Day: outubro 20, 2020

Pablo Ortellado: Vacinação contra a Covid deve ser compulsória

Congresso e STF precisarão garantir instrumentos de coerção para vencer sentimento anti-vacina

Como esperado, a politização da Covid ampliou as resistências à vacinação. Pesquisa da CNN Brasil, publicada na última sexta (16), mostrou que 46% dos brasileiros não tomariam a "vacina da China" (Coronavac) e 38% não tomariam a "vacina da Rússia" (Sputnik V). Os números são altos e podem inviabilizar a imunidade comunitária, já que a Coronovac pode ser aprovada em breve.

A resistência à vacina chinesa, testada pelo Instituto Butantã, é resultado da campanha anti-China do governo Bolsonaro e da disputa política do presidente com o governador João Doria. Esse antagonismo se agravou com a declaração do governador de que a vacinação será compulsória e com a réplica de Bolsonaro de que não será.

O grau de imposição da vacinação é um problema delicado de política pública.

Por um lado, uma democracia liberal deve permitir a expressão do sentimento antivacina, respeitando as liberdades de pensamento, de expressão e de objeção de consciência.

Por outro, a liberdade individual não pode se sobrepor ao interesse coletivo de atingir a imunidade comunitária. Como as vacinas não têm 100% de eficácia, quando alguém não se vacina, não põe em risco apenas a própria vida, mas também a de parte dos seus concidadãos vacinados que ainda podem ser contaminados.

A experiência internacional apresenta um leque de instrumentos de imposição, que vão das multas a quem não se vacinar à exigência de comprovantes de vacinação para matricular as crianças na escola ou para acessar programas sociais.

Como o governo federal promove a hesitação em relação à vacinação, e como há limitações jurídicas às ações dos estados, cabe a Alcolumbre e a Rodrigo Maia, de um lado, e ao STF, de outro, garantirem que, uma vez aprovada uma vacina, possamos atingir a imunidade.

Alguns estados e cidades já solicitam cadernetas de vacinação para a matrícula nas escolas públicas.

Essa proposta pode ser nacionalizada por meio do PL 5.542/19, em tramitação no Senado. Ela pode ser expandida ainda para incluir, no caso da Covid, os estudantes do ensino superior.

Outra medida a ser tomada é exigir a vacinação contra a Covid de todos os membros da família para acessar o Bolsa Família. Além disso, pode-se exigir que trabalhadores que atuam diretamente com o público se vacinem. A cobrança da vacinação a estudantes, famílias beneficiárias do Bolsa Família e trabalhadores que lidam com o público deve ser suficiente para atingir a imunidade comunitária.

Embora a saída para vencer o sentimento antivacina seja o convencimento do público, no curto prazo vamos precisar de instrumentos de coerção.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pedro Fernando Nery: A pandemia vai começar

Números de pobreza e desigualdade podem disparar em 2021

Quase 20 milhões de brasileiros foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencial. Outros 10 milhões saíram temporariamente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastadores que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.

Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisador Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulações tradicionais (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhadores que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupação.

Em 2021, um terço dos brasileiros poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.

Por isso, é extremamente preocupante a abordagem conformista externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimentos, na sexta-feira. Diante das dificuldades de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencial, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentável”.

É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitadas para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.

Vejamos: uma mãe com renda de R$ 300 por mês vivendo com um filho recebeu R$ 1.200 por mês no auxílio emergencial. No Bolsa Família, seriam R$ 41 mensais. Se a renda dela fosse um pouco maior, de R$ 400, o valor recebido no Bolsa seria zero: a família não seria pobre o suficiente para receber qualquer valor. Frise-se que para receber o auxílio emergencial essa família de duas pessoas poderia ter renda de até R$ 1.000.

É evidente que um benefício generoso como o auxílio emergencial é atualmente impagável, o que não quer dizer que os valores envolvidos no Bolsa Família não sejam draconianos. Como Rogério Barbosa mostra, os números do Bolsa estão há anos muito atrás da inflação (o pico do valor médio foi em 2014, e o da linha de pobreza em 2010).

Existem muitas possibilidades de avançar. Uma em voga nas últimas semanas é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que propõe fazer mais com a mesma quantidade de recursos empregadas hoje em programas como o abono salarial. No entanto, exigiria que o presidente da República voltasse atrás quanto a sua negativa para a reforma do abono.

Uma possibilidade, mais progressiva do ponto de vista da distribuição de renda, foi a levantada na última semana pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Gastos com benefícios de servidores e militares poderiam ser suspensos para fortalecer a política social. Exigiria que o presidente revisse o posicionamento de que os atuais servidores não devem ser afetados por mudanças.

Há ainda um conjunto de propostas no Congresso com interpretações menos conservadoras sobre o teto de gastos, admitindo a possibilidade de que a despesa com um programa como o Bolsa Família possa ultrapassar o teto – compensado por ganhos de arrecadação sobre os mais ricos.

É intuitivo que os padrões de distanciamento social nos próximos meses vão ditar a magnitude da alta do desemprego e da pobreza com o fim do auxílio. Por ora, o aumento parece inevitável: trabalhos como o de ambulantes não se adaptam ao Zoom.

Dez milhões de pessoas deixaram de trabalhar em 2020 e é improvável que com o encerramento dos programas temporários todas voltem rapidamente aos postos anteriores.

