Day: novembro 18, 2020

Vladimir Safatle: A república oligárquica precisa morrer

O processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador

Os resultados das eleições do último domingo evidenciaram duas linhas principais de confronto a animar a política brasileira. Não seria mero exercício retórico afirmar que nosso destino a curto e médio prazo depende do desdobrar de tais linhas.

A primeira delas indica a resiliência da República oligárquica brasileira. Os números mostram com clareza a hegemonia eleitoral de uma constelação na qual encontramos representantes tradicionais do aparato econômico e da chamada “direita de sobrenome”, ou seja, esse setor da elite política que tem relações históricas e familiares com o poder, espalhado em múltiplos níveis regionais e locais. Tal grupo há muito conseguiu se consolidar como verdadeira “casta” política e é marcado por práticas políticas conhecidas, nas quais se misturam brutalidade policial e racista, guerra contra pobres, ausência de qualquer formulação de fortalecimento do espaço comum, assim como submissão aos múltiplos interesses imobiliários e concentracionistas em operação em nossas cidades.

Esse grupo conseguiu se vender, ironia maior do Brasil contemporâneo, como “anteparo de racionalidade” contra o “extremismo” do Governo federal, como retorno da “política” contra o “populismo”. Na verdade, essa foi sua estratégia para reconstituir a balança do poder diante da ascensão de outro grupo, a saber, uma extrema direita popular, composta por setores que eram normalmente sócios menores e subalternos dos consórcios do poder. Setores compostos por: milicianos, representantes do aparato repressivo policial, agitadores midiáticos de extrema direita e pastores. Normalmente, eles eram servidores da direita oligárquica que conseguiram, nesses últimos anos, subir ao primeiro time, amparado pela força histórica das tendências fascistas na sociedade brasileira.

Esta direita oligárquica, que comunga com a extrema direita o mesmo projeto econômico de espoliação e concentração, a mesma brutalidade social e indiferença no uso da violência de Estado, mas que sabe usar melhor planilhas de CEO, conceitos acadêmicos e sabe onde fica a Avenue Foch, viu-se em meados deste ano a ponto de ser definitivamente afastada do poder dentro de uma escalada pré-golpe. Como a arte da sobrevivência lhe é um traço inerente, ela soube reordenar suas forças, capitanear chamados a “frente ampla e redentora contra o fascismo e em prol da defesa da democracia” para simplesmente repactuar uma divisão provisória de poder. Agora, ela soube se vender nas eleições como uma espécie de “volta à normalidade”, mesmo que essa normalidade seja o verdadeiro nome da catástrofe brasileira.

Ela tentará agora colocar em circulação estratégias aprendidas observando o comportamento de sua matriz, a saber, a direita oligárquica norte-americana encarnada no Partido Democrata. Nas últimas décadas, o Partido Democrata em seu eixo Clinton-Obama procurou compensar a aliança incondicional com políticas militaristas e de preservação do capitalismo financeiro de Wall Street com um “rosto mais humano” expresso na tentativa de integração de representantes dos setores mais sistematicamente violentados da população (pretos, LGBT’s , mulheres), sem mexer em praticamente nada nas engrenagens de espoliação, de precarização e sujeição socioeconômica que lhes afetam mais diretamente. Afinal, não é possível nomear Timothy Geithner (representante maior dos interesses dos sistema financeiro) secretário do Tesouro na administração Obama e fingir que se está a lutar pela transformação estrutural contra as múltiplas formas de sujeição social. A pobreza é a matriz das piores violências.

Mas há um problema que faz essa equação não fechar muito bem. A revolta vinda desses setores é potente, explosiva, assim como é real seu desejo de transformação. As tentativas de vampirizar sua força pela direita oligárquica equivalem a tentar domar, com velhos truques de mágica, processos com verdadeiro potencial de mudança. Ou seja, a tendência de que esse arranjo se quebre é grande e chegará uma hora que o espantalho de “todxs contra o trumpismo” não funcionará mais. De toda forma, o trabalho do Partido Democrata é relativamente facilitado porque eles não têm, por enquanto, nenhuma força à sua esquerda com quem se confrontar. Esse não é, felizmente, o caso do Brasil.

É nesse ponto que encontramos a segunda linha principal de confronto que emerge do primeiro turno das eleições. Se a primeira se resume às estratégias de preservação das oligarquias locais contra a extrema direita de matriz integralista, sob fundo de concordância geral, a segunda diz respeito à paulatina incorporação de novos processos coletivos de exercício do poder popular. Por isto, essas eleições foram também o início de um novo embate que começa, não por acaso, no centro econômico e financeiro do país: São Paulo.

São Paulo é uma das representações mais bem acabadas do poder das oligarquias. O Estado é governado de forma ininterrupta, há quase quarenta anos, pelo mesmo grupo e suas divisões internas. De Montoro a Doria, a linha é reta e constante. Diante de tanta continuidade há de se imaginar que São Paulo deva ostentar resultados robustos de políticas inovadoras nas áreas de saúde, educação, transporte, habitação, saneamento ou qualquer outra área. Mas a mediocridade dos resultados das políticas públicas do Estado só é ofuscada pela tranquilidade olímpica com que sua oligarquia dirigente se vê exercendo algo como um direito divino de mando entregue por deus em pessoa desde a época dos cafezais e dos bandeirantes caçadores de homens.

