Day: dezembro 31, 2020
Cecilia Ballesteros: O vírus também ataca os direitos humanos
ONU e várias organizações internacionais alertam que a pandemia está causando um retrocesso nas liberdades
Michelle Bachelet já alertou. A alta-comissária de Direitos Humanos da ONU identificou o perigo em abril e acaba de insistir no final deste ano: a crise sanitária desatada pela covid-19 pode acabar infectando o organismo da democracia e das liberdades. E não há vacina contra esse vírus, “exceto mais direitos humanos”, como disse a ex-presidenta chilena. Desde que a pandemia foi declarada, em março passado, deixando quase dois milhões de mortos, aproximadamente 82 milhões de contagiados e o planeta em polvorosa, alguns regimes autoritários aproveitaram o medo de suas sociedades para transformar as máscaras em focinheiras e o confinamento em estados de exceção encobertos.
Vários especialistas em direitos humanos consultados por este jornal salientam que entre os males trazidos pela pandemia, além da crise sanitária e econômica, será preciso incluir um retrocesso das liberdades, inclusive nas democracias. O último estudo do Idea (Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral, na sigla em inglês), um organismo intergovernamental com sede na Suécia e em parte financiado pela União Europeia, informa que quase a metade dos países democráticos (43%) e a maioria dos não democráticos (90%) adotaram medidas “ilegais, desproporcionais, indefinidas ou desnecessárias” desde o início da pandemia. Em seu relatório sobre o estado da democracia no mundo, o organismo enquadra 162 dos 195 em uma das três seguintes categorias: democracias (99), regimes híbridos (33) e regimes autoritários (30). Os critérios para isso são parâmetros como a existência de eleições confiáveis, o respeito aos direitos humanos e a igualdade entre os sexos.
O relatório afirma que neste ano houve uma erosão do Estado de direito sem igual nas últimas décadas. Por exemplo, em termos de liberdade de expressão, uma das restrições mais comuns, pela primeira vez desde 1975 há mais países em retrocesso do que em ascensão, uma tendência que já vinha sendo vista desde 2014. “Os elementos mais preocupantes se dão no que chamamos de regimes híbridos, como a Rússia, Turquia, Marrocos, Afeganistão e Paquistão, e nas democracias frágeis ou de baixa qualidade, como Polônia, Hungria, Índia, Filipinas e Sérvia, onde as ações do Executivo estão minando os princípios democráticos, uma tendência que, se não for revertida, poderia ter chegado para ficar”, afirma Alberto Fernández, um dos autores do relatório do Ideia, falando por telefone de Estocolmo.
“Embora ainda seja cedo para calibrar o impacto da pandemia e seja complicado tirar conclusões, foram aprovadas medidas que poderiam se manter no tempo, como as restrições à liberdade de imprensa ou de informação, que inclusive se tornaram leis em alguns países, enquanto outras, como as limitações de movimento ou de reunião, ninguém espera razoavelmente que se mantenham além da emergência sanitária”, acrescenta Fernández. Os Estados que se orgulham de terem enfrentado o vírus de maneira mais eficaz e com menor perda de vidas, segundo o cômputo da Universidade Johns Hopkins, conseguiram isso, argumenta o estudo, à custa de ignorar os direitos humanos, como ocorreu por exemplo na China, onde os médicos que alertaram para os primeiros sinais de epidemia em Wuhan foram silenciados e muitos jornalistas estrangeiros foram expulsos, ou em Cuba.
Em países como Islândia, Finlândia, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Taiwan e Uruguai, as medidas adotadas contra o vírus, segundo o relatório, em geral não violaram os direitos fundamentais, embora em muitas partes da Europa e nos Estados Unidos, com uma grande tradição democrática, os decibéis da polarização política tenham subido. “Reagiram de maneira eficaz à pandemia sem solapar as liberdades”, diz Fernández. Não foi assim, porém, na Hungria, Polônia, Ucrânia, Rússia, Eslováquia, Eslovênia, Belarus e Azerbaijão, onde a covid-19 serviu como pretexto para cercear liberdades básicas e para adiar eleições – uma medida eventualmente justificada pelo risco de contágio, mas muito bem aproveitada pelos regimes não democráticos ou autoritários, já que, das 185 votações previstas neste ano até outubro, 93 haviam sido adiadas, e só 92 aconteceram de fato – ou para silenciar críticos, quando não diretamente para esmagar a oposição, como em Bangladesh ou no Camboja.
Em outras zonas do mundo, como a América Latina e a África ―que tem o pior comportamento, com 76% de países com as liberdades em semáforo vermelho, só atrás do Oriente Médio―, a crise sanitária agravou a corrupção, a fragilidade das instituições, a pobreza, a desigualdade e a exclusão dos grupos mais vulneráveis, entre eles as mulheres, os imigrantes e as minorias raciais. Além disso, em oito países, entre eles o México e o Chile, coube às Forças Armadas controlar a pandemia e a segurança. Regimes como os da Venezuela, Cuba e Nicarágua se tornaram ainda mais autoritários, segundo o documento.
