Social, possui especialização em Altos Estudos do Holocausto, pelo Museu Yad Vashem (Jerusalém -Israel) e pós-graduação em Educação para as Relações Étnico-raciais pelo CEFET/RJ.

Ana Paula Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora Associada do Departamento de Antropologia (UFF) e dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Justiça e Segurança (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPq; Pesquisadora do INCT-Ineac (UFF); Coordenadora do Grupo de Estudos em Antropologia Política e Conflitos; Coordenadora do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública; Coordenadora Adjunta da Área de Antropologia/Arqueologia (Mestrados Profissionais) - CAPES

Lilia Lustosa
Crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).

João Cezar de Castro Rocha
Professor Titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta

Guilherme Casarões
Cientista político, é professor de Relações Internacionais da FGV-SP

Sérgio C. Buarque
Economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.

JCaesar
JCaesar é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA.

André Eduardo
Mestre em Economia (UnB) e Consultor Legislativo do Senado Federal (especializado em política econômica)

André Borges
Bacharel em Física pela Uiversidade de Brasília e Mestrando em Economia pela Universidade Católica de Brasília

Martin Cesar Feijó
Historiador, doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

Paulo Baía
Técnico em Estatística pela ENCE/IBGE, sociólogo pela UFRJ, mestre em Ciência Política pela UFF, doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ, estágio de pós-doutorado em História Social pela UFF. Professor da UFRJ. Ex- secretário de estado dos Direitos Humanos do Rio de Janeiro.

Elimar Pinheiro do Nascimento
Sociólogo político e ambiental, professor do Programa de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB.


Antonio Carlos Will Ludwig: Os militares e a próxima eleição presidencial

Ainda há tempo de buscar medidas para evitar a concretização dos delírios do capitão

A invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, por um grupo de fanáticos chefiado por Donald Trump estimulou analistas políticos a escreverem sobre a possibilidade de uma ocorrência parecida em nosso país caso o atual presidente da República perca as eleições em 2022, haja vista a semelhança política dele com o ex-governante estadunidense. Trump fracassou em seu intento golpista porque não contou com o respaldo dos militares norte-americanos, uma vez que estes são árduos defensores da democracia.

Os alertas emitidos servem muito bem para evitarmos que o desvairado comandante da Nação venha a praticar um perigoso ato similar na próxima eleição. Tal como pode ser visto, uma condição necessária para concretizá-lo diz respeito à existência de uma massa populacional disposta a obedecer prontamente às ordens do líder. Para alcançar o objetivo almejado, porém, é imprescindível contar com outra condição mais importante, ou seja, uma homogênea sustentação das Forças Armadas.

Muitos sabem que o capitão presidente, desde que tomou posse, demonstra ter por metas principais concretizar um projeto autoritário de governo, aproveitar-se do status de seu cargo para tentar barrar as ameaças da Justiça sobre ele e sua família e obter um novo mandato na próxima eleição presidencial.

Quanto à primeira meta, ele já se valeu de diversos expedientes: uso das redes sociais para disseminar notícias falsas e atacar adversários e instituições, criação e empenho do “gabinete do ódio”, escolha de pessoas de perfil direitista para ocupar cargos no governo, distanciamento das Casas Legislativas, exibição da conduta de culto à violência e às armas, ameaças aos meios de comunicação, desmantelamento de conselhos sociais e incentivo às manifestações grupais apoiadoras de suas ações doidivanas.

O recurso mais perigoso escolhido diz respeito à liberalização das armas de fogo. O primeiro documento relativo a ela tratou da aquisição pelos donos de comércio, indústrias e habitantes urbanos. Outro se voltou para a autorização de seu porte a diversas categorias profissionais. Um terceiro se destinou ao aumento de munição por arma e um quarto incidiu em zerar a alíquota de importação de revólveres. Uma das medidas mais polêmicas foi a que revogou três portarias do Exército relativas ao controle de armas e munições.

