Day: outubro 21, 2020
Merval Pereira: A Covid-19 politizada
O combate à Covid-19 continua sendo politizado pelos agentes públicos, sendo que, antes mesmo de a vacina chegar, já se discute se ela será obrigatória. Os dois contendores principais continuam sendo o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo João Dória, já antecipando a eleição presidencial de 2022, onde um tentará a reeleição, e o outro aparece como oponente forte, à frente do mais rico Estado, que pretende se descolar da performance econômica do país para tornar-se alternativa visível.
A disputa mais ridícula encerrou-se ontem, quando o ministério da Saúde anunciou que comprará 46 milhões de doses da vacina coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantã. Duas dificuldades emperraram a decisão anunciada ontem: a vacina ser chinesa, e o governador João Dória ter sido o responsável pelo acordo com o Instituto Butantã.
Foi preciso que governadores pressionassem o governo para que essa vacina entrasse no plano nacional de imunização, que vai comprar mais milhões de doses de diversas outras vacinas, como a do laboratório AstraZeneca que já garantiu 100 milhões de doses da vacina desenvolvida com a Universidade de Oxford. No Brasil, ela deverá ser produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com a previsão de 165 milhões de doses durante o segundo semestre de 2021.
O país tem ainda outros 40 milhões de doses garantidas por integrar iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que reúne diversos países. Outra disputa já se apresentou, essa sobre a obrigatoriedade da vacinação pública. O governador João Dória se antecipou anunciando que em São Paulo será obrigatória, mas seu candidato a Prefeito, Bruno Covas, disse que isso não será necessário, pois as campanhas de vacinação são suficientes para fazer a população se mobilizar.
Isso porque o candidato de Bolsonaro à Prefeitura paulistana, Celso Russomano, já havia anunciado que é contra a vacinação compulsória, pegando carona na fala do presidente. O ministério da Saúde levou em conta a orientação da Organização Panamericana da Saúde (Opas), segundo a qual a vacinação de metade da população pode ser suficiente para a imunidade de rebanho.
Interessante é que a Opas foi a organização que apoiou o programa Mais Médicos nos governos petistas, que trouxe médicos cubanos para o Brasil. Bolsonaro e seus aliados criticaram a Opas como uma organização esquerdista, mas agora se utilizam dela para não tornar a vacinação obrigatória.
Doria não insistiu mais no assunto, e tudo indica que a vacinação contra a Covid-19 só será obrigatória se o Congresso resolver regulamentar a lei da pandemia, que prevê a vacinação entre os itens necessários para contê-la. Ela foi assinada no início da gestão do ex-ministro da Saúde Luiz Mandetta, mas a situação já não tem a gravidade do começo.
É pouco provável que o Congresso aprove a obrigatoriedade da vacinação, a não ser que tenhamos uma segunda onda da Covid, como está acontecendo em partes da Europa e dos Estados Unidos. O Programa Nacional de Imunização (PNI) já prevê vacinas obrigatórias para crianças e adolescentes, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a contra a tuberculose, hepatite B, poliomielite, etc… Os pais que se recusarem a levar os filhos para se imunizarem podem sofrer sanções.
A melhora da pandemia no Brasil permite que o governo insista na sua tese de que é preciso respeitar a individualidade do cidadão, o que na teoria é bonito, mas na prática pode provocar o descontrole da situação. O uso de máscara, por exemplo, que é obrigatório em quase todo o território nacional, é desestimulado pelo próprio Bolsonaro, que faz questão de aparecer em público sem ela, e confraterniza desprotegido com seus seguidores, fazendo mal a ele e aos que o cercam.
Míriam Leitão: Estado geral da democracia
Não precisa fazer interpretações para concluir que a democracia brasileira vai mal. Basta juntar os fatos. Não são feitos mais os ataques verbais às instituições nem as passeatas pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, mas isso não significa que o presidente Bolsonaro mudou. Ele é o mesmo que sempre desprezou valores democráticos. A paz com o centrão não é governabilidade, está mais para conluio. Partidos, políticos e o presidente têm o mesmo objetivo: manter o poder e suspender o combate à corrupção.
O episódio do senador Chico Rodrigues traz uma série de lições. Alguém pode concluir que tudo funcionou bem, afinal a Polícia o encontrou, o Supremo o afastou inicialmente, ele próprio pediu afastamento. É uma visão benigna, mas não realista. O fato é que o vice-líder do governo se sente tão à vontade que leva maços de dinheiro para casa. A PF que o encontrou continua trabalhando, mas ela está sendo esvaziada. Até quando terá essa autonomia? Até que ponto poderá chegar? O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, deixou no ar um silêncio eloquente sobre o escândalo. O ministro do Supremo que afastou Chico Rodrigues foi criticado por senadores. Eles não queriam julgá-lo no Conselho de Ética. Os colegas o aconselharam a dar um “jeitinho”: sair por 121 dias, entregar o mandato ao filho suplente e deixar tudo em casa. O presidente da República fingiu que não tinha com ele a anunciada “quase união estável”.