“Desde que a pandemia estourou, a democracia e os direitos humanos se deterioraram em 80 países”, adverte por email Amy Slipowitz, coautora do último estudo da organização Freedom House, intitulado Democracia sob confinamento. Segundo ela, “esta deterioração é particularmente preocupante nas democracias incipientes e nos Estados altamente repressivos”. Segundo o relatório dessa organização norte-americana, feito com a participação de mais de 400 jornalistas, trabalhadores sociais, ativistas e especialistas sobre 192 países, a lista inclui tanto ditaduras como democracias que rebaixaram os seus padrões.
Para a Freedom House, a pandemia acentuou a desconfiança na democracia, uma tendência latente que se exacerbou a partir da Grande Recessão de 2008. Embora a emergência sanitária diminua com a difusão de vacinas nos próximos anos, Slipowitz acredita que esse padrão será mantido. Ou seja, que continuará a propagação das chamadas fake news ou desinformação, tão bem manejadas neste ano por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro; será mais fácil para os Governos autoritários controlarem a população alimentando o pânico, ou crescerá o controle dos Estados através da videovigilância, como ilustra o caso da China. “No momento, todos os Governos deveriam assegurar-se de que as medidas de emergência são proporcionais e temporárias. Também deveriam garantir que a população tenha acesso a informação confiável sobre a pandemia, permitir a realização de eleições livres e confiáveis com medidas sanitárias adequadas, identificar e punir as violações de direitos humanos e combater a corrupção”, conclui Slipowitz.
José Pastore: Vacina, coronavoucher e a nova década
Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defende apoiar a vacinação em lugar de prorrogar o auxílio emergencial. Para ele, a retomada em V da economia permitirá a absorção no mercado de trabalho dos brasileiros que estão parados. Dali para a frente eles poderão viver da renda do trabalho, e não da renda do coronavoucher.
Tudo indica, porém, que a tão desejada sincronia vai demorar algum tempo. Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?
Grande parte da retomada em V deveu-se ao sucesso dos programas de redução de jornada e suspensão do contrato de trabalho que manteve 10 milhões de empregos formais e propiciou dados positivos no Caged. Outra parte deveu-se ao próprio auxílio emergencial de R$ 600 e, depois, de R$ 300.
Mas esses programas terminam hoje. Noticia-se a possível prorrogação da redução de jornada e suspensão dos contratos, o que é animador. Mas, até o fechamento deste artigo, nada se falou sobre a prorrogação do coronavoucher. Lembremos que para cerca de 23 milhões dos beneficiados sua única renda é a do auxílio emergencial.
Na ausência do coronavoucher e com o fechamento de muitas atividades econômicas em razão da segunda onda da pandemia, antecipa-se um vácuo de renda para milhões de famílias exatamente na hora em que a inflação castiga os mais pobres.
Outra preocupação refere-se ao retardamento da vacinação dessas pessoas. Para cumprir a escala de prioridades – idosos, pessoas com comorbidades, profissionais da saúde, professores e indígenas –, será grande o número dos que ficarão sem vacina, sem trabalho e sem auxílio emergencial por um bom tempo. É um cenário muito preocupante.
Sei que o problema fiscal é gravíssimo. Mas quem tem coragem de deixar idosos, adultos e crianças passando fome? O governo terá de agir, como de resto vem sendo feito em vários países que já prorrogaram ajudas às empresas e às famílias em vista da renitência da pandemia. Os estragos no equilíbrio fiscal terão de ser consertados ao longo da década que hoje se inicia.
Para o médio prazo, há sinais alentadores de geração de emprego e renda. A reativação da construção de casas populares é um deles. No campo da energia, a implantação de 2 mil quilômetros de linhas de transmissão e subestações até aqui concedidas vai demandar muito trabalho, sem falar na expansão das fontes de energia eólica. As concessões já aprovadas pelo Ministério da Infraestrutura (várias rodovias, ferroviárias da Malha Oeste e Sul, incentivo à cabotagem, privatização de 16 aeroportos e das Docas de Santos e outras) implicarão muitas obras que têm grande potencial de empregos por vários anos. A pujança do agro, apesar de bastante mecanizado, gera muito emprego no comércio e nos serviços locais – e as perspectivas são de crescimento. A melhoria da mobilidade urbana e a reestruturação dos locais de trabalho nas zonas suburbanas após o alastramento do home office são ricas fontes de emprego. As necessidades nos campos da educação e da saúde são imensas, incluindo aqui o atendimento de idosos.
Enfim, quando se observam o quanto está para ser feito e o gigantesco potencial deste enorme país, o Brasil pode se transformar numa grande usina de empregos ao longo desta nova década. Para chegar lá, é claro, teremos de promover as benditas reformas e nem pensar em nova década perdida!
* Professor da FEA-USP, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomércio-SP, é membro da Academia Paulista de Letras
Celso Ming: Os fatores que evitaram o maior desastre em 2020
São quatro as razões que evitaram a queda de dois dígitos do PIB brasileiro
E o pior não aconteceu. No segundo trimestre, em plena pandemia, as projeções para o desempenho da economia do Brasil foram terríveis. Algumas chegavam a indicar um mergulho do Produto Interno Bruto (PIB) de quase 10% para todo o ano.
As novas previsões falam de uma queda de 4,4% (veja o gráfico). Essa é a última projeção do Banco Central, que coincide com a do mercado, como consta no Boletim Focus desta semana.