É muito preocupante também sua conduta de aproximação a policiais. Começou com a greve no Ceará. Seguiu com o oferecimento de cargos no governo, a proposta de desconto na compra de alimentos, o discurso a soldados asseverando que a imprensa sempre estará contra eles e a proposta referente à criação da patente de general para as Polícias Militares, rejeitada nas Forças Armadas, e de um conselho nacional da polícia civil, criticada por juristas renomados.

Outro expediente empregado é pertinente aos agrados às Forças Armadas. A esse respeito podem ser citados a reestruturação da carreira militar, a verba extra para o Ministério da Defesa, o incentivo à construção de submarinos e o discurso contra o sucateamento dos estabelecimentos bélicos. Sua indigência intelectual insta levá-lo a supor que tais deferências à área castrense são capazes de angariar o apoio dos colegas da ativa às pretensões políticas antidemocráticas que continua nutrindo. Deve acalentar também a provável e insana expectativa de obter o respaldo deles no momento reservado ao pronunciamento da falsa denúncia sobre a inexistência de lisura na próxima eleição presidencial e na hora de encorajar a néscia população armada e os incautos policiais a se rebelarem contra um possível resultado desfavorável.

Mas, tal como ocorreu com Trump, os militares brasileiros tampouco lhe prestarão o socorro almejado. Ocorrências do passado, tais como as Diretas-já, os comandos civis no Ministério da Defesa, a convivência com partidos de centro-esquerda, a atuação da Comissão Nacional da Verdade e, principalmente, a perda de prestígio perante a sociedade, o qual já foi recuperado, contribuíram para a transformação da conduta militar e a manutenção do respeito à democracia.

Acontecimentos mais próximos tendem a mostrar que os servidores fardados, acertadamente, querem dele se distanciar. Vale citar as críticas às suas aparições defronte a um quartel durante manifestações, a impassividade em face das ameaças dele e de seus áulicos aos Poderes constituídos, a fala referente às Forças Armadas como instituições do Estado e a pressão pela saída do ministro da Saúde. Deduz-se, então, que excluso o impeachment ele não deverá contar com o apoio dos estabelecimentos bélicos, mas poderá vir a utilizar o avilanado povo armado e os obtusos policiais para tentar alcançar seu intento.

Há, contudo, bastante tempo ainda para buscar medidas preventivas no sentido de evitar a provável concretização de seu delirioso ato e garantir a celebração da democracia.

PROFESSOR APOSENTADO DA ACADEMIA DA FORÇA AÉREA, É AUTOR DE ‘DEMOCRACIA E ENSINO MILITAR’ (CORTEZ) E ‘A REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA’ (PONTES)


Daniel Cerqueira: O perigo que nos ronda nas propostas para mudar as PMs

Projeto de lei que busca cooptação das forças policiais pelo presidente somada à irresponsabilidade da política de “armas para todos” coloca em sério risco a democracia no país

Está em curso uma articulação do Palácio do Planalto para a aprovação de um substitutivo do Projeto de Lei 4.363, que visa alterar a legislação sobre o funcionamento das polícias. Tal iniciativa além de constituir um tributo ao corporativismo e à irracionalidade econômica, conspira contra o pacto federativo e representa um real perigo contra a própria democracia.

Ainda hoje a organização das polícias militares é regida pelo Decreto-Lei de 1969, exarada no auge dos anos de chumbo, que visava em última instância o controle das polícias militares estaduais, colocando-as como forças auxiliares do exército e sujeitando-as ao monitoramento da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM), um órgão do Estado-Maior do Exército. Tal base institucional sobreviveu ao processo democrático e —sobre os auspícios das Forças Armadas— permaneceu como um entulho autoritário em plena Constituição Cidadã, em seu artigo 144.

