Day: novembro 18, 2020

‘Trump nega regras democráticas que funcionam há séculos’, afirma Paulo Baía

Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, sociólogo diz que comportamento de Bolsonaro é ‘espelho’ de presidente dos EUA

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Eleição norte-americana escancarou o negacionismo de Donald Trump e, por tabela, do presidente Jair Bolsonaro, avalia o sociólogo e cientista político Paulo Baía, em seu artigo na revista Política Democrática Online de novembro, em que analisa o bolsonarismo na visão de Jairo Nicolau, autor do livro O Brasil dobrou à Direita. “Em tempos de negacionismo, a maior democracia mundial vive momentos em que o poder nas mãos de um populista de extrema-direita questiona o sistema eleitoral, negando as regras democráticas do país, que funcionam da mesma forma há séculos”, criticou o autor do artigo.

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A revista Política Democrática Online é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em sua análise, Baía chamou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de “espelho ao Sul da América do Sul” de Trump. “[Bolsonaro] deixa de ser representante de uma nação para virar cabo eleitoral e torcedor fervoroso daquele que acredita ser seu amigo”, observou.

Na avaliação do cientista político, o interessante é que o atual presidente da República do país representante da liberdade, garantidor dos valores liberais e iluministas é aquele que deseja ser reeleito no tapetão, suspendendo a contagem de votos dos que não votaram nele. “É o retrato da negação. Nas terras de cá, negam-se os mais de 14 milhões de desempregados, o aumento da pobreza extrema, a crise fiscal por causa da pandemia, a inflação nos produtos da cesta básica por conta do aumento do dólar e o empresariado preferindo vender para o mercado externo do que o interno, diminuindo a oferta e aumentando a procura”, afirmou Baía.

O sociólogo disse, ainda, que “todos os graves problemas por que passa o Brasil são reflexos de uma disputa partidária, criados pelos adversários para roubar seu poder”. No artigo, ele lembrou que o professor de ciência política Jairo Nicolau acabou de lançar o livro O Brasil dobrou à Direita. Nesta obra, ele compila uma série de dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

“Cruzando dados como idade, gênero, religião, educação etc., o pesquisador chega a conclusões muito interessantes sobre os eleitores de Bolsonaro”, afirmou, para continuar: “Ele foi o primeiro candidato que rompeu a ideia de que, para vencer, o presidente precisa de uma máquina eleitoral. Bolsonaro foi o preferido nas três faixas de ensino: fundamental, médio e ensino superior. Em 2018, foi a primeira vez em que o fator gênero se fez presente”.

Bolsonaro também foi o preferido de 2 a cada 3 homens, batendo o adversário em 10% a mais. E teve, respectivamente, 53% votos das mulheres e 64% dos homens; já Haddad obteve 47% dos votos dos homens e 36% das mulheres. “Outro fator diz respeito ao cruzamento entre dados de homens e instrução: Bolsonaro ganhou em todos os níveis de ensino, todavia, quanto maior a instrução, menor a aceitação”, acentuou.

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Elio Gaspari: Foi o dedo de Frei Orlando

A fala de Pujol, acompanhada por manifestações dos comandantes da Marinha e da Força Aérea, foi um sinal necessário

Três dias antes do naufrágio eleitoral da jangada de Jair Bolsonaro, o comandante do Exército, general Edson Pujol, disse que a tropa não se mete na política e que a política não deve entrar nos quartéis. Essa coincidência só pode ser atribuída a uma interferência de Frei Orlando, o capelão franciscano do 11º Regimento de Infantaria que tomou um tiro na Itália em fevereiro de 1945, dias antes do ataque a Monte Castelo, e tornou-se patrono da assistência religiosa do Exército. Se Pujol tivesse dito o que disse quatro dias depois da eleição de domingo, a leitura seria toda outra.

Em dois anos de governo, Bolsonaro levou as Forças Armadas do paraíso ao purgatório. Décadas de distanciamento e relativo silêncio foram substituídas por militâncias desconexas em torno de um presidente errático, nepotista, com um pé na superstição. Laboratórios do Exército receberam ordem para fabricar cloroquina. Felizmente, o capitão desistiu da promessa de visitar, nos Estados Unidos, a empresa de militares aposentados que pesquisava a transmissão de energia elétrica sem fio. Para quem acredita em lendas da floresta, essa mágica teria impedido o apagão do Amapá.

A fala de Pujol, acompanhada por manifestações dos comandantes da Marinha e da Força Aérea, foi um sinal necessário, cuja eficácia dependerá do prosseguimento de um exercício diário de chefia e disciplina.

O vírus da atividade política entrou nas Forças Armadas, sobretudo no Exército, durante o governo de Michel Temer e o comando do general Eduardo Villas Bôas. Naqueles dois anos tumultuados, ele teve mais protagonismo público que seu antecessor, Enzo Peri, em oito.

Pujol teve o apoio do vice-presidente Hamilton Mourão. Bom sinal, vindo dele. Em 2015, Mourão perdeu o importante comando do Sul e foi mandado por Enzo Peri para a mesa da Diretoria de Finanças porque se meteu em política. Em 2017, quando reincidiu, foi poupado por Villas Bôas. Mourão destacou-se defendendo ou justificando extravagâncias. Associando-se ao deputado Jair Bolsonaro, ele e 57 milhões de eleitores aderiram a uma candidatura que prometia muitas coisas, sobretudo tirar o PT do palácio. Conseguiu-se, mas o cotidiano produziu um governo que expeliu o juiz Sergio Moro e incorporou negacionismos na saúde pública, no meio ambiente e nas relações internacionais.

