Day: outubro 4, 2020
Uma conversa: Luciano Huck & Rutger Bregman
Jovem ativista e historiador holandês defende que “preguiça” seja mais taxada do que trabalho e que pobreza seja resolvida dando dinheiro às pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado
Sei que sou um privilegiado, sei que sou visto assim. Homem, branco e nascido numa família de classe média de professores universitários --num país em que ser mulher, negro ou pobre já impõe obstáculos às vezes intransponíveis, cresci dentro de uma redoma social, estudando em bons colégios, protegido por meus pais e rodeado pelo carinho dos meus avós.
Mas, ali mesmo, ouvia as histórias de meu avô Maurício – que não eram exatamente as de um privilegiado. Na primeira metade dos anos 1930 ele vivia, em Grajewo, uma cidadezinha da Polônia com cerca de 2 mil habitantes. Era um adolescente judeu num mundo de ameaças. Atos corriqueiros, como andar pela vizinhança, traziam grandes perigos.
Meu avô sofreu violências e humilhações inúmeras vezes nos trajetos de casa para a escola. Até o dia que abriu a janela para deixar o sol entrar e viu uma oportunidade. Dela vislumbrava todo o centro de Grajewo, um quadrilátero em que as edificações de madeira, típicas dos bairros judaicos daquela época, ficavam todas coladas umas nas outras. Ele se apoiou no parapeito e dirigiu os olhos para aquela paisagem de telhados emendados uns nos outros, como retalhos de uma colcha. Estava bem ali, na sua frente, a solução. Poderia simplesmente caminhar pelo topo das casas.
A vida na dificuldade e a solução criativa para escapar dela formam uma impressão de infância que não me larga nunca, por melhor que estejam as coisas.
Profissionalmente, tive a liberdade de trilhar meu próprio caminho, a oportunidade de encontrar cedo a minha profissão e a sorte de ter podido ganhar dinheiro com aquilo que amo fazer. Quando a pandemia nos atingiu, eu tive imenso privilégio de poder parar o trabalho, me isolar em casa e me dedicar àquilo que eu tenho de mais precioso: a minha família. Foram quatro meses vivendo da porta para dentro. Todos agradecendo a cada dia por estarmos vivos e com saúde.
Mas vinha sempre o exemplo de meu avô Maurício. Havia muita angústia com aquilo que se passava da porta para fora, no Brasil e no mundo. Por isso busquei formas de “pular a janela e caminhar sobre as casas”. Usei minhas plataformas pessoais para divulgar mensagens responsáveis sobre a gravidade da doença. Amplifiquei a voz de quem não estava sendo ouvido. Articulei muitas iniciativas do setor privado de resposta social à pandemia. Fiz a ponte com favelas e comunidades carentes para a distribuição de recursos de emergência. E sigo tentando trazer alguma luz para o debate pós-pandemia por meio do diálogo com pensadores de vanguarda que respeito e admiro. E foi assim que nasceu esta série de conversas publicadas no Estadão.
Por aqui jé tive o privilégio de ser atendido por Yuval Harari, Esther Duflo, Michael Sandel, Tom Friedman, Thomas Piketty e tantos outros iluminadores. Sempre pensando em criar um caminho, passar dos problemas para as soluções, usando meus privilégios para tentar achar uma janela para o Brasil melhorar, buscar caminhos disruptivos para problemas que às vezes podem até parecer insolúveis.
Na conversa de hoje optei por um jovem muito talentoso e com ideias provocativas e pensamentos fora da caixa. Autor e historiador holandês, Rutner Bregman faz parte de uma nova onda de ativistas, pensadores e políticos, que inclui Alexandria Ocasio-Cortez, a nova congressista democrata de 29 anos, e Greta Thunberg, a manifestante climática de 16 anos, cujas alternativas radicais têm angariariado aceitação mundo afora.
Bregman tem 32 anos. Cresceu nas décadas de ambos os lados do milênio, nas quais grandes batalhas ideológicas eram consideradas uma coisa do passado.
Li seu último livro – Utopia Para Realistas – durante meu isolamento. Uma visão idealista que muitos descartariam como pura fantasia, mas faz pensar.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
Luciano Huck: Você é parte de uma nova legião de pensadores ativistas. Tem 32 anos e já está guiando importantes tópicos do debate público ao redor do mundo. Jovens como você, Alexandria Ocasio-Cortez, do Congresso americano, e Greta Thunberg são iluminadores de uma nova utopia. O Brasil é um país em que praticamente não há mobilidade social. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), demora nove gerações para que um brasileiro que nasceu em uma família pobre alcance a média da classe média. Em outras palavras, as pessoas aqui não têm nem sequer o direito de sonhar. O que dizer a elas? Há uma utopia possível para esta geração?
Rutger Bregman: Devemos começar reconhecendo que todo marco histórico da civilização em algum momento foi uma fantasia utópica. Quando pensamos na abolição da escravidão, na ascensão da democracia, no nascimento do Estado do bem-estar social... tudo isso começou com pessoas que, no princípio, foram descartadas e consideradas loucas, irrealistas, irracionais. Com pessoas que não foram levadas a sério. No entanto, em determinado momento, a ideia da mudança conquistou a maioria. É nisso que eu me interesso como historiador. Como é possível que ideias em princípio bizarras ou mesmo ridículas se desloquem para a corrente principal e acabem mudando a história do mundo? E nós estamos vendo isso acontecer.
Luciano Huck: Seu livro mais recente se dispõe a discutir como construir um mundo melhor usando a utopia como importante ferramenta, com pensamentos arrojados e ideias inovadoras. O que mudou na sua visão depois da pandemia?
Rutger Bregman: Nos últimos 40 anos, vivemos a era neoliberal. O neoliberalismo é uma ideologia que nasceu em meados dos anos 50 com um grupo de pensadores muito importantes, incluindo os economistas Milton Friedman, americano, e Friedrich Von Hayek, austríaco. Eles acreditavam que o mercado poderia resolver tudo, que as empresas e negócios poderiam salvar tudo desde que o governo saísse da frente e nós abolíssemos todas as regras, diminuíssemos os impostos, etc. A desigualdade não seria um problema – desde que deixássemos os negócios livres, poderíamos resolver qualquer coisa. Isso teve uma influência imensa, principalmente após os anos 70 e 80, quando Ronald Reagan foi eleito nos EUA e a Margaret Thatcher foi eleita no Reino Unido. Eu nasci em 1988, um ano antes da queda do Muro de Berlim, e, especialmente depois da queda, as pessoas tinham essa ideia de que havíamos chegado ao “fim da história”, de que o comunismo tinha perdido e o capitalismo tinha vencido, de que esse modelo de capitalismo democrático era tudo o que restava e não havia mais nenhum grande problema a se resolver. Obviamente é muito difícil de acreditar nisso em 2020. Nós vimos o Brexit, a eleição de Donald Trump, vimos a ascensão de líderes autoritários pelo mundo, como Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil, vimos uma pandemia, a covid-19, mudar completamente nosso mundo.
A era neoliberal está acabando. Nós estamos caminhando para uma nova era. A era antiga girava em torno dos valores da competição e do individualismo, da noção de que as pessoas são fundamentalmente egoístas. Mas agora nós estamos caminhando para algo diferente, que pode ser muito pior, mas também pode ser muito melhor. Eu não sei se você viu, mas em abril deste ano o Financial Times, o principal jornal de negócios do mundo, um jornal para as pessoas ricas do mundo, publicou um artigo de seu conselho editorial dizendo que precisamos “reverter a direção das políticas dos últimos 40 anos” e pensar em aumentar os impostos dos ricos, dar ao governo um papel mais ativo, ter políticas mais arrojadas para estimular inovação, combater a mudança climática e erradicar a pobreza. Não estou dizendo que isso vai acontecer, mas acho que existe a esperança. Essas ideias eram antes totalmente descartadas por serem ridículas e bizarras, mas agora são as ideias principais. Acho que isso é um indício esperançoso.
“Em um país que quer se desenvolver, o combate a pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.”Luciano Huck
Luciano Huck: Nos seus trabalhos, você lembra que, nos últimos 200 anos, a população mundial tornou-se mais rica, bem nutrida e saudável. Que 84% da população mundial vivia na extrema pobreza em 1820, e que hoje essa parcela é menor do que 10%. Você pode falar um pouco sobre isso e como você enxerga o Brasil, um país com tantos pobres e miseráveis, nessa equação?
Rutger Bregman: Nós vivemos um momento muito paradoxal. Estamos na melhor de todas as épocas, mas talvez também estejamos na pior de todas. Por um lado é inegável que fizemos avanços extraordinários nos últimos 30, 40 anos. Se observarmos o mundo, a expectativa de vida aumentou, a extrema pobreza diminuiu, as pessoas são mais saudáveis, têm mais dinheiro, são mais ricas do que nunca. É um fato. Agora, você recentemente conversou com Thomas Piketty, o economista francês, certo? Ele aponta que a desigualdade também aumentou bastante, e isso também é um fato.