Há de se admirar os representantes dessa casta a falar, sem tremer, da “experiência” que porventura teriam na arte de “ser gestores”. Alguém poderia, nesses momentos, perguntar: experiência exatamente em relação a o quê? A como tentar despoluir um rio por 30 anos, como o Tietê, sem sucesso gastando 1,7 bilhão de reais só nos últimos noves anos? A como tentar passar ração humana como merenda escolar? A como implantar políticas de combate a pandemia enquanto obrigava mais de 2 milhões de pobres a pegarem transporte público lotado? A construir Rodoanéis que nunca terminam e eivados de processos por corrupção que, milagrosamente, caem no esquecimento? Talvez haja um dialeto ainda não identificado nessas terras onde “experiência” significa algo oposto ao seu sentido trivial em português castiço.

Contra isto, novas forças lutam por mostrar que “governar” pode significar abrir os processos decisórios e deliberativos à inteligência coletiva dos movimentos sociais e profissionais, à inteligência coletiva dos artistas, à inteligência coletiva das universidades. É isto que se está a defender em São Paulo, contra a falácia de um saber tecnocrata que sempre foi apenas a gestão em nome da preservação dos interesses oligárquicos de sempre. Esse processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador. Diferente dos norte-americanos, esses setores não precisam lidar aqui com as travas impostas pela realidade política bipartidária. Por isso, eles têm campo para declinar sua potência de transformação no espaço estendido dos embates econômicos, políticos e sociais, como vimos ocorrer na sublevação popular do Chile, com seus resultados surpreendentes. Se bem sucedido entre nós, esse processo pode ser o início de uma abertura do campo político à energia de tudo aquilo que a oligarquia temeu e procurou apagar.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo


Eliane Brum: “Me beija e me chama de centro”, diz direita brasileira

No Brasil, o “moderado” que se apresenta para “unir o país” é o novo velho malandro da crônica política

Mais importante que o mau desempenho nas urnas dos candidatos que Bolsonaro apoiou formalmente são os dois grandes marcos desta eleição: um novo líder se consolida no campo da esquerda no Brasil; e a disputa do legislativo aconteceu com um número inédito de candidatos negros, de indígenas e de pessoas transexuais, algumas delas as mais votadas de seus municípios. Também o número de mulheres cresceu. É pouco, diante do domínio de alguns dos partidos mais viciados e fisiológicos, mas é bastante em um dos países que mais mata negros e faz vítimas por transfobia do mundo, além de ostentar um número assombroso de estupros e feminicídios.

A ampliação da diversidade na política institucional acontece exatamente no momento em que o país é governado por um presidente declaradamente racista, misógino e homofóbico. O avanço dessas forças e o risco de Bolsonaro fracassar em seguir representando os interesses das elites econômicas faz a direita iniciar um curioso processo de mudança de identidade. “Me abraça, me beija e me chama de centro” poderia ser o título do mais recente capítulo da crônica política brasileira.

A eleição de domingo mostrou que toda a violência e o autoritarismo de Bolsonaro não foram capazes de interromper o crescente protagonismo dos grupos periféricos da sociedade― negros, indígenas, mulheres e LGBTQIA+― que reivindicam o centro político. Mostrou também que, depois de passar os últimos anos dando voltas em torno do próprio rabo, devido ao controverso legado de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, o campo da esquerda começa a se mover. Guilherme Boulos, do PSol de Marielle Franco, é líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, uma das principais organizações populares de luta por moradia do país. O fato de disputar o segundo turno para a prefeitura de São Paulo, maior e mais rica cidade brasileira, é a maior notícia desta eleição. Que o PSDB de Bruno Covas saia na frente, com toda a máquina de governo e o tempo de propaganda eleitoral a seu favor, é o óbvio. Boulos é o corte.

O que acontece em São Paulo sinaliza rumos para o Brasil. Não justifica nenhum maremoto de otimismo, mas aponta que existem brechas e que aqueles que aprenderam a resistir seguem avançando por elas. Se é verdade que o antipresidente fracassou como cabo eleitoral, é também muito cedo para dar Bolsonaro e, principalmente, o bolsonarismo, por derrotado. Em pequenas e médias cidades, abrigados nos mais variados partidos, há muitos prefeitos bolsonaristas de alma e também de coldre, e a violência nos interiores do Brasil, tanto quanto nas periferias urbanas, é da ordem do massacre. Como, por exemplo, em municípios do Arco do Desmatamento, na Amazônia.

Os sinais de que Bolsonaro pode se enfraquecer para disputar a reeleição em 2022, porém, já levou a direita a buscar um rearranjo estratégico nas últimas semanas. Figuras que até pouco tempo atrás dançavam de rosto colado com o antipresidente, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, começaram a costurar uma aliança para 2022 junto com Luciano Huck, popular apresentador da TV Globo, que já fez efusivas carícias públicas em Bolsonaro. Doria quis tanto se grudar em Bolsonaro em 2018 que literalmente colou o nome dos dois na propaganda eleitoral: “BolsoDoria”. No caso do herói decaído da Operação Lava Jato, até sua mulher, Rosângela Moro, insuspeita, portanto, já afirmou que via o juiz justiceiro e o Governo Bolsonaro “como uma coisa só”. Huck, na eleição de 2018, chegou a declarar que Bolsonaro tinha “uma chance de ouro de ressignificar a política”.