Um oficial que ralou nas escolas militares pode apoiar um governo porque não gosta de seus adversários, ou mesmo porque algum amigo ou parente conseguiu um cargo público. Mais difícil é acertar o passo chamando pandemia de “gripezinha” e combatendo a vacinação obrigatória.

Andar para a esquerda é uma coisa, andar para trás, bem outra. A primeira tentativa de imposição da vacina obrigatória contra a varíola foi instituída em 1846, ao tempo de D. Pedro II. Artigo 29 do decreto de 17 de agosto: “Todas as pessoas residentes no Império serão obrigadas a vacinar-se, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado, e condição”.

Para azar de quem não se vacinou, o decreto não colou, e 25 anos depois a varíola matou 1.200 pessoas no Rio.

Em 1906, dois anos depois da Revolta da Vacina e da inflexibilidade do presidente Rodrigues Alves e do doutor Oswaldo Cruz, morreram nove.


Míriam Leitão: Erro amazônico de Bolsonaro

Oitenta por cento da madeira que sai da Amazônia é comprada pelo próprio Brasil. Há muitos anos o Imazon vem acompanhando o destino do que é extraído da floresta, e a exportação chega no máximo a 20%. Esse é o primeiro erro, mas não o único, da fala do presidente Bolsonaro ontem na reunião dos Brics. Seu próprio governo é responsável por ter facilitado a exportação de madeira ilegal ao eliminar exigências de verificações portuárias. O trabalho da Polícia Federal de desenvolver tecnologia para identificar a origem da madeira é excelente notícia, mas ela aumenta a responsabilidade do Brasil, ao contrário do que imagina Bolsonaro.

A imensidão amazônica do que o presidente da República desconhece da questão ambiental e climática se vê nas próprias palavras dele. Na frente dos chefes de Estado dos Brics ele exibiu seus complexos de perseguição e suas obsessões:

— Estamos comprometidos no tocante à emissão de carbono, um assunto muito particular do Brasil, tendo em vista os injustificáveis ataques que nós sofremos no tocante à nossa região amazônica.

O Brasil não tem sido atacado. O governo dele é que tem errado completamente na questão ambiental — entre outras áreas — por não ter entendido o tempo presente. Um tempo em que o Brasil só tem a ganhar se proteger o patrimônio ambiental. O que se perde de riqueza para o acúmulo de fortunas de bandidos é uma enormidade.

Na sua fala aos governantes da China, Índia, Rússia e África do Sul, Bolsonaro contou que em breve divulgará os nomes dos países que compram a madeira retirada ilegalmente da floresta. E o fez como quem tem um grande segredo. Disse que aí sim “estaremos mostrando que esses países, alguns deles que muito nos criticam, em parte têm responsabilidade nessa questão”. A primeira coisa que deveria fazer era se informar.

O pesquisador do Imazon, Beto Veríssimo, explica para onde vai a madeira:

— Desde os anos 1990 nós fizemos três grandes levantamentos do setor madeireiro em um relatório, “Acertando o alvo”, que mostra que em torno de 80% da madeira produzida na Amazônia é consumida no mercado nacional. O Brasil é um grande consumidor de madeira tropical e exporta menos de 20% do volume extraído da Amazônia. Exporta para a Europa e os Estados Unidos. Isso não mudou, fica nessa proporção de 80 para 20, até menos, porque Europa e Estados Unidos foram criando mais exigências para verificar a origem da madeira amazônica por suspeita de ilegalidades.

A segunda coisa que deveria entender é que se alguns países importam madeira ilegal é porque o Brasil está falhando em controlar o que se passa em seu próprio território. Em vez de tentar transferir responsabilidade, o governo deve coibir a ilegalidade. Se houver certificação de origem para toda madeira produzida será possível separar o que é produzido legalmente. Assim, o produto exportado brasileiro poderá ser aceito nos mercados internacionais que estão ficando cada vez mais exigentes. Se há uma nova tecnologia da Polícia Federal capaz de atestar o “DNA” da madeira, como disse o presidente, é boa notícia. Isso dará ferramentas para se controlar o crime aqui dentro.

O ex-presidente Barack Obama na entrevista aos jornalistas Flávia Barbosa e Pedro Bial lamentou que o Brasil deixou de ser o líder ambiental que já foi. Quem acompanhou reuniões internacionais do clima pode atestar o protagonismo do Brasil e a deferência com que os negociadores brasileiros, diplomatas e autoridades ambientais eram tratados. Esse poder foi perdido no governo Bolsonaro. Na última reunião, o ministro brasileiro andou por lá à deriva, e na delegação foram implantados agentes da Abin.

Com o patrimônio ambiental que tem, com sua matriz energética, o Brasil não tem razão alguma para pedir solidariedade à China, Rússia e Índia quando o assunto for emissão de carbono. Eles são grandes emissores. O Brasil deveria controlar sua principal fonte de emissão, o desmatamento, e liderar os esforços internacionais de combate à mudança climática.

