Day: novembro 23, 2020

Luiz Carlos Mendonça de Barros: A covid-19 contra-ataca

Esforço fiscal adicional precisa recair sobre as classes de renda mais elevada

Neste final de 2020, as incertezas sobre a perenidade da recuperação econômica em curso nos países mais importantes do mundo voltaram a crescer com a chegada da chamada segunda onda da pandemia. Inicialmente associada ao inverno no hemisfério norte, ela atinge também países, como o Brasil, situados abaixo da linha do Equador. Um “castigo” para as sociedades que não trataram a pandemia com o devido respeito. Felizmente a vacina contra a covid-19 será uma realidade ainda no primeiro trimestre de 2021 evitando que uma segunda rodada do isolamento social jogue a economia em nova recessão. O comportamento dos mercados nos últimos dias é uma prova desta afirmação.

Conhecemos hoje o cronograma desta batalha mortal entre o ser humano organizado em sociedade e a natureza representada pelo vírus. Surpreendidos pela rapidez e mortalidade com que o vírus se espalhou, os governos reagiram com as armas que o conhecimento científico coloca à sua disposição em momentos como este. E elas vieram tanto do campo das ciências, em especial da medicina, como da gestão da economia. O primeiro movimento foi o de definir um protocolo multidisciplinar de ações para enfrentar esse inimigo desconhecido e perigoso.

Gostaria de refletir neste espaço do Valor sobre os resultados deste protocolo na Economia, área em que me sinto profissionalmente mais qualificado. Os economistas e governantes já viveram momentos em que novos protocolos de ações tiveram que ser construídos para enfrentar situações inesperadas, mas com efeitos sociais e políticos explosivos. No caso da covid-19 os governantes foram buscar no passado ensinamentos para orientar suas ações emergenciais. O mesmo ocorreu aqui no Brasil e, na minha opinião, foi um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.

O Banco Central teve uma ação decisiva no mercado de crédito para as empresas, o que levou a uma expansão vigorosa ao longo do ano. Da mesma forma, via Copom, agiu rapidamente na acomodação das condições monetárias e na redução dos juros sob seu controle direto. Paralelamente o Ministério da Economia tomou várias medidas de expansão fiscal, tanto na ajuda financeira para Estados como para empresas e a parcela mais vulnerável da sociedade, compensando com seus recursos parte da brusca redução de renda criada pelo afastamento social e a recessão que se seguiu. Os números são hoje conhecidos e chegam a mais de 10% do PIB.

Além destas ações institucionais, as reações de consumidores e empresas vieram em ajuda no enfrentamento da crise. As economias de mercado têm esta capacidade de reagir de forma espontânea quando atingidas por eventos como a chegada da covid-19. Dois mecanismos merecem ser citados no caso do Brasil: de um lado a reação defensiva dos consumidores à recuperação rápida da atividade econômica sob os estímulos do governo criando um imenso pool de poupança privada adicional e que representa uma reserva de consumo para ser utilizada no ciclo de recuperação em 2021.

Outro estímulo natural criado no Brasil pela reação dos mercados foi a desvalorização de mais de 50% do real nos últimos seis meses, em um momento em que os salários privados ficaram praticamente estáveis em função da inflação baixa e do aumento do desemprego. Isto foi particularmente importante nos setores exportadores, mas também ajudaram a indústria com baixa exposição aos mercados internacionais pelo aumento de sua competitividade em relação as importações. Isto ocorre pois a folha de salários em US$ caiu praticamente 50% neste período, o que representou na prática a criação de um imposto de importação da ordem de 12% em vários mercados importantes. Como resultado, a produção industrial brasileira já é hoje 2% superior à de 2019 e um dos setores que mais rapidamente voltaram a crescer.

A recuperação rápida da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2021 é que o governo poderá voltar a uma situação orçamentaria de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública.

A partir daí seria desejável que, junto com o Congresso, o governo criasse um protocolo de ações emergenciais para reduzir a corcova na dívida pública criada pelo enfrentamento da covid-19 e sinalizasse uma linha descendente de crescimento para o futuro. A dependência estrutural de nossa economia em relação à poupança externa nos obriga a trabalhar com um protocolo que incorpore valores aceitos pelos investidores internacionais. E deste protocolo fazem parte métricas sobre a expansão da dívida pública em uma linha do tempo de prazo mais longo. Dele deriva a importância do nível da dívida pública bruta em relação ao PIB e a perenidade do superávit primário como parâmetros a serem seguidos.

Mas este esforço fiscal adicional e temporal precisa recair sobre as classes de renda mais elevada na sociedade e que foram diretamente as mais beneficiadas pela recuperação rápida da economia. O mais justo seria o aumento da faixa superior do IR dos rendimentos de salário e a tributação com IR dos dividendos pagos pelas empresas privadas e públicas por um período finito de alguns anos.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


O Estado de S. Paulo: João Doria defende uma frente em 2022 com a centro-esquerda

Governador diz não ser candidato à reeleição e afirma que cabem todas as forças nesta aliança, menos os ‘extremistas’

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Depois de se eleger à Prefeitura, em 2016, e ao governo do Estado, em 2018, com um discurso marcado pelo antipetismo, o governador João Doria (PSDB) se reposicionou e, agora, tem pregado um diálogo “contra os extremos”, por meio de uma frente que inclua a centro-esquerda.

Potencial candidato ao Palácio do Planalto em 2022, Doria é, atualmente, desafeto político do presidente Jair Bolsonaro. “O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado”, disse o governador em entrevista ao Estadão, na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. Apesar do embate com o presidente, Doria afirma que ainda não é o momento de fazer oposição ao governo federal.

Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Houve um reposicionamento no discurso do sr. entre 2016, 2018 e hoje? O antipetismo perdeu espaço e o sr. parece menos radical e buscando o centro...

O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado, congelado das pessoas nem da sociedade. O comportamento evolui. Pode evoluir para melhor, para pior, mas evolui.