São quatro as explicações para esse tombo menos acentuado.
A primeira delas é a de que o Tesouro despejou R$ 322 bilhões em auxílios emergenciais para a população (66 milhões de pessoas), recursos que permitiram uma sustentação da demanda de bens essenciais – especialmente alimentos, medicamentos e moradia – durante o isolamento social necessário para combater a covid-19. Foi uma demanda que permitiu que a atividade econômica não entrasse em colapso. O efeito colateral foi o avanço inesperado da inflação, que, no entanto, tende a ser limitado.
O segundo grande fator de sustentação da economia foi o excelente desempenho do agronegócio. Como mostram as últimas projeções do IBGE e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção física de grãos na safra de 2020/21 deverá ter um aumento de 3,5%, para alguma coisa em torno dos 266 milhões de toneladas. Os preços também ajudaram, seja pelo aumento da demanda interna de alimentos, como mencionado acima, seja pela forte importação da China.
A alta do dólar em reais também trabalhou na mesma direção. O impacto desses resultados no PIB ainda é relativamente baixo porque a agropecuária pesa apenas 5,6% na renda nacional.
O maior estrago aconteceu no setor de serviços (mais de 70% do PIB), especialmente nas viagens, no turismo, nos grandes eventos, no ensino, na saúde, no ramo dos bares e restaurantes e em grande parte no comércio varejista. Salvaram-se as vendas pela internet e os escritórios, graças aos serviços prestados em casa, o home office.
As avarias macroeconômicas foram enormes: investimentos adiados, obras paralisadas, um desemprego de 14,3% da força de trabalho e de outros 5,5% no desalento (desistiram de procurar emprego) e, mais que tudo, o alastramento do rombo fiscal e o avanço da dívida pública. Até agora, o governo não mostrou como vai enfrentar as exigências da lei do teto dos gastos nem como vai reequilibrar as contas públicas em 2021. Nem mesmo o Orçamento de 2021 foi aprovado.
As apostas se concentram agora na recuperação da atividade econômica, que já começou a mostrar as caras no último trimestre deste ano. O maior trunfo está na aplicação da vacina.
Cinco instituições internacionais já mostraram que superaram a terceira e decisiva fase de testes. O Instituto Butantã espera começar a vacinar ainda em janeiro e a Fiocruz tem planos para iniciar a aplicação das doses no fim de fevereiro. É provável que, já no primeiro semestre de 2021, boa parcela da população tenha sido atendida. Mas não será preciso esperar até que a maior parte da população tenha sido imunizada contra o novo coronavírus para contar com avanços na economia.
E há, também, sinais de excelente recuperação da economia mundial, especialmente da China e da Europa, também fortemente influenciados pela distribuição das vacinas. São fatores que indicam bons resultados na balança comercial do Brasil, especialmente ancorados pelo novo recorde de produção de commodities agrícolas.
A perspectiva de que a vacina esteja próxima e o afastamento da ameaça de novas ondas da pandemia, no Brasil e no resto do mundo, podem mudar corações e mentes. E esse novo ânimo tende a ser a melhor energia para revitalizar a atividade econômica.
Cora Rónai: Já não era sem tempo
Gente má faz mais barulho, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível
31 de dezembro de 2020: enfim, o último dia do ano mais longo que já vivemos, o ano que nos enganou no começo com a linda ressonância dos seus números dobrados, vinte-vinte, mas logo se revelou mais angustiante, divisivo e mortal do que qualquer outro na nossa memória recente. O que mais dói é que não precisava ter sido assim.
Em circunstância nenhuma teríamos escapado da Covid-19, mas não precisávamos ter enfrentado tantas epidemias ao mesmo tempo — de obscurantismo, de arrogância e de politicagem, de descaso e de deboche, de incompetência e de estupidez.
O ano leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro de ponta a ponta.
Teria sido bastante ruim enfrentar tantas mortes e tanta devastação em circunstâncias “normais”, se é que se pode falar em normalidade numa hora dessas, mas foi medonho viver tudo isso tendo no mais alto cargo da nação esse homem inculto e mau, esse ignorante absoluto da própria ignorância, incapaz de entender o pouco que se pedia dele diante da pandemia: calar a boca, seguir os especialistas, dar o exemplo.
Teria sido tão mais simples, tão menos devastador.
Nem precisava ser uma Jacinda Arden ou uma Angela Merkel. Bastava ter um mínimo de inteligência — um pouquinho, não muito, o suficiente apenas para perceber que vírus não tem ideologia e não se combate no grito.
Teria sido tão mais fácil atravessar o ano ouvindo palavras de consolo e de encorajamento; ou, pelo menos, não ouvindo nada.
Mas foram tantos absurdos, tantas ofensas e desaforos, que chegamos a esse fim de ano exaustos, sem energia sequer para manifestar indignação — a tal ponto que o capitão foi para a televisão fazer pronunciamento na noite de Natal e, salvo raras exceções, as panelas permaneceram mudas na cozinha.
Além da Covid-19, tivemos que nos proteger de idiotas negacionistas e de gente grosseira em geral que se sente respaldada por atitudes irresponsáveis vindas de cima. Se o presidente não tem compostura, por que o cidadão precisa ter? Se o presidente não usa máscara, por que o desembargador vai usar?