Esse é o caminho racional, o mais inteligente a fazer. Não será seguido na atual administração. Bolsonaro deu mais uma demonstração ontem de que não entende em que mundo está, quais são as vantagens do Brasil, e até o que se passa no país que governa.


Cristiano Romero: A nova onda

Enfrentamento da pandemia agora será muito mais difícil

A segunda onda da pandemia no Brasil já é uma realidade. Em São Paulo, segundo revelou a esta coluna o secretário de Fazenda do governo estadual, Henrique Meirelles, o número de internações nas redes hospitalares pública e privada em São Paulo cresceu 18% neste mês. Isso já caracteriza uma retomada forte do contágio da população pelo novo coronavírus. Aparentemente, a faixa da população mais afetada tem sido as classes A e B, mas não surpreenderá ninguém se, em breve, as estatísticas mostrarem o aparecimento massivo de casos de covid-19 também entre as camadas menos favorecidas da população.

O que é ruim para os Estados Unidos, onde a segunda onda da pandemia tem feito a nação mais rica do planeta bater recordes seguidos de novos casos por dia e mortes, não deveria sê-lo para o Brasil, o vice-campeão no desonroso torneio de quem dá mais vexame nesta crise sanitária. Meirelles afiança que São Paulo adotou os mais rigorosos protocolos de segurança do país, antes de autorizar o relaxamento do isolamento social, especialmente, para as empresas interessadas em voltar o mais rapidamente possível às atividades normais, o que inclui o trabalho presencial.

A nova onda, pelo menos em São Paulo, estaria sendo provocada pelo comportamento das pessoas fora do trabalho, ou seja, na vida privada. De fato, depois de conviver _ e respeitar, em sua maioria _ as restrições impostas pelo isolamento social, paulistanos voltaram às ruas para celebrar a vida. O motivo é justificável, uma vez que o novo coronavírus tem se mostrado muito mais perigoso do que se dizia no início da pandemia e infectar-se ou não é jogar na loteria, mas o fato é que aglomerações, em locais abertos e fechados, são vistas em todos os lugares e não apenas nos bairros boêmios da capital paulista.

O resultado será trágico tanto em número de perdas de vidas quanto em seus impactos na economia brasileira, que passa por situação muito delicada, o que significa que o espaço para minorar os efeitos econômicos de uma nova onda da crise sanitária é diminuto. A pandemia chegou ao país no momento em que a situação das contas públicas começava a melhorar, mas ainda estava muito longe de dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Operando com déficits primários (receitas menos despesas, excluído o gasto com juros da dívida pública) desde 2014, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) obrigou o Tesouro Nacional a ir ao mercado endividar-se, via emissão de títulos públicos, para poder pagar as contas. Quando gerava superávits no conceito primário, o setor público usava os recursos para honrar os juros da dívida e, se possível, reduzir seu estoque.

O controle da evolução da dívida não é uma abstração. É um expediente que, levado a sério, melhora com o tempo a vida de todos os brasileiros. Senão, vejamos: quanto menor é a dívida de um governo, menor é sua despesa com os juros dessa dívidas e menor também é o seu custo de rolagem (ver tabela). Isso faz com que sobre mais dinheiro no orçamento para o Estado usar no que realmente interessa, numa democracia cujo regime econômico é o livre-mercado: igualar oportunidades por meio de políticas afirmativas que procurem compensar as distorções sociais provocadas pelo racismo, da oferta de ensino fundamental público de qualidade e de saúde universal.

O Brasil quebrou em 1982, nos anos seguintes centralizou o câmbio, aplicou calotes no pagamento das dívidas externa e interna, tornando-se um pária no mercado de crédito internacional. Só recebia dinheiro de instituições multilaterais de crédito e olhe lá. Sucessivos governos depois, sendo que cada um deu sua contribuição para melhorar a situação fiscal, obteve, em 2008, o grau de investimento (o equivalente ao selo de bom pagador) das agências de classificação de risco.

Antes de obter o grau de investimento em maio de 2008, registre-se, o país concluiu a renegociação da dívida externa durante o governo Itamar Franco (1992-1994), promoveu também a federalização das dívidas dos Estados em 1997 na gestão Fernando Henrique Cardoso _ uma medida crucial para a consolidação das contas do setor público e, por que não dizer, para o fechamento de uma das principais fontes inflacionárias da economia brasileira _ e, no governo Lula, antecipou a quitação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional.

Aquele momento teve uma carga simbólica, embora muitos não tenham prestado atenção, até porque, justiça seja feita, o tsunami da crise mundial deflagrada pouco menos de um ano antes nos Estados Unidos já se avistava no horizonte. Mas o fato é que foi justamente a disciplina fiscal dos anos anteriores, consagrada no grau de investimento obtido em maio de 2008, que deu ao Brasil as condições de enfrentar bem aquela que é considerada a maior crise da história do capitalismo. O país sofreu uma recessão técnica (dois trimestres consecutivos de PIB negativo) e, por causa do espaço para adotar estímulos fiscais, saiu da crise rapidamente e, no ano seguinte, expandiu-se à taxa de 7,5%, a mais alta em 24 anos.