Candidatos passaram a campanha tentando colar Bruno Covas no sr., dada a alta rejeição ao seu nome na capital. O paulistano não perdoou sua saída da Prefeitura antes do fim do mandato?

Isso é tempo passado. Eu hoje sou governador do Estado de São Paulo, eleito. O Bruno no primeiro turno foi votado para ser reconduzido à Prefeitura de São Paulo. Em suma, o que vale na democracia é o voto.

O presidente Jair Bolsonaro antecipou o debate sobre a eleição presidencial de 2022. É hora de se discutir a construção de uma frente para disputar as eleições contra ele?

A frente não deve ser contra Bolsonaro, mas a favor do Brasil. A frente deve reunir o maior número possível de pessoas e pensamentos que estejam dispostos a proteger o Brasil e a população. (Essa frente) Comporta o pensamento liberal de centro, que é o que eu pratico, mas comporta também centro-direita, centro-esquerda, aqueles que têm um pensamento mais à esquerda e à direita. Só não caberá o pensamento dos extremistas, até porque os extremistas não querem compartilhar, discutir. Eles querem impor situações ao País, tanto na extrema-esquerda, quanto na extrema-direita. Destes extremos nós temos que ficar longe.

Com qual centro-esquerda o sr. acha ser possível dialogar?

Com todos aqueles que integram um sentimento múltiplo, compartilhador e dedicado ao País, sem interesses pessoais se sobrepondo ao interesse do País. Temos que ter a capacidade de diálogo com humildade. Saber ouvir e valorizar o contraditório. O contraditório ajuda o Brasil, e não prejudica. O que prejudica é o extremismo.

É possível incluir nas conversas Ciro Gomes e Marina Silva?

Não devemos excluir ninguém que tenha esse sentimento. Todos que têm esse sentimento são bem-vindos, até mesmo os que no passado praticaram posições mais extremistas, mas que possam ter mudado e estejam hoje no campo do diálogo.

Não é difícil que alguém abra mão de ser candidato à Presidência em 2022? Nas conversas estão Sérgio Moro, Luciano Huck...

O pressuposto para unir o maior número possível de pensamentos pelo Brasil é não haver prerrogativa pessoal.

Sérgio Moro desponta nesse grupo?

Ele deve fazer parte dessa frente. Tem história, biografia e posicionamento. Nunca declarou que era candidato. Sempre teve altivez e grandeza para defender o País, independentemente dos interesses pessoais.

O sr. evita falar que essa frente é contra Bolsonaro. Por quê?

A frente não deve ser de oposição, nem contra o Bolsonaro. Deve ser a favor do Brasil. Esse é o sentimento que une. O sentimento do contra não agrega. Tudo tem a sua hora. Agora é hora de estarmos unidos pelo Brasil, e não fazer oposição a este ou aquele governo.

O PSDB pode estar à frente desse projeto de centro em 2022?

O PSDB deve participar desse movimento, mas não é preciso liderar. Esse é um movimento de compartilhamento, não de exclusão ou de escolha, um lidera e os outros são liderados. Todos devem liderar.

Essa aliança partidária feita em São Paulo, com DEM, MDB e PSDB, pode se repetir na eleição para a presidência da Câmara?

Por que não? O sentimento desses partidos é dialogar para achar um nome e apoiá-lo.

O sr. descarta disputar a reeleição para governador?

Não se trata de ser ou não candidato a presidente, mas de manter minhas convicções. Sou contra a reeleição. Sempre defendi mandato único de cinco anos. Não critico nem condeno os que disputam reeleição, como Bruno Covas. Mas eu, por ser contra a reeleição, vou manter a minha coerência. Não vou disputar a reeleição.

Ainda é uma ideia promover uma fusão, mudar a logomarca e reformular o discurso do PSDB? Ou, diante da ascensão de Bruno Covas, que prega a volta às origens do partido, retomar a bandeira da social-democracia?

O Bruno não prega a volta às raízes, mas um PSDB moderno, digital, inovador e com uma visão social de atender aos mais pobres. Com respeito aos programas de desestatização, ao liberalismo econômico.

O sr. defende que o PSDB seja mais progressista em pautas como casamento gay, aborto, drogas, escola sem partido?

O PSDB é progressista, tanto na economia quanto no plano social. Sem preconceitos.

Arrepende-se do “Bolsodoria” na disputa de 2018?

A eleição do Bolsonaro foi um grande erro para o Brasil. Eu não mantenho meu compromisso diante de um equívoco tão grande. O Bolsonaro prometeu um país liberal, economia globalizada, combate à corrupção. E não fez.

O que os governadores estão fazendo para evitar a politização da vacina contra a covid-19?

Os governadores estão unidos. Todos defendem as vacinas, a vida, e não a politização nem da vacina nem da covid. O único que faz essa defesa hoje se chama Jair Bolsonaro.

Mas o sr. também não politizou a vacina aqui em São Paulo?

Não politizamos. Nós defendemos a vida, a ciência e a saúde. Vacina não deve ser avaliada pela origem, mas pela eficácia.

Como avaliou essa coalizão que se formou na Assembleia Legislativa contra o ajuste fiscal do governo estadual? Partidos como Novo e siglas de esquerda se uniram contra o pacote.

Um equívoco. O Novo demonstrou que já ficou velho logo no início da sua existência, o que é uma pena. A reforma administrativa foi aprovada e São Paulo foi o primeiro Estado a fazer. Fizemos aquilo que o Brasil deveria ter feito no governo federal e não fez.

Foi precipitado pôr o Estado na fase verde, que é mais flexível?

Não há nenhuma relação do aumento dos casos de covid-19 em São Paulo com o Plano São Paulo. A correlação está no relaxamento que estão, infelizmente, adotando. As pessoas estão saindo sem máscara, participando de aglomerações, festas e encontros em momento inadequado. Enquanto não tivermos a vacina, as pessoas devem se preservar.