Ainda assim, amanhã vai ser outro dia, outro ano. Já estamos adultos, sabemos que nada muda de verdade — mas, se a gente não tiver alguma esperança no dia 31 de dezembro, quando vai ter?
Tenho repetido como um mantra que, ainda que haja muita gente má à nossa volta, a quantidade de gente boa continua sendo maior. Gente má faz mais barulho, se faz notar melhor, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível, que nos parecem apenas naturais.
Pois não são.
Eles brotaram ano a ano, século a século, milênio a milênio. São fruto de um longo processo civilizatório, foram cultivados, adubados, cuidados. Às vezes temos recaídas coletivas e regredimos, mas a tendência é nos tornarmos mais atentos e melhores com o passar do tempo. Percebemos o mal porque já conhecemos o bem, e isso faz diferença.
Você acredita mesmo nisso, Cora Rónai?
Acredito, muito. O problema é que nem sempre me lembro de que penso assim. Felicidade — ou, vá lá, fé na Humanidade — é, também, um exercício de memória.
Tenham um bom Ano Novo, pessoas queridas.
Zeina Latif: Governo em quarentena
A inoperância do governo federal transborda e agrava o sofrimento social. Alguns ministérios cuja ação seria essencial pegaram a covid-19 e estão em isolamento por tempo indeterminado
Repetitivo lembrar que o plano nacional de imunização não tem vacinas ou mesmo seringas. E ainda aguardamos as deliberações do comitê de crise, sob comando da Casa Civil.
Do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nada se ouve falar, apesar do estresse vivido pelas famílias por conta da crise no mercado de trabalho, do confinamento social em moradias precárias, dos problemas de saúde e das escolas fechadas.
Não podemos nos enganar com os números de queda expressiva na violência doméstica (-27%), na ameaça contra a mulher (-33%) e na violência contra vulneráveis (-50%), entre março e maio em relação ao ano passado. Há grande subnotificação de casos por conta do isolamento social combinado à falta de acesso digital aos canais de denúncia.
Provavelmente, o problema é maior no Brasil, a julgar pela experiência mundial. Por exemplo, a Colômbia, com boletins semanais, registrou aumento de 92% nas chamadas de denúncia de violência contra a mulher entre abril e início de dezembro. Na Argentina, o aumento foi de 25% entre abril e outubro. A propósito, o cuidado em coletar e divulgar as estatísticas atualizadas já diz muito dos governos.
A elevada subnotificação aqui revela não apenas problemas de exclusão digital, mas certamente a falta de empenho para ampliar os canais de denúncia, como fizeram outros países. Os canais criados para encontrar os “invisíveis” e conceder o auxílio emergencial poderiam ter sido utilizados também para esse fim.
Os países lidaram com o problema do aumento da violência contra mulheres e vulneráveis, durante a pandemia, ampliando tempestivamente os serviços públicos em várias frentes, como o reforço no disque-denúncia, atendimento pelo WhatsApp em tempo integral, garantia de renda para mulheres em vulnerabilidade, campanhas de conscientização, ampliação de vagas em abrigo e parcerias com a sociedade civil. Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile adotaram políticas dessa natureza. Não faltou esforço. Na Argentina, onde já começou a vacinação, foi feito o programa Barbijo Rojo, em que atendentes de farmácias, ao ouvirem o pedido por “máscara vermelha”, ajudam a vítima, colocando-a em contato com o disque-ajuda.
Não faltaram alertas de especialistas e recursos financeiros. Mesmo assim, o MMFDH é inoperante. A lista de medidas é extensa, mas inócua. O silêncio da ministra em meio aos casos recentes de feminicídio diz tudo.
Na Educação, o ministro Milton Ribeiro se exime de qualquer responsabilidade pelo desastre do ano letivo perdido, que, para ele, é assunto de Estados e municípios. Em entrevista ao Estadão, afirmou que a pasta deve apenas repassar recursos e divulgar protocolo de segurança. Se a família não tem acesso à internet, isso é “para um outro departamento”.
A crise na educação amplia o abismo entre os estudantes pobres e ricos, enquanto a interrupção de atividades que dependem de fluxo de pessoas aumentou a desigualdade, por conta do desemprego dos trabalhadores pouco qualificados, principalmente os jovens que têm nessas atividades a porta de entrada no mercado de trabalho.
Mesmo passada a pandemia, haverá provavelmente aumento da evasão escolar, com graves consequências no desenvolvimento e empregabilidade desses indivíduos. Pode-se esperar também um aumento do número de jovens “nem-nem” (nem trabalha, nem estuda). Eram 22% das pessoas entre 15 e 29 anos em 2019; 32% para mulheres pretas ou pardas. Quase 72% deste grupo estavam nos 40% mais pobre da população.
A falta de perspectivas dos jovens alimenta a maternidade prematura e a entrada no mundo do crime. O desalento de jovens não parece preocupar Ribeiro e Damares.
Uma triste lição desta crise é que a máquina pública, com poucas e importantes exceções, funcionou mal. A estabilidade do funcionalismo não blindou o País do governo inepto e omisso.
