Day: outubro 30, 2020

Reinaldo Azevedo: Memento mori', Guedes! Chamem Dedé

Decreto que punha UBSs no programa de privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó

Oba! Paulo Guedes viveu nesta quinta-feira (29) mais um “patético momento”, com o perdão de Cecília Meireles, em audiência pública no Congresso. Falou a verdade ou só promoveu guerrilha interna ao afirmar que o governo abriga um ministro financiado pela Febraban, a federação de bancos? É claro que se referia a Rogério Marinho.

Sendo verdade, é grave, e o lobista tem de ser demitido. Sendo mentira, demita-se o acusador. O chilique é apanágio de incompetentes. Temos um governo de destrambelhados. A desorientação da gestão de Jair Bolsonaro deixou o terreno do debate administrativo e virou pastelão.

O decreto que punha as Unidades Básicas de Saúde no escopo do programa de concessões e privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, em parceria com o Mussum de porre. Esqueceram de chamar Dedé e Zacarias. Teriam alguma reserva de bom senso: “Melhor não!”.

O texto era assinado por Bolsonaro e pelo próprio Guedes. O chefe não tem noção do que fala e faz. A única coisa que lhe interessa é a rinha política. Para tanto, é preciso manter a adesão de duas frentes: nas redes, a da súcia de sempre; no Congresso, a dos clientes de Luiz Eduardo Ramos, pagador de emendas.

Vai dar errado, antevê o general Rêgo Barros, ex-porta-voz, que adverte Bolsonaro: “Memento mori”. A tradução que circula por aí não é boa: “Lembre-se de que é mortal”, o que seria um convite à humildade. “Memento” é um imperativo no tempo futuro, que não sobreviveu nas línguas neolatinas. “Mori” é verbo no infinitivo.

Deve ser traduzido como predição e vaticínio: “Hás de te lembrar de que vais morrer”. Ou seja: o castigo virá para aquele que se deixa adular por “comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”.

Nesse ambiente nascem decretos que ninguém lê. Nem Guedes conhecia direito a estrovenga. A audiência deixou claro: a sugestão partiu da área de PPI (Programa de Parcerias de Investimento), dirigida pela secretária Martha Seillier, “uma pessoa competente, séria, trabalhadora”, segundo o ministro.

Foi enfático sobre Martha: “Não é uma das pessoas que eu trouxe de fora para privatizar o sistema, para atacar o sistema de saúde brasileiro. Zero”. Entendido. Privatizar bens públicos, segundo o ministro, corresponde a… atacá-los. Nem o PCO seria tão sucinto.

Nesta quinta, apanhou a Febraban. Caso discorde dele, será a Febraqueba (Federação Brasileira dos Querubins Barrocos) na quinta que vem. ​

Notem: essa conversa sobre as UBSs brotou do nada. O resto do governo foi pego de surpresa. É evidente que os valentes tentam se livrar de parte da carga da Saúde —e aí está o problema de fundo. Mas é preciso fazê-lo com método.

Foi tal o barulho que o texto teve de ser revogado. Ao se justificar, escreveu Bolsonaro nas redes: “Temos atualmente mais de 4.000 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) inacabadas. Faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal. O espírito do decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas obras, bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União”.

É mesmo? Se é assim, revogou por quê? Então mantenha o texto e compre a luta política, ora bolas! Acontece que, para tanto, é preciso que exista um diagnóstico de governo, o que, por sua vez, supõe a existência de um… governo.

Guedes aproveitou ainda a audiência pública para atacar o Governo de São Paulo, que já teria recebido muito dinheiro. Também deixou claro que não se fala sobre novo imposto. Não em período eleitoral ao menos. E se disse contrário à vacinação obrigatória: “Eu sou um liberal, acredito que a vacina é uma decisão voluntária de cada um. Se o sujeito preferir ficar trancado em casa seis anos, não ter contato com ninguém e não tomar a vacina, o problema é dele”.

Opa! Ninguém até agora havia pensado na possibilidade de confinar os recalcitrantes. Ainda bem que existe o ministro para iluminar o debate.

Dedé para a Economia. ”Memento mori”, Guedes!


Bruno Boghossian: Aliados de Lula e Ciro ainda duvidam de aliança para 2022

Apesar de armistício, petistas e pedetistas dizem que diferenças políticas permanecem

Um ano após a eleição presidencial, Ciro Gomes (PDT) deu uma entrevista em que chamou o comando do PT de “um bando de ladrão e mentiroso”. Meses depois, ele disse que Lula era o líder das “falcatruas” do partido. “Perdi o respeito por ele, completamente”, declarou.

Os dois se estranharam em público por um bom tempo, até que aceitaram se encontrar para uma longa conversa reservada, no início do mês passado. Ciro e Lula selaram um armistício, discutiram os movimentos da oposição ao governo Jair Bolsonaro e iniciaram uma reaproximação, como contou o jornal O Globo.

Os ataques cessaram desde então, mas os dois lados ainda estão céticos em relação à possibilidade de uma composição entre o ex-governador cearense e o ex-presidente. Segundo aliados de ambos, o encontro pode ter amenizado alguns desentendimentos, mas as diferenças políticas permanecem.

Um cacique do PT diz duvidar que as desavenças sejam zeradas a tempo de permitir uma aliança para a eleição de 2022. O próprio petista afirma que, ainda que o partido sinalize uma união, Ciro “não acredita” que a sigla vá apoiá-lo. Como o ex-governador também não tem motivos para abrir mão da disputa, é mais provável que os dois fiquem separados.