Se o auxílio emergencial pode ter sido sobredimensionado para uma crise econômica que até agora foi menos severa do que poderia ter sido, o fato é que somente “voltar ao Bolsa Família” pode representar um choque imenso. Em 2020, com o auxílio emergencial, o Brasil observou mínimas históricas na desigualdade e na pobreza extrema. A partir de 2021, pode observar um movimento rápido e expressivo no sentido contrário: números de pobreza e de desigualdade como não víamos há anos ou mesmo décadas. Um movimento insustentável.

*Doutor em economia


Armando Castelar Pinheiro: Xadrez tributário

Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça

Sexta-feira me pediram para ensinar a jogar xadrez. Tenho um tabuleiro e peças grandes, da época em que jogava regularmente, e fomos em frente. É um jogo complicado, com peças que se movimentam de formas variadas e que se joga pensando no agora e em vários lances à frente. Depois fiquei pensando como seria absorver e processar tanta informação.

Não muito diferente, conclui, do que ocorre comigo em relação à reforma tributária. Depois de seis reuniões que tivemos no Ibre sobre o tema, com alguns dos maiores especialistas no assunto, das áreas de direito, economia e ciência política, todos querendo o melhor para o Brasil, ainda não consegui formar uma opinião, ou entender tudo o que está em jogo.

Eis o que captei. Todo tributo incide sobre uma base: por exemplo, patrimônio, renda, movimentação financeira, folha salarial ou receita ou valor adicionado com a produção de um bem ou serviço. Esta última categoria, a tributação sobre bens e serviços, é o foco das propostas em discussão no Congresso: o PL 3887/2020, enviado pelo governo; a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara; e a PEC 110/2019, em tramitação no Senado. A proposta é cuidar desses tributos separadamente dos incidentes sobre as demais bases.

Tributos reduzem a eficiência econômica, alguns mais que outros. Quem defende a reforma argumenta que, na tributação de bens e serviços, aplicar alíquota única, uniforme em todo território nacional, incidente sobre o valor adicionado, cobrada no local de domicílio de quem compra, penalizaria menos a eficiência. Há, porém, dois problemas com isso.

Um, que a eficiência não é o único objetivo. Assim, há quem defenda uma tributação progressiva, com alíquotas mais baixas para itens que pesam mais na cesta de consumo dos mais pobres, como alimentos, e mais altas para os usados pelos mais ricos, como carros ou barcos de luxo. Há também quem defenda diferenciar alíquotas por preocupação com saúde (fumo e bebidas alcoólicas, por exemplo), educação (livros, escolas, cursinhos), meio ambiente (carros a álcool vs gasolina), ou política industrial. E há quem defenda a liberdade das unidades da federação fixarem alíquotas distintas para atrair investimentos.

Obviamente, levar tudo isso em conta é reproduzir o que temos hoje, com a briga das empresas por classificações favoráveis de seus produtos e a guerra fiscal. E esses outros objetivos podem e devem ser atingidos via outros instrumentos. Só que aí a coisa fica mais complexa e entra em cena a desconfiança quanto ao cumprimento de promessas.

Dois, que a capacidade do fisco arrecadar os tributos devidos não é a mesma em todos os setores e em todo o país. Em princípio, isso pode ser atenuado via a substituição tributária, como ocorre hoje em dia com combustíveis, em que o recolhimento se dá na refinaria, não no posto de gasolina. Mas desde os trabalhos de Frank Ramsey se sabe que é mais fácil e eficiente tributar bens e serviços cuja demanda é pouco sensível ao preço, o que explica porque eletricidade e telecomunicações são tão taxados. Em especial, um aumento da tributação em setores com muitas empresas e consumidores sensíveis a preço pode levar a um aumento da informalidade, frustando as projeções de receita e de aumento da eficiência. A manutenção do Simples mitiga esse problema, mas não se sabe em que escala.

Há um certo consenso de que pagar imposto no Brasil é complicado, dá muito trabalho e dá margem a disputas judiciais trilionárias, o que joga contra a eficiência e a capacidade do país atrair investimentos. Também há convergência de que muito disso se deve às chamadas obrigações acessórias, que dizem respeito à miríade de documentos que precisam ser apresentados ao fisco, e às regras que regem os conflitos entre o fisco, em busca de arrecadar mais, e os contribuintes, dedicados ao planejamento e à elisão tributária.

Mas há forte divergência sobre como resolver esses problemas, se é possível fazê-lo sem mudar a estrutura tributária, com medidas infra-legais, ou não. Também há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça. A coisa se complica pela necessidade, em caso de reforma, de um período de transição, que pode ser longo, para calibrar a alíquota a cobrar e permitir a amortização de investimentos realizados com a atual estrutura tributária.

Uma das reuniões foi sobre como avançar politicamente com a reforma. A experiência sugere que a forma como ela é apresentada ao eleitor faz bastante diferença, mas que o debate atual está centrado apenas em quem perde ou ganha com ela. Em paralelo, me parece, há um debate entre nossos enxadristas tributários, em que o público torce, mas não entende. Não soa como um caminho promissor para resolver nossos problemas nessa área, que não são pequenos.

Pode até ser que algum grupo dê um xeque mate nos outros, ou que uma torcida prevaleça sobre as demais, mas acho difícil. Mais seguro seria destrinchar esse debate para o grande público, mostrando as vantagens de cada alternativa em itens como produtividade, custo de cumprir as regras, litigiosidade etc.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


José Casado: Jogo de alto risco

Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos comerciais relevantes

Sob intensa pressão empresarial, governos do Brasil e dos Estados Unidos correram para concluir acordos relegados há anos ao remanso da diplomacia. Estão longe do pacto “ousado”, anunciado a cada semana dos últimos 22 meses por Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes.