Ruy Castro: O crime com vídeo e áudio

Os gritos de dor de Beto Freitas são a trilha sonora de um filme que muitos fingem não ver

O assassinato de Beto Freitas no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre, na quinta-feira (19), foi gravado pela câmera afixada de frente para a porta, com visão total da cena. É uma sequência de 17’09’’, com começo, meio e fim. Mostra o cenário vazio, a chegada dos personagens —o homem negro, os dois seguranças e a fiscal do supermercado— e o que aconteceu em seguida.

Vê-se quando, ao entrar detido, Beto reage por algum motivo a um deles, desprende-se e tenta agredi-lo. Os dois, em total vantagem, o seguram, e, com ele já contido, o espancam. Durante dois minutos aplicam-lhe chutes, socos e joelhadas no rosto, cabeça e costelas, até abatê-lo no chão.

A fiscal parece filmar tudo com um celular. Pessoas se aproximam. Ela os afasta e ameaça alguém que também tentava filmar. Uma senhora pede clemência, em vão. Um careca, de terno, pisa no homem caído e vai embora. Outras 15 pessoas entram e saem do quadro, com maior ou menor interesse, mas a tempo de ver o homem ser brutalmente imobilizado, com um dos seguranças pressionando um joelho sobre suas costas. Beto só tem agora pequenos lampejos de movimento com os pés. Aos 4’30’’ do vídeo, deixa de se mover por completo. Já não reage, mas, pelos dez minutos seguintes, o segurança continua com todo seu peso sobre ele, como para certificar-se de que não sairá vivo dali. Conseguiu. Beto morreu por asfixia.

Homens e mulheres negros são vítimas diárias de toda espécie de violência, mas esse crime é um divisor de águas. Foi filmado, tem dezenas de testemunhas e não há atenuante possível. Mais vídeos surgirão, de novos ângulos, com os gritos de dor de Beto Freitas. Mais do que o choro, o samba ou o funk, esses gritos são a verdadeira trilha sonora dos negros brasileiros.

Para Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, presidente e vice, não há racismo aqui. Escutamos isso e sentimos nojo deles e de nós mesmos.


Mathias Alencastro: Para os progressistas, chegou a hora da destruição criativa

O desespero dos caciques e o sumiço dos expoentes do fisiologismo são o principal indício de que a renovação partidária e geracional veio para ficar

A construção da candidatura presidencial do PT em 2018 se articulou em torno de duas disputas regionais. A cidade de São Paulo, maior reserva de votos petista no Sudeste, e Pernambuco, onde Lula investiu todo o seu capital político para isolar Ciro Gomes.

A ascensão de Guilherme Boulos e o racha em Recife provocado pela disputa entre João Campos e Marília Arraes devem inviabilizar a repetição dessa estratégia e alterar o cálculo da disputa presidencial.

Um revés para os petistas, imputável à sua franja mais conservadora, que assumiu o controle da Direção Executiva durante a prisão de Lula. Desde então, o jogo da política foi preterido em favor dos arranjos burocráticos, e o debate programático substituído pela exaltação acrítica.

O abandono de São Paulo em plena pandemia a um candidato bairrista, quando o seu competidor interno era um notável ex-ministro da Saúde, é o retrato de um partido devorado pela sua própria burocracia.

Para manter algum grau de relevância, a Executiva do PT está condenada a ceder espaço às lideranças nordestinas, que movimentam a massa do seu eleitorado e sempre se mostraram favoráveis a novas alianças com partidos de todos os quadrantes. O ano de 2020 vai entrar para a história como um momento de destruição criativa.

Constará nessa história que a hegemonia petista terá sido dinamitada pela criação de novas alternativas, ao invés das guerras judiciárias e ameaças de violência política que caracterizaram a última década.

Guilherme Boulos não apenas introduziu temas e tecnologias fora do alcance dos vetustos quadros petistas, mas também levou o PSOL de São Paulo a deixar de ser um movimento de contestação para se tornar um polo de poder capaz de agregar as principais figuras da centro-esquerda.

Simbolicamente, ele contará no segundo turno da eleição municipal com o voto de Tabata Amaral, uma das mais empolgantes lideranças que emergiram desde o fatídico desmanche da social-democracia em 2018. Essa aliança de circunstância outrora impensável de duas figuras antagônicas do campo progressista deve-se ao declínio do PT, mas também do seu rival histórico na social-democracia, o PSDB.

Ao acatar a indicação de um vice que vai contra os seus valores para alimentar as ambições de João Doria, Covas contribuiu para a primeira frente verdadeiramente ampla da era Jair Bolsonaro, mas não da maneira como ele provavelmente almejava.

Vista como uma heresia, a comparação entre Guilherme Boulos e Tabata Amaral é particularmente relevante para entender a tomada de poder da nova geração. Ambos se construíram na luta contra as estruturas partidárias. Os campeões em testosterona do PDT não hesitaram em perseguir Tabata pelo crime de pensar por conta própria.

Num patético gesto de centralismo autoritário, Gleisi Hoffman ameaçou de exclusão do PT os militantes que aderissem à candidatura de Boulos, antes de terminar a campanha sabotando os esforços do seu próprio candidato. O desespero dos caciques e o sumiço dos expoentes do fisiologismo de esquerda, como Márcio França, são o principal indício de que a renovação partidária e geracional veio para ficar.


Celso Rocha de Barros: Esquerda entrou fragmentada no Rio e em São Paulo, com resultados diferentes

Sobrou para a carioca, em 2020, fazer campanha para o DEM no 2º turno

Em um episódio recente do podcast Foro de Teresina, o jornalista José Roberto de Toledo chamou atenção para a semelhança das estratégias da esquerda no Rio e em São Paulo. Em nenhum dos dois lugares a esquerda entrou unida no primeiro turno.

Em São Paulo, foi ao segundo turno e faz uma bela campanha. No Rio de Janeiro, ficou fora do segundo turno, mesmo tendo uma boa votação na soma das candidaturas.

Comparar os dois casos pode ser um exercício interessante. Quando a fragmentação da esquerda no primeiro turno é administrável (como em São Paulo) e quando não é (como no Rio)? A pergunta tem implicações óbvias para a eleição presidencial de 2022.

