Day: novembro 19, 2020

Maria Hermínia Tavares: A desastrosa marcha à ré do combate à pobreza e à desigualdade

Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá

Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho "Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza", escrito por três ases --os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares-- e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.

Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 --e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda-- cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.

O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.

Mas foi ao longo da difícil recuperação que teve início em 2017, já sob o comando da centro direita de Temer & Meirelles, que a sorte dos mais pobres foi selada. Segundo os estudiosos citados, os brasileiros mais ricos se apropriaram de cerca de 80% do crescimento da renda no período, enquanto os ingressos da metade mais pobre caíram 4%. Na mesma proporção cresceu a desigualdade. Sem sombra de dúvida, esse aumento foi o responsável pela ampliação da pobreza.

Os pesquisadores demonstram que o inchaço do desemprego e a queda dos salários foram os vilões da tragédia que desfez sonhos e esperanças de milhões de famílias e multiplicou o número dos sem-teto nas grandes cidades.

A Previdência Social também teve seu papel: os maiores benefícios destinaram-se aos grupos de melhor remuneração. Finalmente, o estudo revela terem sido quase nulos os efeitos compensatórios dos programas de proteção da renda, como o Benefício de Prestação Continuada, o Seguro Desemprego e o Bolsa Família, cujos recursos não acompanharam o aumento dos que a ele teriam direito.

Uma administração que produziu muito progresso, mas não as condições fiscais para sustentá-lo, seguida de outra que em dois anos promoveu impressionante retrocesso social são responsáveis pela marcha à ré do país e pela perda de uma década de mitigação das injustiças.

Não é provável que o quadro melhore neste governo: reduzir pobreza e desigualdade não faz parte de sua agenda retrógrada. Que, ao menos, os democratas com preocupações sociais aprendam com o estrago e se preparem para fazer melhor.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Vinicius Torres Freire: 'Segunda onda' ainda não está nos números, mas onda de relaxamento está na cara

Pela estatística, é difícil afirmar que há repique, mas é fácil saber o que fazer para evitá-lo

Depois de semanas de despreocupação e, em muitos casos, de negligência com as medidas de segurança sanitária, subitamente o país volta a se ocupar da epidemia. A onda é falar de “segunda onda”, repique de infecções e mortes que estaria ocorrendo no Brasil.

Segundo alguns, seria algo parecido com os Estados Unidos, onde jamais houve controle do espalhamento da infecção, mas apenas uma redução do ritmo do número de mortes, que, no entanto, voltou a acelerar já por duas vezes.

Já se pode dizer que há “segunda onda” no Brasil? O que isso significa? Os dados são suficientes e persistentes para dizer que há um aumento do crescimento do número de internações, casos e mortes?

Francamente, a estatística não diz muito. Entre epidemiologistas com os quais este jornalista costuma conversar, uma meia dúzia, quase todos dizem que não é possível afirmar grande coisa, mas “evidências anedóticas” (histórias, relatos parciais) “preocupam”, tais como alertas de médicos e de administradores de grandes hospitais.

Seja como for: 1) todas as medidas de precaução continuam valendo; o relaxamento era um perigo terrível, com ou sem “segunda onda”; devem ser levadas a sério; 2) não parece haver dados suficientes para que se tome medida mais drástica alguma, o que, de resto, poderia ser contraproducente.

Hospitais particulares dizem faz mais de semana que internaram mais doentes. Alguns poucos especialistas afirmam peremptoriamente que há “segunda onda”, sem especificar bem do que se trata, porém.

As estatísticas de casos suspeitos, internações, doentes na UTI ou sob ventilação mecânica de fato apontam alguma alta na cidade de São Paulo. A média móvel de sete dias de internações no estado de São Paulo, que vinha em queda fazia tempo, deu um salto notável no dia 17, em particular na Grande São Paulo, o que não se via fazia muitas semanas.

Os dados recentes de doença e morte têm ainda mais ruídos do que de costume. Como se sabe, de 6 a 11 de novembro, ocorreram problemas no sistema nacional de registros de Covid-19, o que embananou a série de dados.