Tudo isso virou pó em apenas sete anos. De 2008 a 2015, o gasto corrente da União cresceu 50% acima da variação da inflação no período, enquanto as receitas avançaram 17%. O descompasso provocou a explosão da dívida. Desde então, as contas não saíram mais do vermelho. Com a pandemia e a justificável necessidade de o governo conceder estímulos fiscais para ajudar pelo menos uma parte das empresas afetadas pela crise e dar meios de sobrevivência a um universo de 67 milhões de brasileuiros em situação vulnerável, a dívida chegou, em setembro, ao equivalente a 90% do PIB.


Fernando Exman: Frente de prefeitos contra o isolamento

Bolsonaro quer apoio para pressionar governos estaduais

Jair Bolsonaro sentiu o baque. Anda reclamando da vida até mesmo em eventos públicos e conversas informais com os apoiadores que fazem plantão em frente ao Palácio da Alvorada.

O presidente tinha confiança no peso do seu voto e achou que poderia fazer uma entrada triunfal no fim da campanha. Fracassou. Elegeu poucos aliados e agora terá que observar, pacientemente, adversários questionarem seu prestígio político. No entanto, neste momento preocupa-o, sobretudo, como os prefeitos eleitos enfrentarão a pandemia a partir de 2021. Desenha-se a tentativa do presidente de construir uma frente municipalista formada por prefeitos dispostos a promover a reabertura das atividades econômicas, a despeito de eventuais orientações partidárias ou determinações dos governadores.

Esta é uma questão crucial para o governo federal. Pouco se sabe o que o ministro da Saúde pensa a respeito, mas na equipe econômica já se fala de imunidade de rebanho. No Planalto, teme-se que uma segunda onda de covid-19 leve os entes subnacionais a adotarem novas medidas de isolamento social, o que atrapalharia a retomada da atividade econômica.

Também por isso o presidente ignorou a recomendação de alguns auxiliares e acabou decidindo ampliar a campanha para além do seu grupo político mais próximo. Mal sabia o número ou a legenda daqueles que estava promovendo. Insistia, por outro lado, que os eleitores escolhessem quem estivesse disposto a pressionar os governadores contra a adoção de novas medidas de isolamento social.

O governo tem um mapeamento de quais foram as políticas de contenção dos Estados. Acompanha as consequências dessas medidas em relação à evolução da pandemia e aos seus efeitos na economia. Monitora os setores mais prejudicados em algumas das unidades da federação, como o de serviços em São Paulo ou no Rio Grande do Sul.

Isso começou a ser feito logo depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou a autonomia de Estados e municípios para a implementação de ações voltadas a impedir a propagação do coronavírus.

Desde o primeiro momento, Bolsonaro preferiu se posicionar contra as políticas de restrição social e virar uma voz crítica aos governadores que pensavam de forma diferente. Sem um exemplo vindo de Brasília, cada Estado agiu de uma forma, diante de suas especificidades e das informações disponíveis.

Não houve uma padronização. Algumas unidades da federação deixaram poucas alternativas aos municípios e determinaram de forma rigorosa as ações a serem executadas em seus territórios. Isso ocorreu, em alguns casos, porque os prefeitos hesitavam em reagir à moléstia que se espalhava com rapidez pelo país. A maior preocupação era o risco de colapso do sistema de saúde. Na visão do poder central, agiram dessa forma Goiás, Pará e Santa Catarina - neste último caso, apenas num primeiro momento.

Outros Estados preferiram políticas articuladoras, como Ceará, Pernambuco ou São Paulo, ainda de acordo com autoridades federais. Essa estratégia buscou encorajar o diálogo entre órgãos públicos estaduais, municipais e entre prefeitos de cidades vizinhas. A ideia era compartilhar responsabilidades e, claro, eventuais ônus políticos.

Um grupo de governadores preferiu delegar às prefeituras o poder de decisão. Outro optou por dar liberdade de ação aos prefeitos, desde que as políticas adotadas não fossem rigorosas demais ou impeditivas. Em diversos casos, as posturas de Estados e municípios evoluíram ou foram sendo calibradas ao longo dos últimos meses, dependendo do achatamento ou não da curva de mortes e infecções.

A leitura de uma recente pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios também pode explicar por que o presidente está tão decidido a impedir novas iniciativas de controle e prevenção, mesmo que a equipe econômica não trabalhe com a possibilidade de uma segunda onda.

Segundo o levantamento da CNM, 96,5% das prefeituras aplicaram medidas restritivas para a diminuição da circulação de munícipes ou de aglomerações. Outros números também chamam atenção: 52,4% adotaram barreiras sanitárias, com posto de monitoramento de entrada e saída de pessoas no município; 75,7% estabeleceram isolamento social com a permissão de abertura e funcionamento apenas dos serviços essenciais; 94,2% publicaram normas para uso obrigatório de máscaras; e 54,4% reduziram oferta de transporte público.

Por outro lado, o documento traz um relativo alento para o presidente, pois 61,9% dos executivos locais reconheceram que houve flexibilização durante o período da pesquisa. O levantamento foi realizado entre março e agosto.

No último fim de semana, contudo, a democracia deu mais uma lição a Bolsonaro. Fazer política é um processo que demanda mais do que uma conexão de internet e um horário na agenda depois do expediente para transmissões ao vivo nas redes sociais. Exige conversa e a valorização dos partidos políticos, além do respeito às instituições.