Há outros sinais preocupantes para onde se olhe. O governo inteiro vem sendo militarizado. Ontem, o Senado aprovou sem reclamar os nomes da diretoria da nova Autoridade Nacional de Proteção de dados. Ela será presidida por um militar, e eles serão três dos cinco diretores. O órgão precisa de autonomia em relação ao governo. Ele vai fiscalizar e editar normas da Lei Geral de Proteção de dados de todos nós. Os militares não têm em relação às informações a preocupação de proteger a privacidade. Por treino profissional, e pela ideologia do atual governo, eles tendem a ver isso dentro da doutrina que definem como “de segurança nacional”.
O governo mandou espiões para a última Conferência do Clima, em Madri, como informou o repórter Felipe Frazão do “Estado de S.Paulo”, e deu a eles status de negociadores. Desta forma estava mentindo para a ONU e constrangendo negociadores brasileiros. O general Heleno disse que isso foi feito para vigiar “maus brasileiros”. Essa é uma visão tipicamente autoritária. Quem outorgou ao general o direito de definir quem são os maus brasileiros? São os que desmatam ilegalmente a Amazônia ou os que denunciam que isso está sendo feito?
O Rio, como mostrou o relatório de diversas ONGs, tem 57% do seu território sob o controle da milícia. Isso é uma ameaça nacional. O presidente Bolsonaro e seus filhos têm todo um mar de ambiguidade em relação à milícia, que vai da ligação direta, como a mantida com o o ex-policial militar e líder de bando miliciano Adriano Nóbrega, morto na Bahia, até as frequentes declarações de apoio ao bando.
“Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se depender de mim terão todo o meu apoio”, disse Bolsonaro em 2003. Em 2018, reafirmou: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência”. O então candidato estava aprovando a extorsão a que estão submetidos os moradores das áreas controladas pelos milicianos. Quando um grupo criminoso tem o apoio implícito ou explícito de quem governa o país, isso é um imenso perigo.
O truque atual é capturar as instituições, esvaziá-las da sua autonomia, mas deixá-las em pé. Assim, alguém pode dizer: mas estão lá as instituições funcionando. A suposta “pacificação” de Bolsonaro não é respeito à autonomia e à independência dos poderes. Ele quer proteção para ele, seus filhos, sua família. Os parlamentares querem que a investigação de corrupção pare de importuná-los, porque já não sabem mais onde enfiar dinheiro quando a Polícia Federal chega. Diante de todos os sinais — e há muitos outros — só o desatento dorme tranquilo com a democracia brasileira.
Bernardo Mello Franco: A segunda obscenidade do senador da cueca
Em 2001, Antonio Carlos Magalhães foi acusado de ordenar a violação do painel eletrônico do Senado. As provas eram fartas, e o Conselho de Ética aprovou relatório favorável à cassação do velho político baiano. Antes que o plenário confirmasse a pena, ele renunciou. O mandato ficou com seu primeiro suplente, o empresário ACM Júnior.
“Tenho a responsabilidade de ser filho do melhor e maior político brasileiro”, discursou o herdeiro ao estrear na tribuna. Na véspera da posse, ele disse que sua missão era “honrar” o patriarca. “Tomarei as atitudes em conjunto com meu pai”, afirmou
Dezenove anos depois, a manobra se repete em Brasília. Flagrado com dinheiro na cueca, o senador Chico Rodrigues se licenciou ontem do cargo. Deixou a cadeira para Pedro Arthur Rodrigues, seu filho mais velho, também filiado ao DEM.
Foi uma jogada ensaiada. Num acordão com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o roraimense saiu de cena para aliviar a pressão sobre os colegas. A ideia é que ele se esconda dos holofotes até fevereiro. Se tiver sorte, ninguém se lembrará do caso quando a licença acabar. Enquanto isso, seu gabinete ficará sob os cuidados do primogênito.
A grana malocada “entre as nádegas” não é a única obscenidade do caso de Rodrigues. A substituição do pai pelo filho também contribui para desmoralizar o Senado. Mostra que os mandatos continuam a ser tratados como capitanias hereditárias.
A figura do suplente de senador é uma antiga aberração da política brasileira. Distorce a ideia de representação popular e beneficia políticos e empresários sem votos. Alguns titulares entregam a suplência ao financiador da campanha. Outros mantêm a chapa em família: indicam o pai, o filho ou a mulher, caso do emedebista Eduardo Braga.
Ontem o senador Rodrigues disse que está sendo “massacrado”, “ridicularizado” e “humilhado”. “Por trás desse broche de senador, há um ser humano”, choramingou. Faltou explicar o dinheiro que estava por trás daquela cueca.
Elio Gaspari: O nome do crime é milícia
O que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano
A má notícia vem de um consórcio de pesquisadores: metade dos bairros do Rio de Janeiro estão ocupados por milícias. Um em cada três moradores da cidade vive em áreas controladas por essas organizações criminosas. A boa notícia está nas livrarias. É “A República das Milícias”, do repórter Bruno Paes Manso, com um retrato da construção dessa ruína social.
Paes Manso mostrou como os justiceiros surgiram até de forma simpática: “Milicianos de PMs expulsam tráfico”. Isso em 2005, passaram-se 15 anos e a simpatia é atraída para a notícia de que na semana passada a polícia do Rio matou doze milicianos.
Policiais expulsando traficantes de drogas em nome da benemerência era uma lenda urbana. Logo veio o controle das vans que faziam transporte ilegal de passageiros. (A Fetranspor, guilda dos empresários que faziam transporte legal, corrompia parlamentares e governadores.)