Vamos encarar nossas fraquezas para construirmos um futuro melhor.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Eugênio Bucci: A propaganda, a ciência, o imbróglio e o ano novo
Fapesp corre o risco de perder 30% de sua verba e Bandeirantes aumenta a de publicidade em 70%
No gran finale de 2020, o governo paulista deu um jeito de aumentar os recursos para fazer propaganda de si mesmo e, na outra ponta, deu outro jeito para, em plena pandemia, ameaçar o orçamento da ciência. O ano que começou mal termina muito pior.
Nos derradeiros ajustes da Lei Orçamentária Anual (LOA), na Assembleia Legislativa, o Palácio dos Bandeirantes conseguiu incluir uma elevação de 69% na sua verba publicitária (como noticiou este jornal na primeira página, dia 20, com reportagem de Brenda Zacharias). O montante, que ficou na casa dos R$ 90,7 milhões em 2020, saltará para R$ 153,2 milhões no exercício de 2021.
Na mesma LOA aparece um corte de 30% na receita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A entidade tradicionalmente conta com 1% da receita tributária do Estado. Em 2021 poderá ficar com apenas 0,7%. Traduzindo em graúdos, estamos falando de meio bilhão de reais a menos.
Por enquanto, dinheiro ainda não foi retirado, de fato, mas a Fapesp corre o risco de perdê-lo. O corte aparece no texto final da LOA (publicado no Diário Oficial de ontem), com todos os números e vírgulas, mas talvez não venha a ser efetivado. Mas como assim?, há de se perguntar o improvável leitor. Se a lei manda cortar, como é que podemos ter a expectativa de que o corte talvez não se consume?
Para entender o capcioso imbróglio, pelo qual o malfeito se insinua enquanto finge não ser o que é, precisamos conhecer um pouco mais desse novo gênero artístico-orçamentário de dissimulação, tão em voga na política: a técnica legislativa de ordenar uma coisa e, ato contínuo, ordenar o seu contrário.
A mesma LOA que corta “descorta”. Numa das inumeráveis tabelas que a acompanham, consta um valor para o orçamento da Fapesp que equivale claramente à redução de 30% de suas receitas. Para isso a LOA se apoia lógica que prevaleceu nas emendas à Constituição federal que preveem a Desvinculação de Receitas da União (conhecida pela sigla de DRU) e a Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem). Essas desvinculações constitucionais permitiram que as chamadas “receitas vinculadas”, tanto na União como nos Estados e nos municípios, fossem diminuídas. Logo, se a Drem valer para a Fapesp, ela perderá um terço do tamanho que tem hoje.
Acontece que o destino ainda não está selado, pois, como já foi dito, a mesma LOA que corta “descorta”. Em seu artigo 11, ela manda cumprir o que está escrito no artigo 271 da Constituição estadual de São Paulo – e esse artigo, o 271, determina de forma expressa, inequívoca, a destinação de 1% da receita tributária do Estado à Fapesp.
Em resumo, a LOA paulista para o ano de 2021 é uma contradição em termos, um oxímoro legislativo. Em suas previsões numéricas, impõe o corte da Fapesp. Em seu artigo 11, impede o corte da Fapesp.
O que vai acontecer? As apreensões estão lançadas. Há juristas que entendem que o orçamento da Fapesp não provém de uma receita “vinculada”, como as outras, e, portanto, a Drem não se aplica a ela. Mas há os que dizem que a Drem, um dispositivo da Constituição federal, deve prevalecer sobre as Constituições estaduais.
Não vai ser fácil. Só o que se sabe até agora, com segurança, é que o futuro da ciência paulista, que já era ruim, piorou um pouco mais. É a primeira vez que um ataque tão frontal contra os recursos da Fapesp ganha forma de lei. As forças tecnocráticas que, no curso de vários governos tucanos paulistas, vêm se articulando contra a pesquisa e contra a universidade pública marcaram seu tento, desfecharam sua pirraça e instalaram no horizonte próximo essa incerteza cabulosa.
A integridade da Fapesp nunca esteve tão vulnerável. Para o ano que vem, a manutenção de seu orçamento normal vai depender da assinatura do governador do Estado, a quem cabe expedir, por decreto, os termos da execução orçamentária. Quando for pagar as pesquisas que financia, muitas delas sobre tratamentos contra a covid-19, no Instituto Butantan e em outras instituições, precisará contar com a boa vontade do chefe do Executivo – que assegurou, publicamente, mais de uma vez, que não implementará corte algum.
Podemos acreditar nele? Em nota divulgada agora em dezembro, a instituição diz que sim: “A Drem não será aplicada à Fapesp em 2021 e há um compromisso claro do Governador João Doria e do Vice-governador Rodrigo Garcia, que também não será aplicada nos próximos anos”. Ao que se sabe, essa confiança na palavra do político em questão não tem bases científicas, mas é o que temos para o réveillon. Se cortes vierem, só vai restar aos dirigentes da Fapesp entrar na Justiça, o que trará mais desgastes e mais incertezas.
De sua parte, o mesmo Palácio dos Bandeirantes, que alega falta de recursos para fragilizar o financiamento da ciência e do conhecimento, não vê obstáculos para majorar em 70% a sua verba publicitária. É que estamos em tempos de pandemia e, você sabe, o poder acredita que a propaganda salvará vidas – de governantes.