Portanto, a necessidade de um novo regimento das polícias que viesse a substituir a anacrônica legislação e propiciasse a modernização das nossas organizações num ambiente democrático era mais do que esperada. De fato, desde os anos de 1960 o Brasil mudou e houve, paralelamente, uma verdadeira revolução nos modelos institucionais das polícias pelo mundo afora. Mecanismos de gestão por resultados foram introduzidos e a velha ideia da polícia do depois, aquela que funciona reativamente para impor a repressão nas ruas calcadas na filosofia da guerra e do militarismo, foi declarada inoperante e não efetiva, segundo as inúmeras evidências científicas. Os novos modelos passaram a preceituar a parceria entre polícia e comunidade e o uso intensivo da inteligência como orientador das ações de curto e médio prazos para mitigar as causas dos pequenos e grandes crimes nos territórios. Nas nações desenvolvidas democráticas foram instituídos ainda mecanismos de controle das polícias pela sociedade civil, não apenas para identificar e responsabilizar os autores de desvios individuais de conduta, mas os desvios institucionais, em particular o excesso do uso da força, nas conhecidas Civilian Oversight —ou supervisão civil.

O supramencionado substitutivo vai na contramão da história. Esperava-se que uma legislação moderna contemplasse os aspectos singulares do trabalho de polícia e das novas formas organizacionais, que encampassem as ideias descritas no parágrafo anterior. No sentido contrário, inacreditavelmente, sugere-se extemporaneamente uma cópia travestida da organização das Forças Armadas, inclusive com a criação de novas patentes para as polícias militares, como a de tenente-general, major-general e brigadeiro-general. Conforme relata o ex-secretário nacional de segurança pública, o coronel José Vicente, “a evidência da ênfase militarista é clara: nas mais de 11.000 palavras do projeto, a palavra ‘policiamento’ aparece três vezes. A palavra ‘polícia’, que define a principal característica dessas instituições, é grafada 17 vezes, mas ‘militar’ aparece 274 vezes”. Expandindo o dicionário, os termos ‘transparência’, ‘responsabilização’ e ‘avaliação de resultados’ não foram encontrados.

O apreço ao corporativismo extremado fica também evidente na sugestão legislativa. Ao mesmo tempo em que responsabilização, efetividade, contrato de gestão, transparência e controle são figuras alienígenas na proposta, sugere-se que a escolha do comandante-geral da PM seja feita com base em uma lista tríplice dos candidatos mais votados, com mandatos fixos, o que acirraria o processo de politização interna das corporações e dos anseios corporativos. Pior, ao se sugerir que o comandante-geral tenha as mesmas prerrogativas que possui o secretário de Estado, o substitutivo acaba com qualquer possibilidade de gestão executiva pelo Governo do Estado da política de segurança pública e do tensionamento a favor da integração das organizações policiais, um grave problema no Brasil.

É ainda curioso notar que um governo que prega a austeridade fiscal seja patrocinador de tal proposta. Além das novas patentes a serem criadas que geram novos gastos, o documento ainda prevê que “a remuneração dos militares do Distrito Federal, dos Territórios, do ex-Distrito Federal e ex-Territórios será estabelecida em lei federal”, o que tenderia a colocar todas as forças no mesmo patamar de salários do Distrito Federal. Das duas uma, ou a proposta inviabilizaria financeiramente vários estados, ou uma conta salgada seria paga pelo governo federal e por toda a sociedade, sepultando o teto de gastos.

Se não fosse todos os graves problemas apontados acima, a articulação do Governo Federal pela aprovação do substitutivo atenta contra o pacto federativo e coloca em risco a própria democracia. Como já demonstrado na história, governos autoritários tendem a concentrar poder e, especificamente, a controlar as polícias. Já vimos esse filme no Brasil do Estado Novo (1937 a 1945) e do Regime Militar, quando as forças públicas civis foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares que passaram a ser “forças auxiliares controladas pelo Exército. No plano internacional, um exemplo, como bem lembrou Arthur Trindade, num artigo publicado no Fonte Segura, tal situação ocorreu “na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do governo bolivariano.” Mais recentemente na Bolívia, o papel da polícia também foi importante no golpe de Estado que tirou Evo Morales do poder.