Do lado pedetista, o ceticismo é ainda maior. De acordo com um aliado, Ciro considera ter sido traído pelo PT na corrida de 2018 e acha que a legenda ainda trabalha para manter sua hegemonia na esquerda.

Depois da revelação do encontro, nenhum dos lados fez qualquer aceno. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que a aproximação depende de “um pedido público de desculpas” ao partido. Já Ciro fez propaganda do PDT nas eleições municipais e destacou suas chapas com outras siglas, ignorando o PT.

No ano passado, Ciro descartava uma aliança com os petistas e comparava a legenda ao escorpião que pica o sapo após pegar uma carona para atravessar o rio. “Não creio que seja provável. O PT tem a natureza do escorpião, como da fábula”, disse.


Ruy Castro: O futuro sem Bolsonaro

Mas e se o bolsonarismo já não precisar dele para existir?

Um dos pesadelos dos americanos é que, mesmo que Donald Trump seja derrotado na eleição de terça-feira e varrido de volta para a Idade Média, o trumpismo continue a existir nos EUA. Era uma inflamação que só esperava um furúnculo para estourar, e esse furúnculo foi Trump. Já o nosso pesadelo é que o mesmo possa acontecer aqui, quando Jair Bolsonaro for levado a responder por seus crimes contra as instituições, a democracia e a vida —que o bolsonarismo não dependa mais da existência do seu Führer.

Se pensarmos bem, ele já existia antes da candidatura de Bolsonaro à Presidência, da facada em Juiz de Fora e de sua vitória nas urnas. Claro que Lula foi decisivo para essa vitória, ao sabotar outras candidaturas para que Bolsonaro —“fácil de derrotar”— chegasse à final contra o PT. Lula subestimou a aversão ao lulismo, alimentada durante 13 anos pelos desmandos de seu partido. A prova dessa aversão é que, com toda a demência e bestialidade do governo Bolsonaro, o PT está à beira da extinção.

Um indício da sobrevivência do bolsonarismo sem Bolsonaro é que, para seus fanáticos, não importa que Bolsonaro minta, alie-se aos corruptos que fingia combater, proteja genocidas e incendiários ou troque o país por sua miserável reeleição —o que sobrar do país depois de seu primeiro mandato. O Exército, que ele desmoraliza aos olhos da nação, continua a apoiá-lo. Os empresários, cujos negócios são prejudicados pela imagem de pária do Brasil no exterior, não o abandonam. O Congresso, que ele já ameaçou fechar, fecha com ele. E, a depender dos juízes, os zeros não se sentarão no banco dos réus.

Tudo isso é bolsonarismo e, se tantas categorias se sujeitam a ser corrompidas por ele, é porque não é mais Bolsonaro que importa.

Bolsonaro, por incrível que pareça, às vezes nos dá saudade da ditadura. Imagine se, no futuro, o Brasil chegar a ter saudade dele.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Vinicius Torres Freire: Governo Bolsonaro faz molecagem enquanto país tenta sair da ruína

Parte da economia volta ao azul, mas está ameaçada por fofoca e inépcia gerencial

Há um Brasil que se recupera da calamidade econômica, no comércio e na construção civil, movido a auxílios emergenciais e juros baixos. Há estados em que o nível de emprego formal já é maior ou pelo menos igual ao do final do ano passado, caso de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Maranhão, Paraná e Santa Catarina tocados também pelos bons resultados do agronegócio.

Mas essa recuperação relevante está longe de segura. Um dos motivos é que há um outro país, aquele que se dedica à molecagem em redes sociais, caso de ministros de Jair Bolsonaro ocupados de criar crises com fofoca juvenil idiótica. O capitão, por sua vez, trabalha para sabotar até uma hipótese de melhoria nacional, a existência de uma vacina contra a Covid.

Um ministro principal, Paulo Guedes, entre outras incapacidades gerenciais, não consegue dizer se vai propor uma nova CPMF ou se o imposto está morto, isso durante uma algaravia em que chegou ao ponto desvairado de acusar bancos de financiar inimigos do teto de gastos, provocando nova crise intestina no governo. Sim, os bancos seriam inimigos do arrocho fiscal.

Ministros e os novos amigos de Bolsonaro, as cabeças do centrão, se ocupam de artimanhas para sentar nas cadeiras vazias ou novas da reforma ministerial que virá, se especula. Misturada nesse rolo está a disputa pelo comando da Câmara no ano que vem.

O país que se levanta da ruína deste ano de calamidade pode ser abatido por uma piora das condições financeiras: o dólar nas alturas e uma taxa de juros em alta no atacadão de dinheiro, que pode solapar investimentos ou coisa pior. A tensão é grande e pode explodir, com o recrudescimento da epidemia pelo mundo ou com decisões amalucadas ou incompetentes do que fazer com o Orçamento federal do ano que vem. Tais decisões foram adiadas por Bolsonaro e pela elite política para depois das eleições municipais, como se houvesse tempo para esperar até amanhã. Em parte, dependem de arranjos políticos, que por sua vez esperam o resultado de eleições, no Brasil e nos Estados Unidos.

Tais demoras e a longa duração da epidemia atrasam ainda mais a recuperação do setor de serviços, com faturamento 30% abaixo do que se via no ano passado. O Rio de Janeiro padece especialmente dessa ruína, sem contar a desordem política e administrativa local. É o estado mais atrasado na recuperação do emprego formal, por exemplo.

A confiança do consumidor e do comércio deu uma fraquejada em outubro, talvez um primeiro alerta de que a redução dos auxílios emergenciais deve diminuir também a velocidade da retomada. A ainda baixa circulação de pessoas em metrópoles como São Paulo indica que persistem o medo da doença e o distanciamento social por decisão voluntária de empresas, que há menos gente a andar pela cidade por falta de trabalho ou por causa das escolas ainda quase fechadas.