Notável foi a pressa para terminá-los a apenas duas semanas da eleição americana. É consequência de temores no setor privado com o duplo risco no horizonte: possível derrota de Trump combinada às dificuldades brasileiras com um eventual governo democrata, cujo potencial Bolsonaro insiste em multiplicar a cada avanço de Joe Biden.

Os papéis de ontem resumem expectativas de inversão no estado degradado das relações bilaterais. O fluxo de comércio e de investimentos caiu 25%, o mais baixo na década, atestando perdas com as ilusões bolsonaristas sobre o alinhamento a Donald Trump na guerra com a China.

Os compromissos anunciados são relevantes, porém restritos. Cria-se um canal para liberação mais rápida de mercadorias e ajusta-se uma futura revisão de leis, para cumprir velhas promessas na tributação. Novidade é um legado da Operação Lava-Jato, aquela que Bolsonaro anuncia ter liquidado: adoção no Brasil de padrões anticorrupção usuais nos EUA, com proteção jurídica a quem denuncia subornos.

Aparentam menos vantagens que a proposta chinesa já enunciada pelo embaixador Yang Wanming, para aumento dos investimentos: cooperação na economia digital a partir da tecnologia 5G e comércio aberto, com redução de emissões de carbono até 2030 e neutralidade até 2060.

Na sua diplomacia errática, Bolsonaro se arrisca a terminar o mandato sem acordos relevantes com os EUA, com a Europa e, ainda, brigando com a China por causa da tecnologia 5G, embora tenha presidido um inédito aumento da dependência de Pequim, cliente único de 40% das vendas do agronegócio brasileiro. Deveria ouvir o diplomata Thomas Shannon, que serviu aos governos Obama e Trump. Ele apareceu em São Paulo ontem, advertindo: o Brasil não deveria se meter e muito menos escolher um lado na guerra EUA-China.


Bernardo Mello Franco: Vitória de Evo, derrota de Bolsonaro

A vitória de Luis Arce na Bolívia sela mais uma derrota da diplomacia de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo. A dupla envolveu o Brasil na quartelada que derrubou o então presidente Evo Morales. Menos de um ano depois, os golpeados deram o troco nos golpistas e voltaram ao poder pelo voto.

Bolsonaro e Araújo festejaram a derrubada de Evo, que teve a casa invadida e foi obrigado a fugir do país. O chanceler trapalhão tuitou que não houve “nenhum golpe” na Bolívia. Horas antes, uma junta militar havia ocupado a TV para exigir a renúncia do presidente.

Evo ignorou um referendo na tentativa de se perpetuar no poder. No entanto, a alegação de que ele teria fraudado a última eleição nunca foi provada. O relatório da OEA que apontava “graves irregularidades” na apuração caiu em descrédito. Foi desmontado por especialistas de três universidades americanas.

Além de apoiar a virada de mesa, o Itamaraty ajudou a entronar Jeanine Áñez como presidente interina. Ela descumpriu a promessa de convocar eleições em janeiro e usou o cargo para perseguir opositores, segundo relatório da Human Rights Watch.

Ao tomar partido dos golpistas, o Brasil perdeu condições de mediar a crise no país vizinho. Foi uma estratégia desastrada. Ontem o chanceler Araújo passou o dia em silêncio, enquanto a oposição boliviana parabenizava Arce pela vitória em primeiro turno.

Esta não foi a primeira operação tabajara da política externa de Bolsonaro. O Itamaraty se associou a Juan Guaidó na tentativa de derrubar Nicolás Maduro na Venezuela. O presidente autoproclamado sumiu do mapa e o chavista continuou no poder.

O Planalto também fracassou ao tentar interferir nas eleições da Argentina. O capitão se empenhou na campanha de Mauricio Macri, mas não conseguiu evitar o triunfo de Alberto Fernández.

O peronista se fortalece com a escolha dos bolivianos. Em 2019, ele condenou a quartelada e ofereceu asilo diplomático a Evo. Ontem celebrou a vitória de Arce como uma “boa notícia para quem defende a democracia na América Latina”.


Carlos Andreazza: Colegialidade de ocasião

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares

A lei é boa. E era necessária. Refiro-me ao artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal: aquele — expressão do estado de direito — que estabelece a necessidade de a prisão preventiva ser revista a cada noventa dias. Lembremo-nos: prisão preventiva é medida cautelar de natureza provisória. Há requisitos para que alguém seja mantido em cárcere por essa razão. Por exemplo: representar risco à ordem pública. São dezenas de milhares os brasileiros — sobretudo pretos e pobres — esquecidos, presos provisoriamente, em cadeias do Brasil profundo; a grande maioria sem oferecer os riscos que justificam a preventiva.

Exigir que essa condição seja reexaminada a cada três meses é movimento da civilização. Aqui, uma obviedade: tivesse a lei sido aplicada corretamente, André do Rap estaria preso. Ele, ameaça à sociedade, encarna as razões para a privação cautelar de liberdade. Aqui, portanto, outra obviedade — para desmontar a falácia dos oportunistas que querem fazer do episódio escada para reabilitar a prisão após condenação em segundo grau: o criminoso não está foragido porque a jurisprudência corrente no Supremo impõe trânsito em julgado para o cumprimento de pena.

Debatamos a questão. Mas sem embustes.