Depois da invasão do Capitólio, no ápice da tentativa de golpe incentivada pelo Trump, Bolsonaro ameaçou que “Se Brasil não tiver voto impresso em 2022, vamos ter problema pior que os EUA”. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que adesão dos policiais praças ao bolsonarismo no país gira em torno de 41%. O processo de cooptação das forças armadas e policiais pelo presidente, que já vem de tempo, somada à irresponsabilidade da política de “armas para todos” e ainda a esse passo central para controlar as forças policiais estaduais coloca em sério risco a democracia no país. É urgente a mobilização de todas as forças democráticas contra mais essa excrescência e contra o enorme risco que nos ronda.

Daniel Cerqueira é doutor em economia, diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Neves e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


Eliane Cantanhêde: Para que serve um chanceler?

No Brasil, Ernesto Araújo cai como uma luva para a política externa beligerante do presidente Jair Bolsonaro. Ou melhor, para a não política externa

A emocionante posse de Joe Biden e Kamala Harris dispara uma pergunta que não quer calar no Brasil: para que serve um chanceler, em qualquer país, de qualquer região, que vive numa guerra de nervos com a China e agora também com os Estados Unidos, as duas maiores potências econômicas do mundo? A resposta óbvia seria que não serve para nada, mas depende... No Brasil, o chanceler Ernesto Araújo cai como uma luva para a política externa beligerante do presidente Jair Bolsonaro. Ou melhor, para a não política externa.

E, neste momento de pandemia, aumento de casos, nova cepa do coronavírus e falta de vacinas, há uma segunda questão: para que serve um chanceler que não tem interlocução com a própria China e com a Índia, os dois maiores fornecedores de vacinas e insumos farmacêuticos do mundo? Para nada? Depende. Pode ser perfeitamente adequado quando o próprio presidente nega a pandemia, desdenha das mortes e dá de ombros para a vacina.

Bolsonaro, porém, não tem alternativa. Ou dá um cavalo de pau na política externa e muda Araújo e sua turma ou vai ter muito problema com a era Biden. Se, com Donald Trump, Bolsonaro deu muito e o Brasil não recebeu nada, política e comercialmente, a expectativa é a de que, com Biden, a pressão por democracia, direitos humanos e meio ambiente vá disparar.

Nos dois primeiros anos, Bolsonaro e Araújo se esmeraram em espancar os principais parceiros brasileiros, a partir de China, Argentina, França, Alemanha, Chile e mundo árabe, no pressuposto de que Trump bastava. Assim, o Brasil perdeu o que tinha e não ganhou o que não tinha. Os parceiros se descolaram, os EUA não contribuíram em nada e ainda tiraram vantagem dos devaneios ideológicos juvenis de Bolsonaro. Aliás, dos Bolsonaros.

A especialidade do presidente é usar bodes expiatórios para executar as próprias políticas estapafúrdias. O general Eduardo Pazuello apanha pela incúria no combate à pandemia, Ricardo Salles é alvo até do Ministério Público pelo desmonte no Meio Ambiente e Ernesto Araújo é o para-raios para o desastre da política externa. Mas todo mundo sabe, principalmente os militares do Planalto, que não adianta só trocá-los. Eles têm chefe. É Bolsonaro quem tem bons motivos para não dormir, nem nesta nem nas próximas muitas noites.


Cora Rónai: O silêncio cúmplice dos generais

Cada vez que um general na administração pública se revela incompetente ajuda a destruir a reputação das Forças Armadas

A Academia Militar das Agulhas Negras é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro. Copiei essa frase da Wikipédia para não errar na definição. Ensino. Superior.

Lá se formam os oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Não é qualquer um que tem acesso à AMAN. Jovens militares entre 17 e 22 têm que prestar concurso público para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde passam um ano antes de ser admitidos.