A desigualdade é um veneno para a sociedade. Ela separa as pessoas, envenena as democracias, destrói a sociedade civil. Há alguns países ricos ou de renda média que têm um grau incrivelmente alto de desigualdade. E esse é o caso específico do Brasil. Se existe um lugar em que as pessoas deviam falar muito de impostos, esse lugar é o Brasil. É onde você precisa dessa redistribuição massiva dos bens e da renda. Não estou dizendo que devemos migrar para uma sociedade comunista, onde todos têm a mesma quantidade de bens. Isso não vai funcionar. Mas você tem que impor um limite para a desigualdade. Porque, do contrário, você não consegue ter uma democracia efetiva e saudável. Chega um ponto em que você só distancia tudo, as coisas não funcionam mais. Nesse ponto você começa a ver as pessoas mais ricas comprando eleições, elas conseguem fazer o que quiserem, surgem dinastias, isso é muito louco. Outra coisa que também é bastante preocupante é o que estamos fazendo com o meio ambiente. Tenho 32 anos. Durante a minha vida foi emitido mais da metade de toda a emissão de gases da era industrial desde 1750. Em uma geração nós criamos a pior parte do problema, e agora nós temos uma geração para resolver. Então é uma época muito estranha para se estar. Por um lado, tivemos um progresso enorme, mas, por outro. parece que estamos dançando sobre um vulcão sem a certeza de que o futuro será tão iluminado.
Luciano Huck: Mas você acha que, depois de tudo que estamos passando, o mundo vai levar mais a sério os avisos da ciência sobre as ameaças climáticas e as suas consequências para a vida na Terra?
Rutger Bregman: As crises fazem isso. As crises te fazem perceber coisas que você sempre soube, mas que, por algum motivo, esqueceu. Um dos momentos que eu achei mais interessantes na pandemia foi nas primeiras semanas, quando os governos ao redor do mundo estavam definindo as listas dos chamados trabalhadores essenciais, que não podiam parar. Eu achei isso ótimo. Porque você olha para essas listas e descobre quais são os trabalhos realmente importantes na sociedade. Nessas listas estavam enfermeiras, coletores de lixo, professores... Um momento como esse te faz perguntar quem são os verdadeiros geradores de riqueza na nossa economia. Será que é verdade que toda a riqueza é gerada no topo e goteja para baixo? Ou será que a maior parte da riqueza é gerada embaixo, pelas pessoas que realizam os trabalhos de verdade?
“Todo marco histórico da civilização começou com uma utopia, com uma ideia considerada irracional”Rutger Bregman
Luciano Huck: Você assistiu esse novo documentário na Netflix, Dilema das Redes? Ele faz importantes alertas. Mostra que são jovens que programam as redes sociais que estão intensamente influenciando e pautando o mundo. São eles também que dominam os algoritmos mais poderosos da internet. Em sua enorme maioria, porém, eles estão pouco conectados aos problemas da vida real, do debate público e político.
Rutger Bregman: Tem uma citação ótima de alguém que trabalhou muito tempo no Facebook: “As melhores cabeças da minha geração estão pensando em como fazer as pessoas clicarem em anúncios”. Você tem essas pessoas muito inteligentes que estudaram nas melhores universidades, e nós pagamos caro pela educação brilhante deles, mas então eles se formam e vão trabalhar nesses empregos estúpidos. Eles fazem isso por 20 anos, ficam muito ricos e daí têm uma crise da meia idade. Ficam completamente deprimidos porque a alma deles foi destruída. E então eles decidem que querem se tornar professores... Ué, por que não fizeram isso lá atrás? É algo muito estranho. Dentro disso que nós chamamos de economia do conhecimento, tem muito conhecimento desnecessário. Talvez precisemos voltar para a escola e pensar no que estávamos fazendo antes de alguém dizer que tínhamos que ganhar a vida.
Luciano Huck: Reduzir desigualdades, gerar oportunidades e mobilidade social sem ser um jogo de soma-zero. Quanto mais eu mergulho nas ideias mais modernas de políticas públicas, mais eu acredito que seja possível. Na minha opinião, esse devia ser o maior legado da nossa geração. O que me preocupa são os recursos humanos, as melhores sinapses se dedicando a servir a um propósito, o que não acontece hoje. Ainda prevalece o velho cada um por si. Mesmo se reunirmos todos os filantropos do Brasil, eles não seriam capaz de mover o medidor das desigualdade. Só o Estado tem esse poder. E o Estado é gerido pela política. Por isso nós precisamos de bons políticos, precisamos formar novas lideranças. Como você vê essa necessidade de novas lideranças ocuparem os espaços da política?
Rutger Bregman: Primeiro eu quero dizer algo sobre a filantropia. Eu não sou contra a filantropia. Se as pessoas são ricas e querem dar dinheiro para boas causas, isso é ótimo. O que eu sou contra é quando as pessoas ricas dizem que não precisam pagar impostos porque já estão dando dinheiro para as causas. A filantropia é usada como uma distração: as pessoas fazem um projeto qualquer para ajudar a educação, vão nos seus iates particulares para algum país africano, tiram um monte de fotos para mostrar que estão amparando as pessoas de lá e, ao mesmo tempo, evadem seus impostos. É isso que eu sou contra. Primeiro pague seus impostos, depois você me conta dos seus planos de salvar o mundo.
Sobre as lideranças e os políticos, eu, na verdade, tendo a focar em outras coisas, pois acho que os políticos estão quase sempre no fim da fila – quando todos já estão convencidos de que precisamos ir em outra direção, só aí eles percebem. Então o zeitgeist (espírito da época) tem de mudar primeiro. É só depois do trabalho do ativismo de mudar o mundo, de mudar as cabeças das pessoas, de fazer a coisa acontecer, que os políticos vão pensar “olha posso ganhar votos com isso”.
Estou animado com a ideia de dar a todos uma renda básica, erradicar completamente a pobreza, e de dar a todo mundo um pouco de capital de risco para que as pessoas possam ter as próprias escolhas na vida. Há dez anos, essa era uma ideia completamente descartada. Mas houve muita pressão de ativistas, as pessoas têm escrito sobre isso, têm pensado sobre isso, têm falado sobre isso, e só agora os políticos e os legisladores estão se interessando. Mas essas coisas nunca começam com eles; elas sempre começam nas ruas ou em lugares onde só tem café ruim e pessoas com cabelos compridos que parecem anarquistas e são meio fedidas... hahaha.
“O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter”Rutger Bregman
Luciano Huck: Hoje o Brasil é um país momentaneamente anabolizado, da popularidade do presidente aos números do comércio, pelo impacto do programa emergencial de transferência de renda que o Congresso aprovou durante a pandemia. Programa necessário, é importante frisar, que evitou nosso caos social. Mas um programa econômico e fiscalmente inviável em condições normais de temperatura e pressão para a realidade brasileira. A menos que seja um programa bem planejado, bem executado, bem fundamentado. Seu trabalho discute e aprofunda a questão da renda mínima. Qual sua avaliação sobre esses programas de emergência pelo mundo?
Rutger Bregman: Há esse debate antiquado entre pessoas de direita e de esquerda, no qual as pessoas de esquerda dizem “nós precisamos ajudar os pobres, dar dinheiro a eles” e as pessoas à direita dizem “não devemos fazer isso, pois isso torna as pessoas dependentes e preguiçosas e nós não podemos bancar tudo isso”. Esse é o debate-padrão que geralmente vemos na política. Acho que devemos ir além disso. A renda básica, na verdade, é um investimento que paga a si mesmo. Se você é um empreendedor, você obviamente sabe que, para ficar rico no futuro, você deve começar a fazer investimentos agora. Nós temos muitas evidências científicas de que, uma vez que você dá às pessoas os meios para tomarem as próprias decisões na vida, pouquíssimas delas desperdiçam dinheiro. A maioria dos pobres gasta seu dinheiro em moradia, educação, roupas, nas necessidades básicas. E então você vê as crianças indo melhor na escola, o custo da assistência médica diminui, o crime diminui. Se uma criança vai melhor na escola, ela vai conseguir empregos melhores; e, se ela tem um emprego melhor, ela paga mais impostos. Logo, isso é um investimento que te dá muito retorno. Se o crime diminui, você gasta menos com a polícia e com o sistema judiciário. A assistência médica é extremamente cara, imagine se o gasto com ela diminui? Você vai gastar menos com médicos e, além disso, se as pessoas são mais saudáveis, elas podem trabalhar por mais tempo e pagar impostos por mais tempo.
Se você se aprofundar nisso, você verá que a pobreza é o verdadeiro problema. Por isso, a renda básica não é algo de direita ou de esquerda, é simplesmente avançar. E, na história, temos pensadores e economistas mais identificados com a direita que são a favor de programas como esse, porque é uma ideia realista e racional com a qual todos vão se beneficiar.
Luciano Huck: Ainda no tema da erradicação da pobreza extrema, você enxerga mais eficiência nos programas de transferência direta de recursos ou nos programas de benefícios sociais? Por exemplo para a população em situação de rua, você acredita mais em dinheiro no bolso para a pessoa alugar um lugar para morar ou em albergues de acolhimento com serviços sociais?
Rutger Bregman: Se você ver uma pessoa desabrigada na rua, essa pessoa, em outro mundo, poderia ser sua advogada, poderia ser sua encanadora, poderia ser a sua professora, poderia ser a sua enfermeira. Toda pessoa desabrigada é um desperdício inacreditável de capital humano. Então, mesmo que você não tenha um coração, você ainda tem uma carteira. Nós deveríamos ser mais realistas e pragmáticos sobre todas essas coisas. O que é a pobreza? Pobreza é a falta de dinheiro. Como você resolve isso? Você dá dinheiro às pessoas. Isso funciona? Sim, temos muitas evidências disso. Podemos pagar por isso? Sim, nós podemos, porque não fazer nada a respeito da pobreza é muito mais caro. Os países com mais pobreza são prósperos, estão indo bem? Não, claro que não. Quais são os países mais inovadores, com os maiores índices de desenvolvimento humano? Olhe para a Escandinávia, por exemplo, onde todos têm direito a um forte Estado de bem-estar social e têm assistências de educação e de saúde. E isso não é só a coisa certa a se fazer, é porque te fornece uma sociedade mais eficiente e civilizada, onde todos se beneficiam, incluindo os ricos.