Diga-se que o erro original de Marco Aurélio Mello não derivou de sua leitura do artigo 316 do CPP. Tivesse o ministro respeitado, antes, a súmula 691 do STF, sua análise do habeas corpus — que resultou na liberação do traficante — nem sequer existiria. Marco Aurélio não foi ingênuo, tampouco literalista. Foi negligente com o regramento da corte constitucional. Simples. O STJ já havia indeferido a liminar. Não cabia acolhimento pelo STF. Ponto final. O ministro, no entanto, atropelou a súmula; para então se lançar ao fetiche, com o qual sempre se defende, de que processo não tem capa — como se isso, o enfrentamento impessoal de um caso, eximisse-o de estudar o conteúdo e pedir informações a respeito.

Não é todo dia que o tribunal se depara com a demanda por liberdade de um traficante que comercia toneladas de cocaína. O Supremo não precisaria deliberar sobre a não automaticidade da lei se Marco Aurélio tivesse trabalhado. Sua consulta — ao juízo de primeiro grau — sobre o processo teria bastado para que o juiz responsável pela prisão se visse provocado a renová-la. Chama-se bom senso. Algo que poderia ajudar a corte constitucional a não legislar tanto. Porque, afinal, a disciplina — talvez o menor dos males — que o STF assentou sobre como se comportar (blindar, na verdade) diante do artigo em xeque não deixou de ser mais uma invasão no terreno da atividade legislativa. Menos mal também porque, ainda que legislando, o Supremo acabou por avalizar a constitucionalidade da (boa) lei.

Não pode passar despercebida a proposição esperta que, a propósito da leitura do artigo 316 do CPP, tentou encaixar Alexandre de Moraes; segundo quem, havendo, contra o indivíduo preso preventivamente, condenação em segundo grau, não seria necessária a revisão da cautelar a cada noventa dias. Isto mesmo: o ministro, sem corar, tentava erguer um puxadinho para fazer valer de novo a prisão após condenação em segunda instância. Não prosperou. Ainda.

Prosperou, porém, a derrota, dura, de Marco Aurélio — exposto, sem dó, pelos pares. Um decano jogado ao mar. Não se pode dizer, entretanto, que Luiz Fux tenha vencido. O placar engana sobre o que foi o jogo. O tribunal fez a escolha pelo improviso menos danoso à sua imagem. Só por isso endossou, cheio de ressalvas, a intervenção — ilegal e autoritária — de seu presidente. Fux a chamou de excepcionalíssima. Mentiu.

O recurso autofágico — ministro suspendendo liminar de ministro — tem sido usado com frequência. Dias Toffoli usou. Idem o próprio Fux, agora tão dedicado a valorizar a colegialidade. Ou não terá sido ele o — censor, e censor prévio — que sustou decisão, perfeitamente legal, de Ricardo Lewandowski, que autorizara uma entrevista de Lula desde a prisão? Este Fux que ora vem, cheio de mídia, para combater a febre monocrática, outrora censor monocrático, sendo o mesmo que por quatro anos se sentou sobre liminar — monocracia corporativista de próprio punho — que garantiu auxílio-moradia para juízes e procuradores. Conta bilionária.

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares, como se os ministros fossem birutas, embasadas pelo vento influente, oportunista, de ocasião, não raro com a intenção de jogar para a galera, não raro fora da lei.

A suspensão discricionária de Fux da liminar bizarra de Marco Aurélio — Supremo comendo Supremo — se baseou em lei, a 8.437, que absolutamente não lhe autoriza o ato; como sem qualquer lastro legal foi a decisão de Barroso pelo afastamento do senador Chico Rodrigues. Assim vamos. Ademais sob o risco de, como forma de controlar a convulsão das canetadas monocráticas, impor-se uma tirania da colegialidade que, na prática, resulte em restrição ao habeas corpus.

Cuidado. De nada adiantará um choque de plenário se houver escassez de juízes.


Míriam Leitão: Ministro para sete mandatos

A senadora Simone Tebet (MDB-MS) presidirá amanhã na CCJ a sessão de sabatina do indicado para ser ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela nega que vá ser apenas um rito pró-forma, mas admite que no Brasil o interrogatório do candidato é curto. Contudo, acha que não é esse o problema e defende uma mudança na Constituição para alterar a maneira como é escolhido o ministro do Supremo e seu tempo de permanência.

— O maior problema é constitucional, é preciso mudar a forma de indicar os ministros. É muito poder na mão de um presidente. E mudar a vitaliciedade. Melhor seria um período fixo, de 10 anos, com quarentena de cinco anos para se candidatar a qualquer cargo público — disse a senadora.

Essa é uma discussão que vem de algum tempo no Senado, mas a senadora reforça o ponto de que não é por ser o atual presidente. Ela explicou que, se for aprovada, a PEC só valerá no ano seguinte à aprovação. Como não seria votada este ano, mas apenas em 2021, valerá em 2022, quando Bolsonaro já terá feito as duas escolhas do seu mandato.

O debate vem do fato de que há muitas formas de se organizar em países democráticos o poder de escolha e o tempo de permanência de ministros da suprema corte. Há países em que os ministros têm mandatos fixos. Na Alemanha, são 12 anos, mas com limite de 68 anos. Na França, são nove anos. Nos EUA é vitalício mesmo. No Brasil, até 75 anos, o que é um tempo que permitirá, por exemplo, o desembargador Kássio Nunes ficar até 2047. Ele sairá no sétimo mandato após o presidente atual. É poder demais de quem escolhe, é excessivo o tempo de quem é escolhido, e o Senado para piorar aprova tudo que chega lá.

