Day: outubro 22, 2020

Biblioteca Salomão Malina transmite batalhas de poesias do Slam-Déf

Novas edições vão escolher segundo finalista, que vai competir com Mano Dablio na disputa pelo prêmio do ano

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Poetas e poetisas do Distrito Federal podem se inscrever, até dia 19 de outubro, por meio de formulário na internet, para participarem das próximas edições online da batalha de poesias do Slam-DéF. A primeira delas será realizada no próximo dia 22, com transmissão ao vivo pela página da Biblioteca Salomão Malina no Facebook.

Clique aqui e preencha o formulário de inscrição

Serão disponibilizadas 15 vagas. A FAP (Fundação Astrojildo Pereira), mantenedora da biblioteca, realiza a retransmissão dos eventos online em seu site e em sua página no Facebook. Interessados podem solicitar mais informações por meio do whatsapp oficial da Biblioteca Salomão Malina (61 984015561).

Confira o vídeo!



A retomada das competições tem como objetivo criar um novo ranking de pontuações para a disputa do prêmio da etapa final, que será realizada em dezembro. O vencedor dessas próximas edições vai competir com o poeta Mano Dablio, ganhador da última batalha de poesias, realizada no mês de setembro.

Assim como nas edições presenciais, que eram realizadas até o início da pandemia da covid-19, a competição contará com a participação de jurados voluntários, convidados pelo coordenador e produtor do Slam DéF, Will Júnio.  Eles também participarão virtualmente para votar nas melhoras performances poéticas dos inscritos. 

O slam nasceu em Chicago, Estados Unidos, nos anos 1980. Chegou ao Brasil duas décadas depois. No Distrito Federal, começou em 2015, com o Slam-DéF, que também atua no Entorno. O grupo integra diversas pessoas de qualquer idade, cor, raça, etnia e orientação sexual.

Veja vídeos de batalha de poesias do Slam-DéF:

Biblioteca Salomão Malina transmite final da batalha de poesias Slam-DéF

Apoiado pela Biblioteca Salomão Malina, Slam-DéF realiza eliminatórias em agosto

Mulheres da periferia discutem sociedade sexista em live da Biblioteca Salomão Malina


Ricardo Noblat: Mais uma bravata de quem não governa o país, só é candidato

Veto de mentirinha à vacina chinesa

Boa notícia: o presidente Bolsonaro passou a acreditar na Ciência. Se até outro dia recomendava o uso da cloroquina para os infectados pela Covid-19, agora diz que a vacina chinesa contra o mal não será aplicada porque carece de aprovação científica.

Ou ele fala sério ou dança em cima dos cadáveres de 156 mil brasileiros vítimas do vírus até aqui. Como Bolsonaro é um homem honrado, deve falar sério porque jamais trairia os que o elegeram e poderão reelegê-lo daqui a dois anos.

A situação é tão ruim para os que gostariam de vê-lo derrotado que a oposição comemora a aprovação pelo Senado do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo presidente, e sai em socorro do ministro da Saúde, ameaçado pelo presidente.

A oposição sente saudade dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, forçados por Bolsonaro a desembarcarem do governo. E a essa altura, seria capaz até de votar para presidente no general Santos Cruz, escorraçado do governo pelos três zeros.

Que falta faz Gustavo Bebianno, um dos mais fanáticos adoradores de Bolsonaro, o primeiro ministro a ser demitido por ele. Desgostoso, morreu. Se pelo menos fosse possível resgatar o conteúdo do seu celular desaparecido, lamenta a oposição…

Bolsonaro autorizou o general Eduardo Pazuello a anunciar, como ele fez anteontem, que “a vacina do Butantan será a vacina brasileira. Com isso, o registro vem pela Anvisa e não pela Anvisa chinesa. E isso nos dá mais segurança e margem de manobra”.

Mas ontem cedo, como costuma fazer diariamente, ao entrar nas redes sociais para avaliar o humor dos seus seguidores, deparou-se com a reação negativa deles à vacina chinesa. Então disse que também se sentia traído e que a vacina não será comprada.

O que se passou ao longo do dia foi o de sempre: alguns assessores presidenciais queriam ver Pazuello ardendo em praça pública, a maioria tentando apagar o fogo. À noite, mais calmo, Bolsonaro ditou sua mais recente posição em entrevista à CNN:

– O ministro Pazuello não vai sair do governo. O que aconteceu foi um mal-entendido, mas isso não vai envenenar o nosso ambiente. Pazuello é meu amigo particular e ele é um dos melhores ministros da Saúde que o Brasil já teve.

Reafirmou, é claro, que a decisão de não comprar a vacina chinesa é “definitiva porque não há vacina pronta.” Deixou aberta a porta para comprá-la quando estiver pronta e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária der seu ok. Nenhuma vacina está pronta.

Mais uma fanfarronice de um presidente que não governa e que só é candidato a desgovernar o país por mais quatro anos.