Mesmo assim, novamente o presidente demonstra a intenção de arregimentar um grupo suprapartidário em torno de suas ideias. No início do governo, ele achou que conseguiria negociar com o Congresso por meio das frentes parlamentares temáticas e foi obrigado a aproximar-se dos políticos tradicionais que tanto desprezava. Agora, acena aos gestores locais com programas federais e uma possível ajuda na implementação de iniciativas potencialmente populares, como a estruturação de escolas cívico-militares.

Os prefeitos tomarão posse em janeiro já pedindo mais apoio financeiro, diante da perspectiva de que não se repetirá o grande volume de transferências de recursos observado durante este ano. Será uma nova oportunidade para o presidente defender o fim do isolamento social e movimentar a máquina em direção à campanha de 2022.


Monica De Bolle: Estupidez brutal

Brutal e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso

Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.

Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.

As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.

Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.

Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.

Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.

É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada.

Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.

Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Ricardo Noblat: Bolsonaro requenta notícia velha para livrar-se de culpa

Madeira extraída ilegalmente no Brasil fica por aqui mesmo

Junto com a madeira do Brasil contrabandeada, o presidente Jair Bolsonaro quer exportar para países europeus a culpa pelo desmatamento da Amazônia.

Países não compram madeira – são pessoas que compram. Como compram também pedras preciosas, ouro, cocaína e tudo o mais que possa ser revendido com bom lucro.

O crime organizado, aqui, alimenta-se de armas compradas no mercado internacional. Aos governos, transações ilegais não interessam porque são isentas de impostos, e eles a combatem.

Ex-garimpeiro malsucedido, terrorista frustrado que acabou afastado do Exército ao descobrir-se que planejara detonar bombas em quartéis, Bolsonaro sempre teve um pé na ilegalidade.

Empregou funcionários fantasmas em seu gabinete de deputado federal. Destacou um amigo parceiro de milicianos (Queiroz) para cuidar do seu filho mais velho na Assembleia Legislativa do Rio.

Incentivou-o, e também ao filho vereador, a prestigiar notórios milicianos, vários deles acusados de assassinato, com discursos e honrarias concedidas pelo poder público.

Isso não o impediu de conquistar o apoio dos generais para barrar a eventual volta do PT ao Palácio do Planalto. E ali permanece a exercer o poder para muito além do limite da irresponsabilidade.

Quando seus atos ou a sua omissão o tornam alvo de críticas, culpa os outros. A degradação da Amazônia cresceu nos seus primeiros dois anos de governo, mas ele nada tem a ver com isso, diz.

Como não tem? A máquina de fiscalização do Ibama foi desmantelada. Em fevereiro último, o instituto dispensou-se de ter que autorizar a exportação de madeira nativa brasileira.

Bolsonaro se opôs à destruição de equipamentos usados para pôr florestas abaixo. Tomou partido, portanto, dos que desmatam ao arrepio das leis. No mínimo, é cúmplice de crime.

Menos de 15% da madeira contrabandeada tem como destino outros países. O resto é para consumo interno. O transporte é feito a céu aberto. Se a fiscalização falha, se o governo faz vista grossa…

Uma operação da Polícia Federal, em dezembro de 2017, à época do governo Michel Temer, apreendeu 120 contêineres com 2.400 m³ de madeira extraída ilegalmente.

Ela seria vendida com base em certificados falsos expedidos pelo Ibama para empresas importadoras na Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Portugal e Reino Unido.

A notícia é velha. Mas foi requentada, ontem, por Bolsonaro ao participar da cúpula virtual dos Brics (grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Bolsonaro prometeu revelar o nome das empresas importadoras. Fará isso com as americanas? Os governos desses países ficarão gratos pela informação que já lhes deveria ter sido repassada.

É mais uma bravata de um presidente acuado. Se for dada publicidade ao nome das empresas, elas poderão processar o governo brasileiro sob a alegação de que foram enganadas. E aí?


Bruno Boghossian: O carimbo da negligência

Presidente fala grosso com compradores estrangeiros, mas facilita vida de desmatadores

Jair Bolsonaro quase fingiu interesse na preservação ambiental. Durante a cúpula dos Brics, o presidente prometeu divulgar "nos próximos dias" uma lista de países que recebem madeira extraída ilegalmente no Brasil. O objetivo do discurso era alimentar uma picuinha internacional, mas a ameaça expôs ainda mais a negligência do governo no combate ao desmatamento.

Seria uma boa notícia se as autoridades brasileiras fechassem o cerco ao mercado milionário de extração ilegal na Amazônia. Bolsonaro, no entanto, só parece interessado numa das pontas dessa cadeia. O presidente quer falar grosso com os compradores estrangeiros, enquanto facilita o trabalho dos vendedores.

Desde o início do mandato, o governo sabotou operações contra o desmatamento. Bolsonaro trabalhou para impedir a destruição de máquinas usadas em atividades criminosas. No ano passado, ele ouviu uma queixa de madeireiros e gravou um vídeo em que prometia dificultar o cumprimento dessa norma.

Há poucos meses, o governo ainda reduziu a exigência de documentação sobre o material que sai do país. Em março, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o presidente do Ibama liberou exportações sem a necessidade de uma autorização específica. Os madeireiros do Pará enviaram uma nota de agradecimento.