Antecipando-se ao risco de que a esquerda possa se unir para disputar a sucessão de Bolsonaro, como acontecerá no segundo turno de São Paulo, a direita tira do bolso truques manjados, mas que ainda podem funcionar. Como fizeram com Lula quando o então líder sindical se iniciou na política, as urnas nem tinham terminado de ser apuradas no domingo e já começaram a estampar em Boulos o carimbo de “radical”, na tentativa de amedrontar o eleitor num momento de intenso desamparo por conta do desemprego e da pandemia. Ao colocar “radical” como palavrão, a direita revela seu profundo preconceito contra os movimentos sociais. Tratar como radical a luta por moradia num país em que há mais casas sem gente do que gente sem casa revela mais da direita que se finge de centro do que da esquerda que Boulos representa.

O fato é que a esquerda finalmente começa a dar sinais de que há vida depois do lulismo ―e o legislativo vai ficando mais preto e mais trans. Dez prefeitos indígenas e mais de 50 vereadores quilombolas também foram eleitos, desbranqueando prefeituras e câmaras, embora ainda não suficientemente. Nas ruínas do Brasil, é necessário olhar para onde está a resistência que teima em criar vida mesmo nos escombros.

Assustada, a velha direita tenta vestir a máscara de moderação de Joe Biden. O problema é que Joe Biden foi eleito porque teve o apoio da esquerda progressista do Partido Democrata, na qual a maior parte dos expoentes nasceu justamente de lutas contra o racismo e o preconceito. A direita que agora se finge de centro e pretende nunca ter apoiado um defensor de tortura, quer justamente fazer o contrário: esmagar toda a potência emergente que primeiro Michel Temer (MDB) e depois Bolsonaro golpearam, mas fracassaram em parar. Não há máscara grande o suficiente para conter o topete laranja que salta bem no meio da testa destes malandros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: Sentença histórica contra o centro de tortura de mulheres na ditadura de Pinochet

Um juiz do Chile considera que os abuso sexuais cometidos por agentes da polícia secreta constituíram “uma forma específica de violência contra a mulher”

Pablo Cadiz, El País

Beatriz Bataszew ficou aterrorizada quando soube o que estava acontecendo no porão de Venda Sexy. Horas antes, em 12 de setembro de 1974, ela havia sido detida por agentes da Direção Nacional de Inteligência (DINA), a polícia secreta da ditadura de Augusto Pinochet, que a transferiram para aquele centro clandestino instalado em uma casa de dois andares de um setor de classe média da comuna de Macul, em Santiago do Chile.

A origem do nome Venda Sexy está registrada no primeiro Relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura ―mais conhecido como relatório Valech. Lá ficou estabelecido que era parte do jargão dos agentes da DINA e estava relacionado ao seu método preferido de tortura: abuso sexual, principalmente de mulheres, que durante sua passagem pela casa ficavam nuas e vendadas.

Para Beatriz Bataszew, estudante de engenharia florestal e militante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), sua passagem pelos porões da casa foi de cinco dias, nua, vendada, sem contato com o exterior e submetida a vários interrogatórios nos quais foi torturada, agredida e abusada sexualmente. O lugar também era conhecido como a discoteca: um toca-discos ficava ligado a todo volume para ocultar o horror.

O que aconteceu em Venda Sexy, afirma Beatriz, estava completamente fora do que ela e outros militantes de movimentos de esquerda imaginavam sobre a repressão, em meio aos anos mais duros da ditadura. Um dos primeiros avisos do que ela iria viver chegou ao escutar a história de Marta Neira, de quem perderiam todo o rastro e iria engrossar a lista dos mais de 1.210 presos desaparecidos pelo regime: “Ela voltou do porão e relatou desesperada, desconcertada, que havia sido violentada pelo cachorro. Isso foi terrível para nós que ainda não tínhamos passado por aquela experiência, porque quando ela contava eu pensava que isso iria acontecer comigo, e de fato aconteceu”.

Beatriz Bataszew participa em dezembro de 2019 de homenagem às mulheres assassinadas no centro de detenção Venda Sexy.
Beatriz Bataszew participa em dezembro de 2019 de homenagem às mulheres assassinadas no centro de detenção Venda Sexy. MEMORIAS DE REBELDÍAS FEMINISTAS

Os estupros eram perpetrados pelos próprios agentes da DINA e em especial por uma mulher: Ingrid Olderock, descendente de alemães, com ideias ligadas ao nazismo, que se tornou conhecida na polícia secreta por meio de seu cachorro Volodia, da raça pastor alemão e treinado para cometer os abusos. “Não foi só violência sexual, foi violência política sexual, que tinha como objetivo nos domesticar, nos disciplinar e particularmente nos punir, porque éramos mulheres que lutávamos decididamente contra a ditadura”, diz Beatriz Bataszew, lembrando o que viveu há quase meio século.