Zeina Latif: Sem meias palavras

A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem

Faz parte da nossa cultura buscar sempre um lado positivo em tudo. Temos baixa tolerância a más notícias. Não é incomum os noticiários na televisão terminarem a edição com algum assunto ameno, provavelmente para não perder audiência.

É possível que esse traço cultural atrapalhe o enfrentamento de problemas. Ao negá-los ou atenuá-los, a busca por soluções tende a ser protelada. A reforma da Previdência saiu porque paramos de dourar a pílula.

O momento atual pede o enfrentamento da dura realidade fiscal, que se agravou. A recomendação de muitos de fazer tudo que fosse possível na pandemia, sem se preocupar com a qualidade e calibragem dos gastos, foi imprudente. Gastamos muito em comparação aos emergentes e não tão bem, como já discutido em outro artigo.

A PEC do orçamento de guerra poderia ter incluído a possibilidade de redução de jornada e vencimentos do funcionalismo, que tem estabilidade. De acordo com o IBGE, foi o grupo que mais reduziu as horas trabalhadas na pandemia. Em julho e agosto, elas foram em média 75% do habitual, ante 85% no setor privado e 81% nos informais.

Foram transferidos em torno de R$125 bilhões aos Estados, entre recursos diretos e suspensão de dívidas. No entanto, as contrapartidas exigidas foram tímidas. O congelamento de salários do funcionalismo por um ano e meio é muito pouco, até porque muitos Estados já haviam feito reajustes este ano.

A pandemia anestesiou os problemas nas finanças dos Estados, pois os pagamentos de serviço da dívida à União foram suspensos, o auxílio emergencial puxou a volta da arrecadação (+5,5% em setembro na variação anual) e a transferência de recursos da União ajudou a honrar a folha. Os problemas voltam todos em 2021.

Não por outra razão, a Câmara está propondo um novo projeto de socorro a Estados e municípios. Será crucial inserir boas contrapartidas e garantir sua manutenção, diferentemente do que ocorreu no acordo de 2016, quando a maioria foi derrubada no Congresso, como a suspensão de ajustes salariais e a redução de incentivos tributários (representam em média 17% da receita do ICMS). Ficou apenas o estabelecimento de uma regra do teto por dois anos, sem que instrumentos para seu cumprimento fossem previstos. O teto não foi atendido por 11 Estados e outros 9 não assinaram o aditivo. Para inglês ver?

As regras atuais que regem os orçamentos estaduais dificultam e até inviabilizam o cumprimento do teto, como aponta Cristiane Alkmin, pois geram crescimento automático das despesas obrigatórias. É o caso dos gastos com a folha de ativos e inativos, as vinculações de gastos de saúde e educação à receita corrente líquida (e não à variação do IPCA, que corrige o teto) e o piso do magistério (204% de ajuste desde 2009 ante uma inflação de 83%).

As contrapartidas são essenciais, portanto, inclusive para fortalecer politicamente o ajuste fiscal de governadores. Caso contrário, não sairemos da armadilha de frequentemente renegociar as dívidas de Estados.

A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem, como os crescentes precatórios, que afetam as 3 esferas de governo.

A reação dos mercados ao risco fiscal em alta – só não é maior por conta do teto de gastos – é didática para alertar a classe política. Ajuda a conter retrocessos e equívocos, como na proposta de adiar o pagamento de precatórios para financiar o Renda Cidadã.

Porém, não se pode depender do mau humor dos mercados para avançar com a agenda fiscal. Os investidores não costumam mapear bem os riscos. Tanto é assim que se encantaram com as promessas liberais de campanha. Muitas vezes, as reviravoltas no mercado acabam ocorrendo quando o quadro já é muito grave, como em 2015. Além disso, a pressão dos mercados não faz milagre quando não há plano estruturado a entregar.

Quando o Executivo está desarticulado, prevalecem os interesses difusos do Congresso. O primeiro antídoto contra isso é não negar os problemas.

*Consultora e doutora em economia pela USP


José Serra: Frear a deterioração educacional

Já não há espaço para remédios improvisados, são necessárias medidas inovadoras e corajosas

A pandemia tem aumentado o esgarçamento da educação no Brasil, tanto pública quanto privada, mas também vem ampliando a oportunidade para uma agenda social com políticas educacionais inovadoras. Com a paralisação parcial da atividade econômica, milhares de jovens perderam o emprego e a renda para bancar os estudos. Muitos estabelecimentos de ensino paralisaram as aulas presenciais para evitar a proliferação do vírus, o que afetou, sobretudo no ensino público, estudantes das famílias de baixa renda.

A situação da educação no Brasil é tão grave quanto desigual. No ensino infantil faltam creches para 86% das crianças mais pobres. Já entre os 20% de famílias com renda mais alta no País, a falta de creches atinge apenas 6,9% das crianças entre 0 e 3 anos.