Na bravata direcionada aos desafetos estrangeiros, o governo ignorou o fato de que boa parte da madeira extraída ilegalmente no Brasil fica no mercado nacional. O presidente tentou intimidar os países de destino dessas exportações, e o assessor especial Filipe Martins completou que eles "poderão ser julgados pelo que efetivamente fazem e não apenas pelo que dizem".

O rancor de Bolsonaro contra seus adversários globais poderia forçá-lo a abandonar a displicência na questão ambiental. O presidente, porém, já deixou claro que seu desejo é apenas neutralizar as pressões internacionais sobre o governo. A incompetência e a falta de vontade de agir continuam evidentes.


Vinicius Torres Freire: Eleição municipal abafa polarização e dificulta frente ampla contra Bolsonaro

Resultado das urnas torna ainda mais difícil a ideia de criar 'frente ampla' contra Bolsonaro

Quem ganhou a eleição municipal? A mera massa de números de conquistas locais de cada partido não diz grande coisa.

Além do mais, as reviravoltas de Junho de 2013 e a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 deveriam incentivar alguma modéstia na especulação e dos politólogos. Mas os resultados das municipais já motivam rearticulações, reavaliação de estratégias e reivindicações de poder.

O que parece menos incerto?

Em termos de prefeituras conquistadas, a esquerda se tornou nanica e mais fragmentada. PT, PC do B e PSB (esquerda rosa-chá) perderam muitas prefeituras; nesse quesito, o PSOL ainda praticamente inexiste. O PDT se manteve mal e mal.

A esquerda teve e pode ter outras vitórias simbólicas relevantes, abrindo uma fresta para respirar na tumba em que está metida. Terá disputas duras em Recife, Porto Alegre, Belém e Vitória e uma quase impossível, em São Paulo.

Ainda assim: 1) ficou evidente que o eleitorado de grandes cidades está disposto a caminhar no “campo progressista”; 2) partidos como o PSOL voltaram a fazer o papel da esquerda, que é levar o povo miúdo para o governo, como o PT já fez de modo extensivo um dia.

Faz década se fala em coletivos de periferias e movimentos renovados de minorias. Essas pessoas começaram a chegar ao poder, como na Câmara de São Paulo. É pouco, mas faz barulho e será uma inspiração.

As derrotas da esquerda encorparam a onda cinza. Partidos de centro, sublegendas do centrão, centro-direita e direita dominam ainda mais prefeituras. Nesse bloco, o poder também está mais disperso com a ascensão do PSD e a ressurreição do DEM.Diz-se que o MDB continua o partido majoritário, com mais cadeiras de prefeito. É verdade, na aritmética.

O partido perdeu muitas prefeituras. Nas maiores cidades, é medalha de bronze. Trata-se aqui dos 204 municípios que abrigam metade da população brasileira. Neles, o PSDB contou 32 vitórias (eleitos ou em primeiro lugar no primeiro turno), seguido de PSD (28), MDB (27) e DEM (19).Somadas essas 204 cidades ao bloco intermediário (as maiores de 20 mil habitantes), tem-se 85% da população.

Aí, os partidos líderes em prefeituras ou vitórias parciais são quase os mesmos. Pela ordem: MDB (244), PSD (211), PP (202), PSDB (195) e DEM (151).O sucesso do DEM foi o grande crescimento; na política parlamentar, ora lidera o conservadorismo tradicional.

O sucesso do PSD é o crescimento contínuo, agora firme também nas grandes cidades. Gilberto Kassab, líder e organizador dessa “start-up” do centrismo-centrão, diz que o PSD pensa em lançar candidatos a presidente e que Bolsonaro perdeu. Em suma, avisa ao governo e aos partidos com ambições para 2022 que o PSD tem de ser considerado no jogo, pois é time grande.

O PSDB também perdeu prefeituras. Mas está forte em grandes cidades e, para variar, no tucanistão (o estado de São Paulo, segundo a esquerda). PSDB, DEM e MDB vinham fazia um tempo com uma conversa meio mole de serem aliados em 2022; a depender do futuro de Bolsonaro, podem juntar também o PSD. Falta apenas ter o que dizer ao povo e arrumar um candidato (quem tem muitos, não tem nenhum).

Mas há ainda mais incentivo para que formem um bloco distinto do centrão e com força para disputar o governo federal —se organizar direitinho, todo mundo terá um carguinho.O que ficou ainda mais difícil, dadas as derrotas da esquerda e a baixa da “polarização”, foi a ideia de criar uma frente ampla contra Bolsonaro: ele perdeu agora, mas pode, quem sabe, se beneficiar dessa divisão.


Vera Magalhães: Novo começo de era?

Disputa em São Paulo mostra que tutela de padrinhos é dispensável

É redutor atribuir o bom nível do debate entre Bruno Covas e Guilherme Boulos ao fato de serem dois políticos moderados. O adjetivo é impreciso para rotular dois políticos com características, trajetórias e propostas tão distintas.

Além do que, avaliar suas chances e seus projetos para São Paulo a partir de uma palavra tão vaga não faz jus ao momento rico e importante que a improvável eleição da pandemia acabou por provocar.

Covas é um político de centro. As circunstâncias dos diferentes momentos de sua carreira política – deputado, vice-prefeito, prefeito – mexeram esse ponteiro ora para a centro-esquerda, ora para a centro-direita.