Não há dúvida de que grande parte do sucesso da chapa Boulos/Erundina se deve à qualidade dos candidatos e da campanha. O ativismo social de Boulos e a reputação de competência e honestidade de Erundina são exatamente o que o eleitorado paulistano viu no PT quando lhe deu a prefeitura por três vezes.

A campanha foi ágil e inovadora. Todos os partidos de esquerda têm que aprender alguma coisa com a campanha do PSOL de São Paulo.

Mas no Rio as campanhas de Benedita da Silva (PT), Marta Rocha (PDT) e Renata Souza (PSOL) também foram bonitas, cada uma no seu nicho. A de Boulos foi melhor, mas não acho que o suficiente para explicar a diferença de desempenho.

Há uma outra diferença entre as duas eleições que me parece importante para pensar 2022. Nos dois casos, a direita tinha entre os concorrentes um centro-direitista bem avaliado e uma mediocridade bolsonarista. Mas só a mediocridade bolsonarista do Rio concorria à reeleição. Crivella tinha a máquina na mão, Russomanno não.

A máquina funciona melhor na mão de quem é bem avaliado, como Bruno Covas, do que na do sujeito que tem 62% de rejeição e é o pior prefeito da história da cidade, como Marcelo Crivella. Mas mesmo Crivella conseguiu a chance de ir ao segundo turno tomar a surra de escangalhar o cabra que se anuncia para semana que vem.

Na campanha presidencial de 2022, Bolsonaro também concorrerá à reeleição. Se chegará como favorito depende da gestão da crise de 2021, que vai ser feia. Mas é mais seguro apostar que em 2022 ter a máquina ainda será uma vantagem, nem que seja para dar a Bolsonaro o direito de apanhar no segundo turno.

Os desafiantes de Bolsonaro pela direita e centro-direita em 2022 —Doria, Huck, Moro etc.— serão mais parecidos com Eduardo Paes ou com Celso Russomanno? Ainda não sabemos. Vai depender, inclusive, do quanto a crise de 2021 vai virar o eixo ideológico da discussão para um lado ou para outro.

Talvez Bolsonaro desmoralize a direita a ponto de derrubar seus concorrentes moderados. É mais prudente que a esquerda se prepare para o pior cenário. Se o cenário em 2022 estiver com mais cara de Rio 2020 do que de São Paulo 2020, a esquerda vai ter que pensar a sério na possibilidade de fazer o máximo possível de alianças no primeiro turno.

Não é realista imaginar uma candidatura única, mas, se houver fragmentação demais, é bom que todos se conformem com a sorte da esquerda carioca neste ano: fazer campanha para o DEM no segundo turno. O fato é que a propaganda de Boulos com Ciro, Lula, Marina e Flávio Dino foram os segundos de TV aberta que mais emocionaram os progressistas brasileiros em muito tempo.​

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Ricardo Noblat: Em cena, o jogo sujo dos candidatos ameaçados de perder a eleição

Propaganda negativa para destruir os adversários

É assim por toda parte, aqui e no exterior, quando o fantasma da derrota bate à porta dos candidatos na reta final da campanha. Eles apelam para qualquer coisa, de preferência a mentira, como derradeira arma para impedir a vitória dos adversários.

A seis dias do segundo turno, a disputa em São Paulo parece uma guerra travada por monges piedosos desprovidos de armas letais se comparada com o que ocorre de maneira particularmente dura em pelo menos duas capitais: Rio e Recife.

Campeão nacional de rejeição entre os candidatos a prefeito das maiores cidades do país, Marcelo Crivella (Republicanos) mandou distribuir no fim de semana 1,5 milhão de panfletos impressos em uma gráfica do Rio com pesadas acusações a Eduardo Paes (DEM).

Acusações que, de fato, não passam de fake news. Crivella diz que Paes é a favor da legalização do aborto, da liberação do consumo de drogas e do uso do “kit gay” para educar alunos da rede municipal. “Kit gay” foi invenção de Bolsonaro na eleição de 2018.

A mais recente pesquisa Datafolha conferiu a Paes 71% das intenções de voto contra 29% de Crivella. Só entre os evangélicos, Crivella, bispo da Igreja Universal, ainda vence Paes. O apoio de Bolsonaro será incapaz de salvá-lo de uma derrota humilhante.

Nada indica que uma derrota por diferença gigantesca esteja no radar de qualquer dos candidatos a prefeito do Recife que restaram no páreo – João Campos (PSB), bisneto de Miguel Arraes que governou Pernambuco três vezes, e Marília (PT), neta.

Mas Campos, herdeiro do pai Eduardo, que governou o Estado e morreu em um acidente aéreo em 2014 quando concorria à presidência da República, foi ultrapassado pela prima nas pesquisas e 10 pontos percentuais separam os dois.

A luz vermelha acendeu para Campos. E a saída encontrada por estrategistas de sua campanha foi desqualificar Marília. Na propaganda de televisão, ela foi acusada de ser contra a Bíblia. Em panfletos apócrifos, de ser pau mandado do PT.

A justiça proibiu Campos de questionar a religiosidade de Marília, católica, e que ontem ganhou o apoio de 13 igrejas evangélicas. Quanto à suposta subserviência de Marília ao PT, nada fez nem poderia fazer. É uma acusação política. Ela que se defenda.

O antipetismo no Recife é forte, e nisso Campos joga sua última cartada. Acontece que ele e o PSB sempre foram aliados do PT. Estiveram juntos na campanha por Lula livre e Fernando Haddad presidente. Juntos, ainda governam Pernambuco.

Do primeiro para o segundo turno, Campos não conquistou novos apoios e viu Marília crescer no eleitorado que votou nos candidatos da direita – Mendonça Filho (DEM) e a Delegada Patrícia Amorim (PODEMOS), avalizada por Bolsonaro em live no Facebook.