O caso dela faz parte de uma decisão inédita da Justiça chilena que incorporou uma perspectiva de gênero ao condenar os ex-agentes da DINA Raúl Iturriaga Neumann, Manuel Rivas e Hugo Hernández a 15 anos de prisão como autores de sequestros e uso de tortura com violência sexual contra Beatriz e cinco outras mulheres: Cristina Godoy, Laura Ramsay, Beatriz Bataszew, Sara de Witt, Alejandra Holzapfel e Clivia Sotomayor; além de quatro homens que foram vítimas de sequestro e tortura entre 1974 e 1975, dentro de Venda Sexy.

A particularidade da decisão do juiz Mario Carroza reside no fato de que os abusos cometidos durante os interrogatórios foram considerados “uma forma específica de violência contra a mulher”, em consonância com padrões internacionais. “No estudo do ocorrido no referido recinto clandestino de detenção, os agentes não se limitaram apenas a sequestrar homens e mulheres, com o propósito de trancafiá-los e deles extrair informações, sob tortura, que no caso das mulheres, por sua natureza e gravidade, tiveram um impacto sobre elas que marcou sua vida futura”, explica Carroza ao EL PAÍS.

Casa onde funcionava o centro de detenção Venda Sexy, operada pela polícia secreta de Pinochet.
Casa onde funcionava o centro de detenção Venda Sexy, operada pela polícia secreta de Pinochet.CONSEJO DE MONUMENTOS NACIONALES

Para o juiz, o que as mulheres vivenciaram no interior daquela casa “foram circunstâncias desumanizadas, degradantes e abusivas”, e que deveriam ser entendidas como uma figura penal diferente e que “tornasse evidentes essas circunstâncias”. Com as sentenças de prisão dos ex-agentes, Carroza condenou o Estado do Chile a pagar uma indenização de 80 milhões de pesos chilenos (cerca de 560.000 reais), por danos morais, a cada uma das demandantes. A sentença é inapelável.

Para Beatriz Bataszew, a sentença “tem um valor importante, mas tem limitações, entre as principais o fato de que não ser considerado o elemento político daquela violência. Isso significa que são julgados os que cometeram os atos, mas não quem orquestrou esse instrumento de terrorismo de Estado. Ou seja, não se julga a autoridade política”. “Há um progresso no sentido de que se avança na verdade, mas não consideramos que seja justiça um ato executado quase meio século depois. Se a justiça não é oportuna, não é justiça”, diz.

Já para a advogada Camila Maturana Kesten, da Corporação Humanas, organização feminista que presta apoio jurídico a vítimas de violações aos direitos humanos, “é da maior importância que o Judiciário chileno reconheça e destaque a particularidade da repressão exercida por agentes do Estado em Venda Sexy, assinalando que, além de infligir grave sofrimento físico e psicológico às pessoas sequestradas, foi cometida violência sexual sistemática e maciça, em particular contra mulheres”.


Nova onda de Covid-19 na Europa divide governadores no Brasil sobre volta às aulas

Reportagem especial da Política Democrática Online de novembro mostra situação em cada Estado no país

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ao menos 16 redes públicas estaduais de ensino retomaram parte das aulas presenciais ou têm previsão de retorno às salas de aula, ainda em 2020, oito meses após o fechamento das escolas por causa da pandemia do novo coronavírus, em março deste ano. O risco de a segunda onda de Covid-19 chegar ao país aumenta o alerta para governadores.

Em outros oito estados, governadores já se posicionaram pela volta das atividades escolares presenciais somente no ano que vem. No Distrito Federal e em Minas Gerais, professores, sindicatos, governos e Ministério Público travam briga até na Justiça para o retorno das aulas nas escolas.

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O sinal verde para a volta às aulas tem como parâmetro portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada em julho e que define diretrizes para a retomada das atividades presenciais. Entre elas, está a obrigatoriedade do uso de máscaras, distanciamento social de 1,5 metro e afastamento de profissionais que estejam em grupos de risco. No entanto, governos estaduais e municipais têm autonomia para definição do calendário pedagógico a fim de reorganizar as aulas nas escolas.

Nos estados que já reabriram as salas de aula gradativamente, as escolas devem seguir uma série de protocolos sanitários estabelecidos em portarias dos governos e continuarem oferecendo ensino a distância aos alunos que optarem por essa modalidade. Nessa lista estão Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

Em geral, os governadores sustentam suas decisões na diminuição do número de casos de Covid-19 nos respectivos estados. As estruturas hospitalares emergenciais passaram a ser desmobilizadas. Dos leitos clínicos e de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) abertos a partir do início da pandemia, 65% já foram fechados. Por outro lado, o Brasil é o segundo país com mais mortes – atrás dos Estados Unidos – e o terceiro com maior quantidade de contaminações registradas – atrás dos Estados Unidos e da Índia.

A segunda onda de Covid-19 na Europa é um alerta importante aos governadores que decidiram optar por cautela e autorizar retorno às aulas presenciais somente em 2021 ou após a confirmação de uma vacina para imunizar a população. Nesse grupo, estão Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Roraima. Bahia e Rondônia ainda não firmaram posição sobre o assunto.