O ensino é puxado. Só no primeiro ano, por exemplo, os alunos têm que aprender idiomas estrangeiros, Economia, Estatística, Filosofia, Introdução à Pesquisa Científica, Informática, Língua Portuguesa, Técnicas Militares e Química, entre aulas de tiro e de treinamento físico. Eles têm ainda aulas de Direito e Psicologia no segundo ano e Metodologia do Ensino Superior no terceiro, e concluem os estudos com Direito Administrativo e Relações Internacionais, entre muitas e muitas matérias de cunho especializado.

Eu não conhecia os detalhes desse currículo até consultar a Wikipédia, mas, como todo mundo, conhecia a fama da AMAN, tida por formadora de pessoas disciplinadas e com bons conhecimentos técnicos.

Como os militares tiveram o bom senso de se manter em low profile depois da ditadura, muitos brasileiros passaram a acreditar no preparo dos seus generais. Eles podem não ser democráticos — ninguém que obedece hierarquia às cegas é inteiramente democrático —, mas imaginava-se que seriam bem preparados.

Bolsonaro é egresso da Academia Militar das Agulhas Negras, mas não teve sucesso como militar. Não mancha a imagem das Forças Armadas diretamente, porque elas tiveram a sorte (ou o bom senso: há divergências) de livrar-se dele a tempo.

Indiretamente, porém, os danos feitos pela sua eleição são incalculáveis. Cada vez que um general alçado à administração pública se revela incompetente, ou dá declarações fora de propósito, ajuda a destruir mais um pouco a reputação que as Forças Armadas levaram tantas décadas para recuperar.

Nenhum estrago, porém, se compara ao general Eduardo Pazuello, o “especialista em logística” que garantiu a pior resposta possível à pandemia — e que garante ao governo o vexame diário de ver os números da contaminação e da mortalidade divulgados por um consórcio de empresas jornalísticas, já que nos dados oficiais é impossível confiar.

Ele é a desmoralização concreta das FFAA, um homem que não se envergonha de faltar com a verdade, um estrategista incapaz de fazer uma simples licitação pública para comprar seringas, um ministro da Saúde que, até agora, não entendeu o que está acontecendo.

Um general que derruba, sozinho, o mito da boa preparação dos oficiais superiores do Exército Brasileiro.

Não é que não dê para se imaginar como chegou ao ministério: o fraco do presidente por pessoas inadequadas é bem conhecido. Num governo que tem Ricardo Salles no Meio Ambiente e Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello faz todo o sentido na Saúde.

O que não dá para imaginar é como chegou ao generalato.

É duro constatar que, enquanto brasileiros morrem asfixiados pela sua incompetência, seus colegas de farda observam calados.

Tomem tenência, senhores: quem cala é cúmplice.


Bruno Boghossian: Carta de Bolsonaro a Biden só tem valor com outro chanceler ou outro governo

Lista de princípios elencados pelo brasileiro não casa com as diretrizes da diplomacia bolsonarista

Jair Bolsonaro se esforçou para construir a pior relação possível com o novo presidente dos EUA. Apoiou o candidato errado, alimentou falsas suspeitas de fraude eleitoral e ameaçou entrar em guerra. Foi preciso que Joe Biden pegasse as chaves da Casa Branca para que o governo brasileiro caísse de joelhos.

Depois da teimosia diante da vitória do democrata, Bolsonaro enviou uma carta em que deseja ao americano a “mais alta estima”. O presidente foi obrigado a engolir as próprias palavras –ou talvez tenha assinado o documento sem ler.

No texto, Bolsonaro declara que o país demonstrou “seu compromisso com o Acordo de Paris”. Em 2019, era diferente. O brasileiro copiava as promessas de seu ídolo Donald Trump e afirmava que deixaria a iniciativa global contra as mudanças climáticas. “Se fosse bom, o americano não teria saído”, declarou.

O presidente brasileiro também propõe ao democrata “continuar nossa parceria” na proteção ambiental. Bolsonaro não se preocupava com isso enquanto confiava na vitória de Trump. Quando Biden sugeriu impor sanções pela destruição da Amazônia e ofereceu fundos para conter a devastação, o brasileiro respondeu que não aceitava subornos.