Apostou, quando assumiu a cadeira de prefeito, que, no embalo da eleição de Jair Bolsonaro e do próprio João Doria, enfrentaria um adversário da direita neste ano.

Vestiu um figurino de social-democrata a partir dessa avaliação, e procurou se distinguir do “Bolsodoria”, o personagem que seu correligionário vestiu em 2018, e rapidamente caiu em desuso depois da posse.

O drama pessoal que viveu e a pandemia foram novas oportunidades para Covas procurar mostrar personalidade dentro do PSDB paulista, resgatando a imagem do avô, inclusive.

Muitos imaginaram que, diante da ida ao segundo turno contra Boulos, um candidato de esquerda, ele flertaria com o discurso de direita para atrair os bolsonaristas. Houve, inclusive, ensaios dessa mutação no discurso logo após a posse, quando ele classificou Boulos três ou quatro vezes de “radical” e fez uma exortação à “lei e à ordem”.

Mas, a partir desta segunda-feira, a ordem no comitê era manter o tom sereno, por vezes gélido, que ele demonstrou no primeiro turno. Um gesto neste sentido foi telefonar para Boulos para pedir desculpas por uma ofensa de um aliado.

E o candidato do PSOL? Moderado ou radical? Ele mesmo refuta o primeiro adjetivo e qualifica o segundo: gosta de dizer que é radicalmente diferente do PSDB em doutrina social e econômica.

Mas Boulos demonstra que mudou desde os primórdios de sua atuação à frente do MTST: refinou conceitos, estudou a cidade, compreendeu a necessidade de construir pontes para alcançar objetivos. Isso nada tem de exótico: é o caminho natural dos políticos e dos partidos quando enfrentam sucessivas eleições e amadurecem.

O risco, para ambos, é serem tragados para as caricaturas deles mesmos e de seus partidos por aliados mais interessados em usá-los como cavalos de Troia para os próprios projetos que em contribuir com sua eleição.

Ambos prescindiram de padrinhos no primeiro turno, por motivos distintos. No caso de Covas, andar com Doria era ruim eleitoralmente, dada a rejeição do governador na cidade.

Para Boulos foi meio falta de opção. A candidatura de Jilmar Tatto impediu Lula de apoiá-lo. Mas, na primeira hora, quando as urnas não saíam do 0,39% apuradas, o cacique petista já tratou de pular em cima do palanque do candidato do PSOL, avistando nele uma chance de reduzir o tamanho da derrota do PT.

Doria também já ensaiou o discurso de que o resultado em São Paulo aponta para a viabilidade da “frente ampla”, um papo lá para 2022 e que interessa só a ele.

Covas e Boulos demonstrarão maturidade se recusarem a tutela de padrinhos. Uma característica nacional desta eleição foi a renovação geracional mais qualitativa, diferente da horda de youtubers de 2018.

Ambos têm um futuro político promissor pela frente se souberem entender o que seus partidos e seus campos políticos fizeram de errado para causar repulsa no eleitor. Isso tem menos a ver com conceitos como esquerda e direita, moderado ou radical, que com práticas políticas e de gestão e propostas para o País e a sociedade. Até aqui, a eleição de São Paulo é um alento nesse sentido.


Rosângela Bittar: Entre na roda

Projetando-se do presente ao futuro, dominam a cena as forças moderadas

Daqui a pouco passa. Vitoriosos (muitos) e ressentidos (poucos) terão de voltar à vida política não eleitoral: crise econômica, desemprego, agravamento da pandemia, fome, desigualdade. O calendário de 2022 ficará suspenso. Porém, as marcas dos acontecimentos do momento não se apagam.

A fotografia: o presidente Jair Bolsonaro domina a cena do momento estático. Com derrotas em série, só se têm dele flagrantes desarticulados. Em menos de dois anos da introdução de sua era política foi desautorizado em pensamentos, palavras e obras. Seu mundo, lá fora, também ruiu, o que torna ilusão tudo o que representa. Mas não convém esquecê-lo. No comando do governo, prosseguindo no seu fazer nada, será um populista incompetente e descompromissado com a realidade. Porém, se quiser, recupera-se. E não tem só dois minutos, são mais dois anos inteiros. Tempo suficiente para criar um salário emergencial para todos e transferir as suas culpas ao Congresso, como é de costume. Não precisa de condições políticas para voltar à roda, já deixou claro que não é piloto nem passageiro de sua própria nave.

O filme: em movimento dinâmico, projetando-se do presente ao futuro, dominam a cena as forças moderadas, os democratas da esquerda à direita que conquistaram a adesão popular na condenação aos extremos.

O novo elenco se uniu aos que, já em ação, abriram antes a roda de conversas, agora ampliada. Não são ainda os partidos. Estes ficarão um bom tempo entretidos na negociação parlamentar, que comandam.

Para o diálogo político, que produzirá o enredo dos próximos dois anos, há também dois princípios definidos. O primeiro é que não pode haver vetos a ninguém em qualquer um dos projetos. É o mínimo que a moderação exige.

O segundo é fugir da definição precoce de posições. Luciano Huck, João Doria, Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Hamilton Mourão, Ciro Gomes, Guilherme Boulos são candidaturas lançadas. Alguns, como Huck, em estágio avançado de formulação. Outros, como Moro, ainda discretos, para inibir a besta-fera do Gabinete do Ódio e sua capacidade destrutiva.