É fácil perceber que há tanto a fazer, no controle da epidemia e na apresentação de um projeto racional de saída da lama econômica, para nem mencionar que não se toca nem a rotina básica de governo. A cada dia, a uma fofoca se segue uma ideia demente ou inepta, que cai na Justiça, no Congresso ou por pressão de redes sociais.

É uma queixa ingênua, decerto. A desordem político-administrativa, fora o risco de golpeamento autoritário, era previsível e prevista desde 2018. A variação continua do desvario, nem tanto: boa parte do governo e do comando do país, em vários Poderes, agora se dedica a promover tumulto com mexerico e molecagem.


César Felício: O tempo no Amazonas começa a fechar

Política e pandemia estão entrelaçadas de modo absoluto

No Amazonas, a estação das chuvas está próxima. É bom se preparar para a tormenta. No café de um hotel em São Paulo, o governador amazonense Wilson Lima (PSC) puxa do celular e abre em sua tela diversos vídeos de WhatsApp que recebeu. Mostram cenas da campanha eleitoral deste ano tanto em Manaus quanto em cidades do interior.

Muita gente, muita música. Abraços, beijos, festa popular. Em pelo menos um dos vídeos não é possível distinguir uma pessoa sequer de máscara. No Amazonas, explica Lima, a política funciona assim: com contato físico e, obviamente, intensa troca de partículas microscópicas por aerossol.

Na capital, o decano das eleições amazonenses, Amazonino Maia (Podemos), com 80 anos, tenta voltar à prefeitura. Faz campanha sem circular, com reuniões remotas, presença digital. Seu jingle remete a isso: “O pai tá on”. Ele perde terreno nas pesquisas. Seus rivais mais próximos, Davi Almeida (Avante) e Ricardo Nicolau (PSD) fazem campanha de rua e se aproximam. Seguem a lógica do Estado.

A campanha eleitoral, adiada, engata com a virada da estação, em que síndromes de quadro respiratório proliferam. No Amazonas, comícios foram proibidos em apenas dois dos 62 municípios. No Amapá, a covid parou a campanha na capital.

A média de óbitos por dia em Manaus está em nove. Era cinco há algumas semanas, mas chegou a ser de 100 nos piores dias da pandemia. O indice de ocupação de leitos da UTI já alcança 86%. Precisamente só há hoje 51 vagas disponíveis para esta enfermidade. No Estado. O governador sabe que os casos vão aumentar e na segunda-feira começa o processo para colocar mais 42 leitos no sistema.

Lima diz que não considera provável, mas também não descarta de todo, a possibilidade de Manaus reviver em breve o cenário de maio, com hospitais alojando pacientes em contêineres e os cemitérios organizando filas para enterros coletivos.

O “lockdown”, segundo o governador, não é uma opção. Embora bastante alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, não usa argumentos ideológicos para combater a política de isolamento social. Para Lima, ela não é uma afronta a liberdade, como dizem os bolsonaristas xiitas. Ela é inútil, porque um decreto de fechamento do Estado não seria obedecido.

“Ninguém respeita. Ninguém respeita. Isso na França, na Espanha, na Alemanha, é muito bacana. Em Manaus, não funciona. Isso não é opinião, é constatação”, diz. Ressalve-se que o pensamento de Lima não é unanimidade no Amazonas. O entendimento do prefeito de Manaus, o tucano Arthur Virgílio, é outro, a favor do isolamento.

A proatividade do governador do Amazonas pode estar sendo afetada por dois fatores: um é sua sustentação política frágil. Ele foi alvo este ano de uma tentativa mal sucedida de impeachment, que deixou como saldo seu afastamento definitivo do presidente da Assembleia Legislativa.

Outro foi a rumorosa compra de respiradores com indícios de superfaturamento na intermediação do negócio por uma loja de vinhos. Lima tornou-se personagem da “Operação Sangria”, que já está na sua segunda fase, com direito a busca e apreensão de documentos e a um pedido de prisão, este negado pelo STJ. Sua situação não está resolvida. As investigações continuam na Procuradoria-Geral da República.

“A investigação está sob sigilo e eu estou tranquilo. Se houve superfaturamento, foi em uma relação entre privados. O Estado só estava preocupado em garantir o atendimento em um momento de escalada de preços e de falta do produto”, diz. Ainda assim, ele assegura ter trocado todo o pessoal da Secretaria da Saúde e instituído uma controladoria para auditar todas as compras relativas à pandemia.

Medida necessária, considerando que a secretária da Saúde foi presa em junho. O antecessor dela também foi parar na cadeia.

Sem ter muito o que fazer para deter a progressão da doença, ou pelo menos é nisso que ele acredita, que seu raio de ação é reduzido, o governador amazonense aguarda com ansiedade que a poeira baixe e a discussão sobre vacinação caminhe para uma direção técnica.

Lima receia um quadro em que a Anvisa avalize uma vacina de origem chinesa produzida em São Paulo, mas o governo federal não a coloque no plano nacional de imunização, como ameaça Bolsonaro. “Não faz sentido um Estado poder vacinar sua população e o outro não. Um Estado pobre não terá como comprar vacinas”, diz.

Para Lima, a discussão sobre vacinas está de cabeça para baixo. “Não temos que pensar se vacina é uma obrigação ou não. Temos que assegurar a vacinação como um direito. Isso não está assegurado”, alerta. Ele arrisca um palpite: “Eu não acredito que alguém da periferia de Manaus rejeite uma vacina porque ela vem da China. Isso não existe.”