É difícil acreditar que Jair Bolsonaro não conhecesse a cidade em que vivia quando disse, em 2018, que “as milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando. Passaram a cobrar gatonet e gás”.
Bolsonaro tinha no seu entorno o ex-sargento Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano da Nóbrega. Um está preso. O outro, foragido, foi queimado no interior da Bahia.
Pela lenda urbana 1.0 a milícia vendia segurança, cobrando de R$ 15 a R$ 60 por família no bairro que protegia. A milícia “desvirtuada” cobraria pelo gás ou pelo gatonet (cerca de R$ 50). É a lenda urbana 2.0. Mesmo deixando-se pra lá que cobram entre R$ 30 e R$ 300 aos comerciantes, em pouco mais de uma década, elas avançaram nos mercados de regularização de terrenos e de construções ilegais. Privatizam espaços públicos achacando camelôs e motoristas que estacionam seus carros.
Outra lenda urbana esteve na ideia segundo a qual as milícias combatiam o tráfico de drogas. Pode ser que isso já tenha acontecido, mas hoje elas toleram os traficantes ou se aliam a eles. Não é preciso ser um gênio para perceber que essa fusão é inevitável.
Quando Bolsonaro defendia os milicianos era apenas um parlamentar federalmente inexpressivo e municipalmente astuto. Hoje é o presidente da República. No seu estado ajudou a eleger um juiz que prometia “balinha na cabeça” e foi afastado por mau uso do dinheiro da Viúva. O prefeito da cidade que persegue o apoio do capitão foi apanhado usando o dinheiro da Viúva para custear uma milícia que constrangia cidadãos insatisfeitos com a saúde pública.
Bolsonaro, como Wilson Witzel, elegeu-se com um discurso político de defesa da lei e da ordem. O governador do Rio perderá a cadeira e deverá batalhar para ficar solto. Bolsonaro e os generais da reserva que levou para o Planalto estão reciclando suas agendas moralistas. Para quem falava em segurança e combate à corrupção, a pesquisa das milícias e o livro de Bruno Paes Manso estão aí para mostrar que não adianta olhar para o lado. A menos que se pretenda colocar mais uma lenda urbana na ciranda, a dos confrontos nos quais morrem os milicianos que expulsavam os traficantes. Como o tráfico vai bem, obrigado, o que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano. Como as milícias são quase sempre recrutadas na polícia, com a proteção de governantes, seria melhor olhar para dentro.
Vinicius Torres Freire: EUA ganham mais batalhas contra o 5G chinês e atacam também no Brasil
Mais países proíbem, oficialmente ou na prática, compra de equipamentos da Huawei
A em geral pacífica Suécia proibiu as teles do país de comprar equipamentos de infraestrutura de telecomunicações das chinesas Huawei e ZTE. Seguiu orientação de seus militares e do seu serviço de segurança. As empresas chinesas vão ficar fora também do 5G sueco.
E daí a Suécia? É mais um exemplo da lista agora bem relevante de países que baniram a tecnologia chinesa, oficialmente ou na prática. A restrição a essas empresas é uma discussão que ultrapassa a mera maluquice diplomática subalterna de Jair Bolsonaro.
Funcionários americanos estão oficialmente no Brasil para convencer o governo brasileiro a proibir a Huawei de fornecer equipamentos para as redes 5G. Até abril de 2021, devem ser leiloadas as frequências para 5G (“estradas” de dados) entre as teles.
Pelo menos desde 2012, há campanha americana contra as firmas chinesas que vendem infraestrutura de telecomunicações. A Huawei é a líder mundial do setor. Sob Donald Trump, a campanha se tornou conflito aberto. Entre outras medidas, Trump quer estrangular o fornecimento de softwares, chips e outras tecnologias para as empresas chinesas, além de criar rede de comunicação mundial “limpa”, livre de ciberameaças –isto é, sem participação da China.
O Japão não se comprometeu com os EUA, mas a empresa japonesa que usava a Huawei vai deixar de fazê-lo. O governo, de resto, quer aproveitar a oportunidade para aumentar a participação ínfima das companhias japonesas nesse mercado, assim como os sul-coreanos. A Índia parece que discretamente vai evitar as empresas da rival China e estimula a criação de tecnologia nacional.
A Alemanha prepara leis que, na prática, vão barrar as chinesas, plano que têm apoio dos três principais partidos do país, apesar da oposição de teles e de outras empresas alemãs, que exportam muito para a China.
O Reino Unido baniu as chinesas. A França não vai fazê-lo, mas seu serviço de cibersegurança baixou normas que inviabilizam a opção chinesa. Emmanuel Macron faz lobby pelas empresas europeias do ramo, Nokia e Ericsson, que dividem com a Huawei cerca de 75% desse mercado. A Itália discute o que fazer. A Espanha não baniu ninguém, mas, como em vários países, as teles se sentem pressionadas a mudar de fornecedor.
Em suma, o mercado para as empresas da China pode se limitar a partes da Ásia, do mundo islâmico, da América do Sul e da África. Empresas e mesmo governos da Europa dizem que vai ficar mais caro e demorado implementar o 5G sem a Huawei. Ainda assim, os americanos ganham batalhas importantes.