Esta semana, 3 pesquisas de intenção de voto darão uma ideia de como vai o humor dos recifenses. Ou Marília ampliará a vantagem sobre Campos ou assistiremos, domingo, a uma apuração dramática de votos. A primeira hipótese parece mais provável.

No combate à Covid-19, um novo desastre se anuncia

Imunização parcial

Enquanto o Ministério da Saúde se cala, e os especialistas no assunto discutem se esta ainda é a primeira ou o começo da segunda onda, só no Estado do Rio de Janeiro, em comparação com duas semanas atrás, houve um aumento de 112% na média móvel de casos e de 153% na de mortos pelo coronavírus.

Pelo sexto dia consecutivo, a doença avança no Rio. Desde março passado, ali foram infectadas 338.263 pessoas, e mortas 21.974. No país, segundo números de ontem, o vírus já infectou 6.070.419 de pessoas, matando 169.197. Ele ganhou fôlego um pouco em toda parte com o relaxamento das medidas de isolamento.

A levar-se em conta o desempenho desastroso do governo federal no combate à pandemia, o próximo desastre ganha contornos nítidos. Um total de 6,86 milhões de testes para o diagnóstico do vírus comprados pelo Ministério da Saúde perde a validade até janeiro. Estão estocados num armazém em Guarulhos, São Paulo.

O ministério informou que assinará em breve “cartas de intenção não-vinculantes” para a compra de vacinas produzidas pela Pfizer, Janssen, Bharat Biotech, Fundo Russo de Investimento Direto (responsável pela Sputinik V) e Moderna. Não citou a Coronavac, a vacina chinesa aqui produzida pelo Instituto Butantã.

O general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, quer evitar colidir outra vez com o presidente Jair Bolsonaro que deu as costas à vacina chinesa porque ela será adotada pelo governo de São Paulo. Bolsonaro elegeu o governador João Dória (PSDB) como seu principal adversário nas eleições de 2022.

O governo federal diz haver previsão de acesso a 142,9 milhões de doses pelos contratos já firmados, o que garantiria a imunização de cerca de 30% da população brasileira. A imunização de toda a população dos Estados Unidos e dos principais países da Europa já foi garantida por seus respectivos governos.


El País: Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba

Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade

saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.

vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia,Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.

Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.

A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.

Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.

“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.

A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.

Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.

“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.

A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.

“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.

Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.

A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.

Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.

Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.

Revés para Bolsonaro

Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.

A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.

Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.

O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.

Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.

Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.


Fernando Gabeira: Tudo que é estúpido se desmancha no ar

Alívio é anterior à derrota de Trump. Ele começa na prisão de Queiroz

No auge da quarentena, pensei que a última luta de minha vida seria contra um governo que destrói a natureza, a autoestima e a imagem internacional do Brasil. Confesso que dramatizei. Sinto-me aliviado agora e ouso fazer planos mais ambiciosos para depois da chegada da vacina.

O marco temporal dessa sensação de alívio é anterior à importante derrota de Donald Trump. Ele começa na prisão de Fabrício Queiroz. Ali emergiu com clareza o esquema de financiamento de Bolsonaro e seu clã. Ele não teria mais condições de pregar o fechamento do Congresso ou do STF. Os próprios militares, apesar de ambíguos até ali, não o seguiriam na aventura.

Bolsonaro não teve outro caminho além de buscar aliados no Congresso, precisamente aqueles para os quais o desvio de dinheiro público não é um pecado capital. E de se aproximar desse tipo de juiz brasileiro que não hesita em absolver quando há excesso de provas contra o acusado.

A eleição de Biden resultou de uma ampla compreensão de que era necessária uma frente para derrotar Donald Trump e o Partido Republicano. A própria esquerda dos democratas, que vive um momento de ascensão, decidiu conceder para que a vitória fosse possível.

Ao término das eleições municipais, comecei a duvidar se era mesmo necessária uma frente para derrotar Bolsonaro. A construção de um instrumento como esse dá muito trabalho. É preciso constantemente se livrar dos caçadores de hereges, como chamava Churchill os que dentro de uma frente ampla estreitam e intoxicam o espaço com uma permanente lavagem de roupa suja.

E se Bolsonaro se derreter com a rapidez com que se derrete Russomanno em suas campanhas? Ou mesmo se for resiliente como Crivella e chegar ao segundo turno com um índice de rejeição tão alto que perca para qualquer adversário?

Não consigo precisar o ritmo, mas acho que Bolsonaro toma decisões estúpidas diariamente e que ele vai se desmanchar no ar. Quando o vi selecionando uma lista de vereadores para apoiar, pensei: perdeu.

Não adianta conferir na urna se Wal do Açaí foi ou não eleita. Um presidente que se dedica a isso de certa forma está apenas dizendo que é pequeno demais para o cargo. Na verdade, essa é sua mensagem cotidiana.

A constatação, no entanto, não pode desmobilizar. Bolsonaro continua à frente de uma política anticientífica que pode nos custar mais vidas no combate ao coronavírus.

A inexistência de uma frente ampla não significa que ela não possa ser erguida em cada momento em que a democracia for claramente ameaçada.

Da mesma maneira, o fracasso de Bolsonaro não significa que possa ser subestimado. A extrema-direita vai ocupar um espaço, embora muito menor do que ocupou nas eleições de 2018. Assim como na França, ela pode também trocar de líder para se modernizar.

O quadro eleitoral na maior cidade do país — Covas/Boulos — nos remeteu à clássica polarização do período democrático. Ilusório também pensar que tudo será como antes.

O primeiro e grande tema de reflexão é este: Bolsonaro dissolve-se no ar, mas as condições que o fizeram ascender ao governo continuam vivas.

Este período dominado pelo discurso e prática da estupidez deveria ser usado para uma profunda crítica do processo de redemocratização. Mesmo sem a construção de uma frente ampla, a proximidade do abismo nos revelou como somos vulneráveis e semelhantes no ocaso da democracia.

Os Estados Unidos abriram o caminho livrando-se do grande pesadelo. Trilhar esse terreno minado será também de grande utilidade para o Brasil.