Os números que retratam o ensino médio são igualmente alarmantes: nossa taxa de conclusão do ensino médio antes de completar 25 anos é de apenas 58%. Comparando com taxas de conclusão de 86,1% no Chile e 79,1% nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o quadro é dramático. Quanto à metade dos estudantes que conclui o ensino médio, segundo dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), cerca de 70% apresentam resultados considerados insuficientes em Matemática e Português, requisitos hoje mínimos para sua empregabilidade, mesmo em funções modestas.

A formação educacional superior também vai mal, principalmente no ensino tecnológico. As universidades e escolas superiores privadas, que representam cerca de 75% a 80% das matrículas, enfrentam perdas consideráveis, tanto em evasão quanto em inadimplência. Com base em amostra nacional, a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) estima que em julho deste ano apenas 14% da amostra pretendia continuar matriculada no segundo semestre, ante 40% que só retomariam em 2021 e outros 38% apenas quando a situação se normalizasse. Perguntados sobre o que mais estava afetando sua decisão, 80% apontaram perda de renda da família ou do emprego.

O primeiro passo para enfrentar esse quadro é encarar o problema como um desafio federativo. A responsabilidade pela educação é compartilhada pelos três níveis de governo.

O governo federal é o principal responsável pelo financiamento do ensino superior público, sendo uma pequena parcela das despesas destinada à assistência financeira a alunos de instituições privadas. O ProUni concedeu este ano 252 mil bolsas totais ou parciais, ante um total de 6,3 milhões de matrículas no ensino superior privado, menos de 4% dos alunos. Quanto ao crédito estudantil subsidiado (Fies), o governo federal beneficiou cerca de 1 milhão de alunos, metade dos quais está inadimplente!

Os governos estaduais são responsáveis pelo ensino médio e os municípios assumem o grosso do financiamento do ensino fundamental. Mesmo com todas as limitações fiscais do País, inovações na gestão escolar em alguns Estados brasileiros merecem destaque, assim como experiências internacionais bem-sucedidas.

No Ceará, os mecanismos de incentivo baseados na distribuição do ICMS, estadual, de acordo com o índice de qualidade da educação do município mostraram-se efetivos para melhorar os resultados de aprendizagem. No Amazonas os professores são avaliados por meio de cursos online obrigatórios, cuja avaliação final é requisito para a conclusão do estágio probatório.

A Austrália foi a primeira a implementar um sistema de crédito estudantil condicionado à renda (Income Contingent Loan), depois adotado no Reino Unido, na Nova Zelândia, na Hungria, nos Países Baixos e na Coreia do Sul. Nesse sistema, o acesso ao ensino superior é gratuito e o egresso reembolsa o crédito se e quando atingir um patamar mínimo de renda (US$ 40 mil na Austrália e US$ 30 mil no Reino Unido), sujeito a um teto de reembolso. Modelo similar se aplica na Universidade da República do Uruguai, pública e gratuita, que cobra de todos os seus diplomados uma porcentagem específica do Imposto de Renda para financiar o ensino universitário.

O Congresso Nacional tem dado prioridade a uma agenda social voltada para a educação. Recentemente foi aprovada a Emenda Constitucional n.º 108, que torna permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e aumenta suas verbas. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, tem defendido um programa de poupança para estimular o jovem brasileiro a cursar o ensino superior – ideia análoga ao Programa Criança com Futuro, proposto no PL 4.698/19 do Senado.

Diante dos efeitos de longo prazo da pandemia, que se estenderão para além de 2021, já não há espaço para remédios improvisados e de curtíssimo alcance, pois isso implicaria submeter a maioria do povo brasileiro – famílias de renda média para baixo – a sofrimentos que não se limitam à perda de emprego e renda já ocorrida e a ocorrer ao longo deste ano.

A deterioração da formação educacional das crianças e dos jovens brasileiros precisa de medidas inovadoras e corajosas.

*Senador (PSDB-SP)


Eugênio Bucci: Uma trilha sonora para um Brasil pandêmico

O presidente está mais para lobisomem de filme de Mazzaropi do que para Duce…

O presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina. Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça e não mais se voluntaria a receber desaforos.

O presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta. Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que se cuide. Estão pensando o quê?

A fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio febril e varonil.

E o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível (abraço, Pedro Malan).

Autoridades da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.

Pensa o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/ vê-se até dois presidentes./ (…) Um do sul, outro do norte/ que governam muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (…)”.

Se fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.

Depois disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.

A TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as “otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones públicos é antigo: é do passado.

O presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em usina de verdades absolutas.

O que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão, que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.