Luciano Huck: Estou há mais de 20 anos rodando meu país, entrando na casa das pessoas, ouvindo, conversando e contando sua histórias na TV. O que me trouxe ao debate público é meu enorme incômodo com nossas abissais desigualdades. Na minha última conversa neste mesmo ‘Estadão’ com Thomas Piketty, ele me disse que o Brasil não se desenvolverá enquanto não endereçar suas desigualdades – e eu concordo. Em um país que quer se desenvolver, o combate à pobreza não é bom apenas para nossa consciência, mas também para o nosso bolso.
Rutger Bregman: Observando a história e o século 20, vemos que o melhor período foi dos anos 50 até os anos 70 para os países europeus e para os EUA. Na França, eles chamam de “Trente Glorieuses”, os 30 anos gloriosos, com o nível mais alto de crescimento econômico, mais inovação, invenções pioneiras, tudo estava melhorando radical e rapidamente. Além disso, se você analisar, esse foi o período com menos desigualdade, foi quando havia altos impostos para os ricos. Acho que deveríamos ter impostos baixos para os que trabalham e impostos altos para rendas como aluguel, rent-seeking, fortunas, heranças, etc. Eu costumo falar de imposto sobre a preguiça: a preguiça deveria ser taxada e o trabalho não deveria ser tão taxado. Essa é a mudança de que nós precisamos e isso é exatamente o que vimos nos anos 50 e 60. Eu acho que a história nos ensina que a sociedade poderia funcionar muito melhor assim.
Como eu disse, nos anos 70 nós entramos na era neoliberal, que foi uma era bastante decepcionante. Alguém poderá falar da evolução tecnológica, de coisas como a internet, a telefonia móvel, etc. Mas é importante lembrar que a maioria dessas inovações foi financiada com impostos, com a ajuda do governo. Tem uma economista brilhante, Mariana Mazzucato. Ela escreveu um livro chamado O Estado Empreendedor, você vai gostar dele. Ela mostra que em cada lasca de tecnologia que faz do iPhone um smartphone, em vez de um stupidphone, a tecnologia móvel, o GPS, a bateria, tudo o que faz dele um aparelho tão bom, foi inventado por pesquisadores que estavam na folha de pagamento do governo. O que a Apple fez foi pegar essas inovações e criar um belo produto com elas, o que é ótimo, mas a Apple não teria feito isso sem todas essas inovações financiadas pelo dinheiro público. E agora o que acontece? A Apple não paga tributos, está evadindo os impostos com a ajuda de paraísos fiscais, como a Holanda, onde eu moro. Isso não deveria ser assim. É claro que nós precisamos de empresas criando bons produtos, mas elas precisam pagar seus impostos para que nós possamos financiar a próxima rodada de inovações fundamentais e, com isso, criar novos bons produtos, certo?
Luciano Huck: Passei alguns dias das minhas últimas férias em um lugar chamado Preá, no Estado do Ceará, nordeste do Brasil. Um lugar paradisíaco, que está se desenvolvendo por causa das fortes correntes de vento que tornaram o local um dos melhores pontos do planeta para a prática do kite surfe. Mas hoje, se uma grande indústria petroquímica se instalasse no local, apesar de afetar muito negativamente o meio ambiente, o PIB local cresceria barbaramente. Como você enxerga as métricas modernas de aferição de riqueza e desenvolvimento?
Rutger Bregman: Quando você vê os noticiários, você escuta bastante sobre isso, sobre a importância do crescimento econômico, que o crescimento econômico é a coisa mais importante do mundo. Nós devemos ser um pouco mais críticos quando os jornalistas e os políticos dizem isso. A questão é crescimento do quê? O crescimento pode ser uma coisa maravilhosa. Se as flores crescem, isso é ótimo. Se nossos filhos crescem, isso é ótimo. Mas se um câncer cresce, isso não é tão bom. Então, pensando no PIB, porque é disso que falamos quando tratamos de crescimento econômico, ele não mede coisas muito boas. Se a poluição aumenta, empresas ganham muito dinheiro com isso e o PIB aumenta, mas toda essa poluição tem de ser limpa, alguém tem de fazer algo a respeito, isso também custa dinheiro. Também existe uma grande quantidade de trabalhos importantes, como cuidar das crianças ou dos idosos, ou trabalhos voluntários que não estão relacionados com o PIB. No setor financeiro imenso que temos hoje, algumas partes são úteis, mas muitas outras não são e algumas acabam até destruindo riquezas, mas no conjunto elas aumentam o PIB. Acho que nós devemos abandonar essa medida. Talvez nos anos 30, 40, muito tempo atrás, ela ainda era útil, especialmente durante a 2.ª Guerra, quando tínhamos de construir tanques, aviões e o quanto fosse possível de munição. Lá podia fazer sentido olhar para esses dados e dizer que a economia estava avançando. Mas a guerra acabou. Nós vivemos em um mundo muito diferente. As coisas que fazem a vida valer a pena agora são outras. São as conexões humanas, a amizade, cuidar uns dos outros, e isso é muito difícil de mensurar.
Luciano Huck: Eu gosto desse ponto de vista, me faz pensar. Eu quero falar um pouco mais sobre o Brasil, Vivemos aqui uma confusão de narrativas. Ao mesmo tempo que temos um ambiente de negócios muito moderno, potente e cheio de oportunidades, temos hospitais públicos superlotados e uma diferença abissal na qualidade da educação entre a rede pública e a privada. Somos um país rico e miserável ao mesmo tempo. Temos que pensar nesta economia 4.0, inteligência artificial, fábricas e meios de transporte autônomos, mas ainda não conseguimos nem qualificar nossos professores e médicos como eles merecem e como a população demanda. Como você enxerga esse conflito?
Rutger Bregman: Sempre penso nas vias públicas quando entro nesse assunto. As vias são financiadas pela comunidade, e a qualidade delas depende do quão saudável a comunidade é. Se nós pagamos direito nossos impostos, teremos certeza de que as vias serão boas, de que não terão buracos, etc. O que acontece em vários países desiguais, como no Brasil, é que os ricos têm essas SUVs imensas, os carros mais fantásticos, mas têm de andar em ruas péssimas. E eu acho que faz mais sentido, e também é mais eficiente, porque você consegue ir mais rápido, se coletivamente nós garantirmos vias melhores. Talvez o seu carro não vai ser tão grande, talvez as SUVs vão ser menores, mas, no final das contas, você vai dirigir com mais segurança e conforto. Eu não acho que vai ser fácil, que as pessoas no poder vão entregar o poder sem lutar. Mas não precisa ser uma situação perde-ganha. Pode ser uma situação de ganha-ganha. É muito melhor ser rico num país igualitário. As pessoas ricas na Suécia ou na Noruega são muito mais felizes que as pessoas ricas no Brasil ou nos EUA. Elas não precisam viver em condomínios fechados, não precisam temer as pessoas pobres, as pessoas das favelas ou coisas assim.
“Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza”Luciano Huck
Luciano Huck: Você tem ideias sobre como nós podemos remodelar o capitalismo?
Rutger Bregman: Todo empreendedor precisa de capital, de algo para começar, para que possa investir e buscar um retorno para esse investimento. É aí que eu acho que devemos começar. Todos precisam de um capital inicial. Isso significa acesso a uma boa educação e de uma renda básica, algo em que possa se apoiar no caso de algum erro. No Vale do Silício, polo global de tecnologia e inovação, eles chamam isso de “capital do dane-se”. Você sempre precisa de dinheiro na sua conta para que você possa dizer não, para que você possa se demitir. O poder de dizer não é a liberdade mais importante que uma pessoa pode ter. Bilhões de pessoas no mundo não têm esse poder, pois elas são dependentes de seus empregos ruins, são dependentes das pessoas do topo. Eu quero viver em um mundo onde todos tenham um “capital do dane-se”, onde todos tenham o poder de dizer não e possam se mudar para outra cidade, se mudar para outra empresa ou até abrir uma empresa própria. As pessoas precisam ser capazes de correr riscos. Se você não consegue correr riscos, você não está em lugar nenhum. Todos deveriam ter essa chance de correr riscos. É claro que isso tem limites, mas eu acho que nós devemos construir uma base na nossa economia, algo em que você possa sempre confiar, que é essa renda básica. Obviamente, não é algo que te dá uma vida luxuosa, mas dá o suficiente para bancar as necessidades básicas, roupas, comida, abrigo, educação para seus filhos. Uma sociedade assim seria muito mais inovadora que qualquer outra.