Uma PEC de 2015 de autoria do senador Lasier Martins (Podemos-RS) tentando alterar esse sistema tramitou no Congresso por algum tempo e foi retomada no ano passado. A PEC estabelecia o período de dez anos e foi votada na CCJ.

— Inclusive eu votei favorável, foi relatada pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG). A primeira mudança era dar ao presidente uma lista tríplice, com um indicado pelo próprio Supremo, outro pela PGR e outro pela OAB. Haveria um juiz, um procurador e um advogado, e o presidente escolheria e enviaria para o Senado.

Em 2016 foi aprovada na CCJ, mas em 2018 foi arquivada ao fim da legislatura. No início de 2019 houve um pedido para desarquivar e foi de novo para a CCJ.

— No mesmo momento em que cheguei aqui eu entreguei ao relator original, o senador Anastasia. Mas havia outras prioridades naquele momento, como o pacote anticrime e a discussão da segunda instância. Este ano veio a pandemia — explicou a senadora.

Seja como for, é necessário, mesmo que o presidente não fosse Bolsonaro com seus estranhos motivos de escolha. Os critérios de Bolsonaro vão do hábito tubaína ou de ser ou não terrivelmente evangélico. “Tinha uns 10 currículos na minha mesa, eu ia optar por um. Eu até falei: olha esse cara tem que tomar uma cerveja comigo ou tubaína. Eu não vou indicar um cara só pelo currículo. Ele tem que ter afinidade comigo, através da tubaína ou coca-cola”, argumentou o presidente.

Pode haver muito debate sobre tudo isso e sua implicação em escolhas de outros tribunais, mas o fato é que uma pessoa escolhida quando jovem pode ficar 30 anos no cargo com poderes que aumentaram nos últimos anos. Se é um bom ministro, o tempo pode não parecer longo, se é uma má escolha — e disso há exemplo inclusive no STF de hoje — o país precisa carregar por tempo excessivo.

O debate é por que o Senado não exerce seus poderes constitucionais e barra quando é inconveniente, quando há riscos na indicação para além de questões meramente subjetivas? O regimento interno do Senado prevê um trâmite célere, muito mais do que nos Estados Unidos, onde se vê agora o absurdo de uma indicação extemporânea. Aqui, a sabatina deve ser na quarta-feira e em seguida pode ir para o plenário. Muito provavelmente esta semana termina com Kássio Nunes Marques sendo aprovado ministro do STF. Entre as várias perguntas que ele precisa responder com sinceridade é quem o apresentou ao presidente Bolsonaro. Ele nega que tenha sido o encrencado advogado Frederick Wassef. Menos mal. O relatório do senador Eduardo Braga é laudatório e não ajuda em nada o processo de escolha. Mas seria bom se os senadores brasileiros exercessem o seu papel institucional de nos deixar conhecer quem foi escolhido numa roda de tubaína.


Eliane Cantanhêde: Por bem ou por mal

Para o ‘senador da cueca’ só restou se licenciar por livre, mas não espontânea, vontade

Muito se falou da vice-liderança do governo e da “união estável” do senador Chico Rodrigues (RR) com o presidente Jair Bolsonaro, mas o agora famoso “senador da cueca” é do DEM e atinge a corrida do partido para polir sua imagem, aprofundar a transição geracional, disputar prefeituras importantes e se colocar o melhor possível para 2022. Daí porque a pressão pelo pedido de licença de Rodrigues. Ou saía por bem, ou saía por mal.

O DEM é o partido dos presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, do prefeito de Salvador, ACM Neto, da ministra Tereza Cristina, do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e do presidente do Conselho de Ética do Senado, Jayme Campos. Afora Campos, todos têm planos políticos ambiciosos e optaram por um silêncio estridente sobre o vexame do correligionário, a quem só restou pedir licença, “por livre, mas não espontânea, vontade”.

A licença é um alívio para todo mundo. O plenário do Supremo por não ter de julgar amanhã se acata ou não o afastamento do senador determinado pelo ministro Luís Roberto Barroso. O plenário do Senado por não ter de votar a favor ou contra o colega. Para o DEM, a chance de sair de fininho, como Bolsonaro. O problema foi combinar com o “adversário”: Rodrigues não queria aceitar.

Ele é senador, já foi deputado e governador e é empresário bem-sucedido, logo, não é absurdo ter R$ 33 mil em casa, ainda mais porque, cá entre nós, os filhos e a ex-mulher do próprio presidente da República têm mania de pagar apartamentos, planos de saúde e escolas com dinheiro vivo… Então, por que Rodrigues escondeu a grana na cueca? Caracterizou ocultação de provas e agrediu a máxima de que “quem não deve não teme”. O que ele temia, ao ser acusado de desvios milionários na saúde?

Além de espernear diante da polícia, ele resistia também à pressão dos senadores e, particularmente, do DEM para se licenciar, mas eles colocaram a faca no pescoço: ou se licenciava ou seria cassado pelo Conselho de Ética. Nesse script, o STF derrubaria o pedido de afastamento; sem a liminar, não haveria objeto a ser votado pelo Senado e todos viveriam felizes para sempre. Ele, às voltas com polícia, MP e Justiça, mas com o filho na sua vaga.

Depois de Bolsonaro lavar as mãos e se descolar do problema, o principal interessado nesse roteiro é Alcolumbre, que tem quatro pontos em comum com o “senador da cueca”: foram deputados juntos, são senadores, representam o Norte e tentam driblar a Constituição para dar mais um mandato para Alcolumbre na presidência. Até ontem, ele agia, mas não tinha dado um A sobre o escândalo.