Um surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/ tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Ribamar Oliveira: Mais uma renegociação de dívidas a caminho

Projeto substitui e amplia o “Plano Mansueto”

Um projeto de lei complementar que deverá ser colocado em votação na Câmara dos Deputados em novembro vai alterar três leis complementares, três leis ordinárias e uma medida provisória. Ele prevê uma nova renegociação das dívidas estaduais com a União e estabelece condições para que os Estados classificados com capacidade de pagamento “C” pelo Tesouro Nacional possam realizar novas operações de crédito, com aval da União. Atualmente, existem 13 Estados com essa classificação de risco.

O projeto de lei complementar 101/2020 é de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) e substitui e amplia o escopo do chamado “Plano Mansueto” (PLP 149/2019), que foi encaminhado pelo governo ao Congresso no ano passado, mas que não chegou a ser votado.

O objetivo do plano, que leva o nome do ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, era justamente estabelecer condições para que os Estados classificados como “C” pudessem fazer novas operações de crédito, com aval da União. O PLP 149 terminou sendo transformado, na Câmara dos Deputados, em um seguro-receita aos Estados e municípios, com validade durante a pandemia da covid 19, o que foi rejeitado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e enterrado pelo Senado.

Agora, ele retorna como PLP 101, de autoria do ex-relator do “Plano Mansueto”. O deputado Pedro Paulo disse ao Valor que, passada a pandemia, quando a União transferiu diretamente recursos aos Estados e municípios, é preciso garantir crédito para que os governos estaduais e prefeituras possam realizar investimentos e bancar despesas correntes. “O PLP 101 autoriza novas operações de crédito, condicionadas à adoção de medidas de ajuste fiscal”, explicou.

O projeto de Pedro Paulo, no entanto, é bem mais amplo do que o “Plano Mansueto”. Ele prevê, por exemplo, uma nova renegociação das dívidas estaduais. Mesmo antes da pandemia, vários Estados conseguiram liminares no Supremo Tribunal Federal (STF) para não pagar as suas dívidas com a União.

Pela proposta em análise, os débitos serão incorporados ao saldo devedor e pagos em 240 meses, segundo informou o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), relator do PLP 101. Ele disse que as dívidas do Rio de Janeiro também serão renegociadas, com prazo de pagamento de 20 anos. Apenas durante a vigência do Regime de Recuperação Fiscal, o deputado disse que o Rio acumulou dívidas no montante de R$ 52 bilhões. “Ainda estou fazendo o levantamento do total dos débitos estaduais que serão renegociados”, disse Benevides. “O montante é impressionante”, afirmou.

O PLP 101 muda o Regime de Recuperação Fiscal (instituído pela Lei Complementar 159), com o objetivo de criar condições para que outros Estados, além do Rio de Janeiro, possam aderir ao programa. Para isso, o Estado precisará cumprir, simultaneamente, três exigências: ter sua dívida consolidada maior que a receita corrente líquida, ter o valor de suas obrigações superior às disponibilidades de caixa e gastar com pessoal mais do que 60% de sua receita corrente líquida ou sua despesa corrente ser superior a 95% de sua receita corrente líquida. Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Goiás estão na lista de Estados que poderão aderir ao regime.

Benevides Filho informou também que o projeto vai mudar o prazo de duração do regime, que passará dos atuais seis anos para até oito anos, e as condições de pagamento dos débitos, que começarão a partir do segundo ano da adesão, com 10%, aumentando o percentual progressivamente. Outra alteração importante é que o governo estadual não precisará mais privatizar suas estatais para fazer caixa, podendo vender apenas 49% do capital e, com isso, manter o controle da empresa.

Os Estados com classificação de risco “C” que quiserem fazer novas operações de crédito, com aval na União, terão que pactuar um Plano de Promoção ao Equilíbrio Fiscal (PEF), que será instituído pelo PLP 101. Para isso, eles terão que implementar pelo menos três das sete exigências que constam da LC 159. O PEF terá metas fiscais e compromissos a serem aceitos pelos Estados. Cada um deles terá limite individualizado de endividamento.

“Os Estados terão que sofrer um arrocho para ajustar as suas contas”, advertiu Benevides Filho, em conversa com o Valor. Em seu parecer, ele pretende exigir que os Estados cortem os seus incentivos fiscais em 10% ao ano, durante três anos.

O PLP 101 muda também a Lei Complementar 101, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Umas das alterações está relacionada com a forma de cálculo da despesa com pessoal. A proposta que o parlamentar cearense estuda é incluir na despesa com pessoal os gastos com aposentados, pensionistas e os aportes de fundos feitos pelos Estados para cobrir o déficit previdenciário.

No caso da lei complementar 156, será dado aos Estados um prazo de mais três anos para que eles se enquadrem no teto de gastos, com as despesas podendo crescer apenas pela variação da inflação. Mesmo assim, Benevides pretende estabelecer que os Estados poderão deduzir o “excesso” das vinculações com saúde e educação, para efeito de apuração do teto.