Luciano Huck: No Brasil, todos os anos realizamos a Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. Em média, 18,2 milhões de alunos participam. Em 2019, 7.500 medalhas foram distribuídas – destas, 1.288 foram dadas a jovens beneficiários do Programa Bolsa Família. Acompanhar o desenvolvimento infantil de maneira focalizada é uma das chaves para a emancipação das famílias da condição de pobreza. Ainda não chegamos a um grau ideal de eficiência por aqui. A pandemia expôs nossas desigualdades, e uma das mais complexas no Brasil é a da educação. Não me refiro ao acesso, porque hoje a maior parte das crianças e jovens vai à escola. Eu me refiro à qualidade. Nós ainda precisamos qualificar e valorizar os professores, unificar currículos e avançar para que algum dia a qualidade da escola do pobre seja equivalente à do rico. Além da desigualdade digital que também é um problema no Brasil, pois temos estudantes digitais em um sistema analógico. Você falou sobre educação e eu quero finalizar nossa conversa com isso.
Rutger Bregman: A educação poderia ser o grande fator igualitário. Acho que em sociedades justas não existem escolas particulares. Todos estudam no ensino público, mesmo as crianças ricas. A própria existência das escolas particulares é a admissão dos ricos de que o ensino público não é bom o suficiente. Outra coisa importante é que, em escolas públicas, pessoas de origens diferentes podem se conhecer, ricas, pobres, de diferentes etnias, isso vira um caldeirão, que é o que a vida real deveria ser. Eu também acredito em um sistema educacional no qual as crianças tenham um pouco mais de liberdade. As escolas tradicionais ainda são esses lugares hierárquicos onde os professores sabem tudo e tentam enfiar esse conhecimento nos cérebros dos estudantes. A criatividade surge com a liberdade, com a possibilidade de as crianças decidirem por si mesmas o que elas acham interessante. Não existe nenhum pai que precisou pagar ou obrigar o seu filho a começar andar. As crianças simplesmente andam. Nós criamos um sistema educacional que, no final, tira essa curiosidade natural da gente, tira essa motivação intrínseca. E, então, entramos para essa economia do conhecimento na qual tentamos construir um currículo ou um perfil no LinkedIn, trabalhamos durante 20 anos num emprego que não nos interessa, enviamos e-mails para pessoas das que não gostamos, vamos a reuniões que não achamos necessárias, vemos um monte de apresentações de Powerpoint... A escola do futuro não deveria preparar as pessoas só para ganhar tanto dinheiro quanto possível, mas para viver uma vida bem vivida, para tentar acrescentar algo à sociedade. Tudo isso começa com um pouco mais de liberdade para as crianças.
Luciano Huck: Muito obrigado! Foi uma conversa ótima e inspiradora.
Samuel Pessôa: Quebrar o teto somente reacelerará a reinflação da economia
Voltar às pedaladas fiscais não resolverá, como não resolveu em passado recente
Nos últimos meses o Índice de Preços ao Produtor (IPA) da FGV apresentou forte aceleração. De maio a agosto, rodou a cada mês, sequencialmente, a 9%, 11%, 14% e 22%, em comparação com os mesmos meses de 2019.
O IPA é fortemente afetado pela elevação do preço do minério de ferro e das commodities agrícolas. O preço no mercado internacional tem subido, com a robusta recuperação da economia chinesa e com as políticas de sustentação de renda que têm bancado o consumo de alimentos mundo afora.
O preço das mercadorias que exportamos tem se elevado no mercado internacional. De fato, nossos ganhos de termos de troca, entre março de 2019 e junho de 2020, superam os de nossos parceiros comerciais em 13%.
Em geral, há um efeito gangorra entre variações de termos de troca com o câmbio nominal: sempre que temos expressivos ganhos de termos de troca o câmbio se valoriza e vice-versa. A gangorra insula a economia brasileira dos efeitos inflacionários da elevação dos preços das commodities. Trata-se de uma das maravilhas do câmbio flutuante.
A evolução do diferencial dos termos de troca com nossos parceiros comerciais explica aproximadamente 50% dos movimentos da taxa de câmbio, para uma série trimestral da moeda.
Os 50% restantes dos movimentos do câmbio na frequência trimestral estão associados aos movimentos de curto prazo da conta financeira.
A piora da percepção de risco desde 2019, recentemente agravada pela deterioração fiscal em consequência das medidas de enfrentamento da epidemia e pelas incertezas ligadas ao orçamento de 2021, desfez o efeito gangorra. Em um período em que o câmbio, pelos movimentos dos termos de troca, deveria ter se valorizado 14%, desvalorizou-se 28%. Segundo nossa medida, o câmbio se encontra, frente ao equilíbrio de longo prazo, 26% mais fraco. Trata-se da posição mais depreciada desde o início da série em 1998.
Os ganhos dos termos de troca, isto é, a alta no mercado internacional da cotação das commodities, associada a um real mais fraco, resultou na inflação no IPA.
No relatório de inflação do Banco Central, divulgado há duas semanas, há estudo sobre o repasse do IPA no IPCA. O repasse nos alimentos tem sido pleno, mas a transmissão para outros itens, principalmente combustíveis, tem sido, provavelmente em função da redução da atividade econômica com a pandemia, reduzida.
Como afirmou o diretor do Banco Central, Fabio Kanczuk, em sua entrevista coletiva de divulgação do RI, o IPCA está “um pouco grávido do IPA”.
A dinâmica da inflação é o resultado de quatro forças: inércia, expectativas, câmbio e ociosidade. Se expectativas e câmbio apontarem para uma trajetória de elevação da inflação, a ociosidade não conseguirá segurar por muito tempo. Mesmo com salários contidos pelo desemprego, observaremos IPCA caminhando para 4% em 2021.
Quando esse momento chegar, o Banco Central se verá em difícil situação: com 100% do PIB de dívida pública de reduzido prazo médio de vencimento, talvez não seja possível segurar a inflação com subida de juros. Talvez o BC mande o seguinte recado à sociedade: “Ou vocês ajustam o fiscal e façam a gestão do conflito distributivo de outra forma ou teremos que aceitar a inflação”.
Quebrar o teto não será menos dolorido. Somente acelerará a reinflação da economia.
Temos que construir um orçamento de 2021 que restaure a solvência do Tesouro. Se o equilíbrio político demandar aumento de carga tributária, mesmo com os efeitos colaterais de redução da eficiência e do crescimento, que assim seja. Voltar às pedaladas fiscais não resolverá, como não resolveu em passado recente de triste memória.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Dorrit Harazim: Tudo suspenso no ar
Com 74 anos e sobrepeso, Trump foi traído pelo vírus que há sete meses teima em negar
Deve ter sido difícil para a Casa Branca, à 1h11 da madrugada da sexta, 2 de outubro, divulgar o que sobrava da agenda de Donald Trump para o resto do dia. Reformatada às pressas pela notícia-bomba de que o presidente testara positivo para o coronavírus, a única atividade mantida foi o seu telefonema de apoio a idosos vulneráveis ao coronavírus. Ironia crudelíssima. Trump poderia ter dado o telefonema a si mesmo.
Com 74 anos de idade e sobrepeso (110 kg), colesterol alto, adepto da hidroxicloroquina, uma internação hospitalar de 2019 jamais explicada e ostentação de relatórios médicos que sempre davam a impressão de ter sido escritos pelo próprio paciente, Trump acabou traído pelo vírus que há sete meses teima em negar. Fosse ele apenas uma fraude de bilionário-ostentação, o problema seria pessoal. Dado o cargo que ocupa, o real estado de saúde do 45º presidente americano é de interesse nacional máximo e consequência global instantânea. Sobretudo quando são dois os vírus em colisão na Casa Branca: o corona e a desinformação sistemática usada pelo governante. Ambos podem se revelar mortais — o primeiro, para a vida humana; o segundo, para a vida democrática.
O resultado positivo do teste de Trump demonstra de forma inequívoca sua incapacidade de proteger a nação que o elegeu — a curva de 208 mil mortos e 7,2 milhões de infectados continua subindo — e de proteger-se de si mesmo.
Nos míseros 30 dias que faltam até a eleição de 3 de novembro — ominoso teste para o atual curso democrático dos EUA —, incertezas, medo e déficit de confiança deverão chegar a extremos. Como fica o funcionamento do país com as lideranças dos três poderes e do mais alto escalão do governo tendo tido contato de primeiro grau (sem máscara nem distanciamento) com Trump ou alguém próximo a ele? Diante do que se sabe sobre a chance de falsos negativos em testes sorológicos, todos deveriam permanecer quarentenados por 14 dias. Dificilmente conseguirão.
De uma hora para outra, a pandemia se tornou real. E, de uma hora para outra, a paciente contagem de falsidades e mentiras criadas pelo presidente — já são mais de 20 mil — deixou de ser vista como trabalho inútil do “Washington Post”. Ela explica a abissal falta de confiança na Casa Branca neste momento crítico. De sintomas inicialmente “leves”, pulou-se em algumas poucas horas à hospitalização do presidente. Como dar crédito a qualquer declaração oficial, seja do chefe da nação, de seu vice , chefe de gabinete, médico, porta-voz, estafe? Sem falar que, excetuando um tuíte madrugal do paciente, não só o país, como as lideranças do Congresso permaneceram sem informação oficial por mais de dez horas.
Sequer se sabe, ao certo, desde quando Trump está efetivamente infectado.
Pela narrativa inicial, ele se contaminou na quarta-feira, ao longo de vários périplos eleitorais — aéreos e terrestres — com sua assessora mais próxima, Hope Hicks, então já sintomática. Trump foi testado na quinta à noite. Contudo é bastante incomum para um paciente de Covid-19 receber resultado positivo já no primeiro dia após ser exposto ao vírus. É mais provável que ele tenha cumprido sua rotina da semana já infectado, mas sem sabê-lo, sempre sem máscara ou distanciamento. Vale registrar que, momentos antes do início do debate-embate de terça-feira, um dos médicos pediu aos convidados republicanos que usassem as máscaras cirúrgicas azuis recebidas. Era uma das regras obrigatórias do evento. Foi ignorada, inclusive pela primeira-dama, que dois dias mais tarde também testaria positivo.