Enquanto isso, Bolsonaro se prepara para uma sucessão de vitórias nesta semana no Senado, com a aprovação dos seus nomes para Supremo, TCU, Anvisa, Anac. Afora um ou outro senador de oposição, e só para marcar posição contra, ele vai vencer por lavada, com destaque para o sem currículo Kassio Nunes Marques no STF e o amigão Jorge Oliveira no TCU.

Tudo caminha do jeito que Bolsonaro gosta: saia-justa no Supremo, Congresso às voltas com velhos “probleminhas”, seus escolhidos alçados a cargos-chave sem empecilhos, enquanto, como mostrou o Estadão, a paisagem nos Estados vai sendo salpicada por outdoors e fotos de Bolsonaro em campanha – uma campanha camuflada.

Tudo vai tão bem para o capitão Bolsonaro que ele já se sente à vontade para trocar o general Hamilton Mourão por um vice do Centrão – com aval dos militares. Tempos estranhos, que o DEM via como uma avenida de oportunidades para o centro responsável, mas, com dinheiro em cuecas e a direita e os militares lavando as mãos para os absurdos de Bolsonaro, vai ficando difícil. O negacionismo está em alta e o inaceitável virou moda.


Ricardo Noblat: A saída imoral para salvar o senador do dinheiro na cueca

E não atrapalhar a reeleição de Alcolumbre

O senador Jayme Campos (MT), presidente do Conselho de ética do Senado, sugeriu, ontem, que seu colega Chico Rodrigues (RR), flagrado com 33 mil reais escondidos na cueca, metade entre as nádegas, peça licença do mandato por 120 dias.

A sugestão tem duas razões de ser. A primeira: deixar que o caso esfrie para que Rodrigues salve o mandato. A segunda: tirar Rodrigues de circulação para evitar que seu caso atrapalhe a reeleição para presidente do Senado de Davi Alcolumbre (AP).

Campos, Rodrigues e Alcolumbre são do mesmo partido, o DEM. A eleição do próximo presidente do Senado será na primeira semana de fevereiro de 2021. Se Alcolumbre conseguir driblar a Constituição, se reelegerá com Rodrigues ainda de licença.

Sabe quanto custa um senador por mês? Salário bruto: 33.763 reais. Mais: de 30 mil a 45 mil reais a título de cota para o exercício da atividade parlamentar. Ou seja: para que trabalhe. Mais: apartamento funcional ou auxílio moradia de 5.500.

Chega? Não. Tem mais: ressarcimento integral de todas as despesas médicas, não só as dele, mas do cônjuge e dependentes com até 21 anos de idade, ou até 24 se forem universitários. E mais: 80 mil de verba para gastos com pessoal.

Em resumo: um senador custa mensalmente aos cofres públicos cerca de 170 mil reais. O dinheiro dos impostos pagos por cada um de nós alimenta os cofres públicos. Você concorda que Rodrigues ganhe 680 mil por quatro meses de pernas para o ar?

Por que o Conselho de Ética não se reúne à distância e cassa o mandato de Rodrigues? O Senado não se reúne à distância e aprova até mudanças na Constituição?


Andrea Jubé: A eleição da Mesa e a dança das cadeiras

Fábio Faria, Guedes, Maia, Renan e Kátia: todos por um

Aos trancos e barrancos, com a democracia equilibrando-se na corda bamba por um período, o governo do presidente Jair Bolsonaro engrenou e está cada dia mais parecido com um governo convencional pós-retomada democrática, sustentado pelos partidos do Centrão.

É nesse cenário que soa natural a reforma ministerial que se avizinha. Cada vez mais pragmático, como todo político, Bolsonaro está sendo convencido por aliados a promover uma reforma ministerial após a eleição para as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado em fevereiro.

O objetivo será recompor espaços e consolidar a base governista no Congresso, a fim de garantir a governabilidade e começar a alinhavar as alianças para a reeleição.

Bolsonaro já negou, e para não perder o costume, chamou de “fake news” as primeiras notícias sobre as iminentes mudanças no time de auxiliares.

Contudo, aliados de seu núcleo mais próximo confirmaram à coluna, reservadamente, o movimento nos bastidores, que dependerá dos resultados das eleições para a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na Câmara e Davi Alcolumbre (DEM-AP) no Senado.

Como já se sabe, a dança das cadeiras começa com a nomeação do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, para a vaga de José Múcio Monteiro no Tribunal de Contas da União (TCU). Múcio deixa a cadeira em dezembro.

Bolsonaro é uma caixa de surpresas, mas, neste caso, a tendência é que ele confirme as principais apostas, indicando o secretário especial de Assuntos Estratégicos, vice-almirante Flávio Viana Rocha, para o lugar de Oliveira.

Os passos seguintes da reforma dependerão da emocionante sucessão nas duas Casas. A começar pelo impasse constitucional que obnubila a reeleição da dupla Maia e Alcolumbre. A Constituição veda a reeleição dos dirigentes das Casas. A brecha criativa, instituída por Antônio Carlos Magalhães, contempla a passagem de uma legislatura para outra, o que não ocorre no momento.

Para se preservar, Maia já rechaçou a reeleição. Mas na política, assim como na vida, quem desdenha, quer comprar.

Rodrigo Maia está no comando do Legislativo há quatro anos, desde que se elegeu para um mandato-tampão em 2016, após a renúncia de Eduardo Cunha.

A combinação do traquejo político com a longevidade no cargo, a proximidade do mercado e o trânsito franqueado em quase todas as bancadas, o alçaram ao patamar de um “player” estratégico, quase indispensável.