Afinal, são fenômenos políticos em realidades diferentes, mas partem de alguns pontos convergentes, como a aversão às iniciativas multilaterais.

Imitado por Bolsonaro, o isolamento americano abriu um imenso espaço. Biden representa uma correção de rumos, mas seria bom lembrar o tempo perdido: 15 nações asiáticas e da Oceania, representando um terço do PIB mundial, acabam de celebrar um acordo comercial de grande envergadura.

Aqui Bolsonaro briga com a Europa para defender grileiros, incendiários e contrabandistas de madeira. Aqui a Terra é plana, a hidroxicloroquina fabricada pelo Exército é remédio contra a Covid-19. Até quando não sei. Não passa de 2022, estou seguro.


Benito Salomão: Após o vírus, a dívida

O título deste artigo é uma alusão à capa da revista britânica The Economist da última semana de abril de 2020, quando já se sabia que a doença que ganhou escala de pandemia no mundo exigiria um elevado esforço financeiro dos Tesouros mundo afora. Segundo o Fundo Monetário Internacional, o esforço para fortalecer os serviços de saúde, proteger pobres e desempregados, além de salvar negócios da bancarrota somam US$12 trilhões em todo o mundo. Se considerarmos o PIB mundial de US$87.7 trilhões em 2019, o esforço fiscal empenhado em salvar as economias consiste em 13,6% do PIB Global. Isto fatalmente levará o mundo a uma nova dinâmica macroeconômica sobre a qual ainda se sabe pouco.

Olhando para a economia brasileira, o panorama é ainda mais desanimador. As medidas de expansão do gasto público e o consequente endividamento que isto causa, não foram capazes de evitar as mais de 150 mil mortes pelo COVID-19, ou ainda de evitar uma queda histórica de aproximadamente 6% no Produto Interno Bruto. Entre fevereiro e agosto de 2020, o Tesouro Nacional já gastou R$366.4 bilhões em despesas relacionadas ao Coronavírus e autorizadas em caráter excepcional pela PEC 10/2020 popularmente conhecida como “orçamento de guerra”. Isto deslocou a dívida pública do governo brasileiro de 76,1% do PIB em janeiro, para 88,8% do PIB em agosto deste ano.

Uma projeção em um dado cenário base da dívida pública, mostra que ela deve estar em 95,6% do PIB em dezembro de 2020. Para 2021 ainda não está claro para onde vai a política fiscal e, portanto, a dívida pública, isto porque ela depende de um conjunto de fatores. Primeiro, ela depende do resultado primário do governo que segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), o déficit de 2021 deve ser de aproximadamente R$265 bilhões. Segundo, a dívida pública depende da taxa de juros pela qual o Tesouro conseguirá financiar novas dívidas. A SELIC está em mínimos históricos, no entanto, é uma taxa meramente de curto prazo e o custo financiamento de títulos do Tesouro com vencimentos mais a longo prazo estão subindo. Terceiro, a relação dívida/PIB depende também do comportamento do PIB e o histórico das previsões relacionadas a este indicador não são confiáveis, ano após ano, o mercado financeiro “vende” comportamentos do produto que não se verificam.

Há ainda, outros complicadores. O governo não inspira confiança no que se refere à condução da política fiscal, o programa de renda mínima parece ter se tornado uma obsessão a ser perseguida a qualquer custo pelo executivo em Brasília. Para viabiliza-la, o governo sugere manobras que drenam a transparência da política fiscal, tais como a inclusão da renda mínima no FUNDEB e o atraso do pagamento de precatórios. O governo não demonstra firmeza também no que se refere ao futuro institucional da política fiscal, normas institucionais recentes fundamentais para a sustentabilidade da dívida pública como o teto de gastos, recebe um tratamento hostil por parte da “ala desenvolvimentista” do Planalto e não estão garantidas. Ademais, parte da equipe econômica flerta com a ideia da recriação da CPMF, o que poderia exercer um efeito positivo de curto prazo sobre o resultado primário e, consequentemente, a dívida, porém pode também exercer um efeito prejudicial ao crescimento do PIB e ter um efeito dívida/PIB negativo por vias da queda no denominador.

Prever, portanto, um cenário para a dívida pública em 2021 não é tarefa trivial, ainda assim vale a pena tentar. No melhor cenário (e pouco provável), supondo manutenção e respeito ao teto de gastos, que o governo não tenha que socorrer inesperadamente Estados e municípios, e que a taxa de financiamento dos títulos públicos seja pelo menos igual ao crescimento do PIB, a relação dívida/PIB de 2021 deverá depender exclusivamente do resultado primário, o que a levaria para algo próximo de 98% do PIB. Infelizmente o mundo não é o ideal e nada garante que novos programas assistenciais não sejam incluídos no orçamento, que socorros a Estados e municípios não sejam necessários e que o custo de financiamento do Tesouro não exceda a taxa de crescimento do PIB. Portanto, é possível haver uma relação dívida/PIB próxima dos 105% em dezembro de 2021.

Se isto acontecer, o Brasil entrará em 2022 (ano eleitoral) como entrou em 2014, precisando imprimir uma agenda de ajuste fiscal ainda mais dura e com o chefe do executivo buscando ampliar gastos públicos buscando sua reeleição. Na linguagem weberiana, 2022 deverá ser um ano de choque entre a ética da responsabilidade de realizar um ajuste mesmo que isto custe a reeleição versus a ética da convicção do Presidente em que a expansão eleitoreira de gastos é o atalho mais curto para permanecer no emprego, ainda que a conta seja paga no futuro. Não é difícil prever qual será a escolha do mandatário do Poder Executivo.

*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia.