São Paulo

A última pesquisa XP-Ipespe, divulgada pelo Valor, mostra que o primeiro turno da eleição paulistana pode ser decidido por dois candidatos de baixa competitividade: Jilmar Tatto (PT) e Arthur do Val, o “Mamãe Falei”, do Patriota. Os dois saíram do traço para o patamar dos 5%.

Ambos crescem de maneira assimétrica nas diversas faixas do eleitorado. A ascensão de Tatto complica a passagem de Guilherme Boulos para o segundo turno, porque se dá nos segmentos de menor renda. Na alta renda e na população com ensino superior, Boulos já lidera. São veios que parecem estar próximos do esgotamento. Para ultrapassar 20%, o candidato do Psol precisa da periferia.

O crescimento de “Mamãe Falei” acontece entre homens jovens. É um eleitorado que lastreou o começo do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas, na fase de pré-campanha presidencial. Em tese, seria um eleitor mais próximo do bolsonarismo. Se este candidato avançar, pode aprofundar o declínio de Russomanno.

Ainda que não vá para o segundo turno, uma votação acima de dois dígitos deixa Boulos muito maior do que entrou na disputa.


Claudia Safatle: Tempos de aflição

“Rombo” fiscal se arrasta desde os anos 1980, com breve período de exceção

O país vive um momento em que decisões na economia vão ter grande impacto nos próximos anos, de forma mais ou menos análoga ao que os ex-presidentes Geisel e Figueiredo viveram quando dos choques de preços do petróleo em que optou-se por pisar no acelerador ao invés de ajustar a economia àquela condição de grave restrição. Foram os 20 anos seguintes de elevadíssimas taxas de inflação, só domada após o Plano Real, em meados de 1994. Ao ouvir as alternativas que tinha à mão na ocasião, Geisel teria dito: “Mas logo na minha vez vocês querem brecar a economia?”.

O momento, agora, é o retrato de um desequilíbrio que está na cobertura da imprensa desde a crise da dívida externa nos anos de 1980, quando os jornalistas de economia começaram a escrever sobre o “rombo” nas finanças públicas. Para alguns, iniciava-se alí um aprendizado da importância da política fiscal para a estabilidade da economia.

Foi a partir de um acordo de socorro financeiro com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que preconizava austeridade nas contas do setor público como medida de controle da inflação, que tomou-se conhecimento das metodologias de cálculo do déficit e o assunto passou a ser parte da pauta de cobertura da imprensa de 1983 para cá.

O fato é que os governos não foram capazes de resolver, até hoje, as restrições fiscais que se arrastam, freiam o crescimento da economia e atrasam a vida de milhões de brasileiros. Houve períodos de enfrentamento, quando no segundo mandato o governo de Fernando Henrique Cardoso começou, em 1999, a política do tripé macroeconômico calcado no regime de metas para a inflação, câmbio flutuante e superávit primário nas contas públicas.

As primeiras iniciativas de abandono das metas fiscais começaram no segundo mandato de Lula, mas foi Dilma Rousseff que deu um basta nos superávits e inaugurou o tempo dos déficits públicos. Ficou famosa a definição da presidente de que “gasto [público] é vida.”

Na gestão de Michel Temer foi aprovada a PEC do Teto do Gasto, pela qual o aumento da despesa anual é limitado à correção pela inflação acumulada em 12 meses até meados do ano anterior. Foi uma forma, talvez dura demais, de lidar com uma expansão desmedida do gasto público nos últimos quarenta anos.

Quando Bolsonaro assumiu, parecia muito claro no discurso do ministro Paulo Guedes o entendimento da dimensão do problema. Mas o tempo mostrou que o presidente não comungava das convicções liberais do ministro da Economia nem tinha a compreensão das limitações que o “rombo” das contas públicas impunha aos seus eventuais planos de governo.

Bolsonaro nunca gostou das privatizações, não apoiou a reforma da Previdência, aceitou a reforma administrativa desde que vigorasse só para os novos entrantes no setor público e não concordou com a proposta de reestruturação dos programas assistenciais (tais como o abono salarial, seguro-defeso e vários outros) para financiar um projeto de renda básica. O Congresso, nesse aspecto, foi mais reformista.

O presidente, definitivamente, não lida bem com as restrições que lhe são colocadas pelo “buraco” das contas públicas. Mas não há muitas alternativas para ele a não ser a perda da confiança e da credibilidade na sustentação da trajetória da dívida pública como proporção do PIB. Dívida que era de 51,7% do PIB em 2010 e uma década depois já encosta em 100% do PIB. Os economistas do setor público e privado entendem que esse não é um patamar sustentável e o mercado reage mudando os preços dos ativos.

Dois sinais muito claros dos mercados nos últimos meses são: a inclinação da curva de juros que dá uma diferença grande, de cerca de 500 pontos-base, entre as taxas de longo prazo e as de curto prazo; e a desvalorização de 40% do real frente ao dólar americano.

“A trajetória da dívida começa a estar sob os holofotes”, diz uma fonte que opera no mercado desde os anos 1970. “A questão fiscal não está equacionada e a aparente guinada de Bolsonaro para acordos políticos torna inverossímil a possibilidade de um ajuste”, avalia.

Sem a pandemia da covid-19, a história seria diferente?, indaga ele, que responde: “Marginalmente, seria diferente porque os agentes entenderam a pandemia como um evento ‘once for all’ do ponto de vista fiscal. Foi preciso gastar R$ 900 bilhões e não dá para chamar isso de irresponsabilidade fiscal”, diz a fonte.

A pandemia, porém, empurrou o endividamento para a casa dos 100% do PIB.