Além do mais, houve mudança de critério de confirmação de casos e mortes, diz o governo de São Paulo. Casos que ocorreram durante a epidemia foram agregados agora às estatísticas (221 mortes extras, segundo o governo paulista). Assim, os dados de casos (sempre imprecisos e variáveis em excesso) e de mortes parecem difíceis de interpretar desde o dia 5 e assim devem permanecer por mais alguns dias.

Ressalte-se que não é bem assim com o aumento recente de internações, dados de hospitais privados e da prefeitura paulista. Os dados dos hospitais parecem indicar pelo menos uma marola paulista.

Como não sabemos bem do que se trata, o aparente repique dos números serve de alerta renovado: não se pode relaxar no uso de máscaras e na limpeza, não se pode fazer aglomeração, festa ou maluquice pior.

Uma “segunda onda” ou mesmo apenas “marola forte” seriam um desastre humano e econômico. Não seria preciso decretar mais isolamentos, fechamentos etc. para que a atividade econômica desandasse. O medo já basta para causar estrago. Basta ver o movimento de restaurantes ou, pior ainda, a tentativa de reabrir cinemas.

É possível fazer o essencial para segurar essa, por ora, ameaça sinistra de repique. É preciso um pouco mais de persistência. Pode ser que o começo do fim da calamidade esteja próximo, com a esperança de vacinas. Mas, até lá, o relaxamento pode provocar um desastre evitável.


Ricardo Noblat: Arraes é o novo!

Na guerra dos primos, Marília, candidata do PT, sai na frente com apoio da direita

O novo virou velho e o velho o novo na guerra pela prefeitura do Recife travada por João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT) – ele, filho do ex-governador Eduardo Campos que morreu em um acidente aéreo em agosto de 2014; ela, filha de um dos 10 filhos de Miguel Arraes que governou Pernambuco três vezes. Portanto, João, bisneto de Arraes, e Marília, neta.

Se a idade pesasse na definição de quem seria o novo, João venceria Marília. Ele tem 26 anos, ela 36. Mas na política, o novo e o velho se alternam a depender do que cada candidato representa. Coube a João representar um conjunto de forças que ocupa há 14 anos o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, desde que ali chegou seu pai, neto de Arraes.

João foi o candidato mais votado no primeiro turno com 29,13% do total de votos válidos. Marília, o segundo com 27,90%. Pesquisa do Ibope aplicada entre a última segunda-feira e ontem conferiu a Marília 53% das intenções de voto e a João, 47%. Para Marília migrou parte dos votos de Mendonça Filho (DEM) e da Delegada Patrícia (PODEMOS), terceiro e quarto colocados.

Se a direita não tivesse se dividido no primeiro turno, ela estaria no segundo. Somados, Mendonça Filho e a Delegada Patrícia obtiveram 40% do total dos votos válidos. O PT só disputa o segundo turno em duas capitais – Vitória e Recife. Deve perder em Vitória e ganhar no Recife onde o PT e a direita se uniram para derrotar o PSB de Eduardo Campos e de João, seu herdeiro.

Marília foi três vezes vereadora do Recife– uma pelo PSB e duas pelo PT. Sua votação cresceu a cada eleição. Lançou-se candidata pelo PT a governadora há dois anos, mas na última hora, o partido passou-lhe a perna e apoiou o atual governador do PSB Paulo Câmara. Ela então disputou uma vaga de deputada federal. Elegeu-se como o segundo nome mais votado – o primeiro foi João.

Criada pelos pais livre e solta, Marília meteu-se na política desde cedo e à sombra do avô. João começou a despontar para a política quando apareceu no alto de um carro do Corpo de Bombeiros que conduzia o caixão com o corpo do seu pai. Foi uma das cenas mais comoventes que o Recife testemunhou. Menos de 2 anos depois, foi nomeado chefe de gabinete de Câmara.

Sob o comando do senador Humberto Costa, o PT de Pernambuco tentou barrar a candidatura de Marília a prefeita. Desta vez, a direção nacional do PT bancou a candidatura. O PT de Costa tem cargos no governo estadual e torce sem discrição para que Marília perca. Lula gravou mensagem pedindo votos para ela e prometeu comparecer à sua eventual posse como prefeita.