Os especialistas discutem o futuro da Huawei, destino que pode influenciar decisões de comprar seus equipamentos. Será econômica e tecnologicamente sufocada pela ofensiva dos EUA, ficando atrasada? Ou, ao contrário, o setor pode ter dificuldade de avançar sem a presença, patentes e colaboração tecnológica da gigante chinesa? A empresa pode tentar se virar com pesquisa própria ou com “vazamentos” de insumos e tecnologias?
Um fato é que essas empresas se tornaram assunto militar e de segurança. As acusações não vêm apenas dos EUA. Na página da Polícia de Segurança sueca, seu diretor diz em entrevista oficial que a China é uma das maiores ameaças à Suécia, que o governo chinês faz espionagem cibernética e rouba tecnologia a fim de promover seu desenvolvimento econômico e militar; que isso precisa ser levado em conta na legislação do 5G. Por lei, a agência reguladora sueca de comunicações tem de seguir orientações das Forças Armadas e do Serviço de Segurança.
Hélio Schwartsman: O sistema de escolha de juízes para o STF funciona?
Receio que, se funcionasse, Kassio Nunes não seria aprovado
O que aconteceria com Kassio Marques se nosso sistema de escolha de juízes para o STF fosse plenamente funcional? Receio que, neste caso, o futuro ministro não teria seu nome aprovado pelo Senado.
É possível que Marques seja um bom magistrado e que sua fortificação curricular seja um pecado venial, mas não estamos falando de um cargo obscuro nos meandros da administração, e sim de uma vaga na Suprema Corte do país, onde deveriam ter assento apenas os melhores e mais probos de cada geração.
Não é possível que, entre os cerca de 2 milhões de brasileiros em carreiras jurídicas, não exista ninguém com excelência técnica e sem pecados curriculares.
Apesar de eu mesmo ter classificado como pouco funcional nosso modelo de seleção, no qual o presidente indica mais ou menos livremente um nome, que precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado, devo dizer que o sistema não é tão ruim quanto alguns o pintam. O risco maior, que seria a entronização de ministros próximos demais de quem os designou, foi posto à prova e não se materializou.
Embora as últimas composições do STF tenham tido a maioria de seus integrantes apontados pelo PT, a corte, em seu conjunto, não hesitou em tomar decisões que contrariaram os interesses do partido, como se viu no julgamento do mensalão e do impeachment de Dilma. O segredo é a vitaliciedade. Uma vez nomeado, o ministro não precisa mais se preocupar com seu próximo emprego e pode dedicar-se só a sua biografia. A vaidade faz o resto.
Para o sistema tornar-se plenamente funcional, o Senado teria de exercer sua prerrogativa de realmente avaliar os candidatos e rejeitar os que não estivessem à altura do cargo. Como isso dificilmente acontecerá, até acho que poderíamos limitar mais a escolha do presidente, restringindo-a a listas de nomes elaboradas por outros atores, mas eu não mexeria na vitaliciedade. É a parte que está dando certo.
Bruno Boghossian: O circo político da vacina
Governo paga por imunizante que foi criticado pelo presidente em ataque a Doria
Nem os auxiliares de Jair Bolsonaro conseguem sustentar por muito tempo o circo político armado diariamente pelo chefe. Em menos de 24 horas, o Ministério da Saúde foi obrigado a cortar mais um fio da campanha do presidente contra a vacina chinesa para a Covid-19, produzida em São Paulo.
A pasta anunciou nesta terça (20) que vai pagar R$ 2,6 bilhões para incluir 46 milhões de doses da Coronavac em seu Programa Nacional de Imunizações. Bolsonaro deveria explicar por que vai gastar uma fortuna com um produto que, na véspera, ele mesmo tentou desmoralizar.
Na segunda (19), o presidente abriu um evento disposto a atacar a vacina chinesa para acertar o governador João Doria (PSDB). Em poucos minutos, ele criticou o preço do imunizante, insinuou que sua eficácia não está comprovada e citou um levantamento que indica que 46% dos brasileiros recusam sua aplicação.
Alguém poderia imaginar que o presidente se converteu às escrituras científicas, que passou a acreditar nas pesquisas de opinião ou que finalmente decidiu dar bola para a saúde. Mas as autoridades do próprio governo trataram de desmascarar o que já estava evidente.
A negociação com os paulistas para a distribuição da Coronavac mostra a dimensão do absurdo fabricado por Bolsonaro. Ao mirar Doria, o presidente disse que o tucano produz “terror” ao anunciar que o imunizante deve ser compulsório no estado. O ministro da Saúde descartou a obrigação, mas também não ouviu a bobagem do chefe sobre a vacina.
Bolsonaro não ficou satisfeito em atrapalhar os esforços para frear a contaminação pelo coronavírus e em desdenhar de seus mortos. Ele ainda procura novas oportunidades para extrair benefícios políticos de cada etapa da pandemia.
O presidente só conseguiu atenção agora porque, do lado oposto, a busca pelos holofotes empurrou Doria nessa direção. Ao antecipar o debate sobre a obrigatoriedade da vacina, de maneira superficial, o governador caiu na armadilha do rival.