Depois da vitória de Biden, em novembro, Bolsonaro ainda o chamava de “um grande candidato à chefia de Estado” e ameaçava reagir no campo bélico aos planos ambientais do americano. “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, disse.

O governo que afinou o tom depois da posse de Biden é o mesmo que relativizou a invasão do Capitólio para impedir a certificação do resultado eleitoral. O chanceler Ernesto Araújo afirmava que o ato era fruto da insatisfação dos americanos.

A carta enviada agora a Biden contém um catálogo humilhante das migalhas concedidas por Trump ao país e uma lista de princípios que não casam com as diretrizes da diplomacia bolsonarista. Para que o documento tenha algum valor, será preciso trocar o chanceler ou o governo –o que ocorrer primeiro.


Mariliz Pereira Jorge: Tão cedo não teremos vacina para todos

Enquanto isso, o ministro da Saúde, o general Pesadelo, mente

Não teremos vacina para todos. Pelo menos não tão cedo. A incompetência e o descaso de Jair Bolsonaro e dos patetas dos seus assessores colocaram uma nação inteira na vergonhosa, sem dizer calamitosa, posição de levar um tombo na corrida da imunização.

Depois de um dia de esperança com o início da vacinação, a realidade. E a realidade é que estamos nas mãos dos chineses, que riem por último do festival de grosserias dos nossos representantes.

O estoque da Coronavac deve durar até o final de janeiro. A AstraZeneca só deve começar a chegar em março. Bolsonaro desdenhou, cancelou compras, pôs em dúvida a eficácia dos imunizantes, seu governo se opôs —e depois voltou atrás— à quebra de patentes proposta pela Índia. E agora não conseguimos matéria-prima para abastecer a Fiocruz e o Instituto Butantan.

Num evento em comemoração ao dia de São Sebastião, na Arquidiocese do Rio, a cientista Margareth Dalcomo, um dos principais nomes no combate à Covid-19, verbalizou a angústia de milhões de pessoas ao falar sobre a derrota do governo na compra dos imunizantes. "O que é que pode justificar que o Brasil não tenha as vacinas disponíveis para a sua população (...) A não ser a absoluta incompetência diplomática do Brasil..."

Enquanto isso, o ministro da Saúde, o general Pesadelo, mente que sua pasta nunca ofereceu tratamento precoce para a doença. Felizmente a notícia e o print são eternos. Para completar a lambança, um aplicativo do ministério indica cloroquina e antibiótico até para casos não comprovados de infecção pelo coronavírus. Tem náusea e diarreia? A solução, segundo o governo, é o "kit-Covid".

Cerca de 73% dos brasileiros disseram que pretendem se vacinar, segundo o Datafolha.

Se depender do governo, no dia de sabe-deus-quando. Quem diria, mas a vacina, mais precisamente a falta dela, ainda vai derrubar Bolsonaro.


Maria Hermínia Tavares: Freios políticos em bom estado sustentam a democracia

Com o mandato a meio caminho só é possível esperar de Bolsonaro mais do mesmo

No dia em que portadores da Covid-19 em Manaus começaram a morrer asfixiados por falta de oxigênio, Jair Bolsonaro participou, sem máscara, de uma festinha de aniversário no Clube Naval de Brasília. Apostou contra a imunização e, quando a vacina do Butantan, finalmente aprovada, começou a ser produzida, fez pouco de sua eficácia.

O país entrou em 2021 com repique da pandemia e nenhuma iniciativa federal para contê-la ou reduzir seu impacto devastador na vida da população mais pobre e na atividade das empresas. Em cada área de atuação do governo federal —educação, ambiente, segurança, economia, política exterior—, incompetência e irresponsabilidade se deram as mãos.

Nas suas muitas horas vagas, o presidente se ocupa alimentando suspeitas sobre as instituições eleitorais e soltando disparates sobre as Forças Armadas e a democracia. Comprova, dia sim, o outro também, que, além de não ter nem aptidão, nem ânimo para governar, abomina os valores e as regras do sistema.