O PODEMOS da Delegada Patrícia e o PTB do senador Armando Monteiro Neto que apoiou Mendonça Filho anunciaram o apoio a Marília. O Cidadania, que votou em Patrícia, mas faz dura oposição ao PSB, deverá ir pelo mesmo caminho. O bolsonarista Anderson Ferreira (PL), prefeito reeleito de Jaboatão, município vizinho ao Recife, aderiu a Marília. O PL votou em Mendonça Filho.

João conseguiu no primeiro turno esconder o apoio dos dois maiores caciques locais do PSB – Câmara, o governador, e Geraldo Júlio, prefeito do Recife. É grande a reprovação aos dois. Esse será um dos trunfos de Marília no horário de propaganda eleitoral e nos debates de televisão com João. O PSB foi amplamente derrotado nas eleições para prefeito nas maiores cidades do Estado.

Se ocorrer de fato, a vitória de Marília poderá marcar o início do declínio do PSB como partido nacional de médio porte. Em 2012, liderado por Eduardo, pai de João, o PSB conquistou 433 prefeituras. Em 2016, sem Eduardo que morrera, 405. Agora, 250.


Reforma administrativa para manter teto de gasto é desprovida de senso, diz José Luis Oreiro

Em artigo que publicou na Política Democrática Online de novembro, professor da UnB analisa proposta em tramitação

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da UnB

O professor do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) José Luis Oreiro afirma que “a realização de reforma administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece ideia desprovida do mínimo senso de realidade”. A análise consta de artigo que ele produziu para a revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade.

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No debate econômico brasileiro atual é crescente o consenso de que não é possível manter o Teto de Gastos, que, conforme lembra Oreiro, estabelece o congelamento dos gastos primários da União em termos reais até 2036, devido ao crescimento dos gastos com Previdência Social a um ritmo de 3% ao ano, mesmo após a reforma da previdência, realizada em 2019. “O que levará a um esmagamento progressivo das despesas discricionárias como, por exemplo, os gastos com investimento público e com o custeio de Saúde e Educação”, avalia o autor.

No artigo publicado na revista Política Democrática Online de novembro, o professor da UnB observa que o elevado nível de desemprego da força de trabalho combinado com alta ociosidade da capacidade produtiva na indústria exige aumento expressivo da demanda agregada, o que, segundo ele, nas condições atuais, só pode ocorrer por intermédio do investimento público. “O que esbarra nas limitações legais ao aumento de gasto público imposto pela EC 95”, escreve.

De acordo com Oreiro, um dos principais problemas da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 32 é que acaba sendo vazia, já que, ele diz, deixa para regulamentar o essencial posteriormente. Estes são os casos de definição de quais serão as carreiras típicas de Estado, os critérios de avaliação de desempenho e as novas formas de acesso ao serviço público, tanto quanto a política remuneratória e de benefícios percebidos pelos servidores, as regras para a ocupação de cargos de liderança e assessoramento e a progressão e a promoção funcionais que serão tratados por projeto de lei complementar.

“Outro ponto crucial é que a reforma proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público – os militares, os juízes e membros do Ministério Público, e os parlamentares”, critica, para acrescentar: “No caso dos militares, parece que até obterão ganhos com essa reforma, ao poderem acumular determinados cargos (docência e empregos na saúde, sob certas condições), o que é explicitamente facultado no novo texto”.

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Luiz Carlos Azedo: A nova onda

O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista da covid-19, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social

A pandemia da covid-19, no Brasil, virou um endemia e assim será, até que a população seja vacinada em massa. A segunda onda, que está sendo avassaladora nos Estados Unidos e na Europa, aqui está começando, sem que a primeira tenha ido embora, ou seja, se inicia de um patamar muito alto, como aconteceu nos EUA. O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social. Deveria prestar um pouco de atenção ao que acontece na Suécia, que tratou o novo coronavírus como uma gripezinha, mas, agora, mudou de paradigma e resolveu aceitar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

São Paulo, por ser o estado mais populoso e também o mais conectado com os demais e o exterior, registra um aumento de 18% no número de casos de internações nas redes hospitalares pública e privada neste mês. Como na primeira onda, as classes A e B estão sendo as mais afetadas; a explosão deve ocorrer quando chegar à população de mais baixa renda, com menos capacidade de se manter a salvo do contato com o vírus. O grande dilema é como lidar com as medidas de proteção individual e, ao mesmo tempo, evitar o colapso econômico e social.