Hoje, governos estaduais são obrigados a destinar 25% de sua receita para educação e 12% para saúde. “Se a receita do Estado subir 10% e a inflação for de 3%, a despesa com saúde e educação vai aumentar mais do que a inflação”, explicou. “Há um excesso que precisa ser excluído para o cálculo do teto.” O relator explicou que a União não tem esse problema pois, desde que adotou o teto de gastos, suas despesas com saúde e educação não estão mais vinculadas à receita. O teto estabelece que o gasto mínimo com saúde e educação é o mesmo do ano anterior, corrigido pela inflação.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), colocou o PLP 101 na lista de prioridades para votação ainda neste ano. Benevides disse ao Valor que o seu parecer estará pronto para ser votado no dia 4 de novembro.

Questionado pelo Valor, o Ministério da Economia não quis dizer se está sendo consultado sobre o PLP 101.


Bernardo Mello Franco: Não há vacina contra a insensatez

Durou pouco a ilusão de que o governo deixaria a saúde passar à frente da politicagem. Na terça-feira, o ministro Eduardo Pazuello anunciou a compra de 46 milhões de doses da vacina desenvolvida pela Sinovac e pelo Instituto Butantan. Menos de 24 horas depois, o capitão desautorizou o general.

Eduardo Pazuello havia sido taxativo. “A vacina do Butantan será a vacina do Brasil”, afirmou. Ao ler a declaração nos jornais, Jair Bolsonaro metralhou o próprio ministro. “Alerto que não compraremos vacina da China”, escreveu, em mensagem a aliados.

Nas redes sociais, o presidente chamou a Coronavac de “vacina chinesa de João Doria”. O ataque uniu duas obsessões bolsonaristas: a paranoia com a China e a ideia fixa com o governador de São Paulo.

Para agradar seus radicais, Bolsonaro imita Donald Trump, que chama o coronavírus de “praga chinesa”. A macaquice ignora uma diferença sensível. Washington trava uma disputa por hegemonia com Pequim, enquanto Brasília só tem a perder ao provocar seu maior parceiro comercial.

Com Doria, o problema é a disputa de 2022. Em campanha antecipada à reeleição, o presidente vê o ex-aliado como um adversário em potencial. Por isso aproveita qualquer chance de alvejá-lo, mesmo que isso signifique atentar contra a saúde pública.

Ao tratorar a Coronavac, Bolsonaro também atropelou Pazuello. O paraquedista nem pode reclamar da sorte. Ele foi escolhido para isso mesmo: bater continência e cumprir as ordens do chefe.

Ao assumir a pasta, o general se sujeitou a receitar cloroquina aos doentes. Em seguida, comandou uma operação para maquiar dados oficiais. Numa coincidência infeliz, ele foi humilhado pelo chefe no momento em que está fora de combate. Depois de cumprir muitas agendas sem máscara, o ministro foi diagnosticado com a Covid.

Enquanto Bolsonaro insiste em politizar a pandemia, o vírus continua a matar brasileiros. Ontem o país ultrapassou a marca de 155 mil vidas perdidas. Para nosso azar, não há vacina contra a insensatez.


Míriam Leitão: A morte, a vacina e o presidente

Em 2020, estamos morrendo, mas o presidente só pensa em 2022. É capaz de qualquer ato, o mais temerário que seja, para realizar seu plano. Ontem foi um dia em que o Brasil perdeu tempo na nova desordem criada por Jair Bolsonaro. Ele atacou a China, o governador João Doria, humilhou o general Pazuello e fez sua revolta da vacina para agradar sua milícia digital. O presidente conspira contra a saúde dos brasileiros para aplacar seus radicais.

Há uma minoria muito estridente nas redes que cobra dele provas de lealdade. Abraçado a políticos com dinheiro nas cuecas, com sua família toda enrolada, o presidente não pode mesmo entregar a promessa de combate à corrupção. Então ele cria conflitos com a China, com Doria, com a vacina para provar que permanece sendo o mesmo. Ele foi cobrado pelo acordo de intenção assinado com o governo de São Paulo e por isso deu o seu chilique.

O Instituto Butantan é o maior fornecedor de vacina para o programa nacional de imunização e tem a confiança do país. É óbvio que será um dos fornecedores, caso a vacina desenvolvida na cooperação com a China passe bem por todo o processo da Anvisa. Como disse ontem a agência, existem quatro “protocolos de desenvolvimento vacinal” correndo na Anvisa e nenhum pedido ainda de registro. Quando houver, será avaliado tecnicamente. O presidente da Anvisa, Antonio Barra, procurava palavras para não sair do roteiro da agência. Barra é o mesmo que em março foi para uma manifestação contra o Congresso junto com o presidente, participando de aglomeração. Recebeu esta semana a aprovação do Senado e agora tem mandato.