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Luiz Carlos Azedo: Efeitos colaterais

Lucena (duas vezes), ACM (duas), Sarney (quatro) e Renan (quatro) presidiram o Senado mais de uma vez, mas nunca foram reeleitos na mesma legislatura; existe, porém, precedentes na Câmara

O primeiro impacto das eleições municipais na política nacional se dará nas disputas pelas Mesas do Congresso, principalmente a da Câmara. Do ponto de vista da composição das duas Casas, não houve grande mudança na correlação de forças, apesar dos suplentes que deverão assumir, porém, o desempenho dos partidos na eleição de prefeitos e vereadores, que estão na base da reprodução e renovação dos mandatos dos deputados, influencia — e muito — os humores dos congressistas. As articulações para o comando do Senado e da Câmara ganharam nova dinâmica já a partir desta semana.

A premissa a se resolver é a questão da reeleição na mesma legislatura, que a Constituição de 1988 proíbe. Um parecer da consultoria jurídica do Senado diz que o assunto é regimental e que, portanto, dependeria apenas de decisão dos senadores. Essa questão, porém, será dirimida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As articulações para que os ministros do Supremo lavem as mãos, como Pilatos, seguem o percurso que todos conhecem: as relações entre senadores e ministros, tecidas ao longo do tempo. Entretanto, não dá para apostar que o Supremo aceitará a mudança das regras de jogo, pelo precedente que abre.

Na hipótese de que a reeleição seja permitida, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), está com quase tudo dominado. Já se acertou com as bancadas do MDB e do PT. O seu problema é o grupo Muda Senado, que originalmente foi um esteio de sua vitória contra o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Na Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que é contra a reeleição, caso isso seja permitido, não terá adversários capazes de derrotá-lo. Essa possibilidade lhe cairia no colo, pois quem trabalha abertamente para a reeleição é Alcolumbre.

No período republicano, foram poucos os presidentes da Câmara que se reelegeram na mesma legislatura: Sabino Barroso (1909-1914), Arnolfo Rodrigues de Azevedo (1921-1926) e Ranielli Mazzini (1958-1965), que, por duas vezes, assumiu a Presidência da República em situação de crise institucional. A primeira, na renúncia de Jânio, em 1961; a segunda, na deposição do presidente João Goulart, em 1964, mas acabou tendo de entregar o cargo para o marechal Castelo Branco. No Senado, nunca houve esse precedente. Embora Humberto Lucena (duas vezes), Antonio Carlos Magalhães (duas), José Sarney (quatro) e Renan Calheiros (quatro) tenham presidido a Casa mais de uma vez, nunca foram reeleitos na mesma legislatura.

Bolsonaro
Caso não seja mesmo permitida a reeleição na mesma legislatura, no Senado, o candidato mais forte à sucessão de Alcolumbre é o senador Eduardo Braga (MDB-AM), líder do governo na Casa. O circo pega fogo, porém, na Câmara, onde está instalada a disputa entre o líder do PP, deputado Arthur Lira (AL), e o líder do MDB, deputado Baleia Rossi (SP). O primeiro, é o candidato apoiado pelo Palácio do Planalto, com objetivo de domar a Câmara, controlando a sua pauta. O fortalecimento do PP nas eleições municipais, nas quais saltou de 495 para 682 prefeituras, foi resultado da estratégia de aproximação com Bolsonaro desenvolvida pelo senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, e Arthur Lira, que, por isso mesmo, aumentou o seu cacife na disputa da Câmara junto ao Palácio do Planalto.

Do outro lado do balcão, Baleia Rossi, que também é presidente do MDB, candidato apoiado por Rodrigo Maia, amarga a perda de 261 prefeituras (caiu de 1.035 para 774). Entretanto, o MDB continua sendo o partido mais forte do país em termos de prefeitos, vereadores e número de votos. Além disso, para Baleia, o apoio do DEM foi robustecido pelo desempenho eleitoral dessa legenda, que aumentou o número de prefeituras de 266 para 459 (193 a mais). Seu problema é a resistência da esquerda, o que faz de Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), mesmo com candidato avulso, um azarão. É óbvio que essa matemática não se reflete automaticamente na eleição da Câmara, mas mexe com os ânimos dos deputados, que se envolvem diretamente nas eleições municipais e captam os humores do eleitorado.

É aí que a derrota dos candidatos apoiados por Bolsonaro no primeiro turno pesa na balança. Fragiliza sua relação com os partidos do Centrão, entre os quais o PSD de Gilberto Kassab. Se tivesse mais senso estratégico, Bolsonaro não teria se envolvido, como se envolveu, no primeiro turno. Nada garante que não repita o erro no segundo turno, correndo risco de ter o apoio rejeitado pelos candidatos com quem tem afinidade. Mesmo no caso de Crivella, no Rio, seu apoio pode ser desastroso, pois as primeiras pesquisas mostram que o eleitorado de esquerda e centro-esquerda já desembarcou na candidatura de Eduardo Paes (DEM), e a eleição está praticamente perdida. Além disso, envolver-se diretamente na disputa pelo comando da Câmara é um jogo perigoso. Por exemplo, custou muito caro para a ex-presidente Dilma Rousseff, que foi derrotada por Eduardo Cunha (MDB-RJ), de quem era inimiga figadal. Ele abriu o processo de impeachment da ex-presidente da República, antes de ser afastado do cargo e preso por causa do Petrolão.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/efeitos-colaterais/