Isso não seria um enorme problema se fosse possível manter a taxa de juros baixa.

Mas a inclinação da curva está dizendo que a taxa de juros de curto prazo, a Selic de 2% ao ano, está fora de lugar.

Uma enorme diferença entre agora e os anos da década perdida de 1980 é a taxa de câmbio flutuante que somada às reservas cambiais dá um conforto na área externa e afasta o risco de uma crise cambial. De positivo, atualmente, o país tem juros baixos (condicionado à responsabilidade fiscal) e taxa de câmbio desvalorizada.

Em artigo publicado na “Folha de S.Paulo” do fim de semana, Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, sugeriu um roteiro de mudanças possíveis com o retorno à meta de primário como âncora fiscal, já que o teto do gasto levaria cinco anos para colocar o país em uma situação de equilíbrio das contas públicas. Arminio não acredita que o país tenha todo esse tempo. Ele propõe uma pequena folga para o teto e um ajuste de seis pontos percentuais do PIB nos próximos quatro anos, pelo qual o déficit primário de 3% do PIB de 2019 se converta em superávit de 3% do PIB em 2024.

“Não quero acabar com o teto, mas dar uma pequena folga de 1% além da inflação porque no curto prazo dá um espaço de manobra e, no longo prazo, eu prefiro ter um governo em condições de investir na redução das desigualdades”, explica ele.

Outro ex-presidente do BC, Affonso Celso Pastore, em artigo publicado no “Estadão”, alerta para o risco de o Banco Central ser forçado a tomar medidas de repressão ao livre movimento de capitais para evitar uma eventual sangria nas reservas.

Tal situação decorreria da dominância fiscal - da qual a dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação - que leva à inflação e à repressão financeira, com todas as distorções que ela produz.

O tempo corre, o ambiente se deteriora e o governo espera passar as eleições para tomar uma atitude.


Míriam Leitão: Não é a economia, Donald Trump

O presidente Trump surfou ontem no número do PIB do terceiro trimestre. Já se esperava. A alta de 7,4%, ou 33% anualizados, na métrica confusa que eles usam, não recuperou a queda do ano. O segundo trimestre afundou 31,7%, ou 9% na comparação com o primeiro, que já havia caído 1,26%. Trump não tem programa econômico para o segundo mandato e passou a campanha distorcendo os dados do desempenho do seu governo. O balanço dos números mostra que ele pegou o país crescendo e manteve, mas disse que criou a prosperidade que herdou. Estimulou o curto prazo e aumentou os riscos de longo prazo. Prometeu reviver a indústria e não conseguiu, apesar do protecionismo.

A “Economist” publicou uma análise sobre o que chamou de “afirmações econômicas extraterrestres” de Trump. Segundo a revista, Casey Mulligan, que foi economista-chefe do Conselho Econômico de Trump, contou que o presidente exagera de propósito quando diz coisas como ter tido o melhor desempenho da história econômica do mundo. A estratégia é: ele mente, a imprensa vai corrigi-lo e, ao fazer isso, acaba disseminando a mentira que ele disse, segundo o economista que trabalhou com ele.

A verdade é que mesmo com a recuperação forte anunciada ontem para o terceiro trimestre o FMI prevê uma recessão de 4,2% para o país, um déficit primário de 18% e uma dívida que vai subir de 108% para 131% do PIB.

Ao fechar a economia com tantas tarifas e cotas, Trump foi o oposto de outro presidente republicano, Ronald Reagan, autor da virada liberal dos EUA. Essa foi uma das contradições de sua gestão. A outra é que ele prometeu reviver os anos dourados da indústria convencional. Impossível. O processo produtivo global já mudou muito nas últimas décadas.

A derrubada do desemprego na economia americana aconteceu no governo Obama, que herdou a crise financeira de setembro de 2008, nos últimos meses da administração Bush. Em uma longa recuperação que tomou os seus dois mandatos, a taxa desabou de 9,2%, em 2009, para 4,2%, em 2016. Trump entrou em 2017 e a reduziu para 3,8% em 2019. A melhor notícia do seu período foi a alta dos salários, com a demanda por mão de obra. Esse processo foi interrompido pela crise econômica da pandemia, e o desemprego deve fechar o ano em 9%. O “Financial Times” diz que há pelo menos 10,7 milhões de desempregados a mais no país.

De acordo com analistas do “New York Times”, Trump merece algum crédito no desempenho americano dos últimos quatro anos. Não pela redução de impostos que beneficiou apenas os mais ricos, mas por ter escolhido Jerome Powell presidente do Fed.

Seu forte corte de impostos aumentou o déficit primário, que subiu de 2,4% em 2016 para 4,1% em 2019. Trump também merece as críticas que recebe porque suas decisões durante a pandemia agravaram a crise. O desmonte da legislação de proteção climática e ambiental elevou os riscos futuros. Segundo o “NYT”, há um ano Joe Biden havia alertado que o país não estava preparado para uma pandemia, em parte porque Trump desfez as decisões do ex-presidente Obama.

A briga com a China foi feita para Trump manipular o sentimento do “inimigo externo”, o que sempre mobiliza o americano médio. Há uma grande simbiose entre as duas economias. Produtos chineses têm insumos americanos e vice-versa. A política de Trump fere a própria economia dos EUA.

Mas isso são os fatos, e Trump pode dizer: para que eles servem se eu posso criar os fatos alternativos? A dificuldade de analisar esse período de quatro anos do mandato Trump é que a separação entre o que aconteceu e a sua abundante produção de mentiras leva uma vida.

Os números, contudo, mostram que ele pegou a economia muito melhor do que o seu antecessor e encerra o mandato com ela muito mais endividada e deficitária. Isso já era verdade mesmo antes da pandemia.