Pedro Cafardo: Brasil é o pior dos Brics e ainda brinca com fogo
Eventual vitória de Biden nos EUA acabará com o espaço para o negacionismo ambiental e pode levar o país a um bloqueio internacional capaz de asfixiar ainda mais a economia brasileira
O Brasil é, de longe, a maior decepção entre as quatro grandes países emergentes incluídos no histórico trabalho da Goldman Sachs que criou o grupo do Brics - Brasil, Rússia, Índia e China. Se você quer saber quais desses países mais corresponderam às previsões de crescimento econômico, basta ler a sigla de traz para frente. A China foi disparadamente melhor, seguindo-se Índia e Rússia, com o Brasil na lanterna.
O estudo da Goldman Sachs é normalmente atribuído a Jim O’Neill, que formulou o conceito e a sigla em 2001, mas foi assinado por Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, com a publicação do “Dreaming With BRICs: The Path to 2050”. Embora tenha sido divulgado em outubro de 2003, esse “paper” trabalha com uma série histórica que começa no ano 2000. A previsão principal é que os quatro grandes emergentes - o texto original não inclui a África do Sul - deverão se tornar, até 2050, a maior força da economia mundial, superando em valor de PIB os países do G-6 - Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália.
As projeções, porém, são extremamente detalhadas, a ponto de estimarem o crescimento ano a ano para cada um dos quatro Brics até 2050. Passados os primeiros 20 anos dessa projeção, já é possível fazer um balanço do acerto parcial da previsão. O economista Robinson Moraes, coordenador de Pesquisa Econômica do Valor Data, comparou os dados projetados com a expansão real dos PIBs (método convencional) e o resultado está nos gráficos ao lado, de fácil compreensão. A linha vermelha mostra o crescimento efetivo de cada país e a azul indica a projeção feita pelo estudo. Se a Goldman Sachs tivesse acertado em sua previsão, o PIB do Brasil teria crescido 101,7% nos primeiros vinte anos do século, mas deve crescer apenas 43,6%, já levando em conta as estimativas do FMI para a recessão deste ano. A Rússia também não correspondeu às expectativas e cresceu apenas 78,4% no período, bem menos que os 127,3% previstos no trabalho da Goldman Sachs. A China e a Índia superaram as projeções: cresceram respectivamente 425,4% e 229,8%, bem mais que os previstos 249,3% e 206,1%.
É incrível a semelhança das curvas das linhas do Brasil e da Rússia. Observe que ambos os países acompanharam praticamente a trajetória prevista na primeira década do século, superando razoavelmente a crise global de 2008. A partir de 2014, porém, passaram a ter crescimento sistematicamente inferior ao previsto no estudo.
Por que Brasil e Rússia ficaram para trás na corrida do Brics? As causas têm diferenças e semelhanças. No caso da Rússia, segundo analistas, houve grande impacto na economia interna das sanções aplicadas pelas potências ocidentais a partir de 2014 por causa da anexação da Crimeia. Ocorreu também uma queda dos preços do petróleo, principal produto de exportação russo. Além disso, problemas internos como a falta de reformas e a expansão do Estado são citados como inibidores de investimentos. E houve ainda, a partir de 2014, a adoção de uma severa política de restrição de gastos governamentais que desaqueceu a economia. Por tudo isso, mais de 20 milhões de russos, de uma população total de 145 milhões, vivem hoje abaixo da linha da pobreza.
No caso do Brasil, ainda vivemos uma disputa de diagnósticos. Por que o país desabou a partir de 2014? Os mais ortodoxos dirão - alias, já se cansaram de dizer - que tudo foi consequência de políticas irresponsáveis dos governos petistas, principalmente o de Dilma Rousseff, que criaram um grande problema fiscal e desestimularam investimentos. Os heterodoxos da esquerda também já se cansaram de dizer que tudo correu muito bem até 2013 - o gráfico abaixo mostra isso -, mas a economia desabou depois que passou a predominar a teoria da austeridade fiscal.
Brincar com fogo
Esse embate nunca vai terminar. Fato é que o Brasil ficou parado no tempo nos últimos seis a sete anos. E há semelhança preocupante entre o que ocorre hoje com o Brasil e a derrocada russa a partir de 2014. Lá, as sanções externas se deram por questão geopolítica, a guerra com a Ucrânia pela posse da Crimeia. Aqui, as ameaças já começaram e as possíveis sanções envolvem questões ambientais, porque a comunidade internacional não aceita a catastrófica política brasileira nessa área.
Por enquanto, com Donald Trump na Casa Branca, o Brasil ainda pode continuar com sua política irresponsável, mas, se Joe Biden vencer as eleições, poderá sofrer uma asfixia econômica semelhante à da Rússia após a anexação da Crimeia. Não haverá mais complacência global para negacionismos ambientais. Para quem já é o pior do Brics, seria um desastre. O governo brasileiro, literalmente, brinca com fogo.
Gustavo Loyola: Riscos no horizonte
O fracasso na aprovação de reformas trará um quadro de turbulência econômica em 2021
A mediana das projeções para o crescimento do PIB brasileiro em 2021 está em 3,47%, segundo a pesquisa Focus divulgada pelo Banco Central na última segunda-feira. Entretanto, alguns riscos relevantes se acumulam no horizonte e podem levar tais previsões a se frustrarem, deixando a economia brasileira bem aquém de uma recuperação em “V”, após o gigantesco tombo provocado pela covid-19.