Cristovam Buarque: Apagão invisível

Certos apagões são mais visíveis que outros. Quem sobrevoa, à noite, ou caminha, de dia, pelas cidades do Amapá, percebe o apagão de energia elétrica, mas quem anda pelas ruas brasileiras não enxerga o apagão educacional que amarra o progresso econômico e a justiça social no Brasil inteiro ao impedir o desenvolvimento e o uso da energia potencial que há em cada cérebro. O apagão educacional é invisível, porque ele impede tanto sua percepção, quanto a identificação de suas causas. No Amapá, foi um raio, no resto do Brasil foi desprezo histórico à educação.

Recentemente, um trabalho acadêmico mostrou como a cor da pele vai escurecendo na medida em que se segue da Zona Sul para a periferia no Rio de Janeiro. Mas o estudo não diz que o número de anos de escolaridade vai diminuindo quando se caminha dos bairros nobres para os bairros pobres. Não é apenas a cor que escurece, é também o apagão educacional que vai se intensificando. Não deve haver analfabeto entre jovens de Ipanema e a maior parte deles estuda ou já concluiu algum curso superior. Na periferia, ainda é grande o número de analfabetos plenos ou funcionais, e são raros os que fazem cursos universitários, especialmente os mais demandados. A perversa geografia do racismo se sobrepõe e decorre da geografia e do apagão educacional. As pessoas veem a geografia do racismo sem perceberem que ela deriva do nível educacional a que as populações pobres foram condenadas. Além dos resquícios da escravidão, a geografia das raças é consequência da geografia da educação.

O apagão educacional é a causa do atraso econômico e da desigualdade social. Isso não é percebido porque o apagão educacional provoca o analfabetismo político, que esconde a causa de nossos problemas nacionais. Por não perceberem isso, alguns bem intencionados propõem superar a desigualdade educacional apenas com incentivos para ingresso no ensino superior, sem cuidar da educação de base para todos. Não percebem, ou não dizem, que isso beneficiará raríssimos e mesmo estes não entrarão nos cursos mais procurados e de maior prestígio. E mesmo estes raríssimos não conseguem acompanhar as exigências de seus cursos, se não tiveram boa educação de base.

Em reportagem para o programa Fantástico, da TV Globo, a jornalista Sônia Bridi apresentou, de forma enfática, a discriminação educacional no Brasil, mostrando que cada brasileiro, desde cedo, tem acesso a uma das três escadas sociais: uma tradicional de cimento, que permite a poucos gênios ascenderem com muito esforço; outra moderna rolante, que leva para cima com pouco esforço; e uma terceira, moderna rolante, mas que roda no sentido contrário ao propósito da subida.

A primeira é a escola sem qualidade em uma cidade tranquila para filhos de pais com alguma motivação para o estudo dos filhos; a segunda é a escola de qualidade em bairros protegidos e casas com pais educados; a terceira é aquela que atende aos meninos e meninas em quase-escolas com pais sem educação, em bairros sem serviços públicos e com violência.

Estas três escadas, em funcionamento há décadas, não vão eliminar o apagão. Nem mesmo um Ministério temos ao qual recorrer, porque nosso Ministério da Educação cuida do Ensino Superior e do Ensino Profissionalizante, deixando as 200 mil escolas por conta e responsabilidade dos municípios pobres e desiguais.

Diante do apagão visível no Amapá, o Brasil inteiro se mobilizou, mas não se mobiliza para superar o apagão invisível da educação.

A solução conhecida é deixar uma só escada moderna para todos os brasileiros, independentemente da renda, do endereço, da cor: um só sistema educacional ao qual tenham acesso ricos ou pobres, brancos ou negros, habitantes de bairros nobres ou da periferia, com todas suas escolas com a máxima qualidade, todos seus professores muito bem remunerados, bem formados e com dedicação exclusiva ao magistério, contando com edificações completas e equipamentos modernos, em horário integral.

A perversa geografia da desigualdade só será vencida quando acabar a mais brutal das geografias, da desigualdade educacional, a mãe de todas as desigualdades. Mas isso não ocorrerá enquanto nossos dirigentes, eleitos e eleitores, não perceberem o apagão educacional que faz do Brasil um buraco negro, que não mostra sua falta de luz, mantendo o apagão invisível e escondendo as causas que o apaga.

*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)


Folha de S. Paulo: O Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica, diz Obama

Em entrevista à Folha, ex-presidente americano afirma esperar que trauma eleitoral recente leve a uma política diferente

Sérgio Dávila, Folha de S. Paulo

Dez dias depois de Joe Biden ver seu nome confirmado como o próximo presidente dos EUA, é a vez de seu ex-chefe, Barack Obama, roubar a cena. Nesta terça (17), dia do lançamento mundial de “Uma Terra Prometida” (Companhia das Letras), detalhes do primeiro volume de suas memórias na Casa Branca tomaram o mundo.