Mas a mais importante conclusão sobre o governo Trump não tem que ver com percentuais de déficit, PIB ou mesmo desemprego, mas sim com o mal que ele fez ao estágio civilizatório do mundo. Ele saiu do Acordo de Paris, hostilizou os organismos multilaterais, estimulou o conflito interno, trouxe de volta fantasmas dos quais o mundo pensava já ter se livrado, como os grupos de defesa da supremacia racial, normalizou atitudes repulsivas. Trump exportou ao mundo seu extremismo e sua intolerância. Não é um indicador econômico que está em questão nesta eleição. É a humanidade.


Ricardo Noblat: Bolsonaro usa guaraná cor-de-rosa para ofender gays e maranhenses

Homofobia na veia

Guaraná Jesus está para os maranhenses assim como pizza está para os paulistas, Biscoito Globo para os cariocas quando dá praia, bolo de rolo para os pernambucanos, acarajé para os baianos todo santo dia e churrasco para os gaúchos nos fins de semana.

Mas como Bolsonaro tem por hábito atacar seus desafetos, valeu-se do guaraná nas poucas horas que passou, ontem, em território “inimigo” para ofender ao mesmo tempo os maranhenses, os homossexuais e o governador Flávio Dino (PC do B).

Foi sua primeira visita oficial ao Maranhão e ele fez questão de torná-la inesquecível. Desembarcou em São Luís sem máscara e indiferente às medidas de prevenção ao novo coronavírus. Inaugurou um trecho da rodovia BR-135.

E antes de voar para Imperatriz, a segunda maior cidade do Estado, tomou um copo do Guaraná Jesus e debochou da sua cor. Enquanto sua equipe fazia uma transmissão ao vivo nas redes sociais, comentou com o dono de um bar que o recepcionava:

– Agora eu virei boiola. Igual maranhense, é isso? Guaraná cor-de-rosa do Maranhão aí, quem toma esse guaraná aqui vira maranhense. Guaraná cor-de-rosa. Fod…, fod…

Boiola, segundo os dicionários, é homem homossexual, indivíduo fraco ou medroso. Homofobia é uma série de atitudes e sentimentos negativos em relação a pessoas homossexuais. O comentário reforça a acusação de que Bolsonaro é homofóbico.

Não foi a primeira vez que ele se revelou assim. Em 2011, quando perguntado se receberia de bom grado o voto de um eleitor homossexual, respondeu:

– O voto é muito bem-vindo, e tão votando num macho, eles não querem votar em boiola, é que boiola não atende os sonhos deles, tão votando num macho.

Sobre a orientação sexual dos filhos foi taxativo:

– Eu não tenho qualquer informação que um filho meu tenha um comportamento homossexual com quem quer que seja, até porque tudo o que esses bichas têm para oferecer, as mulheres têm e é melhor.

Em 2013, declarou que preferia um “filho viciado a um filho gay”. Em 2014, que a maioria dos gays foi influenciada por “amizade e consumo de drogas”. Em julho último, repetiu que jamais iria a uma parada gay porque acredita em Deus e “nos bons costumes”.

Bolsonaro só deixou o Maranhão após afirmar que o Estado é o mais atrasado do país porque seu governador é comunista. À noite, em sua live semanal no Facebook, desculpou-se:

– Estava conversando com um cara: ‘Pô, o guaraná é cor-de-rosa aqui’. Falei uns troços lá, alguém pegou, divulgou, não sei o quê, como se eu tivesse ofendendo aí quem quer que seja no Maranhão. Muito pelo contrário. […] Agora, a maldade está aí.

Planeja-se em São Luís uma manifestação em desagravo aos maranhenses e ao Guaraná Jesus.

Governo volta a lavar roupa suja em plena luz do dia

Bonde fora dos trilhos

Não é à falta do que fazer que ministros de Bolsonaro entram em choque. É porque o mau exemplo que vem de cima os contamina. Se você tem um chefe que briga por tudo e por qualquer coisa, e depois dá o dito pelo não dito, por que não copiá-lo?

Há três dias, Bolsonaro recomendou aos seus ministros que não lavem roupa suja em público. O ministro do Meio Ambiente havia chamado o general ministro da Secretaria do Governo de Maria Fofoca. Uma humilhação para quem usa farda.

A recomendação foi para o lixo menos de 72 horas depois. Embora sem citá-lo, o ministro da Economia voltou a criticar seu colega do Desenvolvimento Regional, e se não bastasse, atacou a Federação Brasileira de Bancos, um reduto do lobby, segundo ele.

Paulo Guedes fala muito e com frequência diz besteiras. Lembra alguém? O ministro alvo dos seus vitupérios viajou ao Maranhão com Bolsonaro e foi publicamente elogiado por ele. O ministro do Meio Ambiente preferiu viajar em outra direção.

Do paraíso de Fernando de Noronha, mandou dizer que invadiram sua conta no Twitter e que ele nada teve a ver com a mensagem ali postada sobre a má forma física de Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Maia, de fato, está acima do peso ideal.

Mas isso uma pessoa educada não fala a respeito de outra. Salles é tudo, menos uma pessoa educada. E, estimulado pelos filhos do presidente, bate em quem eles querem bater. A conta de Salles no Twitter foi cancelada. Ignora-se se pelo Twitter ou por ele.

Maia não respondeu a Salles. Estava ocupado em rebater insinuações malévolas feitas sobre ele pelo presidente do Banco Central, que as negou, e Maia deu-se por satisfeito. O que não tem conserto é a relação de Bolsonaro com João Doria.