Feliz ano novo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Mariliz Pereira Jorge: Aborto legal no Brasil
Falta aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema
Gol da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a 14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.
Enquanto isso no Brasil... A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.
Em outubro, o presidente assinou um decreto para estabelecer, como estratégia nacional de longo prazo, a defesa da vida “desde a concepção” e dos “direitos do nascituro”. A medida foi considerada por defensores dos direitos reprodutivos mais um passo contra as possibilidades de interrupção de gravidez previstas em lei.
Nosso Congresso não fica atrás. Já escrevi que o Portal da Câmara registra 574 projetos em que o aborto é mencionado. Só em 2020 foram 64, muitos apenas pioram a vida da mulher, com aumento de pena, imprescritibilidade dos “crimes contra a vida”. No ano passado, o Senado desengavetou uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe o aborto desde o início da gestação.
Falta a sociedade e aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema: questões médicas, legais, direitos individuais, empatia. O aborto não pode ser criminalizado. As mulheres não devem ser tratadas como assassinas por defenderem tal bandeira, como quer Jair Bolsonaro, ao insinuar nas redes sociais que esta colunista seja uma genocida. A história vai contar quem é o genocida.
Fernando Schüler: Esqueça um pouco a política e descubra as coisas interessantes que temos em comum
Ninguém tem a chave para desligar a geringonça na qual estamos todos enredados
Goste ou não dela, vale a pena ler a entrevista de Bari Weissà Folha, dias atrás. É bom escutar alguém que destoa da multidão. Alguém que ri sozinho enquanto todos dançam a Macarena (já me aconteceu). Todos conhecem a sua história. Ela foi contratada como uma das editoras do The New York Times por destoar da linha de pensamento hegemônica da Redação e caiu fora pelo mesmo motivo.
A Redação do Times, diz ela, como a de muitos jornais, passou gradativamente a responder a um agenda política. E o fez a partir dessa cisão típica dos tempos atuais, entre a gente bacana e esclarecida, "cujo trabalho é informar os outros", e os caipirões, basicamente definidos por qualquer coisa que diz respeito a Donald Trump.
Daí aparece uma jornalista que recusa a dicotomia fácil. Que acha risível pautar o jornalismo, todo santo dia, pelo milésimo texto enfileirando palavrões contra o "diabo laranja". Seu problema, por óbvio, nunca foi Trump ou qualquer político. O problema era a conversão do jornalismo em um campo retórico fechado e avesso às "ideias inconvenientes".
Foi o caso do editor James Bennet, banido por publicar artigo controverso do senador Tom Cotton. Ele provavelmente discordasse do senador, mas acreditava "dever aos leitores a exposição de contra-argumentos". Ingenuidade. Contra-argumentos são aceitos, na lógica do ativismo, nos limites de quem tem a hegemonia e o poder de impor danos aos que saem da linha.
O que Bari Weiss diz vale para qualquer posição política e vai além do jornalismo. Demétrio Magnoli tratou disso em coluna recente. Há um modus operandi da política atual, dado pela lógica tribalista das redes. O jornalismo, ou parte relevante dele, apenas foi junto com a maré.
Intuo que se trata de caminho sem volta. O Twitter se tornou bem mais do que o "editor último" do Times, como diz Weiss em sua carta-renúncia. Se tornou, junto com as redes, o editor do debate público, e o faz de modo anárquico, numa constante guerra civil em que cada um imagina ganhar, a cada momento, e todos perdem, ao longo do tempo.
Weiss diz que nos tornamos um grande campus, ou um grande departamento de estudos de gênero. Prefiro outra formulação: tornamo-nos uma sociedade de militantes. Nas redes, nas universidades, no jornalismo e, mais recentemente, na vida das empresas e hábitos de consumo.
É evidente que muita gente se mantém serena em meio à tempestade, para o horror das hordas de qualquer lado. Mas o espírito do tempo é outro. É o "espírito de partido", como disse Madame de Stäelsobre o clima intelectual francês à época da revolução e de quem me lembrei por estes dias.
O ponto é que isso não irá mudar. Nos anos 1930, Ortega y Gasset vaticinou que o homem-massa havia ingressado de vez na cultura. Cem anos depois, graças à internet, quem domina o palco é o cidadão-pregador, o cidadão-dedo-em-riste. Seu destino ainda é incerto. Ele pode conduzir mudanças positivas, mas pode também agir como uma nuvem de "Black Mirror".
É positivo que as pessoas façam promessas de fim de ano e apostem que a pandemia vai mudar as coisas e que voltaremos a agir com mais empatia e sentido de comunidade.
Quem sabe a esperança de Gabeira, a quem sempre leio, apostando que a politica, depois de ter nos afastado, possa novamente nos aproximar. Ele lembra que já fomos mais gentis uns com os outros, mesmo divergindo, como na época das Diretas.
Minha hipótese é que a política continuará a nos separar. A lógica da tribo, da reação imediata e baixa empatia veio pra ficar. Ninguém tem a chave para desligar a geringonça na qual estamos todos enredados.