‘Falta de educação de qualidade e igual para todos é maior problema do país’, diz Evandro Milet

Em artigo na Política Democrática Online de novembro, consultor explica porque o Brasil não conseguiu seguir exemplos do Japão e da Coreia do Sul

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O maior problema para o desenvolvimento do país é a falta de educação de qualidade e igual para todos, pobres e ricos, que coloque o país entre os primeiros do mundo nesse fundamento, com muita tecnologia e inovação”. A avaliação é do consultor em inovação e estratégia Evandro Milet, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Em seu artigo, Milet afirma que, para o pleno desenvolvimento do país, também é fundamental a redução das desigualdades sociais com programas focados nos mais pobres e na redução dos problemas que tiram grande parte da população da atividade produtiva.

“Cabe aqui enumerá-las: evasão escolar, gravidez na adolescência, homicídios, acidentes de trânsito, discriminações em geral e a falta de creches e escolas de tempo integral, o que tira mulheres do mercado de trabalho”, diz o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online de novembro.

Em sua análise, Milet observa que, sem ênfase em educação e exportações, o Brasil não conseguiu seguir o exemplo de países como o Japão e a Coreia do Sul, que alcançaram um forte desenvolvimento industrial e tecnológico com sólida atuação do governo. “O Brasil passou muitos anos com sua economia fechada, colocando a culpa da falta de desenvolvimento em fatores externos, subsidiando empresas para substituir importações e acreditando que o governo é o grande motor da economia”, afirma, em outro trecho.

De acordo com o autor do artigo, uma série de problemas ainda assolam o país. “Empresas ineficientes, incapazes de competir internacionalmente; baixa produtividade; governo grande, caro, também ineficiente e corrupto; carga tributária alta; despesa maior que receita implicando dívida alta; ambiente de negócios burocratizado e demonizando o lucro; justiça lenta e que não promove segurança”, critica.

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Folha de S. Paulo: Com derrota de Trump e fracasso nas eleições, militares recomendam moderação a Bolsonaro

Presidente é aconselhado a rever tom sobre coronavírus e firmar alianças com partidos de centro

Julia Chaib e Ricardo Della Coletta, Folha de S. Paulo

Integrantes do Palácio do Planalto e do núcleo militar do governo avaliam que a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos e o resultado das eleições serviram como recados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e indicam que ele terá de fazer adaptações para triunfar nas urnas em 2022.

O principal aprendizado, avaliam fardados, é que a população passou a rejeitar extremos, e discursos inflamados em relação à pandemia podem levar a queda de popularidade.

A análise de aliados de Bolsonaro é que a postura de Trump durante a crise sanitária foi decisiva para sua derrota.

Por isso, Bolsonaro deveria abandonar ou ao menos moderar discursos como o de que o Brasil precisa deixar de ser "um país de maricas", sob pena de perder apoios até mesmo dentro das Forças Armadas.

No lugar de fazer acenos à base mais ideológica de seus eleitores, o principal objetivo do presidente deve ser, pregam auxiliares próximos, trabalhar para aprovar medidas no Congresso que movimentem a economia e façam o Brasil reagir à crise causada pela pandemia.[ x ]

A chave para a reeleição, afirmam assessores presidenciais e políticos experientes no Congresso, estará na economia .

Além da derrota de Trump para o democrata Joe Biden, não reconhecida nem pelo presidente nem pelo Itamaraty, a eleição municipal teve como grandes vencedores os partidos de centro e centro-direta.

O MDB foi o líder no ranking de prefeituras obtidas por partido. Já PP e PSD, duas siglas do chamado centrão, e DEM foram as que mais ascenderam em número de municípios governados pelo país.

Em outra frente, o pleito mostrou encolhimento do PSDB e do PT pelo país e também aponta o relativo fracasso do PSL, sigla pela qual Bolsonaro se elegeu presidente.

O próprio presidente viu a maioria dos candidatos que apoiou fracassar no pleito.

Nas grandes cidades, apenas Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro, e Capitão Wagner (Pros), em Fortaleza, foram para o segundo turno.

Essa derrota reforçou no Planalto a avaliação de que o discurso radical está perdendo espaço na população e, por isso, aconselham Bolsonaro a moderar o tom.

Em 10 de novembro, na semana da derrota de Trump, Bolsonaro afirmou que o Brasil precisa "deixar de ser um país de maricas" ao enfrentar o coronavírus.

"Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas", disse.

Também fez alusão à vitória de Biden. Sem citar o nome do presidente eleito dos Estados Unidos, Bolsonaro citou a necessidade de ter "pólvora" para fazer frente a candidatos que ameacem sanções pelo desmatamento da Amazônia.

"Assistimos há pouco a um grande candidato à chefia de Estado dizer que, se eu não apagar o fogo da Amazônia, levanta barreiras comerciais contra o Brasil. E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto [Araújo, chanceler]? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona", continuou Bolsonaro. Em debate com Trump na campanha presidencial, Biden disse que "a floresta tropical no Brasil está sendo destruída".

A fala de Bolsonaro incomodou profundamente aliados, que temeram um retorno ao seu estilo mais agressivo. Irritou, principalmente, setores das Forças Armadas.

Militares se sentiram ridicularizados por Bolsonaro ter insinuado que o Brasil poderia usar armamentos e iniciar uma guerra contra os EUA.

A avaliação dos fardados é que, se o presidente fala para sua base mais radical e a entusiasma, pode perder o eleitor que votou nele em 2018 como uma alternativa ao PT.

Os mais ideológicos são cerca de 30% do eleitorado bolsonarista, calculam aliados. Estão com Bolsonaro mesmo nos momentos mais críticos.

São, portanto, considerados fiéis. O restante dos votos é daqueles que Bolsonaro precisa lutar para manter, avaliam.

Além das eleições municipais e de Trump, assessores palacianos dizem que é preciso olhar para os vizinhos do Brasil, que emitem sinais de alerta de que o projeto Bolsonaro pode fracassar se não for bem elaborado.

Auxiliares presidenciais citam o caso da Argentina, que no ano passado elegeu o esquerdista Alberto Fernández como presidente, tendo Cristina Kirchner como vice.

O candidato venceu Maurício Macri, apontado por Bolsonaro como um aliado.

Além de adaptar o discurso, aliados lembram que Bolsonaro precisa pensar em questões práticas, como a que partido ele se filiará.