Bolsonaro reage a isso como quem entra em pânico numa emergência, apesar da retórica de valentão. Insiste na tese de que o isolamento social é a causa da crise econômica, culpando governadores, prefeitos, o Supremo e os “maricas” que têm medo do vírus, ou seja, a maioria de nós. Não reconhece que, em todo mundo, a origem da crise econômica é a pandemia; e que a política de isolamento social é uma maneira de evitar desastre ainda maior.

Um breve comentário de um confeiteiro do Sudoeste, bairro do Plano Piloto, em Brasília, resume a questão. Ele observa o comportamento dos clientes e conclui: a maioria dos que tomam os devidos cuidados no balcão de seu pequeno comércio — máscara e higienização das mãos — não teve a doença. Os que chegavam com máscara no queixo e não utilizavam o álcool em gel, em sua maioria, com a evolução da pandemia, disseram-lhe que contraíram a doença. “Um deles me disse que 22 pessoas da sua família tiveram a covid-19.”

Dívida pública
Este é o xis da questão: é impossível manter as atividades econômicas sem protocolos rígidos de procedimento nas empresas e um comportamento equivalente por parte dos consumidores. A maioria das pessoas não está contraindo o vírus nos locais de trabalho, que seguem regras rígidas de funcionamento, mas em razão de seu comportamento social. A generalização das aglomerações — e não apenas os bailes funks — e a campanha eleitoral, de certa forma, contribuíram para a segunda onda, mas é preciso verificar as características do vírus que está circulando, para saber seu grau de mutação genética. Mesmo quem já teve a doença, por essa razão, deve tomar cuidado.

O presidente continua negando a chegada da segunda onda, mais ou menos como fez na primeira. O problema é que não terá como negar seu impacto na economia, porque a situação do Tesouro é muito diferente. A dívida pública deve chegar a 100% do PIB no fim do ano. O governo não terá como prorrogar o auxílio emergencial por longo período, mesmo mantendo seu valor em R$ 300.

Eleições
Estão saindo as primeiras pesquisas do segundo turno. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) lidera a corrida com 47% de intenções de votos, 12 pontos de vantagem em relação a Guilherme Boulos (PSol), com 35%, segundo o Ibope. Será uma disputa que reproduz a polarização tradicional da capital, com o candidato do PSol no lugar de um petista.

No Rio, o Ibope apurou uma grande vantagem de Eduardo Paes (DEM), com 53% de intenções de votos, contra o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), que empacou nos 23%. Devido à rejeição astronômica do atual prefeito carioca, a eleição está no colo do ex-gestor da cidade.

No Recife, Marília Arraes (PT) assumiu mesmo a liderança, com 45%, contra João Campos (PSB), com 39%. A novidade é a coalizão entre a petista, que disputa a herança política do avô Miguel Arraes, e a direita pernambucana.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/a-nova-onda/

William Waack: A onda acabou

Jair Bolsonaro é, agora, a perfeita expressão do ‘sistema’

A causa do fracasso eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições municipais é simples de ser resumida. Ele interpretou de maneira equivocada a onda disruptiva que o levou ao Palácio do Planalto em 2018. Achou que tinha sido o criador desse fenômeno político quando, na verdade, apenas surfava a onda.

O fato é que essa onda, depois de arrebentar o alvo primordial (as forças políticas ao redor do PT), se espraiou, perdeu sentido e direção, dividiu-se entre seus vários componentes antagônicos. Esvaziou-se, com Bolsonaro achando que apenas falando, apenas no gogó, manteria o ímpeto de uma onda dessas – um fenômeno político raro.

Na verdade, a principal lição oferecida a Bolsonaro pelas eleições do último domingo é a do primado da organização, capilaridade e peso das agremiações partidárias no horizonte político mais extenso. Pode-se adjetivar como se quiser o conjunto de partidos que elegeu o maior número de prefeitos e vereadores ou colocá-los onde se preferir no espectro político. O denominador comum entre eles é a existência de estruturas profissionais voltadas para a política.