Nossa melhor chance é fugir da querela política. Podemos experimentar isso nos encontros de hoje à noite. Fugir da postura do sujeito que um dia me disse que iria "perdoar" seu irmão por apoiar o político que ele detestava. Presunção tola. Vale muito mais um abraço e a descoberta de coisas interessantes que todos temos em comum. E elas não são poucas, podem acreditar.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Vinicius Torres Freire: Irmã da 'vacina do Doria' tem 79% de eficácia, mas faltam muitos dados
Irmã da Coronavac, a vacina do Doria, tem 79% de eficácia, mas falta informação
Uma das vacinas da estatal chinesa Sinopharm teria 79,34% de eficácia, segundo afirmou a empresa nesta quarta-feira (30) em uma nota de escassas e frustrantes vinte linhas. O produto é irmão da Coronavac, comprada pelo governo paulista e que já está sendo produzida pelo Instituto Butantan.
As vacinas são muito semelhantes; é possível esperar resultado similar da Coronavac, em uma especulação esperançosa, mas razoável, dizem dois imunologistas brasileiros ouvidos por este jornalista. As duas irmãs chinesas são feitas da mesma maneira, com vírus inativados.
O vírus é multiplicado em uma cultura de células, na mesma linhagem de células originadas do rim do macaco-verde africano e usadas faz quase 60 anos em pesquisa biotecnológica. O vírus depois é inativado (perde o poder de se replicar e causar doença) com a mesma substância, beta-propriolactona, mas mantém sua estrutura e, assim, ainda pode suscitar uma reação do sistema de defesa (imunológico). Os vírus inativados são misturados ao mesmo tipo de adjuvante, algum composto de alumínio, que facilita a ação da vacina. A diferença entre as duas pode ser a dosagem e o tempo entre as duas injeções necessárias.
Estudos sobre as fases 1 e 2 dessas duas chinesas foram publicados em duas revistas científicas de peso (“Jama” e “The Lancet”), mas nada que preste saiu sobre a fase 3.
Os Emirados Árabes Unidos disseram que seu teste fase 3 da Sinopharm deu 86% de eficácia. Aprovaram a vacina e começaram a aplicá-la no povo, assim como o Bahrain. Mas apenas nesta quarta-feira a Sinopharm pediu a aprovação da Anvisa deles, embora a China já tenha aplicado o imunizante em centenas de milhares de pessoas sob alto risco de infecção.
A Turquia abriu resultados preliminares e precários da fase 3 da Coronavac, que teria tido por lá eficácia de 91,75%. No Brasil, como soubemos pelo anúncio do governo paulista, a eficácia teria sido de mais de 50% e menos de 90%, uma distância amazônica. Por “eficácia” entenda-se por ora a capacidade de evitar doença sintomática. Não sabemos ainda se qualquer vacina para Covid-19 impede que um vacinado e doente assintomático transmita a doença.
A vacina americana da Moderna tem 94% de eficácia; a anglo-turco-alemã da Pfizer/BioNTech, 95%. São imunizantes feitos com tecnologia inédita. As chinesas usam técnicas testadas com sucesso faz pelo menos 70 anos, como na vacina da pólio, por exemplo.
Apesar de fabricadas da mesma maneira, faltam informações básicas sobre as duas chinesas. Por que os dados de eficácia da Coronavac e da vacina da Sinopharm são diferentes em cada país? Pode ser por causa do número de pessoas que participaram do teste, do tamanho da epidemia em cada país, do período de observação (duração) do experimento. Não sabemos.
Como os dados sobre a Coronavac e do produto da Sinopharm devem ser publicados em revistas científicas, não é razoável esperar mutreta no estudo técnico ou que os dados divulgados agora tenham sido turbinados. Mas vimos como foram bagunçados os dados da vacina da AstraZeneca/ Oxford. É o produto comprado pelo governo federal e aprovado também nesta quarta-feira pelo governo britânico, o que é bom sinal, embora até agora não saibamos também da eficácia precisa desse imunizante.
Isso quer dizer que as vacinas são ruins? Não. Quer dizer que ainda não temos os resultados finais. Quando tivermos os dados e as injeções, ainda teremos de enfrentar o governo e os generais da morte.
Bruno Boghossian: Governo teve pressa com cloroquina, mas nega ao país empenho na vacinação
Entre a 'angústia' e a 'esperança para corações aflitos', há um governo incompetente
Em março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.
A obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país no planejamento da vacinação.
O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.
Bolsonaro foi mais ágil na campanha do curandeirismo. Ainda em abril, o presidente conversou com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e pediu matéria-prima para a fabricação de cloroquina. Um carregamento chegou ao Brasil em menos de uma semana. No mês seguinte, os Estados Unidos enviaram mais 2 milhões de doses do medicamento.
O estoque de comprimidos está garantido, mas o país corre risco de ficar sem seringas e agulhas para a vacinação contra a Covid-19. O pregão aberto pelo governo para comprar 331 milhões de kits fracassou e só deve atingir 2,4% da demanda.
Quando o TCU pediu explicações ao Exército sobre a fabricação de cloroquina a preços acima do normal, os militares disseram que o objetivo era "produzir esperança para corações aflitos". Sobre as cobranças públicas por um plano de vacinação, o ministro da Saúde fez pouco caso: "Para quê essa ansiedade, essa angústia?". Entre a angústia e a esperança, há um governo incompetente.