Folha enviou nove blocos de perguntas (com 12 questões no total) por escrito ao democrata no dia 5 de novembro. Ele se comprometeu a responder ao menos cinco delas e pediu que todas fossem ancoradas no livro, condições aceitas pelo jornal.

Na segunda (16) à noite, chegaram suas respostas.

O sr. escreve na apresentação de seu livro que a democracia em seu país parece estar à beira do precipício uma crise enraizada no embate entre duas visões opostas do que são os EUA e do que deveriam ser. O sr. acha que, pelos acontecimentos de hoje [5/11], com a vitória de seu ex-vice-presidente, o precipício fica mais longe? Você tem razão: a divisão entre o que a América é e o que a América deveria ser é um tema importante no livro, mas também existe outro conjunto concorrente de visões para nosso país. Há uma visão mais inclusiva e uma visão mais tribal. As duas interagem constantemente, e assistimos a essa interação acontecendo não apenas nos últimos quatro anos, nem nos oito anos que os antecederam, mas ao longo de nossa história. A pergunta permanece: quem vai vencer essa disputa de ideias?

Tenho fé em que a visão generosa e acolhedora do nosso país sairá por cima. E conservei meu otimismo, mesmo ao longo dos últimos quatro anos. Porque, ao mesmo tempo em que vimos nossos piores impulsos revelados, também testemunhamos o que podemos ser quando mostramos nosso lado melhor, quando americanos saíram às ruas em número sem precedente para protestar contra a separação de famílias, a violência armada, a brutalidade policial e mais.

É isso que me dá esperança especial em relação à próxima geração. Sua convicção do valor igual de todas as pessoas é inata, natural. Para Malia, Sasha [suas filhas de 22 e 19 anos, respectivamente], e seus amigos, nossas diferenças são algo a ser festejado. Para eles, isso é evidente.

Este livro é sobretudo para esses jovens. É um convite para mais uma vez reformarem o mundo e, com trabalho árduo, determinação e uma grande dose de imaginação, criarem uma América que finalmente se alinhe com o que existe de melhor dentro de nós.

O sr. descreve com detalhes o processo que o levou a escolher Joe Biden para ser seu vice-presidente. Dezenove anos mais velho que o sr., não parecia um candidato natural a concorrer a sua sucessão em 2016, tanto que não foi Hillary Clinton foi a escolhida. O sr. antevia então, no momento de sua escolha para vice, que ele um dia viria a ser presidente dos EUA? Admito: quando comecei minha busca por um vice-presidente, eu não fazia ideia que acabaria por encontrar um irmão. Joe e eu não temos muito em comum, à primeira vista. Temos origens diferentes, somos de gerações distintas. Mas em muito pouco tempo comecei a admirar sua resiliência, sua empatia e seu engajamento em tratar cada pessoa que ele encontra com respeito e dignidade. Joe vive segundo o preceito que seus pais lhe ensinaram: “Ninguém é melhor que você, Joe, mas você não é melhor que ninguém”.

Essa empatia, essa honradez, a crença de que todos têm valor —isso é quem Joe é. E foi por isso que durante oito anos eu quis que ele fosse o último na sala comigo sempre que eu precisava tomar uma decisão importante.

Ele me fez um presidente melhor. E sei que ele nos tornará um país melhor.

Numa passagem interessante, o sr. descreve o efeito do envolvimento da ex-primeira-dama Michelle Obama numa escola de ensino médio para meninas em Londres. Segundo estudos de um economista, após as visitas, as meninas melhoraram seu desempenho escolar. O sr. nunca a encorajou a seguir carreira política? Nunca discutiram isso a sério, como uma possibilidade de segundo ato para ela? Bem, não, porque isso não vai acontecer. Michelle já deixou isso muito claro. Mas não direi que me surpreendi ao ver que um estudo confirma a ideia de que a presença dela inspira as pessoas a realizar seu potencial. Porque convivo com os benefícios disso desde que ela e eu nos conhecemos, mais de três décadas atrás.

Como mostra o livro, não há dúvida de que Michelle não apenas me fez um presidente melhor, mas também uma pessoa melhor. Não há ninguém mais brilhante que ela, ninguém mais divertido, ninguém mais sábio. Há uma razão por que tantas pessoas gravitam em direção a Michelle. (E há uma razão por que, não importa quantas vezes ela diga não, as pessoas não param de perguntar se ela vai se candidatar a um cargo político algum dia!)

O sr. narra uma visita a uma das favelas no Rio de Janeiro e conjectura sobre o efeito que pode ter tido nos meninos e meninas negras que o observavam de suas casas num país de racismo profundamente enraizado, ainda que com frequência negado. Não muitos anos depois, o movimento Black Lives Matter explodiu nos EUA, com reflexos no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O sr. anteviu que a tensão racial desaguaria num movimento desse tipo? Teria feito algo diferente nesta questão durante seu mandato? O racismo está entre nós desde muito antes mesmo de sermos um país, e nunca tive qualquer ilusão de que minha Presidência pudesse de alguma maneira tornar nosso país pós-racista. Eu esperava que ela pudesse inspirar crianças, quer fossem crianças das favelas na periferia do Rio ou crianças do South Side de Chicago, mas também sabia que elas precisavam de mais do que apenas inspiração. Elas precisam de escolas e habitação de boa qualidade, ar e água limpos, empregos quando se formam, e mais.