É exatamente o que Bolsonaro desprezou logo que assumiu. Trata-se de um dos aspectos mais relevantes para ilustrar o fato de o presidente eleito com 57 milhões de votos há apenas dois anos ter um desempenho tão pífio como cabo eleitoral. Todo dirigente populista, não importa a coloração política, cuida de criar um movimento para chamar de seu – com seus emblemas, palavras de ordem (ou “narrativa”), mitos e, sobretudo, uma estrutura razoavelmente hierárquica e definida, com sede e endereço.

Embora tivesse à disposição da noite para o dia um grande número de deputados federais e seus correspondentes recursos públicos, o surfista da onda política atuou para implodir o partido pelo qual se elegeu e não conseguiu colocar de pé nada parecido a uma agremiação consolidada com um mínimo de coesão. É bem provável que Bolsonaro tenha sido vítima do mito que criou para si mesmo (e dá provas quase diárias de acreditar nisso piamente): a de ter sido escolhido por Deus e beneficiado por um milagre (sobreviver à facada) para conduzir o povo do Brasil.

Com tal ajuda “de cima”, é só esperar as coisas acontecerem. Ocorre que mesmo os homens tornados mitos por desígnio divino precisam, como dizem os alemães, do “Wasserträger”, aquele que vai trazer a água. E isto não se consegue apenas com redes sociais. Foi outro aspecto interessante das eleições de domingo: a demonstração dos limites de atuação das ferramentas digitais, que adquiriram relevância permanente como instrumentos de mobilização, sem serem capazes por si só de garantir predominância na luta política.

Passada a onda disruptiva (alívio para alguns, desperdício de oportunidade histórica para outros), o que se pode prever para as próximas eleições, em relação às quais Bolsonaro sacrificou qualquer outro plano? Se ele foi capaz, em 2018, de vencer o “establishment” e o jeito convencional de fazer política, ainda por cima dispondo de menos recursos que seus adversários “tradicionais”, em 2022 Bolsonaro só tem chances dentro do que ele mesmo chamou de “sistema”.

Do qual, ironicamente, o “outsider” acabou se tornando uma perfeita expressão: vivendo para o próximo ciclo frenético de manchetes, sem um plano ou estratégia de longo prazo, cuidando em primeiro lugar de seus interesses familiares e paroquiais, cultivando popularidade com programas assistenciais e preocupado acima de tudo em ficar onde está. É onde a onda nos deixou.


Jamil Chade: Eras pós-pandemias trouxeram sementes do nazismo e novas geopolíticas. E agora?

Em 2020, há uma diferença fundamental entre tudo o que ocorreu na história da humanidade e a atual crise: temos a nosso alcance o avanço inédito da ciência e mais consciência dos erros passados

2019 foi o ano dos protestos. Do Chile à Catalunha, de Paris ao Sudão as ruas arderam. Mas muitos desses movimentos foram silenciados pela pandemia e o cheiro da morte que o vírus deixou. Entre líderes políticos, movimentos sociais e mesmo serviços de inteligência, a pergunta que permanece é uma só: esses protestos serão retomados uma vez superado o vírus e quais abalos políticos serão sentidos como eco da crise sanitária? Ao longo dos séculos, surtos e epidemias transformaram países, populações e o destino de guerras. Basta dizer que nas cidades mais afetadas pela pandemia da gripe espanhola de 1918 na Alemanha, há indícios de que os primeiros brotes do nazismo tomaram forma, como mostrou um estudo realizado pelo FMI.

O resgate da história também nos revela que não são raras as ocasiões em que pandemias foram seguidas por revoltas e distúrbios sociais, além de uma nova ordem mundial.

Em 2020, há uma diferença fundamental entre tudo o que ocorreu no passado e a atual crise: o avanço inédito da ciência. Em um tempo recorde, o mundo terá mais de uma vacina, no que está sendo considerado dentro da OMS como a vitória definitiva da ciência contra a ideologia. Também ficou claro que o populismo mostrou suas limitações nas urnas - tanto no Brasil como nos EUA - e que lideranças robustas como a de Angela Merkel ou Jacinda Arden se fortaleceram.