No entorno do presidente a explicação dada pela manhã foi que Bolsonaro estava dizendo que o governador Doria havia distorcido o que fora dito por Pazuello na videoconferência. Doria divulgou o comunicado da reunião para mostrar o que havia acontecido e que todo mundo tinha entendido, aliás. Uma intenção de compra caso a vacina seja aprovada e tenha registro. Inventando uma briga inexistente, Bolsonaro postou que qualquer vacina deverá ser comprovada cientificamente e aprovada pela Anvisa. Mas fez isso escrevendo em caixa alta: “A vacina chinesa de João Doria.” E conclui que não vai comprar a vacina. Depois usou a palavra “traição” e era em relação ao ministro da Saúde.

Ao atacar Doria, ele está tentando enfraquecer um suposto adversário de 2022. Ao fazer sucessivas referências depreciativas à China, ele estigmatiza o país. Mas mais do que isso: Bolsonaro agride nosso principal parceiro comercial e investidor estratégico. Não ganhamos nada em tomarmos partido na nova guerra fria. O interesse americano nessa briga não é o nosso interesse.

A embaixada chinesa já havia soltado uma nota na terça-feira para rebater as acusações do secretário americano, Mike Pompeo, e do conselheiro de Segurança Nacional, Robert O’Brien, de que a China seria uma ameaça ao Brasil. No trecho mais duro contra os americanos, os chineses disseram que os EUA tinham um “histórico sujo” em segurança cibernética, com operações massivas de espionagem contra vários países, incluindo o Brasil. Ontem, após a polêmica com a vacina, o embaixador chinês, Yang Wanming, afirmou que investimentos chineses no Brasil geraram mais de 50 mil empregos diretos e poderiam chegar a US$ 100 bilhões em um período de cinco anos. Era uma forma de comparar com o que foi oferecido pela missão americana. Perto do volume que precisa ser mobilizado para o investimento em 5G, o US$ 1 bi de financiamento americano não é nada.

Num mesmo ataque de nervos o presidente agrediu um parceiro estratégico, mostrou de novo que não tem atributos para comandar uma federação, humilhou o ministro da Saúde, justamente o mais submisso aos seus caprichos.

O pior, contudo, é que Bolsonaro atentou contra a saúde dos brasileiros. Ele espalha o vírus da desconfiança em relação a uma vacina que pode vir a salvar milhares de vidas. Desde o começo da pandemia ele já brigou com governadores, agrediu o STF, demitiu dois ministros da Saúde, defendeu remédios não comprovados, ajudou a disseminar o coronavírus com suas aglomerações e seu exemplo de desprezo à proteção. Bolsonaro é um atentado à saúde pública no meio de uma pandemia. E já são 155.459 os nossos mortos.


Maria Cristina Fernandes: Uma garantia estendida por 27 anos

Vínculos de Kassio Nunes com a OAB precedem Bolsonaro

O desembargador Kassio Nunes Marques foi inquirido por quase dez horas, só perdendo para a sabatina do ministro Edson Fachin (11 horas), mas duração não foi reflexo de contenciosos. Com 57 votos favoráveis, 10 contrários e 1 abstenção no plenário do Senado, o novo ministro chegará ao Supremo Tribunal Federal com uma aprovação menos contestada que a de Fachin (52 a 27), Gilmar Mendes (57 a 15) e Rosa Weber (57 a 14). O quórum de sua aprovação aproxima-se daquele de Dias Toffoli (58 a 9), o último dos ministros a ter um currículo tão contestado quanto o de Nunes Marques. Apesar da pandemia, a votação teve a presença de um número maior de senadores (68) do que a aprovação dos ministros Cármen Lúcia (56), Marco Aurélio (54), Ricardo Lewandowski (67) e Luís Roberto Barroso (65).

O panorama da votação foi antecipado pelo voto em separado de Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O senador anotou que o desembargador “é a mais perfeita materialização do sistema de cruzamento de interesses que impera no Brasil há décadas”. Por esta razão, disse o senador, “não surpreende o fato de a indicação angariar apoios entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo, nem a recepção expressiva por parte de ministros da Suprema Corte que confundem costumeiramente o republicano dever de urbanidade com a condenável confraternização efusiva com investigados poderosos e seus representantes”.

No condomínio de lealdades montado pelo presidente da República para a indicação de Kassio Nunes Marques, o senador não incluiu a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, certamente, não esteve entre as instâncias consultadas por Jair Bolsonaro, mas nenhum outro ministro terá chegado à Corte com tão fortes vínculos com a instituição. Durante a sabatina, Kassio Nunes Marques falou até do carrinho de cachorro-quente que teve em Teresina, mas não da parceria com o ex-presidente da OAB, Marcus Vinícius Coelho Furtado, maranhense de nascimento, mas criado no Piauí.

Com a parceria, chegou ao conselho da Ordem e, a partir dele, ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Distrito Federal. Contou, ainda, para o cargo, com o apoio do ex-presidente da OAB-DF, hoje governador, Ibaneis Rocha, outro que morou por muitos anos no Estado natal do novo ministro e cujo escritório, em Brasília, tem muitos processos em tramitação no TRF-1. A ambos juntou-se o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, para a chegada do desembargador ao Superior Tribunal de Justiça. Foi neste momento, que o presidente, alertado pelo filho, o senador Flávio Bolsonaro, o fisgou para o Supremo Tribunal Federal.