E, embora tenhamos feito progresso sobre muitos desses pontos, também é fato que, se você analisar a luta pela justiça ao longo de nossa história, ela tende a avançar dois passos e então retroceder um, algo que vivenciamos mais uma vez nos últimos anos.

Mas acredito que estamos indo no rumo certo. E sei que a resposta vai vir desses jovens, cujo ativismo no verão deste ano não poderia ter sido mais importante.

Sinto orgulho enorme do engajamento deles com a desobediência civil. Porque, ao longo de nossa história, o protesto pacífico e o ativismo resoluto têm sido a única maneira de fazer o sistema político prestar atenção às comunidades marginalizadas. E espero que elas usem esta oportunidade, com os olhos do mundo voltados a elas, para traduzir seu ativismo em leis e política públicas que precisamos para construir um país mais inclusivo.1 21

O sr. descreve seu encontro com o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, dizendo que a visita dele ao Salão Oval causou boa impressão. Depois, ao falar dos Brics numa reunião do G20 em Londres, o sr. o elogia e a seus programas sociais, mas escreve: “Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão de Tammany Hall [uma organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a corrupção e abuso do poder], e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”. Qual Lula sobreviveu em sua memória? Aquele que o sr. um dia disse “Ele é o cara!” ou o “chefão”? Minhas interações com Lula aconteceram na maioria anos antes de seus problemas com a Justiça, de modo que minhas recordações dele são moldadas pelo tempo em que ele era uma presença dominante na política brasileira e uma figura influente no palco mundial.

O que ficou claro para mim era que ele e Dilma simbolizavam algo importante para muitos brasileiros —a ideia de que eles estavam representados nos mais altos níveis do governo e que o governo seguia políticas que beneficiavam as massas maiores de pessoas. Não há como negar o dom que Lula possuía de se conectar com as pessoas e o progresso que foi feito nesse período para tirar pessoas da pobreza.

Mas, como escrevi, sempre havia rumores girando em torno dele sobre clientelismo, e está claro que o Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica.

Minha esperança é que o trauma político recente possa levar a um tipo diferente de política e que uma nova geração de brasileiros possa liderar nesse caminho.


IHU Online: Eleições municipais não trataram do fundamental, diz Luiz Werneck Vianna

“Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano”, constata o sociólogo

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos, IHU Online

Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade “hedonista e consumista”, cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a “sobrevivência material do cotidiano”, não é de se surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.

Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está".

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".

Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignadaDiálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos?

Luiz Werneck Vianna – As eleições foram um banho de saúde na política brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no nosso mundo político; o que também não é nada de espetacular. Num país conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em 2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está. Há uma esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.

No Rio de Janeiro, se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a divisão entre PTPDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto, passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.

Ela também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A remoção [de Trump], que ocorrerá em breve, abre uma bela janela de oportunidades.

IHU On-Line – O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?

Luiz Werneck Vianna – Abre uma janela de oportunidades imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que ocorre em matéria de saneamento básico.

Os partidos brasileiros ambientalistas se dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante. A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda está completamente defasada.

Vamos ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora. Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.

Apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Luiz Werneck Vianna – Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará – que também é relevante –, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.

IHU On-Line - A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?

Luiz Werneck Vianna – Esses debates se fizeram presentes, mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.

IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?

Luiz Werneck Vianna – A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica.

Houve um avanço em relação à última eleição, que foi dominada pelo atraso e pela grosseria, pela “arminha” e esses símbolos idiotas que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.

Há candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [d’Ávila], no Rio Grande do Sul. Mas a ver; tem que esperar. Não sei o que vai se passar.

Não há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno; falta muito. Faltam personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.

solução americana adotou uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levaram à vitória, em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [JoeBiden a vitória. Aqui, quem aparece com esse papel?

No Rio de Janeiro, três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a experiência do socialismo real, por exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.

A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Luiz Werneck Vianna –Se essa mudança está ocorrendo, não estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano. Não tem portador para uma visão profética, por ora.

IHU On-Line – Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?

Luiz Werneck Vianna – Ah, seria. Claro que seria, mas aí veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela se retirou da política e da Teologia da Libertação – deu um fim nisso – e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade. De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com uma mensagem desse tipo? Nenhum. É “aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella”. Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.

IHU On-Line – O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?

Luiz Werneck Vianna – A Igreja tinha instrumentos na Teologia da Libertação, mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses cultos de fundo materialista preponderassem.

IHU On-Line – Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?

Luiz Werneck Vianna – Isso depende das lideranças, das personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.

IHU On-Line – Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?

Luiz Werneck Vianna – Precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU é um exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito embrionário, um novo despertar.

Essas eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de paciência também e de trabalho diário, cotidiano.

IHU On-Line – A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?

Luiz Werneck Vianna – Ela tem produzido intervenções interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer. Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso da Marielle Franco. Ela era socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.

A minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera pública. Marielle é um caso de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha do PDT [Anderson Quack] é uma liderança da Central Única das Favelas - Cufa. É por aí que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.