Não foi a única regra atropelada naquele debate ímpar. Trump apostara todas as fichas no seu estilo betoneira. Imaginou triturar o adversário morno, deixando-o confuso e expondo suas fraquezas. Apropriou-se quanto pode dos 90 minutos regulamentares, invadiu o território do mediador, confiou no seu impacto macho tonitruante, insultou, interrompeu. Era mais do que uma questão de estilo, foi sua estratégia. Apesar da fragilidade de Joe Biden, porém, deu tudo mais ou menos errado — a começar pelos 3,8 milhões de dólares arrecadados pela campanha democrata nos primeiros 60 minutos do bate-boca.
Em 2016, durante seu treino com um sparring de debates antes do primeiro confronto mano a mano com Hillary Clinton, Trump foi informado do vazamento da explosiva gravação na qual ele se gabava de conseguir o que quisesse de qualquer mulher — “elas deixam você fazer tudo …agarrá-las pela xoxota… tudo”. Eram tempos mais inocentes, ainda se pensava que a revelação faria naufragar a ambição presidencial daquele meteoro alaranjado. Mas Trump venceu, cimentando sua certeza de impunidade, imunidade e invencibilidade eternas.
De repente, se vê atingido pela impensável possibilidade de derrota eleitoral. Precisaria reverter a tríade de fracassos nesta reta final da campanha — pandemia à solta, economia incerta, consequências legais de suas finanças fraudulentas caso volte a ser cidadão comum. Mas tempo e saúde para incendiar a eleição estão minguando.
“As regras são para os bobos, e eu sou esperto”, gostava de proclamar o presidente para alegria de seus seguidores. Não neste caso. Em linguagem que lhe cairia bem, “perdeu, mané”. A pandemia foi mais esperta.
Bernardo Mello Franco: A segunda morte de Chico Mendes
Na semana em que removeu a proteção a manguezais e restingas, o ministro Ricardo Salles avançou mais uma casa no desmonte dos órgãos ambientais. Na sexta-feira, ele criou um grupo de trabalho para estudar a fusão do Ibama com o Instituto Chico Mendes. O objetivo é extinguir o último, conhecido pela sigla ICMBio.
A comissão terá sete integrantes. Cinco deles são PMs nomeados no lugar de técnicos. Em portaria publicada no “Diário Oficial”, Salles disse que a mudança poderá trazer “potenciais sinergias e ganhos de eficiência administrativa”. Quem atua nos dois órgãos enxergou outra coisa. “É para não haver a aplicação da legislação ambiental”, resumiu a Ascema, associação nacional dos servidores do meio ambiente.
O ICMBio cuida de 334 unidades protegidas. Elas ocupam quase 10% do território nacional, da Amazônia ao Pampa. A criação do órgão liberou o Ibama para se concentrar nas tarefas de fiscalização e licenciamento.
Ao defender a separação das atividades, em 2007, a então ministra Marina Silva enfrentou protestos e greve. “Daqui a alguns anos, os servidores vão estar tão apegados ao Instituto Chico Mendes quanto são hoje ao Ibama”, ela previu. As reações à ofensiva do governo mostram que o tempo lhe deu razão.
O discurso tecnocrático de Salles esconde o verdadeiro problema: a asfixia deliberada dos órgãos ambientais. Sem concurso há oito anos, o Ibama sofre uma redução acelerada em seus quadros. Só no ano passado, um quarto dos funcionários se aposentou. O órgão terminará 2020 com mais cargos vagos do que ocupados.
A penúria tem consequências. Em 2019, o governo aplicou o menor número de multas ambientais em 16 anos, de acordo com levantamento do Observatório do Clima.
A destruição da governança ambiental é parte do projeto de Jair Bolsonaro. Na quinta-feira, ele anunciou, em tom de comemoração: “O Ibama não atrapalha mais”. “Antigamente o Ibama servia, com todo o respeito, para multar os caras, mais nada”, prosseguiu. Os “caras” no discurso do capitão são grileiros, madeireiros e ruralistas que o apoiam.
A tentativa de extinguir o ICMBio parece embutir outro desejo: eliminar o nome de Chico Mendes da estrutura do governo. Ao completar um mês no cargo, Salles chamou o seringueiro, símbolo da luta ambiental no país, de “irrelevante”. “Que diferença faz o Chico Mendes neste momento?”, desdenhou.
A comparação de biografias não favorece o ministro. Ele já foi condenado por improbidade administrativa, acusado de fraude para favorecer uma mineradora. Em abril, anunciou o plano de aproveitar a pandemia para “passar a boiada” na legislação ambiental.
Chico Mendes era um herói da floresta, reconhecido pela ONU como líder global na defesa do meio ambiente. Foi assassinado em 1988, a mando de um fazendeiro. Ao propor o fim do instituto batizado com seu nome, Salles ameaça matá-lo pela segunda vez.
Míriam Leitão: Caos e confusão como método
Por Alvaro Gribel (interino)
Depois de mais uma semana de brigas e perda de tempo, fica a pergunta sobre o que pretende o ministro Paulo Guedes no governo Jair Bolsonaro. Nas redes sociais, houve quem lembrasse uma frase do economista Roberto Campos, de que chegou ao Congresso querendo fazer o bem, mas depois viu que poderia apenas evitar o mal. No caso de Guedes, há dúvidas, porque parte dos problemas tem origem no seu temperamento. Se a conversa de Rogério Marinho com investidores foi tida como desleal, também não se pode dizer que tudo que ele falou não faz sentido.
Paulo Guedes chegou a Brasília carregando a fama de que não tinha experiência como gestor de equipes e de ser uma pessoa de difícil convívio. Por isso, sempre se saiu melhor como investidor, consultor e palestrante, onde conseguia encantar plateias, especialmente formada por seus pares. No governo, tem demonstrado falta de foco na formulação e apresentação de projetos — como disse Marinho — e repete sempre frases feitas, qualquer que seja o seu interlocutor. Na relação com a imprensa, não entendeu o básico sobre comunicação institucional.
Apesar da formação de economista, Guedes não parece muito afeito aos números. É comum o ministro arredondar dados para cima e fazer contas de 10 anos para, em qualquer contexto, chegar à casa do trilhão. Na semana passada, usou o artifício para dizer que o país já tem garantido R$ 1,2 tri de investimentos nesta década pelos marcos legais em andamento, da cabotagem, setor elétrico, saneamento e privatizações. Antes da pandemia, enquanto as projeções do mercado para o PIB caíam, ele dizia que o país ia “crescer o dobro” e citava dados da arrecadação, como faz até hoje. Quem acompanha as coletivas da Receita sabe que esse não é o melhor indicador antecedente de atividade. A entrada de recursos no caixa do Tesouro pode variar com pagamentos extraordinários e de acordo com o calendário. É uma estatística poluída.
A última semana foi exemplar do comportamento errático do ministro. Na entrevista em que anunciou o Renda Cidadã, na segunda-feira, defendeu o programa, alegando que ele tinha encontrado o timing perfeito para entrar na pauta. Na terça, silenciou, enquanto o relator do Orçamento, Márcio Bittar, defendia a ideia, que teve forte reação negativa do mercado. Na quarta-feira, Guedes apareceu de última hora na apresentação dos dados do Caged. Chamou o uso de precatórios de puxadinho, embora Bittar tenha afirmado que a proposta tenha nascido no Ministério da Economia. Terminou a semana em nova troca de farpas com Marinho.
Por causa da pandemia, as comissões do Congresso estão paralisadas. A que está em funcionamento é a da reforma tributária, mas ela não anda porque Guedes não enviou a proposta do governo. Sendo hoje domingo, provavelmente ficará para a “semana que vem”.
‘Já está no preço?’
Na reunião com investidores na quarta-feira, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, ouviu de analistas que qualquer tipo de contabilidade criativa para se criar o Renda Cidadã seria visto como uma forma de furar o teto de gastos. O deputado, então, questionou: “Então esse risco já está no preço?” Querendo saber se o pior já teria acontecido com a bolsa, o dólar e o risco-país. Ouviu como resposta um sonoro “não”, porque os investidores ainda não creem que o governo fará isso. Mas se fizer, vai piorar.
Sinais trocados
Enquanto várias sondagens apontam recuperação da confiança, os indicadores do mercado financeiro estão mostrando um cenário mais negativo para o Brasil, principalmente pela questão fiscal.O superintendente de Estatísticas Públicas do Ibre/FGV, Aloisio Campelo Jr., explica que a indústria e o comércio estão melhores, enquanto a confiança dos consumidores e serviços ficou para trás. “É importante ressaltar que a recuperação nas sondagens de confiança é para um patamar pré-crise, que não é tão alto. A economia não estava bombando antes do vírus, no início do ano”, explicou.