Outra vez por causa da vacina chinesa, Bolsonaro voltou a atacar o governador paulista que respondeu com gosto em cima da bucha. E assim segue o Bonde do Planalto, sem rumo certo, desgovernado e fora dos trilhos. Os próximos dois anos prometem.


Bernardo Mello Franco: Os generais devem uma autocrítica

O general Rêgo Barros era um alegre propagandista do presidente Jair Bolsonaro. Agora se juntou à tropa dos desiludidos com o capitão.

Em artigo no “Correio Braziliense”, ele criticou um certo líder seduzido por “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. “Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste”, escreveu. O general não precisou citar nomes. Seu alvo era Bolsonaro, de quem foi porta-voz.

Rêgo Barros fracassou na tentativa de estabelecer alguma civilidade no trato do governo com a imprensa. Foi sabotado pelo próprio chefe, que o desautorizava diariamente na portaria do Alvorada. Demitido em agosto, ele reforçou o clube dos militares amargurados. O patrono da turma é o ex-ministro Santos Cruz, derrubado pela artilharia dos filhos do presidente.

Varrido do Exército por indisciplina, Bolsonaro parece ter prazer em humilhar oficiais superiores. Na semana passada, ele expôs o general Eduardo Pazuello a uma desmoralização pública. Depois permitiu que um ministro civil chamasse o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e “Banana de Pijama”.

Em seu artigo, Rêgo Barros traçou o destino dos militares que não se curvam ao capitão: “Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas”. O general também criticou aqueles que, pela sobrevivência, optam por uma “confortável mudez”. Só faltou explicar por que ele passou um ano e oito meses no pelotão dos mudos.

Além de silenciar diante de abusos, o ex-porta-voz protagonizou momentos de bajulação explícita. “Em qual cidade nosso presidente chega e não é ovacionado?”, questionou certa vez, ao divulgar uma viagem do chefe.

Os oficiais pendurados no governo não foram vítimas de sequestro. Alistaram-se voluntariamente no projeto de Bolsonaro, em busca de um atalho para voltarem ao poder. Alguns se julgavam capazes de tutelar o presidente extremista. Outros só pensavam em engordar os contracheques.

Hoje muitos generais querem subscrever as queixas de Rêgo Barros. Antes disso, deveriam fazer uma autocrítica. Eles sempre souberam quem era o capitão.


Merval Pereira: A esquerda desunida

A propalada reunião entre o ex-presidente Lula e o líder do PDT Ciro Gomes, depois de trocas de acusações que se intensificaram a partir de 2018, quando Ciro disputou a eleição presidencial e não foi para o segundo turno, superado pelo candidato petista Fernando Haddad, poderia ser uma boa notícia para a esquerda brasileira caso não tivesse sido atropelada por ninguém menos que a presidente do PT, Gleisi Hoffman. Que não tem luz própria, e não faria isso sem o consentimento de Lula.

Gleisi disse que qualquer acordo depende de um pedido público de desculpas de Ciro a Lula, e ao partido que dirige. O que parecia um encaminhamento de acerto com vistas a uma candidatura de esquerda que pudesse fazer frente ao presidente Bolsonaro, acabou sendo mais do mesmo, com o PT querendo se impor como protagonista da esquerda, o que impediu uma união em 2018.

Naquela ocasião, o ex-presidente Lula insistiu na sua candidatura, mesmo estando impedido pela Lei da Ficha Limpa por ter sido condenado em segunda instância, e se recusou a fazer um acordo com Ciro, que era o candidato da esquerda mais bem posicionado. A suposta traição política do ex-presidente Lula a Ciro Gomes na campanha presidencial de 2018, que o pedetista sempre denunciou, transformou-se recentemente em uma disputa de narrativas que não chegou a lugar nenhum.

Ciro Gomes jantou com Haddad, a convite deste, na casa de Gabriel Chalita, que havia sido secretário de educação na gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo. Nesse encontro, como já relatado aqui anteriormente, Ciro conta que partiu de Haddad a proposta para que fizessem uma chapa comum. Esclarecendo que não estava falando em nome do Lula, mas de modo próprio, Haddad perguntou a Ciro o que achava de uma chapa em que o PT indicasse o vice.

Dias depois, partiu do economista Bresser Pereira a proposta para que Ciro se encontrasse com Delfim Netto, “uma pessoa que o Lula ouvia muito”. No escritório do Delfim, para minha surpresa, disse Ciro, em vez de entrarmos no programa de governo, a conversa foi direto para a política. Delfim perguntou se eu estava disponível, lembraram que o Fernando Henrique havia escrito um livro (“Crise e reinvenção da política no Brasil”) defendendo uma frente progressista ampla de centro-esquerda, que nós estávamos falando a mesma coisa.

No relato de Ciro, o ex-ministro Delfim Netto lançou na mesa “o nome do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa para ser o vice, e eu disse que o Haddad estava pronto para ser o meu vice”. Haddad confirmou, disse que queria ajudar, e que poderia formar a chapa comigo.

O ex-prefeito de São Paulo negou enfaticamente no dia seguinte, e manteve-se como vice de uma hipotética chapa com Lula para presidente. Durante a campanha presidencial, num debate do primeiro turno, Haddad chegou a dizer que fora Ciro quem o convidara para ser seu vice, no que chamou de chapa “dream team”, como teria classificado na época.

Para confirmar sua versão, Ciro conta que houve um momento em que a ex-presidente Dilma Rousseff levou a Mangabeira Unger e a Cid, seu irmão, uma proposta de Lula “para que eu ficasse no lugar do Haddad como vice dele. Não tiveram coragem de oferecer diretamente a mim, porque sabiam que não aceitaria. Seria um presidente anão, que não teria autoridade para fazer nada”.