Trata-se quase de uma “República do Piauí”, que tem planos de futuro buscando atrair ainda o jovem Pedro Felipe Oliveira Santos. Juiz auxiliar do Supremo Tribunal Federal, alçado pelo ministro Luiz Fux para a Secretaria-Geral da Corte, Santos tem um currículo sem os mesmos puxadinhos do futuro ministro. Foi primeiro lugar no concurso para a Justiça Federal, tem mestrado em Harvard e é doutorando em Oxford.

Ao longo de sua sabatina, o desembargador mostrou-se merecedor da confiança do seu condomínio de indicações ao definir como o principal ativo de sua indicação, o “garantismo”, rótulo que situou entre o “originalismo”, tradução literal do texto constitucional, e o “ativismo”, interpretação da Carta que comporta um judiciário participante da mudança social e política. Suas origens acrescentam, senão um ativo, mas uma decorrência de sua indicação, a importância, para a OAB, da ocupação de tribunais por ministros egressos da Ordem.

É uma força que tem tradução numérica. Para que um recurso ao Supremo seja acolhido, é preciso o aval de um ministro do STJ. Para que um apelo suba ao STJ, também é necessário que um desembargador o ponha no elevador. Decisões como essas podem render, a advogados, valores de até sete dígitos em honorários. Na atual conjuntura da OAB, a proximidade com um ministro como Kassio Nunes Marques, pode, ainda, desbalancear favoravelmente à atual direção “garantista” na queda de braço travada internamente com os conselheiros de filiação lavajatista. A se confirmarem as expectativas dos antigos companheiros do futuro ministro na OAB, sua filiação aos princípios que hoje movem a Ordem ultrapassarão, e muito, o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Se ficar na Corte até a aposentadoria compulsória, Kassio Nunes Marques só a deixará em 2047.

Ao longo da sabatina, Nunes Marques valeu-se de vedações legais que o impedem de vir a se manifestar sobre temas que podem entrar na pauta do Supremo, da prisão em segunda instância à existência da TV Justiça. Disse ao senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que lhe perguntou sobre a mediação do senador Flávio Bolsonaro e do advogado Frederick Wasseff, que o presidente havia tomado a decisão sozinho. E repetiu, em quase todas as respostas, sua determinação em fazer valer a necessária segurança jurídica do país, numa sabatina que teve na audiência Humberto Martins, do STJ. O ministro liderou a decisão daquele tribunal que levou o prefeito do Rio e aliado de Bolsonaro, Marcelo Crivella, a encampar a Linha Amarela.

O ministro foi menos convincente na reação às acusações em torno de seu currículo turbinado. Inventou o verbo “aspasar” numa tentativa de mostrar que sabe usar aspas. Disse que a Universidade Autônoma de Lisboa tem a “melhor ferramenta antiplágio do mundo”, mas não explicou porque sua orientadora, alertada pela revista “Crusoé”, teria aberto a possibilidade de rever o título concedido. Na dissertação acusada de plágio, o novo ministro defende que a União forneça medicamentos a todos os pacientes que deles necessitem. Chegará ao Supremo num momento em que a Corte pode vir a ser instada a se pronunciar sobre a vacina que o presidente quer negar aos brasileiros. Terá, então, oportunidade de mostrar o que, de fato, pensa sobre o tema.


William Waack: A cor da vacina

Bolsonaro ignora que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa

Por ter muita raiva da China ou de João Doria, o rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai comprar a vacina chinesa – desautorizando o general da Saúde – ajuda a entender a razão de capitães comandarem uma companhia, enquanto generais comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos. É a falta de visão de conjunto.

Bolsonaro submeteu tudo ao projeto de reeleição, confundindo seu destino político com o do País. É postura comum a políticos de várias colorações, mas, no caso de Bolsonaro, a obsessão com o ganho eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente ameaça seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse presidente, como a de outros, está diretamente ligada ao desempenho da economia, e esse desempenho (até o fim de 2022, digamos) é função de uma série de decisões políticas difíceis que ele está protelando – em nome do conforto da popularidade no curto prazo.

Da mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a economia brasileira, que depende em grande parte do agronegócio, que depende em grande parte da China, alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente americano, Donald Trump. Nem é o caso de se perguntar se esse personagem estará ainda na Casa Branca daqui a menos de duas semanas. Mesmo que Trump produza um excepcional milagre eleitoral e se reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e bajuladora, Bolsonaro comete um erro básico de política externa: ignorar o fato de que países não têm amigos, só têm interesses.