Efeito 'denominador'
Paulo Guedes tem citado a recuperação da utilização da capacidade instalada (Nuci), que subiu de 57%, no pior momento da crise, para 78% em setembro. Ou seja, por esse número, a ociosidade estaria voltando a níveis de antes da pandemia. Mas nem tudo é tão bom quanto parece, explica Campelo. Com a crise, houve fechamento de fábricas, o que provocou um “efeito denominador”. As empresas que fecham saem da estatística e o Nuci fica mais alto.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro não entende planos econômicos, Guedes tem manias e indecisão ameaça o país
'Paulo Guedes precisa falar menos', teria dito o presidente
No furdunço da pedalada desta semana, Jair Bolsonaro ouviu também conselhos de Roberto Campos, presidente do Banco Central, e gostou. Disse a um assessor do Planalto que Campos não entra em “brigalhada”, não faz barulho, é calmo e “joga para o time, sem vaidade”.
O assessor conta que perguntou se Bolsonaro estava então convencido de que seria preciso evitar manobras “fura-teto” para fazer o Renda Cidadã. O presidente respondeu algo como “é, isso a gente vai ver depois”. Importante mesmo era todo mundo do governo fechar a boca e deixar de “brigalhada”.
O presidente teria dito algo assim: “O Paulo Guedes precisa falar menos, precisa ficar uns dois meses quieto. O Braga Netto não fala nada. O Heleno parou de falar”.
Esse assessor pede para ressaltar que não há perspectiva de Guedes sair do governo e que os rumores velhos de que Campos ocuparia o lugar do ministro teriam sido plantados por inimigos pessoais.
Pelos relatos de quem anda perto de Bolsonaro, o presidente parece acreditar na última conversa que ouve a respeito de algum plano econômico, desde que o projeto não mexa com militares, policiais, aposentados e servidores. Fica feliz quando um grupo de políticos ou assessores apresenta o que parece ser uma solução definitiva e rápida, de modo efusivo e efervescente; “vai na onda”. Se o plano dá errado ou é mal recebido, tem dificuldade de entender os motivos e procura um culpado ou conspirador.
O presidente teria grande desconfiança da equipe econômica, que “não joga para o time”, não acha soluções, que inventa soluções burocráticas. Não seria o caso de Guedes, que teria ingenuidades e vaidades, mas seria leal e merece gratidão por ter apoiado Bolsonaro desde antes da campanha eleitoral.
Seja como for, Guedes é incapaz de convencer Bolsonaro de um plano ordenado e completo a respeito de quase qualquer coisa, vide a novela do Renda Cidadã. Por outro lado, acredita que vai tourear o presidente e convencê-lo de suas ideias fixas, como a CPMF. Mesmo com os vetos gritantes de Bolsonaro ao imposto, desde antes da posse do governo, o ministro jamais desistiu da ideia, como ficou evidente. São dois anos de cabo de guerra, problema que ora ameaça afundar a reforma tributária.
Gente do próprio ministério da Economia diz, de resto, que o ministro leva a Bolsonaro ideias que ainda não estão prontas, que acabam sendo chanceladas com pouca base, ou volta do Planalto com planos novos que acertou com o Planalto, mas que ainda não têm ou não terão fundamento. Sim, além do mais há secretários de Guedes que não gostam de Guedes.
E daí? É fácil perceber que esse método, digamos, produz indecisão sistemática, problema até para um governo que é fundamentalmente desvairado e apartado do universo da razão.
Os economistas do governo agora trabalham em um plano de cortes de despesas sociais “aos poucos”, de modo a não afrontar Bolsonaro, evitar um estouro do teto de gastos e financiar um Renda Cidadã, enquanto tentam ainda levar adiante as emendas emergenciais que permitirão um talho na renda dos servidores. Políticos do governismo e parte do ministério tentam ainda uma saída alternativa, que envolve sim um fura-teto, talvez extraordinário, como uma extensão do período de calamidade, do que Guedes está bem ciente e fala em público.
Não, não é esse o grande debate sobre o Brasil, mas é o que temos. É do acerto de pelo menos essa desordem vulgar que depende o futuro imediato da economia, goste-se ou não da solução.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A decepção de dois mestres
Mergulhamos na ortodoxia liberal e no populismo
Em sua coluna na Folha, em 18 de setembro último, Silvio Almeida falou de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), o notável sociólogo negro que foi um dos meus mestres nos anos 1950, quando eu tinha 20 anos. Em conjunto com Ignácio Rangel, Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro foi um dos grandes intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que se reuniram no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e repensaram o Brasil.
Eles o fizeram a partir das ideias de revolução nacional e industrial, as quais, para se concretizar, implicavam a crítica sistemática à dependência ou ao entreguismo das elites liberais locais e ao imperialismo das grandes potências. Conforme diz Silvio Almeida, Guerreiro Ramos é “a síntese de tudo aquilo que o atual governo brasileiro vem se empenhando em combater: uma pessoa negra, um intelectual, um defensor da soberania nacional e um servidor público preocupado com o Brasil”.
Naquela época, o Brasil tinha um projeto nacional de desenvolvimento baseado na ideia de industrialização e um líder político comprometido com esse modelo, Getúlio Vargas, o estadista que o Brasil teve no século 20.
Guerreiro e seus colegas apostaram na associação da burguesia industrial com os trabalhadores, a burocracia pública e os intelectuais desenvolvimentistas em torno desse projeto porque essa coalizão era uma realidade naquela época, não obstante suas ambiguidades e contradições. Estava acontecendo e estava dando certo. Entre 1930 e 1980, o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico acelerado que deu origem a uma grande classe operária e a uma grande classe média de natureza tanto gerencial e profissional quanto empresarial.
Entre 1930 e 1960, sob o comando ou a inspiração de Getúlio Vargas, e entre 1964 e 1980, sob o comando dos militares, o Brasil se industrializou e se tornou um grande exportador de bens manufaturados.
Mas, já nos anos 1970, surge uma teoria da dependência associada, de origem marxista, que era equivocada —tanto ao negar que a burguesia pudesse ser nacionalista quanto ao afirmar que o imperialismo não era contra nossa industrialização. Equivocada, mas que ganhou os intelectuais brasileiros porque estes eram democráticos e os militares haviam se tornado desenvolvimentistas.
Conheci bem Guerreiro. Eleito deputado federal em 1960, foi cassado em 1964 e se exilou nos Estados Unidos, onde se tornou professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Morreu em 1982, profundamente decepcionado com o Brasil e seus intelectuais.
Decepção semelhante aconteceu com outro grande intelectual brasileiro, também meu mestre, Celso Furtado. Ao morrer, em 2004, ele já via a economia brasileira semiestagnada desde 1980 e, desde 1990, dominada pela ortodoxia liberal.
Nos anos 2000, Lula tentou reverter esse quadro, mas a alternativa que os desenvolvimentistas ofereciam ao liberalismo econômico era pobre, baseada apenas na política industrial; faltava uma macroeconomia do desenvolvimento.
Desde 2013, depois de 33 anos de quase-estagnação, mergulhamos em uma grande crise política e econômica, enquanto se aprofundava a subordinação à ortodoxia liberal do Norte, não obstante essa ortodoxia venha sendo abandonada pelos países ricos desde então.
Há alguma esperança para o Brasil? O país pode voltar a ter um projeto nacional de desenvolvimento? Não estou seguro. Há dois grandes líderes políticos hoje no Brasil, Lula e Ciro Gomes; e há um terceiro, jovem, que aponta para o futuro, Guilherme Boulos. Ciro é o que está mais próximo a ter um projeto.
Mas Getúlio Vargas tinha por trás de si uma sociedade que se repensava, ajudada por seus intelectuais. Isso não acontece hoje.
Nossas elites intelectuais estão perplexas. Tão perplexas quanto as do Norte, que dizem, equivocadamente, que sua crise é a crise da “democracia liberal”. Na verdade, é a crise do neoliberalismo americano, que é dominante naquele país desde 1980, diante do bem-sucedido desenvolvimentismo chinês.
É uma crise que está levando os países ricos, um a um, a abandonar o liberalismo econômico e a adotar políticas desenvolvimentistas, enquanto o Brasil, ao invés de se repensar, como fizeram seus intelectuais nos anos 1950, mergulha no liberalismo econômico e no populismo de direita.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)
Bruno Boghossian: Bolsonaro busca atalho conservador para eleitor do Nordeste
Parte da retórica do presidente na pauta de costumes tem adesão acima da média na região
No palanque montado em São José do Egito, no sertão pernambucano, Jair Bolsonaro mencionou Deus dez vezes em pouco mais de cinco minutos. Quase no fim do discurso, o presidente pediu que a plateia votasse em “gente que tenha Deus no coração” nas eleições municipais e acrescentou o lema do integralismo: “Deus, Pátria e Família”.
Além de multiplicar sua presença em inaugurações e surfar no auxílio emergencial do coronavírus, Bolsonaro também aposta na retórica conservadora para cristalizar sua popularidade no Nordeste. A pauta de valores pode servir de atalho para o eleitorado da região num momento de incertezas na economia.
Embora tenham produzido efeito limitado na campanha de 2018 por ali, onde Bolsonaro teve votação modesta, alguns itens de sua agenda de costumes têm adesão acima da média na população nordestina.
Uma pesquisa do Datafolha mostrou, no fim daquele ano, que 54% dos entrevistados da região eram contra o aborto em caso de estupro. No Sudeste, o percentual era de 39%.
No ano anterior, o instituto perguntou se uma mulher que interrompesse a gravidez deveria ser processada e ir para a cadeia. No Nordeste, 66% concordaram com a punição, contra 51% no Sudeste.