O risco mais óbvio deriva da provável queda da renda disponível das famílias, em razão do término do programa do coronavoucher, para o qual não há substituto possível em razão das limitações fiscais. Alguma mitigação parcial deste efeito pode ser viabilizada, observadas as possibilidades orçamentárias, mas somente uma recuperação mais forte da ocupação faria a massa real de renda das famílias crescer em 2021 e sustentar o aumento do consumo.
Ocorre que a dinâmica do mercado de trabalho no pós-pandemia vem sendo afetada negativamente por diversos fatores que ainda estarão presentes nos próximos meses. Há, é verdade, um processo de recuperação do emprego em curso, mas com uma velocidade inferior à que seria desejável. Além disso, a retomada ocorre de maneira heterogênea, com desempenho ainda negativo do segmento de serviços. Isso decorre não apenas do legado de estragos que a pandemia deixou sobre as empresas - muitas quebraram e outras diminuíram de tamanho - como também das incertezas ainda existentes tanto no campo da saúde quanto no da economia.
Com relação à pandemia, o agravamento da situação europeia e também nos EUA nas últimas semanas tem sido um balde de água fria sobre o otimismo que vinha se construindo aqui com a redução da taxa de infecção e de mortalidade que trazem maior relaxamento das restrições à movimentação das pessoas. Não se pode descartar a possibilidade que uma segunda onda de infecções ocorra também aqui no Brasil em alguns meses. Nesse contexto, é bem compreensível a relutância de algumas empresas em retomar plenamente a recontratação de mão-de-obra, enquanto não fique mais clara a questão da covid-19.
O ambiente de incertezas em relação à pandemia pode se dissipar caso se viabilize no curto uma vacina efetiva contra o novo coronavírus que possa ser massivamente aplicada nos próximos meses.
Contudo, há outro fator que está afetando negativamente as expectativas: a percepção sobre o estágio atual do debate público a respeito do risco fiscal, no contexto de um endividamento público fortemente magnificado pelas despesas e renúncias de receita associadas ao combate aos efeitos econômicos negativos da pandemia. Preocupa especialmente a falta de definição do governo federal sobre o que fazer diante dos desafios sérios que se apresentam no campo das finanças públicas.
O ministro Paulo Guedes, infelizmente, não tem conseguido liderar o debate do tema no seio da administração, contestado que tem sido até pelo próprio Presidente da República em questões viscerais para a manutenção da responsabilidade fiscal.
Não bastasse isso, os demais poderes da República parecem absolutamente descompromissados com o tema, como se restrição orçamentária fosse apenas uma criação ficcional de alguns economistas amalucados. A propósito, deve ser mencionado que o aumento do risco fiscal já está levando o mercado a exigir prêmio crescentes nos leilões de títulos públicos, o que é um sinal grave e incontestável da degradação das expectativas.
A questão fiscal, vale dizer, não se cinge apenas à manutenção ou não do teto constitucional de gastos. Pode até surgir um remendo qualquer que preserve o teto em 2021, mas sem um ataque mais direto às fontes endógenas do crescimento das despesas públicas e uma reforma tributária mais abrangente o ambiente de incertezas se manterá ao longo do ano que vem, derrubando o ritmo da retomada da economia. Cabe lembrar que em 2022 haverá eleições presidenciais, quando será muito mais difícil a aprovação de reformas ou medidas impopulares no Congresso Nacional. Em razão disso, é bem provável que um eventual remendo fiscal dure pouco, não sobrevivendo ao início do debate sobre o orçamento de 2022.
Assim, para restaurar a confiança dos agentes econômicos e afastar o risco de insolvência no endividamento público, o Brasil necessita de instrumentos estáveis e embutidos no nosso quadro legal que sejam compatíveis com a responsabilidade fiscal numa perspectiva de médio e de longo prazos. O fracasso na aprovação nos próximos meses de reformas que sejam conducentes à restauração do equilíbrio fiscal no futuro imediato trará um quadro de turbulência econômica em 2021, com maior volatilidade no câmbio e aumento das taxas de juros, que inviabilizará a retomada sustentável da atividade e a queda do desemprego.
*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
Fernando Exman: Uma ideia que pode ser mais palatável
Projeto pode garantir verbas na ponta sem assustar o mercado
Brasília é uma ilha, costumam dizer os seus críticos quando identificam uma desconexão do que é discutido no centro do poder com o que ocorre no restante do país. E aqui vale o alerta: afirmar isso a um brasiliense mais fervoroso pode provocar discussão séria, briga mesmo. O incauto interlocutor logo é acusado de ser mais um paulista arrogante ou defender o retorno da administração federal para o Rio de Janeiro, onde se podia ir ao Parlamento e à praia no mesmo dia. Mas, feito o protesto, o próprio brasiliense há de reconhecer que a assertiva tem um fundo de verdade, o qual, inclusive, voltou a ficar em evidência na pandemia.
Durante muito tempo, uma caminhada pelo Plano Piloto, área nobre e central, de fato pouco dizia sobre a situação do Brasil e do brasileiro, as mazelas vividas nos rincões ou os desafios enfrentados nos grandes centros urbanos. Infelizmente, a crise acabou aproximando Brasília da realidade observada já há muitos anos em outras capitais e regiões metropolitanas.
O aumento da pobreza é concreto. Pilotis transformaram-se em abrigos precários para um número crescente de moradores de rua. Trabalhadores informais, que nunca foram “invisíveis” para os mais preocupados com os problemas sociais do país, hoje estão presentes em praticamente todos os semáforos ou estacionamentos. Buscam formas de ganhar a vida, sem saber que a poucos quilômetros de distância autoridades negociam o futuro do auxílio emergencial.