Por isso, um time expressivo de aliados argumenta que um político com o perfil de Maia não pode se despedir do cargo e, simplesmente, no dia seguinte, aterrissar na planície. Esse grupo articula sua nomeação para um ministério - fala-se na pasta da Educação -, caso sua recondução para novo mandato se revele impraticável.

Segundo fontes do palácio, pelo menos dois ministros - Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) - estão na linha de frente dessa articulação. Até porque Ramos é cabo eleitoral da candidatura de Arthur Lira (PP-AL) à cadeira de Maia.

Como ministro, Maia seria um articulador de luxo do governo para ajudar a impulsionar as reformas econômicas no Legislativo.

Por sua vez, reconstituídos os laços com Maia, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não seria óbice ao projeto. Aliás, estão todos vestindo a mesma camisa: Rodrigo Maia, Fábio Faria e Paulo Guedes uniram-se em torno de um núcleo de poder, ao qual se somam os traquejados senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Kátia Abreu (PP-TO).

As cenas dos últimos capítulos mostraram Renan, Kátia e Rodrigo Maia como as lideranças do parlamento mais engajadas no socorro a Paulo Guedes. Renan, registre-se, articulou o jantar de reconciliação de Maia e Guedes, do qual participaram Fábio Faria, Kátia e Luiz Eduardo Ramos.

Não foi aleatória a alfinetada de Guedes em Alcolumbre, quando afirmou que o presidente do Senado teria mais tempo para ajudar o governo se não se empenhasse tanto na reeleição.

A visão de uma ala do Palácio do Planalto é que o Supremo Tribunal Federal (STF), sob a batuta de Luiz Fux, impedirá a “aventura constitucional”, que avalizaria a reeleição de Maia e Alcolumbre.

A se confirmar essa hipótese, o cenário que essa ala palaciana vislumbra é uma candidatura competitiva do MDB ao comando do Senado, com a simpatia do governo. Os candidatos seriam Renan Calheiros ou Eduardo Braga (MDB-AM), ambos com o respaldo de Paulo Guedes, Ramos, Fábio Faria e Rodrigo Maia.

Na Câmara, sem Maia, o palácio continua apostando em Arthur Lira. Mas a factível postulação da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, do DEM, não desagrada ao Planalto. Neste cenário, Maia teria que trabalhar o apoio de seu grupo ao nome de Cristina, e trazer a oposição para esta candidatura.

Nesta hipótese, a redistribuição de espaços na Esplanada seria decisiva para prosperar a articulação. Uma eventual eleição de Tereza Cristina para o comando da Câmara - avançando-se, aqui, 20 casas no tabuleiro - obrigaria Bolsonaro a abrir espaços no primeiro escalão para acomodar o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o Republicanos, do vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (SP) - outro nome competitivo para a sucessão de Maia, que também conta com a simpatia do governo.

Pelo umbigo

E por falar em Republicanos, o clã Bolsonaro nunca esteve tão umbilicalmente ligado ao partido, lembrando os apoios a Celso Russomanno em São Paulo, e a Marcelo Crivella no Rio de Janeiro. Com a eleição da nova direção do Senado, o senador Flávio Bolsonaro (RJ) deixará a Terceira Secretaria, que Davi Alcolumbre ofereceu a outro aliado. Para não ficar na planície, Flávio será o novo líder do Republicanos no Senado a partir de fevereiro. É mais um passo na direção contrária do Aliança pelo Brasil, do qual Flávio é o primeiro vice-presidente.


Merval Pereira: Senado exposto

A credibilidade pública do Senado enfrentará esta semana tarefas difíceis que as circunstâncias uniram em poucos dias. Caberá aos senadores aprovar a indicação do atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência Jorge Oliveira para uma vaga do Tribunal de Contas (TCU) que não existe ainda; sabatinar para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) o desembargador Kássio Marques, acusado de adulterar seu currículo e de plágio; e tentar salvar o mandato do senador Chico Rodrigues, flagrado pela Polícia Federal com notas de R$ 200,00 escondidas em suas partes íntimas.

A falta de compostura do presidente Bolsonaro veio novamente à tona nas indicações apressadas de seus candidatos ao TCU e ao STF. Quando anunciou que Kassio Marques era o escolhido, a vaga do ministro Celso de Mello ainda não existia, o que havia era data anunciada por ele para se aposentar.

As boas maneiras republicanas, seguidas por todos os presidentes da República, mandam que o nome do sucessor só seja divulgado depois da abertura oficial da vaga, uma média de 150 dias. A mais rápida dos últimos governos foi a indicação do falecido ministro Carlos Alberto Direito seis dias depois da publicação da aposentadoria de Sepulveda Pertence.

Como estamos em tempos estranhos, a maioria dos senadores já fez sua sabatina particular com Kassio Marques em jantares presenciais e conversas digitais, e tudo indica que nem seu currículo fajuto, nem as circunstâncias em que seu nome surgiu do nada, serão levados em conta na hora de sabatiná-lo. O importante é ter entre os ministros do STF mais um “garantista” que vê exageros na Operação Lava Jato.

Também a sabatina de Jorge Oliveira para um cargo que não existe acontecerá no Senado. A melhor definição da situação está no despacho do ministro Dias Toffoli negando ação do senador Alessandro Vieira que queria impedir a sabatina sob a alegação de que a vaga só será aberta em dezembro, quando o ministro José Mucio anunciou que se afastará do TCU.