Diferenças regionais não ocorrem em todos os temas. O percentual de brasileiros que rejeitavam a educação sexual nas escolas em 2018, por exemplo, era similar no Nordeste (43%) e no Sudeste (44%). Ainda assim, o índice era alto o suficiente para reforçar a sensibilidade da agenda.
O apelo à pauta de costumes pode ser útil porque certos pontos embaralham a identificação rotineira com políticos de direita e esquerda. Na pesquisa de 2017, 67% dos entrevistados que diziam apoiar uma candidatura de Lula eram favoráveis à prisão de mulheres que abortassem.
No auge de sua popularidade, aliás, o petista dizia ser contra o aborto, mas defendia sua abordagem como questão de saúde pública. Em 2016, ele repetiu a posição e declarou ser “católico, cristão e até conservador”.
Janio de Freitas: Kassio Nunes é portador de um silêncio valioso
Indicado ao STF, Kassio Nunes Marques é portador de um silêncio valioso
O melhor a dizer sobre a indicação de novo integrante do Supremo é se tratar de dupla incógnita. O desempenho no tribunal depende da combinação de fatores como saber jurídico e orientação doutrinária, experiência de vida, concepção de ordem social, e outros, todos permeados pela qualidade do caráter. E nada disso se fez conhecido, de fato, na personalidade de Kassio Nunes, o que ficou demonstrado na vaguidão dos metros de noticiário sobre o personagem inesperado.
No caso, a incógnita é menos ruim do que era conhecido e previsto. A especulação que ruiu, ao fim de meses, dividia a preferência de Bolsonaro entre André Mendonça e Jorge Oliveira. O primeiro atenderia à escolha de alguém “terrivelmente evangélico”, qualificação que sintetiza todo um conjunto de ideias planas e pedregosas anti-ideias. Ministro da Justiça, apressou-se em reavivar a ditatorial Lei de Segurança contra o articulista Hélio Schwartsman e o cartunista Aroeira. Seria, pois, um magistrado terrivelmente previsível —embora não o único.
Discreto secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira chegaria ao tribunal com a cicatriz indelével de membro do grupo palaciano. De um daqueles que endossam, com seu passado e seu futuro, os desmandos de Bolsonaro e suas consequências funestas. Não é incomum que ministros do Supremo aparentem despir-se de sua origem política, e alguns o façam mesmo. Metamorfose, convenhamos, que não é para qualquer um. E não era pressentida em Jorge Oliveira, ao menos de modo absoluto.
A outra incógnita na indicação de Kassio Nunes Marques é o motivo real de Bolsonaro para adotá-lo. Porque foi indicado pelo presidente do PP, para amarrar mais o centrão, como gesto de afastamento do grupo ideológico, essas e outras especulações apenas preencheram o vazio informativo.
Certo é que Bolsonaro e seu grupo têm objetivos definidos que conflitam com vários preceitos da Constituição e com inúmeras leis. Assuntos, quando não possam ser impostos como a devastação ambiental, para interferência do Supremo. E Bolsonaro tem ainda os problemas judiciais que ameaçam filhos, o próprio Bolsonaro e até a mulher, todos sob risco de chegar ao Supremo.
Com tais expectativas, conhecer um desembargador na tarde de uma quarta-feira, reencontrá-lo à noite em jantar de políticos na casa da senadora Katia Abreu e, ali mesmo, anunciá-lo como sua indicação, convenhamos, compõem um percurso inconvincente.
Mais ainda, para fazer o que seria esperável de André Mendonça, Jorge Oliveira ou João Otávio Noronha, Bolsonaro não precisaria de um neófito nas suas relações. Kassio Nunes Marques é portador de um silêncio valioso.
A SERVIÇO
Ainda antes de se refazer da acusação de tentar distorcer investigações da Lava Jato, a procuradora Lindôra Araújo confirma sua disposição. Pediu ao Supremo que rejeite a denúncia contra o deputado Arthur Lira por corrupção.
A originalidade está em que a acusação foi feita pela própria Lindôra Araújo, assegurando então que “a investigação comprovou o repasse de propina ao parlamentar”. Agora a procuradora acusa a mesma denúncia de “fragilidade probatória”. No intervalo, Lira tornou-se bolsonarista de liderança no centrão.
Se não punida por denúncia com falsa comprovação, Lindôra Araújo teria de sê-lo por retirar denúncia com comprovação verdadeira. Mas talvez nem valha o trabalho. Punição no Ministério Público Federal é ficção.
MAIS FOGUEIRAS
Discriminado por muito tempo como escritor, Paulo Coelho acabou calando os detratores, movidos a arrogância ou inveja, ou ambas. Volta a ser atacado. Livros seus são queimados por bolsonaristas nas redes, servindo à informação de que já chegamos também a esse estágio da boçalidade celebrado no nazismo. Parabéns a Paulo Coelho.
DEMOLIÇÃO
Os negócios sombrios do esquartejamento da Petrobras em mais um capítulo: agora autorizada por pequena maioria de dois votos no Supremo, a Petrobras vai vender sem licitação oito refinarias por R$ 8 bilhões. Valor que a operação dessas empresas lhe daria e seguiria rendendo. O que está óbvio na existência de pretendentes à compra.
Em paralelo à venda “para fazer caixa”, a Petrobras está na iminência de adquirir a parte da francesa Total em cinco áreas na foz do Amazonas. A Total sai porque já houve quatro recusas de licença ambiental para a exploração da área.
SEMPRE
Projeto muito interessante, mandado por Bolsonaro ao Congresso na quinta-feira (1º): tirar mais R$ 1,5 bilhão da Educação para obras.
Elio Gaspari: Puseram Michelle numa fria
Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões
A repórter Constança Rezende mostrou que o vírus dos áulicos capturou R$ 7,5 milhões que o frigorífico Marfrig doou ao governo em março para a compra de 100 mil testes rápidos para detectar o coronavírus. Testaram zero e a história dessa maluquice é uma viagem ao mundo da burocracia, da bajulação e das espertezas.
Aos fatos:
No dia 23 de março a Marfrig ofereceu o dinheiro à Casa Civil da Presidência da República.
A primeira encrenca. Dias depois o Itaú-Unibanco fez o certo. Anunciou a doação de R$ 1 bilhão para o combate à pandemia sem colocar um só tostão na máquina do governo. Bolsonaro dizia que “brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”.
No dia 20 de maio a Casa Civil informou que o dinheiro seria usado “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”. Levaram dois meses para processar a informação. Já haviam morrido 18.959 pessoas. O ministro Paulo Guedes dizia que tinha um amigo inglês capaz de fornecer 40 milhões de testes por mês ao Brasil.
Passaram maio e junho. A 1º de julho a Casa Civil mudou de ideia e perguntou à Marfig se o dinheiro dos testes podia ser usado no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao programa Pátria Voluntária, de Michelle Bolsonaro, mulher do presidente. Diante de tantos nomes bonitos, quem seria capaz de dizer não? A essa altura já tinham morrido 60.194 pessoas.
Juntaram-se dois erros. Num, o dinheiro iria sabe-se lá para onde. No segundo, caiu na velha cumbuca das obras assistenciais da mulher do presidente. Salvo no Comunidade Solidária de Ruth Cardoso, elas quase sempre foram uma fábrica de encrencas. Geridas por áulicos, apurrinharam as vidas de Maria Thereza Goulart e de Rosane Collor de Mello.
O dinheiro da Marfrig foi doado para a compra de testes, mas os çábios expandiram o alcance. Iria também para medicamentos, comida ou material de limpeza. Qualquer coisa, enfim. A Associação de Missões Transculturais Brasileiras, outro nome bonito, recebeu R$ 240 mil. No seu endereço funcionava um restaurante, mas seu presidente informa que, por ser uma associação, “só tem endereço fiscal”. Fica combinado assim.
Marquetagens e manobras burocráticas puseram Michelle Bolsonaro numa fria. Ela, como acontecia com Maria Thereza Goulart e Rosane Collor de Mello, não administra o dinheiro dos programas a que empresta seu nome. Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões. Ao final a conta vai para a senhora.
A Casa Civil informa que só a Fundação Banco do Brasil sabe o destino exato dos R$ 7,5 milhões da Marfrig. Se o dinheiro não serviu para testar pessoas, o caso pode servir para testar a capacidade do governo e do Banco do Brasil de dizer que aconteceu com o ervanário. O Itaú-Unibanco sabe para onde foi cada centavo do bilhão que doou.
UM GRANDE REPUBLICANO
Acaba de sair nos Estados Unidos o livro “The Man Who Ran Washington” (“O Homem que Mandou em Washington - A Vida e os Tempos de James Baker III”). Ele comandou as campanhas de três presidentes republicanos. Foi chefe da Casa Civil de Ronald Reagan e George Bush 1º, secretário de Estado e do Tesouro.
Junto com seu parceiro de duplas de tênis Bush 1º, administrou a diplomacia americana durante o colapso da União Soviética e a reunificação da Alemanha. Se isso fosse pouco, articulou a equipe de advogados que garantiu a presidência dos Estados Unidos para Bush 2º. Nela incluiu John Roberts, atual presidente da Corte Suprema.
Nascido numa família de advogados texanos, James Baker foi criado no conforto. Para quem viu as baixarias de Donald Trump no debate de terça-feira, sua vida mostra que existem conservadores e republicanos decentes.