Mas, ainda assim, resgatar a história pode servir de guia, principalmente diante de um mundo profundamente desigual que ameaça, uma vez mais, deixar bilhões de pessoas às margens do avanço da medicina. Uma dessas vacinas, por exemplo, exige que seja estocada em um local com uma temperatura de -70 graus Celsius. Um desafio que mais parece um capítulo de ficção científica para 900 milhões de pessoas pelo mundo que ainda fazem suas necessidades básicas ao ar livre por falta de simples privadas e banheiros.

Susan Wade, professora de história da Keene State College, traça um paralelo entre a situação atual e a revolta na Inglaterra de 1381. Naquele momento, a peste bubônica havia feito milhares de mortes, um tragédia que se somava a uma exploração do trabalho de camponeses. “E como hoje, a maioria da riqueza era detida por uma elite que compreendia cerca de 1% da população”, disse. Quando uma doença mortal começou a alastrar, foi pedido aos mais vulneráveis e impotentes que pagassem a conta da crise. “Eventualmente, os camponeses decidiram responder”, apontou. Essa, portanto, foi a origem da revolta camponesa na Inglaterra.

Entre historiadores, há ainda um acirrado debate sobre o papel de uma epidemia como um dos fatores que poderiam ter contribuído para uma destruição final do Império Romano e jogado a Europa em sua era da escuridão. A partir do ano 541, uma peste ganhou força no Egito, atingiu Alexandria e outras cidades, até chegar à região palestina e subir até Constantinopla, a então capital do Império Romano Oriental.

O imperador Justiniano, que havia chegado ao trono com a ambição de resgatar a glória do Império Romano, foi um dos infectados. Ele sobreviveu. Uma parcela dos especialistas, porém, aponta que o que não sobreviveu foi seu império, derrotado em parte por um micro-organismo. Sem soldados diante da peste e com a fome que se alastrava, ele viu territórios conquistados serem tomados por revoltas e seu poder minado em todas essas regiões.

Para o historiador Procopius, no auge da crise sanitária a cidade de Constantinopla - atualmente Istambul - perdia dez mil pessoas por dia. A capital teria perdido 40% de sua população e, pelo império, 25% dos habitantes não sobreviveram.

Nos últimos anos, o relato de Procopius é considerado como exagerado. Historiadores da Universidade de Jerusalém e de Princeton, por exemplo, insistem que não existem evidências para provar o que a narrativa construída ao longo de séculos estabeleceu em termos de mortes. Para eles, portanto, não se pode atribuir à peste o fim do Império Romano. A realidade, porém, é que por quase duzentos anos a peste assolou a região em diferentes ondas e gerou diferentes revoltas. Quando finalmente desapareceu, o mundo vivia uma nova geopolítica.

Na Itália, um outro estudo traça uma ligação entre pandemia, surtos e eclosão de rebeliões. “Em diferentes graus, a maioria das grandes epidemias do passado parecem ter sido incubadoras de agitação social”, apontou Massimo Morelli, professor de ciência política na Universidade de Bocconi, e Roberto Censolo, professor da Universidade de Ferrara.

Num estudo publicado na revista acadêmica Peace Economics, Peace Science and Public Policy, os especialistas analisaram protestos e agitações sociais no período próximo a 57 epidemias pelo mundo. Isso incluiu desde a Peste Negra em no século 14 até a pandemia de gripe espanhola de 1918.

Desses 57 casos, apenas quatro revoltas não estariam claramente relacionadas com os respectivos surtos, o que leva os especialistas a acreditarem que existe uma possível relação entre as epidemias e distúrbios na sociedade civil.

No caso específico da covid-19, os acadêmicos deixam claro que as restrições e o impacto econômico “estão causando um sentimento latente de descontentamento público”. Para Morelli e Censolo, teorias de conspiração em torno do vírus e o seu apoio por parte de alguns líderes políticos são “sintomas de fricções potencialmente perigosas dentro da sociedade”.

Onda de ódio

Já Samuel K. Cohn, professor de história medieval da Universidade de Glasgow, confirmou que “a doença mais mortal e devastadora da Europa, a Peste Negra de 1347-51, desencadeou violência em massa: o assassinato de catalães na Sicília, e de clérigos e mendigos em Narbonne e outras regiões”, além de ataques contra judeus, com mais de mil comunidades na Renânia, na Espanha e França".