Talvez esse até seria o assunto nas mesas do Piantella hoje à noite, mas o tradicional restaurante fechou as portas logo no início da crise. Jornalistas também não poderão mais discutir as conjunturas política e econômica no Moisés - estabelecimento bem mais acessível, mas não menos tradicional. O bar não fez jus ao seu nome bíblico e sucumbiu à praga. Não atravessará a pandemia.
Casos semelhantes são vistos por todo país, porém em Brasília cenas aparentemente corriqueiras podem dar pista de algo errado que esteja ocorrendo ou alguma má alocação de recursos públicos em curso. A circulação de parlamentares e dirigentes partidários por uma determinada agência do Banco Rural passou despercebida por muito tempo, por exemplo, até que surgiu o escândalo do mensalão no governo Lula.
Há poucos dias, observou-se a curiosa movimentação de uma servidora do governo local num conhecido centro comercial especializado em móveis. Sem maiores preocupações com quem a ouvia, ela cotava os preços de diversos modelos de cadeira de escritório e alertava a vendedora: estava com pressa, pois tinha que concluir a compra do mobiliário antes do fim do decreto de calamidade. A partir de janeiro, acrescentava, o orçamento seria mais curto. O controle no uso dos recursos? Mais rígido.
Escancarou-se, em poucos minutos e num episódio pontual do cotidiano brasiliense, uma das motivações da possível prorrogação do estado de calamidade pública.
O governo federal e a base aliada até demonstram sincera preocupação com a situação das famílias mais vulneráveis. Como era de se esperar, o desembarque do coronavírus no Brasil levou Executivo e Legislativo a chegarem a um entendimento em relação à ampliação dos gastos na área social. Os dois Poderes também decidiram calibrar o valor do auxílio até o fim do ano, mas até agora não conseguiram encontrar espaço no Orçamento para dar lastro ao novo programa assistencial que o governo pretende manter a partir de janeiro.
A despeito do impasse, o presidente Jair Bolsonaro insiste num instrumento capaz de continuar alavancando sua popularidade. E essa sinalização tem fomentado discussões, no Congresso e em segmentos desenvolvimentistas do governo, sobre a necessidade de se prorrogar o estado de calamidade e os mecanismos de flexibilização das regras fiscais para além do dia 31 de dezembro.
Gestores estaduais e municipais acompanham com grande interesse. A medida possivelmente ampliaria também o fôlego financeiro dos prefeitos no início de mandato. Sem a prorrogação, os gestores tendem a correr para gastar o máximo possível, como demonstrou a jovem servidora do GDF.
Segundo publicou o Valor nesta semana, os municípios podem chegar ao fim de 2020 sem usar grande parte dos recursos que têm em caixa carimbados para combater a covid-19. Isso representa, mais especificamente, cerca de metade dos R$ 42,2 bilhões em repasses extraordinários feitos pela União às prefeituras neste ano, montante que pode ter que retornar ao governo federal.
As articulações sobre o Renda Brasil, a PEC do pacto federativo e o Orçamento estão, portanto, perigosamente se mesclando com os interesses e as necessidades de curto prazo dos entes subnacionais. Em outras palavras, dos cabos eleitorais dos deputados e senadores em 2022.
Para contornar esse risco, está em curso uma articulação no Congresso em favor da tramitação de um projeto de lei de autoria da senadora Simone Tebet (MDB-MS) que autoriza o uso, até o fim de 2021, dos recursos transferidos para Estados e municípios durante a pandemia e que não foram ainda executados.
O PL já foi aprovado no Senado e pode ganhar regime de urgência na Câmara dos Deputados, se essa amarração for bem-sucedida. Seu texto original estendia o prazo para recursos vinculados diretamente apenas à saúde e à assistência social, mas agora eles poderiam ser usados para qualquer finalidade.
Essa seria uma saída para se dar efetiva destinação a verbas que já entraram no radar do mercado e na contabilização da equipe econômica, sem representar um atentado ao teto de gastos. Na visão dos responsáveis pela iniciativa, os valores “estão precificados”.
Pela sua viabilidade política, a ideia despertou a atenção de representantes dos prefeitos. Esse é um exemplo de como a ilha pode se conectar ao restante do país com mais responsabilidade.
Luiz Carlos Azedo: Tudo dominado? Quase
A indicação de Kassio Marques surpreendeu, todos esperavam alguém ‘terrivelmente evangélico’, como prometera o presidente Jair Bolsonaro
Indicado para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, o desembargador federal Kassio Nunes Marques será sabatinado hoje, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado (CCJ). A presidente da comissão, senadora Simone Tebet (MDB-MT), pretende ler e sustentar o parecer favorável do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), que está impossibilitado de fazê-lo por motivo de saúde. Com toda certeza, Marques passará por algum constrangimento, quando nada, devido ao currículo anabolizado, mas seu nome será aprovado pela maioria. A rejeição à sua indicação está confinada aos senadores do grupo Muda Senado.