Ao que tudo indica, está perdida a aposta bastante simplória de que o “laço pessoal” com o homem mais poderoso do mundo presidindo o país mais rico do mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso a tecnologia, mercados, instituições multilaterais e projeção no cenário internacional. No caso específico da China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso do mundo e a maior economia), a pressão de Trump sobre o Brasil evidentemente leva em conta apenas os interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro sacrifica um vantajoso ponto de partida, que é a possibilidade de jogar entre os dois no grande confronto do século.

Aqui entra também a questão da “diplomacia da vacina”, na qual os chineses já demonstram notável vantagem sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos, a China está anunciando “acesso preferencial” à vacina produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento. Washington tem à disposição produtos semelhantes desenvolvidos por empresas privadas de sólida reputação mundial, mas demonstrou pouco interesse em distribuir vacinas fora dos EUA.

O Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa, com a qual Xi Jinping pretende ampliar ainda mais peso e influência do país, mas o que parece motivar Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo governo comunista chinês não é o espectro (sim, esse absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma “inoculação” de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme uma candidatura para competir com ele “pela direita” e, seja qual for a razão, enxerga em Doria esse personagem.

Essa visão de túnel considerando apenas a reeleição é o que faz Bolsonaro ignorar um provérbio… chinês. Usado, aliás, de maneira célebre por um importante dirigente comunista, Deng Xiaoping, iniciador das reformas que fizeram da China o que ela é hoje, e que virou lição de pragmatismo. “Não me importa a cor do gato, contanto que pegue o rato”, respondeu, quando indagado sobre o melhor sistema econômico.

Para uma parcela importante do eleitorado também no Brasil, assustada com pandemia, pouco importa a origem da vacina, contanto que ajude a resolver uma questão literalmente de vida ou morte. Bolsonaro parece ignorar que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Raul Jungmann: O segundo governo Bolsonaro

O primeiro governo Bolsonaro tinha alguns traços marcantes, relacionados a sua trajetória e a sua campanha rumo à Presidência. Na economia, um estilo inicial agressivamente liberal que foi progressivamente estancado, via impasses nas reformas e lenta privatização de ativos. No social, uma pauta centrada nos costumes, de corte conservador, e pouco investimento em programas sociais.

Na política a chamada “antipolítica” e o combate à corrupção, cujo núcleo era a renúncia ao “presidencialismo de coalizão”. Nesse último caso, a solução aventada para o dilema de como levar o Congresso a aprovar o programa do governo, sem o usual recurso à troca de apoios partidários por cargos no Executivo, foi o “presidencialismo de colisão”. Neste, buscava-se o confronto e a pressão sobre o parlamento, mas também sobre o Judiciário, mediante o recurso à espada, isto é, às Forças Armadas, que teoricamente estariam ao seu lado, como atestavam as falas dos militares em cargos ministeriais.

De forma complementar, a pressão das “massas” – estas entendidas como seguidores organizados do Presidente. Essa estratégia foi sendo seguidamente derrotada até chegar à exaustão. No que respeita ao Parlamento, pela liderança inconteste na reforma da previdência e sucessivas derrotas do governo, como na suspensão de decretos (caso das armas), derrubada de vetos e medidas provisórias.

Porém, a chegada da pandemia, os episódios das fake news e da “rachadinha” verdadeiramente acenderam a luz vermelha para a possibilidade de um processo de impeachment, ainda que prematuro. Quanto ao Supremo, sua unidade em defesa de temas democráticos, e o inquérito do “fim do mundo” batendo às portas do bolsonarismo de raiz, do gabinete do ódio e, por fim, de atores próximos ao presidente, era mais um sinal de game over.

Já as Forças Armadas, como dissemos inúmeras vezes, estavam firmemente plantadas no terreno da obediência à Constituição e blindadas para aventuras. Hoje, os sinais marcantes da virada para o segundo governo estão à vista.

O Presidente tornou-se adepto do clássico presidencialismo de coalizão, entregando ao centrão o comando político no parlamento e cargos no Executivo. A pax com o Judiciário foi simbolicamente selada no “nihil obstat” ao novo ministro do STF dado pelos ministros Toffoli e Gilmar, na casa do segundo, tendo como testemunha o presidente do Senado, seguida de almoço na casa do primeiro.

O incentivo final para a consolidação do segundo governo veio pelo auxílio emergencial e crescimento da popularidade do presidente nas pesquisas de opinião. Um governo “normal”? A conferir. Porém com graves problemas à frente: como conciliar o político e o fiscal e dar continuidade ao auxílio emergencial que turbinou a popularidade presidencial e o desemprego alto, em 14%, e crescente?

Além do desalento que leva 10 milhões de brasileiros a não procurar emprego, segundo o IBGE. De quebra, a provável vitória do candidato democrata Joe Biden à presidência dos Estados Unidos e a Amazônia em chamas.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Luiz Carlos Azedo: A teoria do dano e a vacina

Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis

A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.

Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.

Rebanho

No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.

No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.

Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”.

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