Integrantes do Planalto atrelaram a derrota dos candidatos do presidente na eleição municipal, em parte, ao fato de Bolsonaro não ser filiado a partido algum.

Teria sido mais fácil, avaliam, lançar candidatos de uma sigla da qual o presidente fizesse parte e associar o número deles ao do presidente, como ocorreu com o número 17 em 2018.

Além disso, Bolsonaro não pode viajar para fazer campanhas pelo risco de ser acusado de desvirtuar viagens da Presidência para outros fins. Presidentes da República podem participar de campanhas políticas, mas essas viagens costumam ser bancadas pelas legendas da qual fazem parte.

Bolsonaro deixou o PSL no ano passado após atritos com a direção. Depois, investiu na criação da Aliança pelo Brasil, sigla que não saiu do papel.

Agora, volta à estaca zero e precisa escolher um novo partido. Boa parte dos aliados avalia que ele deve desistir da ideia de criar a Aliança e partir para uma sigla já existente.

Os auxiliares se dividem sobre se o presidente deveria ir para um partido menor ou um mais consolidado, como os do centrão.

Progressistas, Republicanos e o próprio PSL são opções. Na frente nanica, o Patriota é uma possibilidade. Bolsonaro quase se filiou à sigla em 2018.

Mesmo que não escolha um partido centrista, aliados afirmam que será importante para Bolsonaro se esforçar para manter as alianças com esses partidos —atualmente boa parte deles faz parte da base do presidente no Congresso.

A ideia é ter o apoio das legendas em 2022 e ainda garantir palanques em municípios importantes.


Cacá Diegues: A Academia está mudando

Cinema não é um fenômeno estritamente hollywoodiano

A premiação da produção sul-coreana “Parasita”, Oscar de melhor filme no ano passado, foi o primeiro clímax de um processo de internacionalização, democratização e atenção à qualidade pelo qual esse troféu está passando. Criado em 1927, simultâneo à fundação da própria Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (AMPAS, na sigla em inglês), o Oscar foi uma ideia de Louis B. Mayer e uma obra de Cedric Gibbons, diretor de arte nos estúdios da Metro-Goldwyn-Mayer. Mas só em maio de 1929 ocorreu a primeira entrega do prêmio aos melhores desempenhos nos filmes americanos dos dois anos anteriores.

Naquele ano inaugural, votavam apenas os 36 membros da Academia, que premiaram naturalmente os filmes e os protagonistas com que o público americano mais havia se identificado em seu lançamento, aqueles que colaboraram com o crescimento dessa indústria em 1927 e 28. Hoje são 5.835 membros eleitores da AMPAS, número que, de 2012 para cá, cresce regularmente com os novos convites de adesão feitos a cineastas, intérpretes e técnicos de cinema de todo o mundo. Com uma atenção muito especial a não caucasianos (segundo uma apuração feita pelo “Los Angeles Times”, os brancos até recentemente eram 94% dos membros da Academia), dando preferência ao gênero feminino (77% eram homens) e aos abaixo de 60 anos de idade (54%, até aqui, eram sexagenários).

A Academia estendeu a participação dessas pessoas por meio de convites feitos diretamente a gente do cinema de todo o mundo. Só no Brasil, esses novos membros já são mais de três dezenas. A partir do ano passado, a Academia também eliminou o Oscar para melhor filme estrangeiro, transformando-o em “filme internacional”. Não se trata mais de premiar um “filme de fora”, mas de reconhecer o valor e a qualidade de um filme que não foi feito em Hollywood. Podemos dizer que, hoje, o Oscar não é mais uma festa de blockbusters, da qual só temos como participar sentados numa poltrona, diante da televisão. Se a Academia seguir nesse rumo em que foi colocada por novos e jovens dirigentes, diretores de fotografia e espertos editores, seus prêmios anuais serão, cada vez mais, um estímulo à celebração do cinema como um elemento decisivo do entendimento universal.

Para isso, a Academia tomou a iniciativa de tornar oficial a política, que já praticava, de considerar os cineastas de todo o mundo seus parceiros na premiação do Oscar, eliminando a intermediação de governos de qualquer natureza. Em cada país, são os profissionais do cinema local que escolherão os filmes que os representarão, bem como serão eles que apontarão também os novos membros. Para isso, a AMPAS confirmou oficialmente a Academia Brasileira de Cinema (ABC) como responsável pela escolha do candidato brasileiro ao próximo Oscar, como de resto já vem acontecendo há alguns anos. Por sua vez, a ABC criou uma comissão de seleção, que acaba de concluir seu trabalho escolhendo nosso filme para o Oscar de 2021.

O que mais deve ter atrapalhado a vida dos membros dessa comissão é a diversidade com qualidade dos filmes que foram submetidos à seleção. Acho que não vi nem metade deles; mas o que vi, e adivinho no que não vi, só pode nos encher de muito orgulho. O filme finalmente escolhido foi “Babenco: alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou”, um documentário sobre o amor ao cinema, o amor ao próximo, o amor ao amor, dirigido por Bárbara Paz.

A primeira entrega de prêmios pela AMPAS se deu em maio de 1929, no Hotel Roosevelt, bem pertinho de onde hoje se entregam os Oscars. Dizem, aliás, que a estatueta ganhou esse nome de guerra porque, quando Cedric Gibbons mostrou a primeira prova ao pessoal da Academia, uma secretária achou-a muito parecida com seu tio Oscar. Como a estatueta não tinha mesmo nome algum, todo mundo começou a chamá-la assim desse jeito. Com a nova política da Academia, uma política modernizadora e democratizante, reconhecendo que o cinema não é um fenômeno estritamente hollywoodiano, já podemos torcer, sem culpa, para que Bárbara Paz traga para cá essa reprodução do tio da secretária. E que o grande Hector Babenco, um dos maiores cineastas brasileiros (sim, brasileiro, que foi o que ele sempre quis ser) de sua geração e de sempre, ajude Bárbara de onde estiver.