Mas, como lembrou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, em entrevista a esta Folha, "o regime democrático é para impedir que um governante subjetivamente autoritário possa emplacar um governo objetivamente autoritário". Desse ponto de vista, as coisas estão funcionando.

De acordo com levantamento recente do jornal O Estado de S. Paulo, nos dois últimos anos o Executivo federal sofreu 33 derrotas no STF em ações iniciadas por partidos de oposição, questionando nomeações, decretos e outros atos administrativos. Da mesma forma, até este Congresso —de maioria francamente conservadora— engavetou às pencas medidas provisórias vindas do Palácio do Planalto. Nada menos de 64 perderam a vigência sem ser apreciadas e quatro diretamente rejeitadas, ante 58 convertidas em lei —algo inédito desde que a Constituição de 1988 entregou ao titular do governo esse poderoso instrumento legislativo.

No combate à Covid-19, muitos governadores desempenharam papel de contrapeso ao presidente, alheio ao que importa e dedicado a estimular os piores impulsos de seus ainda muitos apoiadores. Do lado da sociedade, também se destaca a disposição da grande imprensa de monitorar os governantes e das organizações sociais de denunciar seus malfeitos.

Com o mandato a meio caminho, só é possível esperar de Bolsonaro mais do mesmo. Eis por que, do estado desses freios que sustentam o sistema democrático —contra as piores intenções do ex-capitão— continuará dependendo sua sorte e a possibilidade de que os eleitores sigam tendo a chance de decidir com liberdade.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Ricardo Noblat: No que aposta Bolsonaro para completar o mandato e ganhar outro

Quem mudou? O ex-capitão ou o Exército?

E o governo federal faz de conta que mortes por falta de oxigênio no Norte do país é problema dos governos estaduais, que culpam os municipais, que devolvem a responsabilidade aos estaduais, que suplicam em vão por socorro ao federal. Segue o baile.

O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, reuniu-se com o embaixador da China no Brasil. Pediu pressa na remessa de insumos para a fabricação da vacina chinesa Coronavac. Foi desautorizado em nota pelo governo federal.

Diz a nota que é atribuição do governo federal, e só dele, defender os interesses do país em conversas com representantes de outros governos. Tanto mais em meio a uma pandemia que matou quase 213 mil pessoas até ontem, das quais 1.381 nas últimas 24 horas.

Governo esquisito, este. O presidente Jair Bolsonaro vive dizendo que o Supremo Tribunal Federal impediu-o de combater a Covid-19, o que é uma mentira. Mas quando um membro de outro poder da República combate e tenta ajudá-lo, ele repele.

Vidas não importam a Bolsonaro, somente política, e logo ele que se apresentou aos brasileiros há dois anos como o antipolítico por excelência, embora deputado federal de sete mandatos. O Brasil nunca esteve em pior situação e, o presidente, idem.

Como é incapaz de admitir erros, Bolsonaro reuniu seus ministros e cobrou-lhes duas coisas em termos duros – o que significa uma explosão de palavrões onde “porra” é o mais leve. A primeira: que defendam o governo. A segunda, que trabalhem melhor.

A cobrança por um trabalho melhor foi dirigida, principalmente, ao general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde. Ora, Pazuello não é médico, não sabia o que era SUS e não se ofereceu para ser ministro. Bolsonaro foi quem o convocou e lhe deu a tarefa.

Como na caserna missão dada é para ser cumprida, Pazuello perfilou-se, bateu continência ao chefe das Forças Armadas e encarou o desafio. Afinal, logística militar é sua especialidade. E uma pandemia se enfrenta também com logística, certo? Pois.

Cadê o cargueiro da Força Aérea Brasileira que poderia estar voando para abastecer o Norte do país com cilindros de oxigênio suficientes para que ninguém morresse? Foi despachado para uma manobra militar junto com a Força Aérea dos Estados Unidos.