Toffoli alegou que não há prazo específico para a indicação de ministros do TCU, “não cabendo ao Poder Judiciário exercer juízo censório sobre a oportunidade e a conveniência desse procedimento”. A inconveniência do momento da indicação é apenas um registro a ser feito, que marca mais uma vez a gestão do presidente Bolsonaro como um ponto fora da curva do republicanismo que vai sendo lentamente corroído.

O último desafio do Senado parece estar sendo encaminhado para uma solução imediata que evitará uma confrontação com o Supremo Tribunal Federal que, através do ministro Luis Roberto Barroso, suspendeu o mandato do senador Chico Rodrigues por 90 dias, prorrogável por mais 90.

O plenário do STF vai analisar amanhã a decisão, e provavelmente referendará a liminar de Barroso. Os senadores já estão negociando uma licença de 121 dias para que Chico Rodrigues possa organizar sua defesa diante do Conselho de Ética.

Vai precisar mesmo, pois até o momento a narrativa que vem contando não se coloca em pé. Disse o senador que provará a origem lícita do dinheiro, que seria para pagar os empregados de seus negócios. Por que, então, teve a estranha reação de colocar o dinheiro em local tão abscôndito que constrangeu muitos de seus pares? A possibilidade de vazamento do vídeo é hoje um fantasma a assombrar os senadores que querem salvar Chico Rodrigues.

A suspensão do mandato, por decisão espontânea, seria a melhor solução, mas deixará a descoberto mais uma das disfuncionalidades do Senado. O suplente de Chico Rodrigues é seu filho, que assumirá a vaga com os mesmos compromissos do pai, garantindo que, na sua ausência, nada mudará.

O espírito que levou Chico Rodrigues a enfiar o dinheiro onde não devia se manterá intacto na representação do DEM de Roraima, garantindo inclusive o apoio à reeleição ilegal à presidência do Senado de David Alcolumbre. Que tem sido um dos bastiões do corporativismo na Casa, inclusive nesse caso de Chico Rodrigues.


Luiz Carlos Azedo: Tudo é perigoso

Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo a batalha para a violência

A música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, veio à lembrança por causa da morte do jovem Caio Gomes Soares, atingido por uma bala perdida após levantar da cama para pegar um suco, por volta das 7h de ontem, no Catumbi, Rio de Janeiro. Faleceu nos braços da irmã, sem tempo de receber socorro. É uma canção de 1968, que faz parte do antológico disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, do qual participaram também os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, que interpretou a canção da forma explosiva que viria a ser sua marca registrada.

“Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a estrofe e para o refrão: a música fala do perigo ao dobrar uma esquina, do que pode cair do alto de uma janela, do cuidado ao pisar no asfalto e do sangue no chão. Não havia naquela época o perigo de levar um tiro por ir até a geladeira, para tomar um refrigerante, em certas localidades do Rio de Janeiro.

Um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Coroa teria sido a origem do disparo que matou o jovem Caio, num bairro tradicional do Rio de Janeiro, muito próximo do centro histórico da cidade, um dos cenários de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis inaugurou o nosso realismo, ao retratar a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo de sua época. Entre o Rio Comprido, Santa Teresa e o Estácio, hoje, o Catumbi não é mais um bairro abastado. É um território em frequente disputa entre traficantes e milicianos, principalmente por causa da proximidade do Morro de São Carlos, onde existe uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar fluminense, e o túnel Catumbi-Laranjeiras, de acesso à Zona Sul carioca, que o transformou num bairro de passagem.

Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo novamente a batalha para a violência, resultado de uma política de segurança pública que facilita a venda de armas, estimula a justiça pelas próprias mãos e tolera a formação de milícias, fenômeno que está sendo exportado do Rio de Janeiro para os demais estados do país, sem que se tenha muita noção do perigo que isso representa.

Pesquisa divulgada neste fim de semana sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade, nos quais vivem 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes da capital fluminense: 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias; 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho; 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando; 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.

Enquanto isso…

Em Brasília, a cúpula do Senado pressiona o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) para que se licencie do cargo, antes do julgamento da liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que o suspendeu do mandato, previsto para amanhã, no plenário da Corte. O parlamentar foi flagrado pela Polícia Federal (PF) tentando esconder R$ 33,1 mil na cueca, durante operação de busca e apreensão em sua residência. Agora, alega que o dinheiro era destinado ao pagamento de funcionários e tenta justificar a sua posse, argumento que não cola na opinião pública, mas é a linha de defesa de seus advogados. Os senadores do grupo Muda Senado querem cassar seu mandado no Conselho de Ética, mas o presidente do órgão, senador Jayme Campos (DEM-MT), seu colega de partido, se recusa a convocar uma reunião do colegiado — prefere sugerir que Chico se licencie logo.

Por sua vez, Bolsonaro resolveu reiniciar sua campanha negacionista contra a obrigatoriedade do uso da vacina contra a covid-19: “Tem uma lei de 1975 que diz que cabe ao Ministério da Saúde o Programa Nacional de Imunização, ali incluídas possíveis vacinas obrigatórias. A vacina contra a covid — como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão — não será obrigatória”, disse, em cerimônia no Palácio do Planalto, para apresentação de pesquisa sobre um medicamento. Completou: “Qualquer vacina precisa ter comprovação científica e ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. Foi uma resposta ao governador de São Paulo, João Doria, que anunciou ontem a intenção de iniciar a vacinação contra a covid ainda neste ano. Uma vacina chinesa que está sendo testada pelo Instituto Butantan.

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