A única eleição que disputou mostra quem ele era. Seus marqueteiros mostraram-lhe que o adversário deixara em liberdade um criminoso que mais tarde mataria duas pessoas. Baker recusou o tema. Ele achou que a acusação seria pessoal. Perdeu a eleição.
O autor do livro é o jornalista Peter Baker, sem parentesco com o biografado. A fábrica que produzia conservadores craques como Bush 1º e James Baker está temporariamente fechada. Aos 90 anos, leva a vida em Houston, caçando e pescando.
Bolívar Lamounier: Dois Bolsonaros
Um já conhecemos bem e o outro é o que me parece necessário, mas não sei se é possível
Espero que meus caros leitores e leitoras não estranhem o título deste artigo. De fato, hoje meu objetivo é contrastar dois presidentes Bolsonaro, um que já conhecemos bem e outro que me parece necessário, mas não sei se é possível.
É inegável que o presidente real, esse que conhecemos bem, teve um lance de inteligência, ou, melhor dizendo, de esperteza, no transcurso de sua já extensa carreira. Percebeu que sua figura, seu modo de ser e falar, se encaixava bem no papel que os eleitores estavam procurando: encarnar o antipetismo (vale dizer, o desastre legado por Lula e Dilma Rousseff), ante o desnorteio, a divisão, a inapetência ou que nome devam ter os chamados “partidos de centro”, que se apresentaram na eleição presidencial de 2018 como que incapacitados por um instinto suicida.
Tirante o referido lance de esperteza – e aqui me esforçarei para ser objetivo, com todo o respeito a Sua Excelência –, realmente não há muito a ressaltar na trajetória de Jair Bolsonaro. Da carreira militar foi levado a se afastar no posto de capitão. Na Câmara dos Deputados, durante 28 anos, foi uma corporificação perfeita do parlamentar do “baixo clero”, não aparecendo como autor de nenhum projeto marcante ou por algum momento de real protagonismo.
Na Presidência da República, tem-se mantido na contramão dos agentes de saúde que diariamente põem sua vida em risco, na linha de frente do combate à covid-19. Recusa-se até mesmo a observar os protocolos, fomentando aglomerações, recusando-se a usar máscaras e receitando o remédio em que acredita, peremptoriamente contestado pelos mais destacados cientistas e institutos de epidemiologia do mundo. Sou forçado a repetir esses lugares-comuns pelo que eles têm de pitoresco, pois a verdade é que a própria forma de transmissão da doença ainda não está satisfatoriamente esclarecida.
Um terceiro traço do Bolsonaro real é sua evidente incompreensão de certas engrenagens da sociedade e da política brasileiras. Por exemplo: ele prometeu erradicar a “velha política”, substituindo-a, presumivelmente, por uma nova, da qual somente participassem homens lúcidos, probos, competentes e devotados ao bem público. Nutrirá, por acaso, o presidente a crença de que a “velha política” é um fenômeno recente? De que muitos dos que nela ingressam o fazem com a evidente intenção de assaltar o erário? De que sem partidos sérios não há como haver política séria – e, convenhamos, um país ter 30 pequenos partidos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa? Desconhecerá, talvez, que mesmo com políticos e partidos razoáveis, o Brasil continuará por um bom tempo encalacrado na velha disjuntiva entre concepções econômicas “nacional-estatistas” e “neoliberais”, as primeiras sabidamente responsáveis por grandes desastres e a segunda (presumindo que saibamos o que é) nunca praticada de forma consistente entre nós?
Um Jair Bolsonaro “possível” é realmente uma possibilidade ou apenas um sonho de uma noite de verão? A primeira coisa que esse ser imaginário teria de entender é que não somos um país navegando em mar sereno, rumo ao desenvolvimento e ao bem-estar, mas, bem ao contrário, um país que corre sérios riscos de retrocesso. E que os conflitos que hoje grassam na sociedade, e nos assustam, poderão piorar muito mais, alastrando-se e tornando-se muito mais violentos, se não lograrmos aumentar substancialmente o investimento e a taxa de crescimento da renda anual per capita, com uma melhor distribuição, vigorosamente reforçada por um sistema de ensino apresentável.
Mas a tragédia que nos espreita é muito maior do que o que me empenhei em esboçar no parágrafo anterior. Mais grave é Jair Bolsonaro não ter feito uma leitura correta do estado de alma dos brasileiros, fazendo pose de violento dia sim e outro também, quando o que dele se espera é uma postura comedida, um exemplo de que precisamos dar meia volta e retomar, não direi o espírito de uma sociedade sem conflitos, mas pelo menos o de um país com instituições civilizadas, pautadas por boas maneiras. Invocar Deus e a religião é direito de qualquer um, mas um homem público precisa primeiro perceber que a sociedade brasileira tem uma ordem normativa muito frágil.
Como indiquei acima, Jair Bolsonaro convive há cerca de três décadas com a classe política e a cúpula dos três Poderes. Esse convívio deve ter-lhe ensinado muita coisa, e o ministro Paulo Guedes deve ter preenchido eventuais lacunas. Ambos sabem que os altos escalões consomem cifras astronômicas, tornando inviável o ajuste fiscal e solapando as bases da legitimidade política que precisamos urgentemente reconstruir. A receita para isso não é ameaçar jornalistas. É enfrentar de rijo o problema, propondo reformas administrativas e políticas realistas, que precisam ser trabalhadas com calma e de forma objetiva. É manter a compostura e a serenidade que se requer de um chefe de Estado, reconduzindo a sociedade à trilha que ela parece momentaneamente haver perdido.
*Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Eliane Cantanhêde: Teto? Que teto?
Sem Guedes, tem de compensar a fuga ‘de cima’ comprando a turma ‘de baixo’. E o teto?
O que está em jogo no isolamento do ministro da Economia não é apenas a queda ou não de Paulo Guedes, um nome a mais ou a menos. A questão central, que preocupa e assusta, é a sobrevivência do último pilar da campanha do presidente Jair Bolsonaro: liberalismo e pragmatismo na economia. Ou seja: o que balança não é Guedes, é a política econômica.
Do Bolsonaro de 2018, pouco sobra. A promessa de combate à corrupção amarelou com a investida nos órgãos de investigação e apagou com a queda de Sérgio Moro. O embate contra a “velha política” foi-se com o abandono do PSL e das novas bancadas do Congresso, trocados na cara dura pelo Centrão e seus ícones.
O que sobra? Sobra o compromisso com liberalismo, reformas, privatizações e desburocratização, que vai perdendo credibilidade com um Paulo Guedes claudicante, sem resultados e com os nervos à flor da pele. A sensação em Brasília e no mundo dos negócios é que, apesar do blábláblá, estourar o teto de gastos é questão de tempo.
É isso, inclusive, que o fura-teto Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional e inimigo frontal de Guedes, já diz abertamente. Depois nega, mas obriga Guedes, com ar cansado, a lembrar: “Furar o teto para fazer política e ganhar a eleição é irresponsável com as futuras gerações, é mergulhar o Brasil no passado triste de inflação alta”.
A guerra pública de Guedes é, num dia, contra o deputado Rodrigo Maia e, no outro, com Rogério Marinho, mas Guedes sabe quem é o adversário real e o recado teve um alvo certo quando ele falou em furar o teto para “ganhar eleição”. Esse alvo se chama Jair Messias Bolsonaro, seu chefe.
O presidente está em campanha, exige um Bolsa Família para chamar de seu, insufla os fura-teto, fecha os olhos para os ataques de Marinho e dá ouvidos aos militares do Planalto que, de economia, entendem zero. Logo, o risco para Guedes e a política econômica liberal que elegeu Bolsonaro é o próprio Bolsonaro, que se aproveita de um dado da realidade: Guedes fala muito, mas entrega pouco e foi pego de jeito pela pandemia e a cambalhota na prioridade fiscal.
Da campanha de 2018, sobram ainda a política externa centrada em Donald Trump, de futuro incerto; a pauta conservadora, que fez Bolsonaro refém de igrejas evangélicas multimilionárias; a visão destruidora do ambiente, que joga o mundo contra o Brasil; e a obsessão pelas armas, que derruba textos, portarias e decisões do Exército, deixando no ar a suspeita de estímulo a milícias.
Soa só ridículo, mas é perigoso, que setores evangélicos cobrem privilégios na Receita, interfiram em nomeações do governo e exijam que o futuro ministro do Supremo Kassio Marques faça uma profissão de fé no “conservadorismo”. E o que dizer do Meio Ambiente, onde as queimadas destroem e a boiada passa? Incêndios criminosos na Amazônia e Pantanal, cipoal jurídico contra a preservação de manguezais e restingas, desidratação de Ibama e ICMBio e a versão da “ganância internacional”.
Só falta recriar o MEC, já que, em quase dois anos de governo, educação e cultura andam juntos, sem rumo, prioridade e respeito. O foco do ministro Milton Ribeiro é (contra) a educação sexual, os gays e os “jovens sem fé”. Na Cultura, depois do vídeo nazista, agora a transferência da Fundação Palmares para o ex-almoxarifado da EBC, caindo aos pedaços.
Logo, Bolsonaro deveria reafirmar, não só de boca para fora, seu compromisso com o liberalismo – que é o que lhe sobra. Bolsonarista raiz joga Guedes fora com a mesma ligeireza que jogou Moro, mas bolsonarista nos mercados, empresas, fundos investimentos e opinião pública pode atingir seu limite. Para compensar a fuga “de cima”, só comprando a turma “de baixo”. Teto? Que teto?