Cadê o avião da Força Aérea americana que o governo federal disse que pediria aos Estados Unidos uma vez que o avião da Força Aérea Brasileira está indisponível? Trump, o amigo de Bolsonaro, deixou a Casa Branca e não mandou.

O presidente empossado Joe Biden seria mais sensível a um pedido dessa natureza. Por que Bolsonaro não pede a ele? Só por que torceu abertamente por sua derrota? Só por que foi o último chefe de Estado a cumprimentá-lo pela vitória?

Só por que foi o único chefe de Estado a justificar a invasão do Capitólio por hordas que Biden batizou de terroristas domésticos? Biden haverá de entender que, no passado, Bolsonaro planejou jogar bombas em quartéis. Perdeu a farda.

Foi um momento de fraqueza de Bolsonaro. Faltou-lhe coragem para lançar as bombas. Contra todas as provas, negou em depoimentos, negou por escrito, negou pelo mais sagrado que tivesse planejado atos terroristas. O Exército não acreditou.

Mudou Bolsonaro ou mudou o Exército que agora confia 100% nele a ponto de um general da ativa fazer parte do governo? Os gabinetes mais importantes do Palácio do Planalto são ocupados por generais da reserva. O governo emprega 3 mil militares.

Bolsonaro aposta na farda para completar o mandato e conquistar outro. Faltam menos de 88 semanas para a eleição do ano que vem. Que passem rápido, com oxigênio hospitalar para quem precisa.  

O sabotador número 2 das vacinas contra o coronavírus

O legítimo sucessor do pai

Flávio Bolsonaro, o senador denunciado por se beneficiar de dinheiro público, perdeu a voz. E, por temperamento, talvez jamais se prestasse a esse papel.

Carlos Bolsonaro, o vereador investigado pelo mesmo crime, perdeu o brilho, e de resto anda muito ocupado em apagar nas redes sociais mensagens que postou em nome do pai.

Jair Bolsonaro, o presidente da República que dispensa máscara, já fez por merecer o título de sabotador número 1 das vacinas. Tal honraria ninguém lhe tomará.

O sabotador número 2 das vacinas, portanto, é justamente o que você pensa – Eduardo Bolsonaro, deputado federal, que no passado fritou hambúrgueres e, agora, frita vidas.

Logo quando o Brasil está de quatro diante da China porque depende dela para fabricar vacinas, Bolsonaro voltou a criticar a China pelo atraso no envio de insumos.

Escreveu nas redes sociais que a Coronavac, vacina chinesa, não é aplicada nos chineses. Não disse por quê. Não apresentou provas, mas os Bolsonaro se sentem dispensados de provar o que dizem.

Justificou o atraso da vacina que a Índia não se comprometeu a dar ao Brasil, ao contrário do que anunciara seu pai:

 “A vacina que está vindo do Brasil vem da Índia. Mas como a Índia pode distribuir vacinas sendo que a própria população ainda não foi vacinada? Existe uma pressão popular que gerou uma instabilidade que atrasou, e o problema já está sendo resolvido”.

Para variar, atacou o governador João Doria (PSDB-SP):

“O presidente sempre deixou claro que assim que a Anvisa chancelasse, não haveria problema. O problema é que o governador João Doria não queria que a vacina, que vem da China mas não é aplicada nos chineses, passasse pela Anvisa. E para piorar ele falava sobre vacinação obrigatória.”

Bateu também em Luciano Huck:

“Basta lembrar do apresentador do nariz grande choramingando que nada poderia fazer para ajudar o oxigênio em Manaus, este é o padrão.”

Sobrou até para a Secretaria de Comunicação do governo:

“A comunicação do governo poderia melhorar? Sim, sempre dá para aperfeiçoar tudo. Mas pense comigo: será que se o governo agisse diferente estes que criticam estariam elogiando? Adianto a resposta: a esmagadora maioria não”.

Eduardo é uma cópia escarrada do pai, e, dos filhos, o mais interessado em ficar com sua herança política.