Maria Hermínia Tavares: Poderia ter sido pior, mas a democracia brasileira barrou o populismo
Nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes
Fim de ano é época de dar sentido ao que aconteceu no período. Perguntar-se, por exemplo, como as instituições democráticas brasileiras se comportaram ao longo desses meses de medo e morte. Para fazê-lo com algum método, nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes. Com a vantajosa circunstância de ter o respaldo de dois estudos recém-publicados por organizações independentes que monitoram o estado da democracia no mundo.
O primeiro, da ONG americana Freedom House, intitula-se “Democracia sob lockdown – o impacto da Covid-19 na luta global pela liberdade”. Baseia-se em entrevistas com especialistas e membros da sociedade civil, realizadas entre janeiro e agosto, em 105 países. A análise conclui que a pandemia exacerbou um tremendo problema: a recessão democrática dos últimos 14 anos.
De acordo com o informe, a democracia se degradou em 80 nações, cujos governos responderam à virose com abuso de poder, silenciamento das vozes críticas, enfraquecimento ou liquidação de instituições cruciais e erosão dos sistemas de rendição de contas pelos governantes. Em nada menos de 59 desses países faltou transparência na maneira como as autoridades informaram o público sobre a Covid-19.
Pior ainda, em 91 deles restringiu-se a liberdade de imprensa. Das 22 eleições marcadas para este ano, sete foram adiadas e quatro tiveram suas regras alteradas. A violência policial relacionada às medidas de restrição aumentou em 59 países. Num em cada quatro, multiplicaram-se as restrições a minorias étnicas e religiosas. O Brasil ficou no grupo daqueles nos quais a praga não debilitou o sistema democrático.
O segundo dos estudos citados é o “Balanço das tendências democráticas na América Latina e Caribe antes e durante a epidemia da Covid-19”, produzido pela organização Idea Internacional.
Embora a meta, o método e algumas das dimensões por ela observadas sejam diferentes, as conclusões se assemelham às da Freedom House. A pandemia aprofundou problemas crônicos das democracias na região. As respostas variaram muito e nem todas agravaram as grandes limitações do sistema político.
Apesar de tudo, graças à reação do Legislativo e do Judiciário, à força da Federação, à autonomia da imprensa e à resistência da sociedade organizada, a democracia brasileira logrou barrar as investidas do populismo de direita instalado no Planalto.
Pode não parecer muito, dada a enormidade dos desafios que o país já enfrentava e que a pandemia agrandou. Foi pior em muitos lugares. Poderia ter sido também aqui.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Ricardo Noblat: O último general da ativa no governo está com os dias contados
Adeus a Pazuello
Cabeças rolarão rolar dentro do governo para marcar a passagem de um ano infernal para outro capaz de renovar a esperança dos brasileiros em dias melhores. É sempre assim que agem os presidentes da República ao se verem em apuros uma vez que querem manter a própria cabeça no lugar.
Especialista em logística, ministro da Saúde que sucedeu a dois médicos que insistiam em dizer a Bolsonaro o que ele não queria ouvir, Eduardo Pazuello, posto ali para obedecer sem discutir às ordens que viessem do alto, é uma das cabeças que deverão rolar. É também o último general da ativa no governo.
A cobiça por seu cargo só faz crescer entre os políticos mais fisiológicos, aqueles corriqueiramente dispostos a socorrer governos enfraquecidos em troca de sinecuras. 2021 antecede 2022, ano de eleições gerais. Um ano assim serve para que os políticos façam caixa para financiar despesas futuras.
Pazuello será degolado, mas não só por isso. Seu desempenho como ministro foi um desastre monumental. E não importa que tenha sido um desastre por culpa, em primeiro lugar, de quem o escolheu, mais interessado em quem lhe dissesse amém do que em quem desse conta de enfrentar uma pandemia.
O Brasil está cada vez mais próximo de ultrapassar a marca dos 200 mil mortos pelo vírus, e dos 8 milhões de infectados. São números que lhe garantem um lugar no pódio dos países mais flagelados pela doença. Não tem vacina, nem seringas e agulhas para aplicá-la, e o orçamento da Saúde para 2021 é deficitário.
A coleção de erros cometidos por Pazuello e a equipe de militares carregada por ele para o ministério detonou a fantasia de que só os oficiais com sólida formação alcançavam o generalato. O que dele se esperava como especialista em logística é que pelo menos disso soubesse cuidar muito bem. Como se vê, não soube.
Poderia ter poupado do vexame seus colegas de farda, curvando-se às pressões para que pedisse a passagem para a reserva, mas não pediu. Fez questão de manter-se ao mesmo tempo como ministro de Estado e membro do Estado Maior do Exército. Um pé de cada lado do balcão. Emporcalhou a farda.
Teve pelo menos uma oportunidade de sair por cima. Foi quando, depois de autorizado por Bolsonaro, anunciou que o governo compraria a vacina chinesa Coronavac. Desautorizado pelo chefe no dia seguinte, ao invés de pedir demissão, humilhou-se: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Ali, enterrou-se como ministro, e enterrou sua carreira dentro do Exército. Ninguém premia um oficial derrotado.