O ex-prefeito Fernando Haddad confirma os encontros e as conversas, mas diz que houve um mal entendido por parte de Ciro, e que elas eram apenas prospectivas, sem compromissos a serem “traídos”. Como se vê, Ciro Gomes e Lula estão certos em selar a paz, porque a esquerda precisa se unir em torno de temas, e não ficar se digladiando. Sem a união do centro nem da esquerda, o caminho fica facilitado para a direita, que tem em Bolsonaro um candidato forte até o momento.

Mas, diante da reação corporativa de Gleisi Hoffman, tudo indica que a eventual aliança não resultará, pois não acredito que Lula imagine o PT sendo vice de Ciro Gomes. Não é uma tradição do partido aceitar esse tipo de cooperação. O grande erro de Lula em 2018 foi não ter apoiado Ciro, talvez viabilizando uma aliança de centro-esquerda. Mas o PT não dá sombra pra ninguém, Lula não permite que nenhuma liderança cresça do lado dele.

A única chance de haver entendimento para 2022 é Lula continuar inelegível e o PT resolver apoiar Ciro. Chance remotíssima.


Eliane Cantanhêde: Zorra total

Sem comando e sem rumo, Brasília virou lamentável circo de ‘Marias Fofocas’ e ‘Nhonhos’

O mundo está em polvorosa, os mercados estressados, os investidores arredios, as pessoas perdidas, mas Brasília vive em outro planeta, andando em círculos, movida por intrigas e tititi. Sem comando, cada um fala e age como bem entende, todos batem cabeça e tudo parou. Num presidencialismo forte como o brasileiro, significa balbúrdia e paralisia não só no Executivo, mas também no Legislativo.

Sem rumo e apoio, o ministro Paulo Guedes perdeu as estribeiras e, de uma tacada, atingiu a Febraban, o governo de São Paulo, o Congresso e o ministro do Desenvolvimento. Clara demonstração de desespero, com Bolsas e dólar sacolejando e nenhuma resposta do governo (além da intervenção do BC no câmbio, o bê-á-bá). E o desespero só aumenta, depois de o presidente Jair Bolsonaro, em campanha em Marte, ops!, em Imperatriz (MA), prestar solidariedade ao… ministro do Desenvolvimento.

Nesse enredo e na falta de eleições municipais em Brasília, Ricardo Salles é forte candidato a novo Weintraub, distribuindo bordoadas a torto e a direito, com aval de Bolsonaro. O ministro convive com a maior queimada do Pantanal na história, um pedido de afastamento do cargo na Justiça e uma derrota no STF: a ministra Rosa Weber suspendeu ontem a “boiada” do Conselho do Meio Ambiente contra restingas e manguezais. Mas ele tem costas quentes.

Já chamou o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e, com a confusão criada, pediu modestas desculpas “pelo exagero”. Ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que o acusou de “querer destruir o governo”, destinou um irônico “Nhonho” do Chaves. Depois, alegou que tinham invadido seu Twitter e, por fim, apagou a conta na rede.

O próprio Maia, que também anda com os nervos à flor da pele depois da covid e prestes a deixar a presidência da Câmara, vive aos tapas e beijos com Paulo Guedes e ontem bateu de frente com Roberto Campos Neto, do BC. Pelo Twitter (ora, se não…), o acusou de ter vazado uma conversa entre eles, o que “não está à altura de um presidente de Banco Central de um país sério”. Como Salles, também votou atrás, mas a cicatriz fica.

Na “conversa particular” entre os dois, Maia e Campos Neto manifestaram preocupação com a agitação no mercado e a falta de reação de Brasília, quando Maia tascou: a culpa é da base do governo – ou seja, do Centrão –, que não se entende sobre orçamento, PEC emergencial, novo Bolsa Família, lei cambial…

Assim, todos se acusam, todos têm razão e ninguém tem razão. O governo está catatônico, com Bolsonaro em sua realidade paralela e Guedes abandonado, atirando a ermo. O Congresso está imobilizado por disputas de poder na Câmara e a obsessão de Davi Alcolumbre em se reeleger no Senado. E, assim, o ano vai chegando ao fim. Reformas? Privatizações? O pós-ajuda emergencial? Que nada!

Nesse vazio de homens e ideias, Bolsonaro desliza entre um recuo e outro. O último, até a conclusão desta edição, foi sobre remodelação do SUS, o que poderia até fazer sentido, mas foi lançada na hora errada, pelas pessoas erradas. Um decreto sobre o SUS sem assinatura do ministro da Saúde?! Ok, o general Eduardo Pazuello não manda nada, mas mantenhamos ao menos as aparências, senhores! E como lançar a ideia sem negociar com Congresso, entidades de saúde e sociedade, quando a estrela na pandemia é justamente o SUS, o nosso SUS?

Assim, o coronavírus ressurge na Europa e continua contaminando e tirando a vida de pessoas e empresas no Brasil, com um rastro de dor, tristeza, sequelas, fosso fiscal, desemprego e crise social. E quem deveria se unir para combatê-lo e recuperar a economia está atolado nas picuinhas dos muitos “Nhonhos” dignos do seriado Chaves. É para rir ou para chorar

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Maria Cristina Fernandes: Como os milicianos tomaram a República

Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro

Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.

O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.

O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.

Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.

O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.

Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.

A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.

Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da República.

Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.

Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.

As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.

Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.

A explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas - provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de transportes.

A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.

A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.

A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso, Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a cidade. Ambos negaram as imputações à revista.

O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia Federal.

A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.

Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.

A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.