Antes mesmo do final da atual pandemia, a ONU já alerta que a crise sanitária abriu uma onda de violência. Num alerta com forte tom de desespero, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, afirmou que a pandemia está gerando um “tsunami de ódio e xenofobia”, além da criação de bodes expiatórios e ataques contra médicos, enfermeiras e jornalistas.

Segundo os levantamentos da entidade, a atual crise aprofundou o sentimento contra estrangeiros e que, das redes sociais, o ódio passou para as ruas. Entre os fenômenos estão atos anti-semitas com teses de conspiração, além de ataques contra muçulmanos. Em alguns países, Guterres aponta que os migrantes e refugiados foram apontados como os culpados pela proliferação do vírus, inclusive com serviço médicos negando acesso aos tratamentos médicos.

Outra dimensão do ódio tem sido os ataques contra idosos. Contra essa população surgiram memes desprezíveis, sugerindo que eles também são os mais dispensáveis.

Os estudos de Cohn revelam que, de fato, a xenofobia foi também uma marca da peste negra, com judeus “trancados em sinagogas ou reunidos em ilhas fluviais e queimados até à morte” por serem os supostos responsáveis pela crise sanitária. “Cruelmente, os tribunais de justiça condenaram coletivamente os judeus por envenenamento de poços e de alimentos”, destacou.

Já nos séculos XVI e XVII, a crise sanitária na Europa desencadeou mais uma vez rumores de propagação maliciosa da peste. Desta vez, o alvo da ira eram médicos e mesmo coveiros, acusados de perpetuarem a doença por uma variedade de razões, incluindo para se enriquecerem.

Cohn conta como a praga de 1575 levou que “ciganos, negros, cantores de rua, atores e prostitutas” fossem proibidos de entrar em determinadas cidades.

Logo vieram ainda as acusações mútuas. Fora de Nápoles e pelo território que hoje se designa como Itália, o surto era conhecido como a doença napolitana. Na Alemanha, ela era chamada de doença polonesa, enquanto na Polônia era conhecida como a doença alemã.

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A Gripe Espanhola de 1918 e 1919 também deixou suas marcas sociais e políticas. Em seu livro de 2017, Pale Rider, a escritora Lauren Spinney revela como a pandemia pode ter sido fundamental para a instabilidade entre as duas guerras mundiais. Um dos aspectos que a crise ressaltou naquele momento foi o egoísmo como forma de sobrevivência. Uma vez terminada a crise, muitas sociedades fizeram a opção deliberada por esquecer o que havia ocorrido.

Entre os impactos, historiadores estimam que os ataques da população branca contra afro-americanos no verão de 1919 em várias cidades dos EUA ainda têm uma relação direta com a doença. Aquele período de violência ficou conhecido como “Red Summer”.

Um estudo realizado pelo FMI correlaciona as cidades mais afetadas pela pandemia de 1918 na Alemanha, as sementes do nazismo que derivaram na Segunda Guerra Mundial. O levantamento indicou que as cidades com o maior número de vítimas pela doença registraram cortes em gastos sociais. E, em seguida, foram nesses locais que se viu um “aumento na parcela de votos conquistados por extremistas de direita”. “As mortes causadas pela pandemia de gripe de 1918-1920 moldaram profundamente a sociedade alemã”, diz o documento, que ainda sugere que a doença pode ter mudado as “preferências sociais” das camadas mais jovens da sociedade, além de ter despertado um sentimento contra estrangeiros.

O estudo não é conclusivo. Mas foi amplamente usado por Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, para apelar aos governos que destinem tudo o que puderem para aliviar o impacto do vírus.

Hoje, mesmo com a vacina, o mundo pós-pandemia também é alvo de um redesenhar. Se bilhões de pessoas estiveram fechadas por meses, a disputa por poder não foi colocada em quarentena em nenhum momento. A história do século 21 é, de fato, radicalmente diferente das pandemias da Idade Média ou do início do século 20. Mas o que ela mostra é que abandonar populações inteiras diante de uma sensação de que a crise está solucionada para uma parcela privilegiada do mundo é o caminho mais seguro para a tradução do profundo mal-estar em protestos e revoltas.