Huck, misto de liberal e social-democrata, foi o primeiro a se abrir a conversas com líderes políticos nacionais e internacionais, inclusive da esquerda, empresários, sociedade e demais candidatos potenciais. Tem uma equipe discutindo as políticas públicas que considera necessárias ao Brasil. Ciro Gomes, embora na roda, enfrenta o problema de ser candidato inamovível. João Doria, para se habilitar, terá não só que vencer o segundo turno em São Paulo. Sem isto será difícil até se reeleger governador. Mas precisa fazer uma grande gestão e reduzir sua rejeição. As demais propostas engatinham.

O eleitor municipal promoveu outros interlocutores políticos ao nível de reconhecimento federal. É inegável o crescimento do presidente do DEM e prefeito de Salvador, ACM Neto. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), aumentará sua cotação se Eduardo Paes se eleger no Rio e, especialmente, se fizer seu sucessor.

Em meio às conquistas do MDB, sobressai-se o deputado Baleia Rossi. Segurou seu partido no centro, fugindo ao radicalismo do governo Bolsonaro, onde pontifica o volátil e bem-sucedido Centrão.

Guilherme Boulos (PSOL) se impõe como novidade e enigma. Alternativa de interlocução para o centro, papel que cabia apenas a Marcelo Freixo, Boulos se instalou, vença ou não o segundo turno, como protagonista essencial da política. A observar se conseguirá se manter na linha da moderação. Reconhecida, também, a capacidade de negociação do político Márcio França (PSB), que oferece a alternativa de costurar alianças do centro à esquerda. A ampla presença de São Paulo, Rio e Bahia na roda da articulação tornou mais surpreendente ainda a situação de Minas: uma vitória instigante da moderação, ainda fora do esquadro político por cansaço, indiferença, decepção ou abulia.


Merval Pereira: Contra a democracia

O presidente Bolsonaro entrou em um terreno perigoso ao insinuar, tendo como pretexto o atraso da apuração da eleição municipal pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que não temos um sistema confiável. “Temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas”, afirmou a seus seguidores na porta do Palácio da Alvorada. O presidente já havia feito uma afirmação irresponsável em março, denunciando que houvera fraude na eleição de 2018, que ele venceu, e prometeu apresentar as provas.

Agora, ele volta a insinuar irregularidades, e nem se lembra de mostrar as supostas provas que disse que tinha. Com a declaração do ministro Luis Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE, de que os ataques cibernéticos que teriam sido repelidos pelo sistema de segurança do tribunal teriam sido praticados pelos mesmos grupos que estão sendo investigados em inquéritos no Supremo sobre distribuição de fake news e manifestações antidemocráticas ao Congresso e ao próprio Supremo, ganha uma dimensão maior a insinuação do presidente Bolsonaro.

Ele estaria dando credibilidade aos boatos que foram espalhados pelas redes de seus apoiadores, com o intuito de desacreditar o sistema de apuração digital. Tal qual um Trump dos trópicos, Bolsonaro lança dúvidas e dá margem a que políticos como a deputada Bia Kicis possa dizer que a explicação para a derrota da extrema direita bolsonarista seria uma grande fraude eleitoral.

A Polícia Federal vai investigar os ataques sofridos pelos computadores do TSE, vindos de servidores da Nova Zelândia, que parecem estar orquestrados com grupos que atuaram também a partir de servidores nacionais. As duas investigações do Supremo estão interligadas e têm o mesmo relator, o ministro Alexandre de Moraes.

O mesmo que, ontem, mandou prender o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, que saiu do Rio sem autorização para fazer agitação em São Paulo e terá agora de cumprir a prisão domiciliar com uma tornozeleira.

Embora não fosse possível interferir nas urnas eletrônicas, pois elas não estão em rede, o ataque ao TSE poderia provocar uma demora maior do que o que ocorreu, o que, aí sim, e esse parece ter sido a intenção dos ataques, levaria a uma onda de boatos e fake news que poderia afetar a credibilidade da apuração.

O ministro Barroso insiste em que o atraso de menos de três horas não pode ser transformado em uma crise, muito menos lançar suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral. No oficio que enviou ao diretor-geral da Polícia Federal Rolando Alexandre de Souza, Barroso diz que “os incidentes relatados indicam possível ocorrência de crimes em face ao TSE”.

As investigações dos inquéritos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre ações ilegais de distribuição massiva de fake news através do WhatsApp nas eleições de 2018 até agora levam a apoiadores de Bolsonaro, e até mesmo a um “gabinete do ódio” que estaria instalado no Palácio do Planalto com o objetivo de articular ações nas redes sociais. É bom lembrar que esses inquéritos do Supremo estão investigando há mais de um ano esses grupos que usam as redes sociais para fazer militância política ilegal, e já têm identificadas diversas milícias digitais. A relação delas com a divulgação de fake news e com ações antidemocráticas contra o Congresso e o Supremo já está demonstrada, e o cruzamento dessas informações demonstra já uma atuação coordenada, assim como os primeiros ataques ao sistema de apuração do TSE também o foram.

Se o cruzamento de informações já existentes levar aos mesmos grupos, ou similares, no caso do ataque ao TSE, estará configurada uma grande conspiração contra a democracia brasileira, com o presidente Bolsonaro no centro.