A indicação de Kassio Marques surpreendeu, todos esperavam alguém “terrivelmente evangélico”, como prometera o presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, trata-se de um magistrado do Piauí, católico, indicado pelo senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, o principal partido do Centrão. A tese de que foi resultado de um acordo com os ministros do Supremo Dias Toffoli e Gilmar Mendes não procede; ambos prefeririam que o nome escolhido fosse um magistrado com passagem pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos ministros Luís Felipe Salomão, Humberto Martins e Luiz Otávio de Noronha eram cotados para vaga.
Um almoço na casa de Toffoli, com a presença do presidente Jair Bolsonaro e seu indicado, ao qual compareceu o ministro Gilmar Mendes, gerou a especulação de que a indicação era fruto de um acordo com o Supremo, cujo objetivo seria blindar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Segunda Turma do Supremo, no processo das rachadinhas da Assembleia Legislativa fluminense. O evento gerou mal-estar na Corte e provocou reação do novo presidente do STF, ministro Luiz Fux, que propôs e aprovou, por unanimidade, uma mudança regimental que transferiu os julgamentos sobre inquéritos e processos criminais para o plenário do Supremo, o que acabou com essas especulações.
Kassio Marques chegou ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), com sede em Brasília, na cota dos advogados, por indicação da então presidente Dilma Rousseff. Não por acaso, agora, tem o apoio do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que faz oposição a Bolsonaro, e da bancada do PT no Senado. O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que preside a Casa, trabalha ostensivamente para aprovação do nome de Kassio, sendo o primeiro a comunicá-la aos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
Pizzaria
A propósito, o voto de Kassio Marques no Supremo pode ser decisivo para Alcolumbre viabilizar sua reeleição no Senado. Seus movimentos junto ao Palácio do Planalto e aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) miram esse objetivo. Internamente, tem uma posição bastante consolidada, graças aos acordos de bastidor que fez com as bancadas do MDB e do PT. Apesar de já ter maioria em plenário para aprovar uma mudança regimental que viabilize sua reeleição, Alcolumbre depende de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considere a mudança um assunto interna corporis, ou seja, que deve ser decidido pelo próprio Senado. A reeleição é considerada inconstitucional pelos senadores que integram o grupo Muda Senado.
Por essa razão da reeleição, o presidente do Senado tem evitado bolas divididas. É o caso do escândalo envolvendo o senador Chico Rodrigues (DEM-RR), seu correligionário, flagrado na semana passada com R$ 33 mil na cueca, durante uma operação de busca e apreensão da Polícia Federal em sua residência. Alcolumbre não deu um pio sobre o caso, que desgastou tremendamente o Senado, mas atuou fortemente para que Chico Rodrigues se licenciasse do cargo. Com isso, evitou que o plenário do Supremo Tribunal federal (STF) julgasse a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que afastou o parlamentar do cargo. Também trabalhou para que o Conselho de Ética do Senado não se reunisse para apreciar o caso.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Polícia Federal investigam um esquema de desvio de recursos públicos destinados ao combate ao novo coronavírus em Roraima, que chegaria a R$ 20 milhões em emendas parlamentares. Chico Rodrigues é suspeito de lavagem de dinheiro e está sendo acusado de tentar obstruir a ação da Justiça. Como se licenciou do cargo, o ministro Barroso suspendeu a liminar que havia determinado seu afastamento do Senado por 90 dias e solicitou ao presidente do Supremo, Luiz Fux, que retirasse o caso da pauta da sessão plenária de hoje.
Eros Roberto Grau: Igualdade ou desigualdade?
Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristóteles, Lewandowski e Barroso
O Magazine Luiza recentemente implementou um programa de contratação de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclarem negros ou pardos. Daí foram desdobrados inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussão dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.
O artigo 5.º da nossa Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitário, desigual.
A concreção da regra da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até porque – e isso é repetido desde Platão e Aristóteles – a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: a Constituição e as leis devem distinguir pessoas e situações distintas entre si a fim de conferir distintos tratamentos normativos a pessoas e situações que não sejam iguais.
Mais, permito-me lembrar dois acórdãos exemplares. Um lavrado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 – relator o ministro Ricardo Lewandowski – outro na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 – relator o ministro Luís Roberto Barroso.
Leem-se na ementa do primeiro deles os seguintes trechos: “I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5.º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares; II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.
Na ementa da ADC 41, o seguinte: “1. É constitucional a Lei n.º 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
As lições de Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso confirmam que não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços, que não se interpretam textos de Direito isoladamente, mas sim o Direito, no seu todo.
Repito: todos são iguais perante a lei, mas a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 26.690, quando exerci a magistratura no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmei que “sabemos, desde Platão e Aristóteles, que a igualdade consiste exatamente em tratar de modo desigual os desiguais”.
Ainda que seja assim, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União, subscrita por Jovino Bento Junior, nos deixa perplexos. A Defensoria Pública da União é incumbida, nos termos do disposto no artigo 4.º, inciso XI, da Lei Complementar 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, e entre os grupos que merecem proteção especial do Estado está a população negra. O que essa ação pretende, penetrando o absurdo, é que seja dado tratamento igual aos desiguais.
A lição de Carlos Maximiliano é primorosa, cá se aplicando qual uma luva. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (maiúsculas no original).
O programa de contratação implementado pelo Magazine Luiza é iluminado pelos meus velhos amigos Platão e Aristóteles e pelos de agora, lá do Supremo, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso.
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi ministro do STF